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Autonomia individual e o direito a contrair doenças – Por João Paulo Orsini Martinelli Empório do Direito

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Por João Paulo Orsini Martinelli – 11/03/2016
Em recente matéria veiculada pela BBC Brasil[1], foi noticiado que uma jovem britânica aceitou contrair
febre tifóide mediante pagamento de 3 mil libras. Ela própria, anteriormente, já havia contraído uma forma
do vírus ebola, para receber uma quantia de 500 libras. Nas duas situações, os objetivos do contágio
voluntário, além do pagamento, eram pesquisas cientíácas que envolvem testes clínicos para o
desenvolvimento de novos medicamentos. Os pesquisadores responsáveis fazem o monitoramento para
detectar as reações e um diário é elaborado com as sensações experimentadas pelo próprio voluntário.
Tanto a febre tifóide quanto o vírus ebola podem levar à morte.
Levantou-se uma polêmica sobre “mercantilização” da própria saúde pela exposição da integridade física a
perigo em troca de pagamento. Questões éticas sempre são suscitadas em situações semelhantes: qual o
limite entre o aceitável e o inaceitável para alguém comercializar o próprio corpo, especiácamente sua
saúde? Ao passar os olhos rapidamente pela jurisprudência, deparamo-nos com decisões bastante inâexíveis
Autonomia individual e o direito a contrair doenças – Por João
Paulo Orsini Martinelli
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a respeito do consentimento nas lesões corporais. Aceita-se o consentimento como excludente do crime
apenas nas lesões leves; ao contrário, nas lesões graves e gravíssimas, o consentimento é inválido e aquele
que as provocou deve responder pelo ilícito. Ou seja, a gravidade da lesão tem maior relevância que a
autonomia individual.
Para a jurisprudência, e grande parte da doutrina, a tutela da dignidade humana impede que o ofendido
consinta para terceiro provocar-lhe lesões graves ou gravíssimas, nas quais se inserem prejuízos à saúde.
Segundo esse entendimento, a dignidade humana é indisponível e, portanto, qualquer ato atentatório deve
ser reprimido pelo sistema penal. Se o fundamento do desprezo ao consentimento é a tutela da dignidade
humana, qual o seu conceito? Quem decide o que é digno ou não a uma pessoa determinada? Há valores
universais que devem ser preservados a todo custo ou nenhum valor é absoluto? Uma pessoa pode optar
por contrair uma doença grave em troca de dinheiro? Todas essas perguntas são difíceis de ser respondidas,
portanto, opiniões prontas e repetitivas não são suácientes.
Tradicionalmente, estudamos os princípios do Direito Penal com base nas estruturas do bem jurídico e da
culpabilidade: lesividade, ofensividade, fragmentariedade, subsidiariedade, intranscendência da pena,
proibição da responsabilidade objetiva, entre outros. Acontece que, ao contrário do sistema anglo-saxão,
pouca – ou nenhuma – atenção é dada ao princípio da autonomia individual. O titular do bem jurídico só
aparece no princípio da proibição de autolesões, e, mesmo assim, quando o bem for disponível. A
disponibilidade ou não do bem jurídico, regra geral, parte de um juízo de valoração do observador externo,
e não do seu titular. Esse método de avaliação ignora completamente a autonomia do indivíduo e seus
valores, transferindo ao julgador a tarefa de se colocar em seu lugar para saber o que é certo ou errado.
Num Estado Democrático de Direito, não cabe ao ente estatal dizer o que é melhor ou pior a uma pessoa.
Quando houver autonomia, capacidade de autodeterminação, deve-se respeitar as escolhas individuais,
mesmo quando não estiverem de acordo com a opinião do observador externo. A intromissão excessiva do
Estado na liberdade individual é perigosa à manutenção da diversidade e das liberdades. Como já dizia
Stuart Mill, ninguém sabe o que é melhor a si do que a própria pessoa. Um comportamento só pode ser
reprimido pelo Estado quando representar perigo a interesses alheios, isto é, aquilo que ácar na esfera
individual não é relevante para quem está no lado de fora.
A dignidade humana sempre deve ser o princípio norteador da atividade legislativa e judicial do Estado.
Entretanto, não há um conceito único de dignidade, pois cada pessoa é diferente da outra, com suas
peculiaridades e valores. A dignidade humana deve ser tomada pelo histórico de vida de cada um, com os
valores adquiridos ao longo de seu desenvolvimento. A história de cada indivíduo diz o que é digno ou não,
pois os valores são adquiridos aos poucos, na formação de sua personalidade, e não por força e
repentinamente. O que é certo para um pode ser errado para outro.
Não se defende aqui o direito de uma pessoa abrir mão da própria vida ou da saúde a qualquer momento,
em qualquer situação ou sem uma avaliação preliminar. No entanto, decidir o que é bom ou ruim para quem
tem autonomia pode levar à imposição de um padrão moral de comportamento, regido pela vontade de
quem exerce o poder. O moralismo jurídico não pode ser legitimado sob pena de abrir a porteira do
autoritarismo e de permitir um expansionismo ainda maior do Direito Penal. Basta lembrar que, no Brasil,
até 2005, o adultério, problema exclusivo de um casal, era crime. E, em alguns países, atualmente a prática
de relações homoafetivas está criminalizada, apesar de não provocar qualquer dano.
Cabe a cada um decidir o que é melhor para si, desde que haja autonomia necessária. A esfera de
individualidade diz respeito apenas a quem faz suas escolhas. Desde que não haja lesão a interesses de
outros, decisões consideradas prejudiciais à pessoa devem ser respeitadas quando forem voluntárias e
conscientes. Esse respeito estende-se a resoluções que envolvem contrair uma doença perigosa, arriscar a
vida em atividades esportivas radicais, recusar a transfusão de sangue por motivos religiosos e interromper
tratamento médico em pacientes em estado terminal e irreversível. No caso da universitária britânica em
questão, as informações fornecidas esclarecem sua capacidade de discernimento e liberdade de escolha.
Notas e Referências:
[1] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160229_febre_tifoide_lgb
. 
João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos
Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no
IBCCRIM no Rio de Janeiro. 
.
Imagem Ilustrativa do Post: Taken // Foto de: Judit Klein // Sem alterações
Disponível em: https://www.âickr.com/photos/juditk/4426611518
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou
posicionamento do Empório do Direito.
 
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