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Titulo: O Direito Internacional Entre Dois Pós-Modernismos: A Ressignificação das Relações Entre Direito Internacional e Direito Interno Autor: Arthur Roberto Capella Giannattasio Publicado em: Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 6, 2010, pp. Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume6/ ISSN 1981-9439 Com o objetivo de consolidar o debate acerca das questões relativas ao Direito e as Relações Internacionais, o Centro de Direito Internacional – CEDIN - publica semestralmente a Revista Eletrônica de Direito Internacional, que conta com artigos selecionados de pesquisadores de todo o Brasil. O conteúdo dos artigos é de responsabilidade exclusiva do(s) autor (es), que cederam ao CEDIN os respectivos direitos de reprodução e/ou publicação. Não é permitida a utilização desse conteúdo para fins comerciais e/ou profissionais. Para comprar ou obter autorização de uso desse conteúdo, entre em contato, info@cedin.com.br 42 O DIREITO INTERNACIONAL ENTRE DOIS PÓS-MODERNISMOS: A RESSIGNIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO Arthur Roberto Capella Giannattasio RESUMO Discute-se, a partir de um estudo de caso, a relação entre o Direito Internacional e o interno, para entender as explicações de duas diferentes chaves-cognitivas justificadoras da prevalência de um ou de outro. O Caso LaGrand aponta para o tema da relação da ordem jurídica interna com a internacional, questão de fundamental importância para o pensamento jurídico internacionalista, uma vez que, no momento da aplicação do Direito, deve-se optar pela aplicação das disposições do Direito Internacional ou do Direito interno A compreensão clássica, westfaliana, permeia concepções sobre as relações entre o Direito Internacional e interno e sobre a prevalência de um ou de outro. Fundada no instituto jurídico-político Moderno da Soberania, essa compreensão voluntarista do Direito Internacional remete à superada discussão entre o dualismo e o monismo. A inserção do Direito Internacional na Pós-Modernidade implicou a superação dessa percepção clássica, impondo a reconstrução do conceito de Direito Internacional, de seus princípios estruturantes e das soluções tradicionais. Dentro do Pós-Modernismo jurídico, existem dois modelos que explicam a relação entre o Direito Internacional e o interno. Neste Pós-Modernismo Transicional, os dois diferentes modelos buscam justificar, por motivos racionais de especialização funcional temática (Governança Global), ou por razões axiológicas (Direitos Humanos), a prevalência incondicional do Direito Internacional sobre o interno. Trata-se de ambiente de transição, em que o modelo novo convive com o antigo, persistindo a diferenciação entre ordem interna e internacional. Palavras-chave: Caso LaGrand; monismo; dualismo; Pós-Modernidade ABSTRACT The paper discusses, starting from a case study, the relationship between International Law and Domestic Law from the perspective of two main models. LaGrand Case points to a fundamental issue in international legal thought, as it is permeated by the discussion on the relationship between International Law and Domestic Law: when applying the law, one must choose between the provisions of International Law or those from Domestic Law. Doutorando do Departamento de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP); Graduando em Filosofia pela FFLCH/USP; pesquisador do NEV/USP e da DireitoGV-FGV/SP. 43 The classical westphalian explanation is the basis of conceptions about the relationship between International Law and Domestic Law, as well as of interpretations on the prevalence of one of them. Founded in the Modern political and legal institute of Sovereignty, this volitional apprehension of International Law refers to the surpassed debate between dualism and monism. The insertion of International Law in Post-Modernity surmounted this classical comprehension, since its juncture imposed the reconstruction of Law and International Law‟s conceptions, of their structuring principles, as well as of their traditional solutions. Within Legal Postmodernism, there are two understandings which explain the relationship between International Law and Domestic Law. This Transitional Postmodernism, due to rational motives of thematic functional specialization (Global Governance), or due to axiological reasons (International Human Rights), believes that International Law prevails unconditionally over Domestic Law, expressing a transitional context in which the new model coexists with the older one, remaining the difference between the two legal orders. Keywords: LaGrand Case; monism; dualism; Postmodernism 44 1 INTRODUÇÃO [D]o jurista também se exige a capacidade de escolher e de aprimorar as instituições existentes, ou de criar outras novas, em função de objetivos que lhe são propostos pelas necessidades da vida quotidiana. (COMPARATO, 1978, p. 470-1). O direito internacional pós-moderno tem de enfrentar os problemas da vida e do mundo. O mundo é o teatro no qual se faz o direito internacional pós- moderno, como produto cultural e reflexo do tempo no qual se inscreve. Com toda a vastidão e complexidade que isso acarreta. (CASELLA, 2006, p. 831). O presente artigo trata, a partir de uma abordagem jusfilosófica, do clássico tema da relação entre o Direito interno e o Internacional, com base em um breve estudo de caso relacionado ao assunto. O objetivo de presente estudo consiste em apresentar e de propor conclusões e questões renovadas sobre o referido tema clássico, a fim de contribuir para o desenvolvimento do pensamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, optou-se por apresentar, de maneira bastante breve, as principais questões em torno do Caso LaGrand, julgado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), em que se discute principal, mas não exclusivamente, o tema do descumprimento de obrigação internacional, assumida por um Estado, de criar condições para haver a proteção consular de estrangeiros, presos em seu território, por parte de seus respectivos países de que são nacionais, nos termos da Convenção de Viena de Relações Consulares de 1961 (CVRC), seja por meio da comunicação dos órgão consulares de determinado país acerca da prisão de um de seus nacionais, seja por meio da informação da existência desse direito de assistência ao estrangeiro preso. Em outras palavras os Estados Unidos da América (EUA) deixaram de cumprir a obrigação constante de Tratado Internacional, a CVRC, desconsideraram mandamentos vinculantes emitidos pela própria CIJ, além de terem entendido não ter havido qualquer prejuízo ao Direito Internacional pela não alteração da ordem jurídica positiva processual interna em função de compromisso internacional assumido, na medida em que não existiria qualquer obrigação no sentido de modificação do Direito interno em razão do Direito Internacional. O Caso LaGrand, como nos casos BREARD e AVENA e outros Nacionais Mexicanos, toca o tema da relação da ordem jurídica interna com a internacional, questão de fundamental importância para o pensamento jurídico internacionalista, uma vez que, no momento da aplicação do Direito, deve-se optar pela aplicação das 45 disposições do Direito Internacional ou do Direito interno (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2002, p. 64-5). A dificuldade de aplicação conjunta e concomitante de mais de um ordenamento jurídico decorre do fato de que, porexigências típicas de um sistema do Direito, a saber, a identidade, a singularidade e a totalidade (FERRAZ JR., 1976), consubstanciadas na idéia de coerência e coesão sistêmico-funcionais (KELSEN, 2000, 2005; MÜNCH, 1996), em determinados pontos em torno de questões específicas, os tratamentos de cada regime jurídico podem ser incompatíveis em razão de contradição ou de contraditoriedade entre as disposições (ALVES, 2003). Em outras palavras, nesses momentos de potencial aplicação de normas jurídicas oriundas de regimes jurídicos distintos, há que se decidir pela prevalência de um ou de outro para solucionar uma controvérsia sujeita àqueles dois regimes jurídicos (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2002, p. 64-5), a fim de que a decisão seja sistemicamente coerente e coesa – relação de homeostase dinâmica entre os elementos intra-sistêmicos -, de tal modo que o resultado possa ser previsível, estável e seguro (FARIA, J. H., 2004, p. 145-50; MÜNCH, 1996, p. 188-202). Deve-se notar, entretanto, que, se dentre o pensamento jurídico internacionalista, é possível identificar uma preferência pela prevalência do Direito Internacional sobre o Direito interno, não se pode se esquecer de que essa posição da literatura jurídica de Direito Internacional nem sempre foi, e nem é, de todo unânime entre os principais autores de Direito Internacional, como poderá ser verificado oportunamente. Ademais, não se pode deixar de mencionar que mesmo as práticas dos Tribunais nacionais - nem mesmo dos principais Tribunais brasileiros – seguiu aquela posição, devendo-se notar, nesse sentido, que essa postura de recusa da prevalência da ordem jurídica internacional sobre a interna se trata de opção político-jurídica de resistência ao Direito Internacional que não é exclusiva de países centrais no cenário político, econômico e jurídico internacional. Deste modo, o presente estudo examina, precisamente, sob uma perspectiva jusfilosófica, o tema da relação entre o Direito Internacional e o Direito interno, a fim de tentar compreender a sucessão histórica de modelos teóricos que tentaram explicar essa interação sistêmica entre duas ordens jurídico-positivas diversas. Não se pode deixar de perceber, inclusive, que cada um deles pretendeu fornecer uma resposta, de acordo com seus critérios e parâmetros específicos, à dificuldade de 46 lidar com a complexidade e com a diversidade de possíveis regimes jurídicos incidentes sobre uma mesma situação juridicamente regulada, sempre com o objetivo de determinar a prevalência de um ou de outro, ora a ordem jurídica internacional sobre a interna, ora esta sobre aquela. Nesse sentido, será possível identificar dois grandes grupos de pensamento que tentam explicar a lógica de funcionamento da inter-relação entre Direito Internacional e Direito interno, com o objetivo de tentar encontrar uma possível prevalência de um regime jurídico positivo sobre outro. São eles, (i) o Modernismo Westfaliano; e o (ii) Pós-Modernismo Transicional. Cada um deles oferece uma matriz cognitiva dotada de aparato conceitual próprio, permitindo, segundo sua lógica e sua linguagem específicas, identificar uma espécie de padrão de legalidade prevalecente. Todavia, ao mesmo tempo em que se desenvolvem arsenais conceituais jurídicos renovados, com objetivos singularmente direcionados em função das contingências e das conjunturas histórico-sociais que perpassam e que alternam correntes de pensamento filosófico, político e econômico distintas, há a dificuldade de operacionalização desse aparato lingüístico constantemente re-criado pela literatura jurídica que busca contribuir para o desenvolvimento concreto (HEGEL, 1980, p. 340- 6) do pensamento jurídico. Afinal, a contemporaneidade não pode prescindir do estudo das bases do direito internacional dos tempos precedentes, sob pena de se perder a compreensão do papel e do alcance possível deste, na construção das normas e dos respectivos mecanismos de implementação. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 98). A impossibilidade de desdobrar praticamente em ato o potencial que reside nas diferentes soluções de cada modelo teórico (atualização: passagem da potência para o ato) (HEGEL, 1980, p. 341) pode ser diagnosticada como decorrendo da persistência de modelos explicativos e cognitivos anacrônicos, porque inviáveis e inaptos para lidar com os novos elementos constituintes da realidade jurídico-político-econômica e filosófica vigente. O presente trabalho, assim, estrutura-se em quatro partes. A primeira parte se destina à breve exposição dos principais aspectos do Caso LaGrand, com o objetivo de ressaltar as questões e os problemas pertinentes ao tema desta investigação. A insatisfação de juristas com relação às soluções práticas dadas 47 pelo Direito positivo apontará para o caráter intrinsecamente jurídico-filosófico da questão, justificando, inclusive metodologicamente, as abordagens de caráter histórico- filosófico a serem feitas nas demais partes do texto. A segunda parte centra sua discussão em torno da tentativa de compreender o primeiro modelo explicativo das relações entre Direito Internacional e Direito interno, a partir do paradigma jusfilosófico tipicamente Moderno-westfaliano. Após o exame dos principais critérios que informam essa corrente, será possível apresentar, com finalidade puramente cognitiva, em linhas bastante gerais, as duas principais – e clássicas – vertentes desse modelo de pensamento, a saber, o monismo e o dualismo, com suas diferentes soluções e ramificações. Constatada a obsolescência do paradigma anteriormente tratado, tendo em vista a inserção do Direito Internacional em contexto jusfilosófico e econômico diverso, de caráter Pós-Moderno, será possível perceber, não apenas a superação do debate entre monismo e dualismo, tendo em vista a impossibilidade de continuar a discussão em termos Modernos dentro de ambiência em que não mais possuem a mesma significação, mas também o surgimento de novo arcabouço conceitual que pretende lidar com as mesmas questões. Nesse sentido, a terceira parte tratará das vertentes de Pós-Modernismo identificadas, a fim de tentar compreender de que maneira cada uma delas busca resolver a questão da relação entre Direito Internacional e Direito interno, no sentido de buscar pela prevalência de um sobre o outro. Cabe ressaltar que o presente trabalho não pretende ter exaurido a apresentação de modelos teóricos destinados a encaminhar para a solução do referido problema, visto que a exposição desses dois principais não significa que não possam existir outros modelos relevantes e pertinentes que dêem ao tema, a partir de perspectiva renovada, soluções ainda mais interessantes. Ademais, a apresentação dos modelos teóricos mais recentes especificamente diagnosticados não decorre de qualquer preferência explícita e a priori por um ou por outro, mas, sim, da intenção de tentar apresentar as diferentes tendências dos modos de pensar o mesmo tema, para além da tradicional e superada discussão entre o monismo e o dualismo. Por fim, a quarta parte discutirá a importância de se continuar a se re-propor, continuamente, e de modo insaciável, novas leituras de institutos e de temas jurídicos 48 clássicos, a partir de diferentes referenciais teóricos e filosóficos mais próximos das tendências mais recentes do pensamento e do conhecimento humanos contemporâneos. 2 O PONTO DE PARTIDA CASUÍSTICO DA REFLEXÃO FILOSÓFICA: O CASO LAGRAND Por que se pára para pensar e quem pára para pensar? Quem pára para pensar são os juristas com interesses filosóficos em função dos problemascolocados pelo Direito Positivo – problemas que não encontram solução e encaminhamento no âmbito estrito do Direito Positivo. A Filosofia do Direito é, assim, o campo dos juristas com interesses filosóficos, instigados, na sua reflexão, pelos problemas para os quais não encontram solução do âmbito do Direito Positivo. (LAFER, 2004, p. 54) O presente tópico apresenta, de maneira sucinta, as principais questões envolvidas no Caso LaGrand que se mostram pertinentes à temática a ser desenvolvida no presente estudo, a saber, a necessidade de se escolher pela prevalência de uma das duas ordens jurídicas que mantêm relação entre si na regulamentação de conflitos de caráter internacional, a saber, o regime jurídico internacional e o interno. Nesse sentido, é importante frisar que o caso a ser examinado detém a função, neste estudo, de constituir ponto de partida de uma reflexão filosófica em torno do tema escolhido para este trabalho, o que justifica, metodologicamente, a abordagem, de caráter jusfilosófico internacional, a ser desenvolvida nos tópicos seguintes. Trata-se de uma postura típica de uma abordagem de Filosofia do Direito Internacional, uma vez que as dificuldades encontradas no desenvolvimento das práticas em torno do Direito Internacional positivo – entendido como o Direito Internacional vigente - convidam a parar para pensar, visando a encontrar o significado das coisas, atribuindo-lhes um significado global, a fim de que se possa agir (LAFER, 2004, p. 54), não apenas dentro do mundo, conforme as determinações da situação, mas também, sobre ele, de modo a o alterar. Há, dessa maneira, um desligamento provisório do mundo tangível, da realidade dos fatos, a fim de perquirir soluções, novas ou antigas, para os problemas surgidos da práxis (LAFER, 1979, p. 28, 93 e 98), ou seja, abandona-se, temporariamente, mas com a pretensão de retornar em breve, a realidade ontológica, para refletir, com o escopo de elaborar/encontrar uma solução, a partir dessa reflexão, para os problemas surgidos da prática, para atuar sobre o mundo transitoriamente abandonado, para tentar uma 49 transformação do mesmo a partir do pensamento e de seu resultado/produto, a solução do presente, teoricamente formulada, para fins práticos futuros. Apesar de invisível, a atividade do pensar irrompe no mundo das aparências. Sócrates, como lembra Hannah Arendt, valeu-se da metáfora do vento para explicar o seu impacto: os ventos são invisíveis, mas ainda assim o que eles fazem é manifesto para nós e de alguma maneira sentimos a sua aproximação. (LAFER, 1979, p. 86-7). Note-se, inclusive, que “as questões referentes à vida social e aos produtos culturais da atividade humana permeiam as ciências sociais e as humanidades”, não sendo de propriedade exclusiva de qualquer ramo do conhecimento humano, devendo- se evitar qualquer dogmatismo decorrente da obsessão por uma única via teórica compreensiva (GIDDENS; TURNER, 1996, p. 7e 10). Nesse sentido, não basta uma singela análise calcada apenas nos pressupostos e nos conceitos jurídicos, devendo-se se utilizar de aparato auxiliar de outros ramos do conhecimento humano, naquilo que interessam à reflexão jurídica, na exata medida em que admitem, dentro de suas preocupações, um espaço para o estudo do Direito (FERRAZ JR., 2001, p. 39-44; ROESLER, 2002, p. 82). Assim, em outras palavras, a partir de determinadas questões suscitadas no caso estudado, diante da insatisfação do encaminhamento prático obtido, será iniciado um movimento de reflexão tipicamente filosófico em torno dos paradigmas jurídicos que informam a lógica de funcionamento da relação entre o Direito Internacional e o Direito interno, com a finalidade de expor a alternação histórico-filosófica de cada um dos modelos teóricos identificados que pretendem solucionar ou trabalhar a questão dentro de seu específico aparato conceitual. Por esse motivo, enfim, é que se mostra indispensável a apresentação breve do caso do qual a temática principal do presente estudo é depreendida de forma evidente, na medida em que expõe, emblematicamente, como se compreende, nas práticas internacionais, a relação entre Direito Internacional e o interno, de modo a se haver a decisão da prevalência de um ou de outro. Dentre os mais notórios episódios de descumprimento de normas jurídicas internacionais, convencionais e costumeiras, por um país, em razão da opção pela prevalência da aplicabilidade de sua norma jurídica interna, destacam-se as práticas 50 estadunidenses relacionadas a posicionamentos da Corte Internacional de Justiça (CIJ) nos casos BREARD, LaGrand e AVENA. O primeiro deles, de 1998, se encerrou com a desistência do Paraguai após a execução de BREARD sem que a Corte houvesse proferido decisão sobre o mérito. Quanto ao mais recente, o caso AVENA de 2004, as conseqüências alcançaram o extremo a ponto de levar os EUA a retirarem a aceitação de jurisdição da CIJ: “a rejeição de um tribunal internacional já estabelecido não é uma infração leve” (HABERMAS, 2006a, p. 97). Algumas das motivações a esta gravíssima retirada podem ser encontradas na combinação de uma pressão interna a um desprezo da administração da época em relação às instituições e ao Direito Internacional, bem como em uma distorcida interpretação da CIJ como interferência indevida ou ainda instância adicional a que se apelaria apenas após o esgotamento dos recursos internos. No entanto, o foco do presente trabalho se deterá no caso LaGrand, por considerá-lo mais sintomático para o tema em questão, consistindo também no principal precedente do caso que levaria a tal retirada da aceitação, bastante lembrar que “[o] caso LaGrand foi precedente direto do caso AVENA.” (CASELLA, 2008, p.1261). De nacionalidade alemã, Walter e Karl LaGrand foram morar ainda durante a infância nos EUA – sem jamais, porém, deixarem de ser cidadãos alemães. Foram detidos em Mariana (Arizona) em 7 de janeiro de 1982, sob acusação de roubo a banco que levou à morte de um gerente e graves lesões em outro funcionário. Após julgamento, foram condenados em 1984 por homicídio, tentativa de homicídio e roubo a mão armada. Oito anos após a condenação, os irmãos foram informados de que lhes era de direito contatar o serviço consular alemão e contar com a proteção do mesmo – a que as autoridades estadunidenses replicaram com a alegação de desconhecer a nacionalidade de ambos. Os LaGrand passaram então a solicitar revisões por diversas vezes, até mesmo à Suprema Corte, devido à violação do art. 36 da Convenção de Viena sobre relações consulares. Com fundamento na alegação de trânsito das sentenças em julgado, os pedidos na ordem jurídica interna foram negados, sob a justificativa de que a reabertura dos casos estaria impedida por vícios processuais. 51 Karl foi executado com injeção letal em 24 de fevereiro de 1999, mas a República Federal da Alemanha solicitou medida cautelar à CIJ a fim de impedir que o irmão tivesse o mesmo fim antes do julgamento do caso. Em 3 de março, o pedido foi aceito pela CIJ mas rejeitado pela Suprema Corte Americana, que acabou por executar Walter na câmara de gás naquele mesmo dia, conforme marcado. A não suspensão foi sustentada por alegações de que não fora dado aos EUA direito de defesa no que diz respeito ao pedido de medida cautelar, bem como que a CVRC seria inaplicável ao caso por se restringir a funcionários consulares e diplomáticos e finalmente que os obstáculos provenientes das divisões internas jurisdicionais e a solicitação tardia impediam que o caso fosse suspenso. Uma vez prevista pelo artigo 36 daConvenção de Viena a assistência consular pelas autoridades do estado do qual é nacional o estrangeiro em julgamento, não se mostra cabível a alegação de se querer criar “instância adicional de apelação” em benefício deste. Cabe apontar, ainda, que, além do descumprimento da medida cautelar, os EUA ignoraram a reparação e o pedido de garantia pleiteados pela República Federal da Alemanha, além de terem expressamente alegado perante a CIJ que não teriam a obrigação de alterar sua ordem jurídica interna em função de compromisso assumido internacionalmente. A atuação dos Estados Unidos se conta como péssimo precedente no cenário mundial e como retrocesso no esforço de implementação e aplicação consistentes do direito internacional. (CASELLA, 2008, p. 1262). Isso porque, enfim, os EUA deixaram de cumprir a obrigação constante de Tratado Internacional, a CVRC, mas também simplesmente desconsideraram mandamentos vinculantes emitidos pela própria CIJ, além de terem entendido não ter havido qualquer prejuízo ao Direito Internacional pela não alteração da ordem jurídica positiva processual interna em função de compromisso internacional assumido, na medida em que não existiria qualquer obrigação no sentido de modificação do Direito interno em razão do Direito Internacional. O caso LaGrand é remetido a duas ordens de direitos: tanto da parte do Estado, no sentido da proteção de seu nacional em território estrangeiro, quanto do indivíduo, 52 que, enquanto estrangeiro, pode valer-se da devida assistência consular. Não apenas constituições e sistemas nacionais podem assegurar os direitos fundamentais, mas especialmente os tratados internacionais que podem implementá-los por meio da CIJ. Uma vez signatário sem reservas da CVRC e de seu Protocolo facultativo, os Estados Unidos se comprometem a acatar as decisões de tal Corte. A violação desta norma internacional, portanto, “também fere e solapa as bases de direitos fundamentais em relação aos estrangeiros [...] sujeitos ao direito interno e à interpretação deste pelos tribunais nacionais [...]” (CASELLA, 2008, p.1259). A relevância do caso se mostra, portanto, evidente: [F]rom a purely juridical perspective, LaGrand is not primarly about the death penalty. The main points it stands for are the binding force of provisional measures indicated by the Court and the finding that consular access is an individual right” (RODLEY, 2002, p. 318). LaGrand deve também ser foco das atenções não apenas para que se evite novas infrações do tipo, mas para que sejam revelados na pena de morte estadunidense alguns “pequenos segredos sujos”, nas palavras de Joan FITZPATRICK: that it is largely restricted to marginalized elements in the community, and that the basic rights of capital defendants are often significantly violated during the investigative and Trial phases of their cases. They often do not raise timely objections to these deprivations, because their appointed counsel fails to act on their behalf (FITZPATRICK, 2002, p. 309). 3 O PARADIGMA DO MODERNISMO WESTFALIANO: O VOLUNTARISMO SOBERANO Em uma época em que o nacionalismo é antiquado, os chamados movimentos de renovação nacional são, ao que tudo indica, particularmente sujeitos a práticas sádicas. (ADORNO, 2006, p. 137). O direito político ainda etá por nascer, e é de presumir que nunca venha a nascer. Grotius, o mestre de todos os nossos doutos nessa matéria, não passa de uma criança e, o que é pior, uma criança de má-fé. Quando ouço elevarem Grotius às nuvens e cobrirem Hobbes de execração, vejo quantos homens sensatos lêem ou compreendem esses dois autores. A verdade é que seus princípios são exatamente semelhantes; eles só diferem pela expressão. Diferem também pelo método. Hobbes apóia-se em sofismas, e Grotius, em poetas; tudo o mais lhes é comum. (ROUSSEAU, 1999, p. 646-7). 53 O Modernismo westfaliano consiste no padrão clássico de Direito Internacional, calcado no conceito típico de delimitação espacial de fronteiras estatais sujeitas a um poder Soberano. Esses caracteres foram delineados pelos Tratados de Münster e de Osnabrück, na Westfália, assinados em 24 de outubro de 1648, quando triunfa o princípio da igualdade jurídica dos estados, estabelecem-se as bases do princípio do equilíbrio europeu, e surgem ensaios de regulamentação internacional positiva. Podem ser apontados não somente o conceito de neutralidade na guerra, em relação aos estados beligerantes, como também fazer paralelo, entre o princípio então adotado, da determinação da religião do estado pelo governante, o que seria o ponto de partida do princípio contemporâneo da não-ingerência nos assuntos internos dos estados. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 64-5). A Soberania, hoje anacronicamente defendida e protegida de modo incondicional, configura-se como poder absoluto que não reconhece outro acima de si (CAMPILONGO, 2007, p. VIII), remontando ao nascimento dos grandes Estados nacionais europeus, apesar de não ter sido consolidada completamente em sua dimensão externa (FERRAJOLI, 2007, p. 1-3), conforme um ainda persistente Projeto Moderno de organização política das sociedades no mundo (FERRAJOLI, 2006). Poder exclusivo e absoluto de alguma autoridade político-jurídica sobre determinada circunscrição territorial, englobando todos os recursos minerais, naturais, animais e humanos nela insertos, a Soberania se trata de uma potestas que se estende sobre um dominium, mas que não encontra algo além dela sobre aquele território, por ser a suprema potestas superiorem non recognoscens (FERRAJOLI, 2007, p. 1), dirige tudo o que se encontra dentro daquela delimitação geográfica espacial: ar, terras, povos, vegetação, animais, minérios, águas (rios e mares), etc., tudo de alguma forma, espécie de território de propriedade estatal (aéreo, terrestre, líquido, humano, etc.). Essa concepção ficou mais clara, e mais sincera/transparente, com a admissão, por Hugo GRÓCIO, o pai do Direito Internacional, da possibilidade de considerar como matáveis todos aqueles que se inserissem no território inimigo das colônias, inclusive mulheres, crianças e prisioneiros, visto violarem o direito natural – assimétrico – de os espanhóis poderem acessar os bens comuns (os recursos naturais, animais e vegetais) (FERRAJOLI, 2007, p. 17-8). De qualquer forma, a Soberania possui o caráter de ser poder absoluto, exclusivo, supremo, inalienável e independente, “sem igual ou concorrente, no âmbito 54 de um território, capaz de estabelecer normas e comportamentos para todos seus habitantes.” (FARIA, 2004, p. 17). Ela se consolida internamente pela progressiva monopolização dos instrumentos de violência e de Poder decisório e nomogenético pelo Estado, por meio da eliminação dos particularismos locais, extinguindo a fragmentação política medieval. Concentra-se o Poder nas mãos de um vértice único, dentro de uma hierarquia piramidal rígida. (FARIA, 2004, p. 18-21). Segundo este modo de compreensão de mundo, o Direito Internacional é produto das manifestações de concordância dos Estados, ou ainda, da mera vontade (voluntas) dos Estados, que assentem a regras jurídicas, de tal modo que a Soberania pode optar pela limitação voluntária dela mesma (FARIA, 2004, p. 150-6) – assentimento que, tão quão foi voluntariamente dado, pode ser retirado, um comportamento típico de um modelo clássico “de um poder imperial que se esquiva de normas do direito internacional porque estas limitam o seu próprio espaço de ação (HABERMAS, 2006a, p. 189) -. Este modelo de compreender a formaçãodo Direito Internacional decorre da indevida subjetivação do fenômeno estatal, ou seja, da não acertada aplicação dos preceitos da filosofia subjetivista (do sujeito), tipicamente Moderna, inaugurada por René DESCARTES (GIANNATTASIO, 2009b), ao Estado. A Filosofia do sujeito propõe que o ser cognoscente, para compreender o mundo, deve partir de seu próprio ego, interpretando o mundo de acordo com a vontade e conforme a idéia do sujeito: o sujeito (Estado) se mostra como o verdadeiro ponto de partida, o centro único, exclusivo e Soberano do mundo jurídico (KELSEN, 2005, p. 549). Não é sem motivo, inclusive, haver a atribuição, pelo Discurso Jusfilosófico Político Moderno, de uma vontade ao Estado, qualificada, classicamente, de vontade geral (ROUSSEAU, 2006). Mas não se deve se esquecer de que o Estado não é uma unidade biofisiológica, e nem mesmo uma unidade sociológica. A relação entre Estado e Direito é radicalmente diversa da relação entre indivíduo e Direito. [...]. Acredita-se que o Estado seja um objeto de regulamentação apenas porque a personificação antropomórfica dessa ordem nos leva, primeiro,a equipará-lo a um indivíduo humano e, então, a tomá-lo erroneamente por um indivíduo suprahumano. (KELSEN, 2005, p. 536) Bastaria, nesse sentido, mencionar como interessante exemplo, não único, o entendimento de Dionisio ANZILOTTI (1923, p. 39-40), que afirma serem fonte do Direito Internacional Público os acordos das vontades manifestadas pelos Estados, de 55 modo expresso (Tratados Internacionais) ou tácito (costume), mas sempre o acordo entre as vontades estatais. Essa concepção permite compreender de duas maneiras distintas as relações entre Direito Internacional e Direito interno, na medida em que é possível, com base em divisão de fronteiras, distinguir dois regimes jurídicos, um nacional e outro internacional. Podem eles ser ordenamentos independentes, sem quase contato algum entre eles, ou ramos de um mesmo sistema jurídico, em que se mantém alguma relação: a primeira escolha é apresentada pelos seguidores da visão dualista, enquanto que a segunda é pregada pelos da corrente monista (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 210-1). Em apertada síntese, um interessante exemplo da visão dualista é a conclusão apresentada por Carl TRIEPEL que, ao examinar as características do direito interno e do direito internacional, entende que eles constituem sistemas jurídicos distintos, passíveis de serem configurados como dois círculos que não se sobrepõem, mas que se tangenciam, na medida em que regem relações diversas, não havendo concorrência, nem conflitos, entre as fontes dos dois sistemas jurídicos: o direito interno regeria relações intra-estatais e o direito internacional regularia relações interestatais (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 212; CASELLA, 2007c, p. 18). Por outro lado, Hans KELSEN é um dos maiores defensores da visão monista, entendendo não ser possível admitir a existência de dois sistemas jurídicos, igualmente válidos e independentes, visto que, conforme sua concepção de Direito, as relações entre o direito interno e o Direito Internacional convergem e se superpõem, havendo a necessidade de se encontrar uma maneira que discipline essas duas categorias e a relação entre elas, dentro de uma única ordem jurídica, com nuances e subdivisões, a partir da imagem da pirâmide kelseniana de normas, em cujo vértice se coloca o princípio pacta sunt servanda (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 211; CASELLA, 2007c, p. 19-20). Assim, entre as duas possíveis relações entre Direito Internacional e direito interno, o conflito entre as normas de ambas apenas surgirá, ou deverá ser cogitado, a partir do momento em que se concebe a interação entre ambas de acordo com a concepção monista, porque a unidade científica do sistema jurídico demanda que não haja a possibilidade de contradições e de conflitos: a solução deve ser dada, entendendo-se que uma, ou outra, deve prevalecer (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2002, p. 64-5). 56 É neste ponto que se subdividem os seguidores da corrente monista, visto que, (i) para alguns, há a prevalência das normas de Direito Internacional sobre as de direito interno (Hans KELSEN, p. ex., por motivos práticos); enquanto que, (ii) para outros, prevalecem as normas de direito interno sobre as de Direito Internacional. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2002, p. 65; ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 211) Há ainda aqueles que seguem uma posição intermediária, entendendo que a supremacia de uma, ou de outra, depende de utilização de critérios temporais (the later time rule), visto que possuiriam o mesmo status jurídico e hierárquico (monismo moderado), conhecida também como teoria da legalidade ordinária dos tratados internacionais. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 213) A Corte Internacional de Justiça tem sido invariável ao reconhecer o caráter preeminente do direito internacional. Em parecer de 1930, a Corte Permanente de Justiça Internacional declarou ser princípio geralmente reconhecido, do direito internacional, que, nas relações entre potências contratantes de um tratado, as disposições de uma lei interna não podem prevalecer sobre as do tratado. Além disso, a própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados adotou em seu artigo 27 a mesma regra: uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2002, p. 65) No direito brasileiro, por sua vez, em relação ao conflito entre fontes vê-se certo descompasso entre a doutrina, alinhada pela concepção do monismo kelseniano, segundo a qual o tratado sempre deve prevalecer sobre a lei interna, ainda que se trate da Constituição (Clóvis BEVILAQUA, Haroldo VALLADÃO, Vicente Marotta RANGEL, Pedro LESSA, Philadelpho AZEVEDO, Vicente RÁO, Hildebrando ACCIOLY e Carlos MAXIMILIANO), com algumas exceções com relação apenas a este último aspecto (Oscar TENÓRIO, Francisco REZEK), e a interessante evolução da jurisprudência pátria, com avanços e retrocessos, onde, por caminhos tortuosos, equipara-se o tratado à lei interna, sujeitando estes às modificações supervenientes decorrentes de alterações posteriores do ordenamento nacional, privando a norma de direito internacional positivo de seu sentido e alcance. (CASELLA, 2007c, p. 22-7). Essa situação configura descumprimento de obrigação pelo Estado contratante, enquanto sujeito de direito internacional, em relação aos demais signatários do mesmo 57 instrumento: de fato, como lembra Haroldo VALLADÃO, a norma internacional tem sua forma própria de revogação, a denúncia, que não toma forma de norma jurídica interna, podendo-se cogitar de responsabilidade internacional do Estado em razão de descumprimento de norma por força de ato de órgão interno (insegurança no plano internacional). (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 215-6). O julgamento que sedimentou a posição do STF com relação a esse tema foi o RE 80.004 (1978), classificado pela doutrina como exemplo de monismo moderado, momento, inclusive, do surgimento dessa terminologia. Nesse caso, o STF decidiu que uma lei interna superveniente poderá afetar um tratado em vigor, com exceção daqueles referentes à matéria tributária, em face do que dispõe o artigo 98 do CTN. Depois de incorporado o tratado à legislação interna, encontra-se em iguais condições às demais leis ordinárias (hierarquicamente inferior à Constituição, portanto), e todas as contradições temporais que se apresentarem serão solucionadas com base em critérios temporaisde solução de antinomias aparentes (ver, ainda, entre outros, ADIN 1.480, CR 8.279 e HC 72.131); essa posição, ainda, foi seguida, em 1994, pelo STJ, em decisão que expressamente faz referência ao RE 80.004. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 213-4; CASELLA, 2007c, p. 27). Esse julgamento consubstanciava falha técnica e distorção conceitual que parece ter sido corrigida, porque nenhum país civilizado, e com pretensões de maior projeção internacional, como o Brasil, pode aceitar uma interpretação nesse sentido. Aliás, deve- se lembrar que a doutrina criticou essa posição, seja de forma sutil (Jacob DOLINGER, José Carlos de MAGALHÃES e Hildebrando ACCIOLY), seja de maneira mais incisiva (Celso Albuquerque de MELLO). De uma forma, ou de outra, entendeu-se que o RE 80.004 representa um retrocesso no tratamento jurisprudencial da matéria, visto estar fundamentada em autores antigos e dualistas, como TRIEPEL: o STF, segundo Celso de MELLO, errou, e não tem coragem de admitir seu erro, nem de o corrigir, constituindo uma orientação restritiva e obsoleta. (CASELLA, 2007c, p. 28-30). Há indícios de uma eventual tendência de reorientação da jurisprudência do STF, ao menos se for analisado o fundamentado voto proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira MENDES, no RE 466.343-1/SP, no qual, em linhas gerais, assinala o entendimento de como deve ser feita a inserção dos tratados na ordem jurídica interna, após a Constituição de 1988, afirmando a necessidade de se revisitar a orientação 58 jurisprudencial do STF, sendo anacrônica a tese da legalidade ordinária dos tratados internacionais, por haver uma tendência mundial do constitucionalismo contemporâneo de prestigiar as normas internacionais, principalmente as que inserem o homem como centro de suas preocupações (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2009, p. 214; CASELLA, 2007c, p. 33-8). De qualquer modo, deve-se notar, por fim, que a discussão diferenciadora entre monismo e dualismo apenas remete a algum sentido dentro de um discurso jurídico- filosófico e político tipicamente moderno westfaliano, na medida em que nos dois modos de pensamento e de compreensão Pós-Modernos, a serem expostos a seguir, o exclusivismo estatal voluntário, fundado na Soberania, perde seu sentido, restando superado, ou infrutífero, o debate, ao menos nos termos clássicos do pensamento moderno westfaliano, entre monismo e dualismo. Pode a reflexão sobre o papel histórico, que poderia ter a desempenhado o dualismo, no contexto da Alemanha e da Itália, o final do século XIX e início do século XX, ensejar a superação da visão e da aplicação deste – embora sob a suposta forma mitigada de dualismo moderado, tal como se anunciava não faz muito – e ensejar revisão do corte epistemológico entre conceitos universais e expedientes específicos no Brasil, preparando o caminho para a adoção mais ampla do direito internacional pós-moderno em nosso ordenamento e na ordenação das relações do estado com os seus pares, na ordem externa, bem como em relação aos demais agentes (não estatais) internacionais. (CASELLA, 2006, p. 838). 4 O CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL [A]quele que segue estes singulares caminhos não encontra ninguém, o que é próprio destes “singulares caminhos”. Ninguém vem em nosso auxílio; é preciso livrar-nos de todos os perigos, de todos os azares, de todas as ciladas, de todos os temporais. [...]. Desde que o mundo é mundo, nenhuma autoridade permitiu tornar-se objeto de crítica [...]. (NIETZSCHE, 2008, p. 9-10). O mundo não vai se dobrar ante a vontade daqueles que venham impor fórmulas prontas, sem discussão: o progresso intelectual da humanidade se faz na medida em que se formularam indagações críticas; é preciso questionar o mundo e o estado deste (CASELLA, 2007b, p. 14). Maurice MERLEAU-PONTY (2004), em 1948, ao contrapor o pensamento tradicional ao que se encontrava em gestação em sua época, acenara para a impossibilidade de se perpetuar um arcabouço conceitual, cognitivo e perceptivo tipicamente calcado nos moldes do clássico mundo da ciência, exatamente por ele não 59 ser capaz de fornecer uma representação do mundo que seja completa, na medida em que, ao primar pela inteligência, desprezava a dimensão da percepção dos sentidos. Seu Discurso Filosófico é arquitetado em direção a uma crítica ao Discurso Filosófico Moderno, iniciado pelo movimento deflagrado pela Filosofia de René DESCARTES (GIANNATTASIO, 2009b), por ele entendido como clássico, mas não pretende negar “o valor da ciência como instrumento do desenvolvimento técnico ou como escola de precisão e de verdade.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 5). Na verdade, o autor aponta para a insuficiência dos critérios norteadores da reflexão da Ciência e do Discurso Filosófico Moderno, tendo em vista que o mundo percebido, captado pelos sentidos, é por ele ignorado como fonte do engano, do não-saber. A breve menção à reflexão de Maurice MERLEAU-PONTY se mostra relevante para o presente estudo, não tanto em razão dos pressupostos fenomenológicos ou das conclusões construídas pelo pensamento deste autor, mas, sim, pelo fato de apontar para um específico dado, muitas vezes ignorado, de caráter metafísico, porque primeiro, no direcionamento da arquitetura da concepção de Direito, a saber, a medida em torno do qual são constituídos todos os princípios estruturantes do Direito – inclusive do Direito Internacional -, toda a base reflexiva e conceitual relacionada em torno do fenômeno jurídico, bem como todo a repertório instrumental operacional. É preciso estudar e tratar o direito, e especificamente o direito internacional, como parte de fenômenos mais amplos e que tem relação direta e necessária com o tempo e contexto no qual se inscrevem e do qual derivam. (CASELLA, 2009a, p. 68). A medida, como fundamento hipotético do pensamento – hipótese de início do pensamento -, e em função da qual todo o arcabouço teórico e prático do Direito é concebido, é o critério que deve ser adequadamente compreendido para que se possa conhecer, de modo mais completo possível, o Direito, seus ramos, seus institutos e suas respostas práticas às demandas que se lhe apresentam. Mas se deve tentar entender a idéia de medida, e de que modo ela influencia da formação do Direito Internacional. A continuidade da reflexão de Maurice MERLEAU-PONTY permite apreender a noção do campo semântico de medida. De certa forma, o pensamento clássico pode ser visto limitado, por outros motivos, uma vez que não considerava, para a formação de seu instrumento de busca do conhecimento, bem como do próprio conhecimento, a dimensão da animalidade, ou melhor, a existência de outros modos de compreender o 60 mundo, residente nos animais, nos homens primitivos, nas crianças e nos loucos, em desacordo com o padrão tipicamente Moderno e artificial do homem civilizado, maduro e são (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 29-40). Em outras palavras, o pensamento Moderno estava desprovido da escala de conhecimento, enquanto método de aproximação do mundo, de sua constituição, e de construção do saber, fornecido pelos outros modos de existência que não o padrão artificialmente construído por um Discurso Filosófico específico. Em outros termos, faltava-lhe, por preconceito, a medida de perspectiva cognitiva dos outros serem que “habitam [o mundo] à sua maneira” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 30). Há que se notar, nesse sentido, a existência de diferentes padrões de mensuração do mundo, com o objetivo de o conhecer. Mais do que isso, a inúmeras escalas constitutivas do pensamento, dos modos de pensar, bem comodo próprio saber, variável de acordo com as condições subjetivas do ser cognoscente, ou mesmo conforme as condições objetivas que o envolvem. O uso de uma única régua para apreender a realidade, ou mesmo para construir o conhecimento sobre a mesmo, sempre será limitado, com resultados incompletos, insuficientes e insatisfatórios, motivo pelo a medida não pode ser universalizada, sob pena de se inviabilizar o processo de conhecimento e o de explicação da realidade, ou mesmo de operacionalização da mesma. Essa constatação da existência de diferentes medidas deve ser aplicada para o objeto do presente estudo no seguinte sentido: não há como compreender o fenômeno jurídico inserto na crise da Pós-Modernidade a partir do aparato conceitual puramente Moderno. Se se pretende conhecer o Direito Internacional na Pós-Modernidade, de modo a aperfeiçoar os conceitos clássicos para serem operacionalizados nessa nova (des)ordem, deve-se entender, minimamente, a que se propõe a Pós-Modernidade, desvencilhando-se dos preconceitos e das premissas tipicamente Modernas. Em outros termos, não há como conceber a operacionalização de uma chave- cognitiva e operacional típica de construção de acordo com o paradigma do discurso da filosofia jurídico-política Moderna em um contexto em que se constatam os descaminhos do Projeto Moderno (HABERMAS, 1987b, 1992). Deve-se notar que a Pós-Modernidade é um fato que não pode ser negado, e com o qual se deve buscar lidar, na medida em que ele se instalou de modo definitivo (BITTAR, 2005a, p. 100; CASELLA, 2009a, p. 168), 61 a pós-modernidade não se põe como escolha, mas como fato da vida: o mundo mudou, e as percepções culturais têm de enxergar o mundo e tentar captá-lo, a sua operação se porá como necessidade: é preciso entender o mundo, tal como o temos, hoje (CASELLA, 2007b, p. 10). A característica primeira da Pós-Modernidade é sua incapacidade de gerar consensos (BITTAR, 2005a, p. 99), na medida em que insere a variável da incerteza em todos os elementos constituídos sob a égide do pensamento Moderno, de modo a questionar sua validade, ou ainda, de modo a desnaturalizar, a superar e a destruir as “doces ilusões e confortos” das certezas do conhecimento obtido pela reflexão anterior da modernidade (CASELLA, 2007b, p. 13, 2009b, p. 9). Inscreve-se o direito como produto do tempo histórico e do contexto cultural. O direito há de ser entendido não como mera técnica, mas como parte de construção humana, entre história e cultura, como entre política e moral: produto do seu meio e do seu tempo, o direito internacional põe a nu a fragilidade que os direitos internos tentam disfarçar sob a aparência de coerência dos sistemas nacionais, coerência essa muito mais ilusória que efetiva. (CASELLA, 2009b, p. 2). Em Direito internacional, deste modo, vive-se em período em que vigem constelações pós-nacionais que questionam os frutos das lições da Modernidade (HABERMAS, 2001, 2002, 2006a). A forma de organização política da sociedade internacional em torno de Estados nacionais, de acordo com as diretrizes do modelo da Paz de Westfália de 1648 (CASELLA, 2007a; FERRAJOLI, 2007, p. 40), mostra estar esgotando toda a sua capacidade de lidar com a complexidade que se coloca a sua frente (HABERMAS, 1993, p. 82), fruto das inúmeras desconstruções operadas no âmbito da Filosofia Política (HABERMAS, 2001), da Filosofia do Direito (FERRAJOLI, 2006, 2007; KELSEN, 1989, p. 469 apud FERRAJOLI, 2007, p. 4), do Direito Internacional Público (CASELLA, 2006) e da Sociologia (SANTOS, 1995, 2003), entre outros ramos do conhecimento e da atividade cultural humana, como as Ciências (SANTOS, 1988) e as Artes (CASELLA, 2007b). Enfim, encontra-se em um momento de transição, em que os paradigmas da Teoria Geral do Estado sofrem uma crise de degenerescência epistemológica (TOJAL, 1997). Nesse sentido, há a flexibilização da tipicamente Moderna e rígida noção de Soberania estatal, associada à progressiva desconsideração dos limites estabelecidos pelas fronteiras nacionais, bem como o surgimento de novas arenas de Poder e de 62 produção de normas jurídicas para além do fenômeno estatal (CASELLA, 2009b, p. 10; FARIA, 2004; HABERMAS, 2006a, p. 183-4). No direito internacional, a configuração, estritamente estatal, vigente durante séculos, deu lugar ao contexto pós-moderno, no qual claramente os estados não mais conseguem fazer operar o sistema internacional como todo. Assim o tempo histórico e o contexto cultural obrigam a rever os fundamentos do direito internacional pós-moderno, para que este não se desligue da realidade, mas alcance a necessária efetividade de sua implementação como mecanismo regulador da convivência entre sujeitos e agentes do contexto internacional. (CASELLA, 2009a, p.168). Dessa forma, deve-se notar que o Direito Internacional, em ambiente Pós- Moderno, não mais se apresenta de modo tão internacional – entre nações, ou melhor, entre Estados-nações – como pretendia o clássico pensamento jusfilosófico político Moderno. (CASELLA, 2006, p. 838). Há, de fato um pluralismo de fontes do Direito, e mesmo um pluralismo de sujeitos de Direito Internacional (CASELLA, 2009b, p. 7) que desestabiliza a ordem internacional anterior, entendida de acordo com as concepções superadas tipicamente Modernas, inserindo a variável da desordem internacional, fragmentada, uma perspectiva ínsita ao Direito Internacional no século XXI (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA; CASELLA, 2009, p. 97; CASELLA, 2007b, p. 13). Foi possível identificar a emergência de duas principais correntes Pós- Modernistas no Direito Internacional, cada uma fornecendo respostas diferentes para a questão da relação entre Direito Internacional e o Direito interno, de modo a determinar a prevalência de um regime jurídico sobre o outro conforme seus específicos critérios, a serem examinadas a seguir. As duas correntes identificadas se inserem dentro de um Pós-Modernismo de caráter Transicional, qual seja, um que articula suas respostas em critérios racionais, ainda que diferentes entre si (especialização funcional temática e setorial de caráter técnico ou axiológico-finalístico), que justificam, apriorística e incondicionalmente, a prevalência do Direito Internacional sobre o interno. Ambas partem do pressuposto de não mais ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional, nem sua vontade o único e exclusivo centro produtor de normas jurídicas e tomador de decisões políticas fundamentais, exatamente por abandonar o monismo estatal Soberano de detenção do Poder (FARIA, 2004). 63 E talvez se possa aposentar o dualismo, como visão de dicotomia entre uma ordem interna e outra ordem estanque, esta internacional, concepção superada pela evolução do direito internacional pós-moderno. (CASELLA, 2006, p. 838). 4.1 O Pós-Modernismo Transicional e as Razões de sua Solução [N]a medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente. (ADORNO, 2006, p. 137). Obviamente, nenhum processo histórico instaura uma nova ordem, ou uma nova fonte de inspiração de valores sociais, do dia para a noite, e o viver transitivo é exatamente um viver intertemporal, ou seja, entre dois tempos, entre dois universos de valores, enfim, entre passado erodido e presente multifário. (BITTAR, 2005a, p. 100, grifos do autor). O Pós-Modernismo transicional pode ser entendido como uma vertente que compreende a Pós-Modernidade como um contexto sócio-histórico bastante singular, caracterizado pela transição (BITTAR, 2005a,p. 96; CASELLA, 2007b, p. 16). Enquanto período contemporâneo, não mais totalmente Moderno, porque não mais se pauta exclusivamente pelo Discurso Filosófico-Político Moderno, mas também não inteiramente um modelo completamente novo e alternativo, trata-se de momento específico de transição, em que o modernismo clássico e o pós-modernismo novo coexistem, persistindo cada um deles nos discursos e nas práticas jurídicas nacionais e internacionais (BITTAR, 2004). De fato, [a] pós-modernidade chega para se instalar definitivamente, mas a modernidade ainda não deixou de estar presente entre nós, e isto é fato. Suas verdades, seus preceitos, seus princípios, suas instituições, seus valores [...] ainda permeiam grande parte das práticas institucionais e sociais, de modo que a simples superação imediata da modernidade é ilusão [...]. (BITTAR, 2005a, p. 100). Há, desse modo, a constatação da obsolescência do modelo anterior, que, por força do contexto cultural, passa a sofrer um processo de desconstrução, apesar de continuar a ser aprendido, ensinado, reproduzido, e até aplicado, exatamente por não ter havido a consolidação do novo sistema de princípios, de normas e procedimentos culturais (CASELLA, 2007b, p. 15). Alguns autores preferem denominar esse período de transição, por isso mesmo, de neomodernidade, em que inúmeras adaptações dos 64 preceitos da Modernidade devem sofrer adaptações (KESSEDJIAN, 2002, p. 290 apud CASELLA, 2009b, p. 10-1). A transição paradigmática envolve, necessariamente um processo de resistência contínua e conjugada contra os fortes, complexos, arraigados e enraizados valores da modernidade que se insculpiram com ares de eternidade no horizonte da sociedade ocidental; (BITTAR, 2005a, p. 100). No Direito Internacional, a variável transicional da Pós-Modernidade implica o reconhecimento da não-exclusividade do Estado como sujeito do Direito Internacional, na medida em que partilha tal condição com Organizações Internacionais (OIs) e com os seres humanos. Percebe-se, deste modo, que a ordem jurídica internacional não mais se fundamenta nos parâmetros westfalianos do consenso estatal voluntário e, nesse sentido, haveria outros centros nomogenéticos jurídicos internacionais para além dos Estados, como as OIs e fóruns multilaterais (CASELLA, 2006, 2009b; CANÇADO TRINDADE, 2006a, 2006b, 2006c; FARIA, 2004; KUNTZ, 2003). Diante da constatação da não exclusividade, ou mesmo da perda de centralidade, do Estado nas dinâmicas políticas e jurídicas internacionais, o pensamento Pós- Moderno transicional reconhece haver a prevalência do Direito Internacional sobre o Direito interno, tendo em vista que ainda é possível diferenciar dois regimes jurídicos distintos (Estado não desapareceu da arena jurídica internacional, mas também não é único ou exclusivo, sendo, assim, mais um), mas coordenados sistêmica e funcionalmente a partir da ordem internacional, que passa a pautar a Agenda Jurídica nacional (FARIA, 2004, p. 178 e 25-9) – inclusive, propondo a desconsideração integral dos limites jurídicos e físicos estabelecidos pelas fronteiras por sistemas de regulações jurídicas funcionais que penetram no território, apesar das fronteiras, por meio do Direito privado! -. Estados e demais global players de caráter não-estatal, como corporações multinacionais, organizações não-governamentais, fóruns multilaterais, mecanismos de concertação não institucionalizados, e OIs, convivem na arena jurídico-política internacional, cada um buscando sua própria política, mas se influenciando reciprocamente. Se os Estados não mais se mostram mais capazes de assegurar, por si, as fronteiras do próprio território, os meios de subsistência da própria subsistência ou mesmo a independência no processo de deliberação de sua política interna, em razão da 65 existência e da atuação desses outros entes não-estatais, por outro lado, os Estados continuam a ser os agentes políticos e econômicos mais importantes, na medida em que apenas eles possuem o mínimo necessário de legitimidade internacional para atuar sobre as esferas da vida individual (HABERMAS, 2006a, p. 183-4). Convivem elementos Modernos e Pós-Modernos nesse ambiente em transição, e que determinam um específico direcionamento para a questão da relação entre o Direito Internacional e o interno, no sentido de determinar qual deve prevalecer sobre o outro (tensão estabilidade e mutabilidade). Há o abandono definitivo do debate entre uma concepção monista e, outra de caráter dualista, por parecer prevalecer, por motivos de ordem racional, e não mais voluntaristas, o entendimento de que se trata de uma única ordem jurídica, pautada sempre pelos mandamentos normativos do Direito Internacional. Desconsidera-se o discurso dualista (CASELLA, 2006, p. 838) por se perceber haver a coexistência da fonte de Direito Internacional estatal com a fonte oriunda de outros centros, como OIs e fóruns multilaterais, todas não propriamente voluntárias, mas de fundamento racional técnico, temático ou finalístico, mas que, exatamente por esse motivo, sobrepõem-se aos resultados da atividade nomogenética estatal quando há incompatibilidade entre uma e outra ordem jurídica. Deste modo, apesar se poder encontrar explicações teóricas que mostrem a insuficiência da continuidade da aplicação e da execução do modelo Moderno para a condução das questões da vida cotidiana, persiste a utilização de seu arcabouço conceitual e de seus institutos jurídicos (BITTAR, 2005a, p. 102), não apenas para explicar, mas também para movimentar processos novos das práticas jurídico-políticas internacionais que se mostram incompatíveis com a lógica clássica. Foi possível diagnosticar a existência de dois modelos de sistema de Direito que, em ambiente de transição pós-moderno, tentam lidar com o tema da relação entre o Direito Internacional e o direito interno, em ambos havendo a prevalência das normas jurídicas da ordem internacional sobre a de origem interna. Os dois modelos se articulam em torno de critérios racionais, a saber, (i) Regimes Jurídicos de Governança Global, em que a razão da prevalência do Direito Internacional sobre o interno é de caráter técnico-funcional, especializado setorial e tematicamente; e (ii) Direito Internacional dos Direitos Humanos, em que o motivo de prevalência do Direito Internacional sobre o interno decorre de razões finalísticas de 66 prevalência axiológica dos Direitos Humanos. Cada um deles será brevemente examinado, a seguir. 4.1.1 Regimes Jurídicos de Governança Global A postmodern approach to institution‐building (and not nation‐building) should adapt itself to the logic of plural legal regimes and try to establish “rules of collision” for the management of different legal regimes. (LADEUR, 2009, p. 1359-60). [A]s fronteiras se tornam permeáveis - ou mais permeáveis - a decisões tomadas no exterior. O que importa, para caracterizar a nova situação, é a incapacidade crescente do Estado, por seus processos interiores, de neutralizar os efeitos de fatores externos. Desde o início da era moderna, essa vulnerabilidade nunca foi tão ampla quanto hoje, em tempos de paz. (KUNTZ, 2003, p. 49). Os Regimes Jurídicos de Governança Global se constituem a partir da constatação do fenômeno da fragmentação (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004) a partir da expansão e do aprofundamento do fenômeno da globalização (KUNTZ, 2003). Essa concepção de regime jurídico global, fundada na percepção da entrada do Direito Internacional na Pós-Modernidade (LADEUR, 2009, p. 1357), possui fundamentos bastante precisos emtorno de ideais tipicamente liberais, a tal ponto que foi possível inclusive, aos “neoliberais nos anos 90, através da rápida globalização econômica, deixar[em]-se inspirar pelo sonho da extinção do Estado.” (HABERMAS, 2006a, p. 175): tratava-se, a final, do vislumbre da potencial imagem do regime jurídico global/transnacional sem o Estado (TEUBNER, 2006). De fato, a integração, em alta velocidade, dos mercados, intensificando a circulação de bens, de serviços, de tecnologias, de capitais, de culturas e de informações globalmente, implicou profundas transformações na ordem mundial ocorridas no último quarto do século XX. Houve a erosão, ou ainda, a relativização, dos principais conceitos do modelo jurídico tipicamente Moderno, como a Soberania estatal e o Poder de o Estado determinar, por si só, políticas econômicas e sociais internas, por meio da desconcentração, da descentralização e da fragmentação de seu Poder decisório e nomogenético (FARIA, 2004, p. 7-8). Há uma verdadeira reordenação do “tabuleiro global” em dimensões econômica, política e militar (KUNTZ, 2003, p. 46-7). 67 “No nível internacional”, segundo David Held, “ocorrem disjunções entre a idéia de Estado como em princípio capaz de determinar o próprio futuro e a economia mundial, as organizações internacionais, as instituições regionais e globais, a lei internacional e as alianças militares que operam para conformar e restringir as opções dos Estados-nações individuais.” (KUNTZ, 2003, p. 50). A fragmentação do Direito Internacional em regimes jurídicos globais setorialmente específicos está relacionada à complexificação da sociedade, em que o Direito Global tematicamente especializado é reflexo da diferenciação sistêmico- funcional da sociedade global em diferentes racionalidades (econômica, político, social, comercial, ....) mais ou menos institucionalizadas (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 1004). Em razão dessa fragmentação intensa, há uma crescente complexificação da sociedade, de tal modo que há o incremento de incerteza e de riscos, exigindo a necessidade de mais regimes regulatórios circunstacialmente destinados para cada tema/setor especializado, por meio de normas jurídicas flexíveis para regular as “micro- estruturas” de cada um desses setores especializados, dotados de racionalidade social específica, da sociedade funcionalmente diferenciada (KJAER, 2009, p. 484-5): “The law must therefore adapt itself to the existence of a wide variety of overlapping and multi-level networks, which are not only profoundly a-hierarchical, but also encompass a wide variety of actors, both public and private.” (KJAER, 2009, p. 484-5). Aplica-se, desta forma, como pressuposto de entendimento deste modelo de Direito, um específico padrão de organização social que informa a estrutura geral do contexto dentro do qual o novo modelo de Direito se estrutura (KJAER, 2009, p. 483), qual seja an adequate pattern of social organization for a radically fragmented and globalized society in a “network of networks” of heterarchical social relationships generating collective order as a secondary transsubjective effect of individual cooperation and coordination under conditions of uncertainty. (VIELLECHNER, 2009, p. 517-8). Para essa concepção, a Pós-Modernidade no Direito Internacional deve ser entendida como estando caracterizada pela lógica de fragmentação heterárquica e relacional, ínsita à Globalização (VIELLECHNER, 2009, p. 527). Há, nesse sentido, a transformação das estruturas organizacionais, despedaçando as concepções tipicamente Modernas de hierarquia, as distinções ente público e privado (KJAER, 2009, p. 483), e 68 de existência de um único centro detentor do Poder decisório dotado de capacidade nomogenética (FARIA, 2004, p. 53-5). Assim, o regime jurídico global consiste em uma rede (cadeia de redes) maior de série de regulações jurídicas em rede de origem privada, pública não-estatal e estatal de caráter nacional, transnacional, internacional, intergovernamental e supranacional, que devem se coordenar harmonicamente (VIELLECHNER, 2009, p. 528) por critérios diferenciação sistêmico-funcional em linhas setoriais especializadas (FISCHER- LESCANO; TEUBNER, 2004), em que a ordem é gerada de modo acêntrico, por meio de racionalidade relacional entre redes jurídicas globais de regulação temática (VIELLECHNER, 2009, p. 518). A globalização produz, dessa forma, um efeito no modelo de Direito em que acompanha processos maiores de auto-organização societal no sentido de constituir redes não-estatais, desterritorializadas, auto-organizadas (VIELLECHNER, 2009, p. 524-5), em que o Direito é constituído por estruturas legais heterárquicas e policêntricas: “The rise of networks is taking place at all levels – locally, nationally, regionally, and globally; the result is the emergence of a system of multi-level networks.” (KJAER, 2009, p. 488). Beyond the traditional forms of territorial separations, a new “sectoral principle of differentiation,” which deploys its eigen‐rationality (specific rationality), is emerging. The new legal system follows a logic of networking: more and more transnational legal regimes come to the forefront that generate, observe, and manage their own rules. The reflexive potential of private “regimes” for the management of rules differs from the normative systems of the past. This evolution corresponds to the above‐mentioned rise of network‐like hybrid organisations and inter‐relationships (“flat hierarchies”) in the economy. (LADEUR, 2009, p. 1358, grifos do autor). Deste modo, em suma, essa concepção percebe uma sociedade internacional globalizada, articulada reticularmente, sem vértices ou centros únicos de Poder, porque heterárquica e acêntrica, onde a regulação jurídica deixa de se orientar por critérios de soberania territorial, mas, sim, por critérios sistêmico-funcionais, temática e setorialmente funcionalmente especializados (LADEUR, 2009, p. 1358-9, 1362 e 1365). “Transnational communities,” or autonomous fragments of society, such as, the globalized economy, science, technology, the mass media, medicine, education and transportation, are developing an enormous demand for regulating norms which cannot, however, be satisfied by national or international institutions. Instead, such autonomous societal fragments satisfy their own demands through a direct recourse to law. Increasingly, global 69 private regimes are creating their own substantive law. They have recourse to their own sources of law, which lie outside spheres of national law-making and international treaties. (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 1010). Segundo tais critérios, estariam as regulamentações jurídicas não-estatais fundadas em razões técnicas advindas de fóruns multilaterais e de OIs que, definitivamente, determinariam as diretrizes de conduta dos indivíduos e dos Estados (Regime Jurídico Global Financeiro, Bancário, Comercial, Trabalhista, Penal, Econômico, de Direitos Humanos, de Propriedade Intelectual, Lex Mercatoria, Lex Digitalis,...) (BRAITHWAITE; DRAHOS, 2004; FARIA, 2004, p. 39; FISCHER- LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 1010-1; SLAUGHTER, 2004; VIELLECHNER, 2009, p. 519-20). Nesse sentido, os problemas do Direito inserto em Economia Globalizada, cada vez mais extravasam os limites do Estado (KUNTZ, 2003, p. 53; LADEUR, 2009, p. 1357), que passa a ter sua orientação nomogenética orientada por arenas que se encontram em ambiente estranho ao modelo jurídico tradicional tipicamente Moderno. Trata-se de um Projeto Pós-Moderno de uma ordem descentralizada, para além do Estado (VIELLECHNER,2009, p. 526), e acima dele: transnacional, significa a desconsideração e a sujeição do Direito interno com relação ao Direito não interno, não- estatal, Internacional, classificado como transacional ou global. Nesse ambiente Pós-Moderno, portanto, permanece a figura do Estado-nação Soberano (persistência de elementos tipicamente Modernos no ambiente de transição) (VIELLECHNER, 2009, p. 526), mas ele detém menor autonomia com relação à ambiência externa, exatamente por seus poderes legais terem sido esfacelados em muito (HABERMAS, 2006a, p. 184; KUNTZ, 2003, p. 52). [A]s condições de operação da economia, [...] limitam a eficácia dos meios tradicionais da política econômica e, portanto, da autoridade formal do Estado. Isso não quer dizer que as políticas fiscal e monetária tenham perdido utilidade, nem que as políticas de desenvolvimento se tenham tornado inócuas. Significa apenas que a integração cada vez mais estreita dos vários mercados sujeita as economias, cada vez mais amplamente, às conseqüências de decisões tomadas fora do território nacional. Nesse novo quadro, podemos acrescentar, direitos associados à regulação dos mercados – trabalhistas por exemplo – tendem a perder eficácia, porque se alteram as condições de proteção de seus detentores formais. (KUNTZ, 2003, p. 50-1). 70 Este Direito Global está, dessa forma, fragmentado em linhas setoriais sociais temáticas, e não territoriais, sendo que a colisão de regimes jurídicos não mais seria entre a ordem jurídica interna e a Internacional, visto haver a incondicional supremacia da regulação jurídica transnacional diferenciada tematicamente, mas, sim, entre os setores da regulação jurídica temática (Comércio versus Meio-Ambiente, ...) (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 999-1000). Esse modelo de sistema legal impõe que se pense a reelaboração da concepção de conflitos entre regimes jurídicos, bem como dos critérios destinados a os solucionar, na medida em que não mais se trata da contraposição entre Direito Internacional e Direito interno (debate do tradicional monismo), mas, sim, de choques de racionalidades setorialmente especializadas (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004). Nesse sentido, a solução não deve seguir a resposta tipicamente Moderna de caráter hierárquico, à imagem e semelhança das respostas dadas pelo Estado-nação, mas, sim, de acordo com a supramencionada lógica de rede (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 1002 e 1004; LADEUR, 2009, p. 1358): heterarquia acêntrica, em que a integração possua “natureza eminentemente sistêmica, acima de tudo alicerçada na especialização e „mercantilização‟ do conhecimento, na eficiência, na tecnologia, na competitividade, na produtividade e no dinheiro.” (FARIA, 2004, p. 52, grifos do autor). De qualquer maneira, para não extrapolar os objetivos do presente estudo, deve- se notar que este modelo de sistema legal constata que sempre há a prevalência da regulação jurídica não-estatal, elaborada para além das fronteiras do Estado, em âmbito transnacional, em razão de especialização sistêmico-funcional temática e setorial, sobre a pretensa regulamentação jurídica, sobre os mesmo temas, realizada por meio do Direito positivo interno do Estado. O Direito passa a existir e a ser produzido em esferas diversas da estatal, para além de seus limites, desenvolvido de acordo com a lógica de diferenciação funcional, global, com a rápida expansão de OIs e de regimes regulatórios temáticos que se estabelecem como ordenamentos jurídicos autônomos, de origem setorialmente especializada (fragmentação setorial). Formam-se, assim, regimes jurídicos transterritoriais que possuem um alcance definido por questões temáticas, e não em razão de limites ou de fronteiras territoriais (não mais de acordo com o paradigma do Modernismo westfaliano), havendo, dessa forma, uma validade global que ignora – e que até despreza, além de desconsiderar – as 71 fronteiras estabelecidas pelos ordenamentos jurídicos estatais por seu Direito positivo: global law without a State (FISCHER-LESCANO; TEUBNER, 2004, p. 1007-9; TEUBNER, 2006). O comportamento particular dentro dos Estados, e mesmo a ação estatal, é completamente orientado “de fora” por um regime jurídico não-estatal, superior a seus limites – transterritorial, global, ou mesmo, internacional -, ainda que a figura do Estado Soberano persista (FARIA, 2004, p. 29 e 37): o Moderno (não mais) e o Pós-Moderno (não ainda) convivem neste período de transição. [T]he rise of global forms of co‐ordination beyond public international law can no longer be regarded as anomalous deviation from the right way of statebased law, but as the expression of an evolutionary step towards new forms of the self‐organization of societal norms which go beyond the official legal system. (LADEUR, 2004, p. 7 apud VIELLECHNER, 2009, p. 520). 4.1.2 Direito Internacional dos Direitos Humanos Exprimir a dimensão do humano, como sujeito de direito internacional é a grande transformação em curso no direito internacional pós-moderno. Assim se pode reescrever a relação do indivíduo com o estado, e deste com a dimensão social, da gestão pública. Esta se inscreve, como necessidade e como imperativo de ação, e norteador de rumos: de nada adianta falar em governabilidade, em escala nacional, ou governança global, se não se tiver conteúdo que faça da dignidade humana o valor central da gestão e do governo, local, estadual, federal, ou mundial Serão somente discursos vazios. (CASELLA, 2009b, p. 5, grifos do autor). A sistemática internacional, como garantia adicional de proteção, institui mecanismos de responsabilização e controle internacional, acionáveis quando o Estado se mostra falho ou omisso na tarefa de implementar direitos e liberdades fundamentais. (PIOVESAN, 2003, p. 61). O Direito Internacional dos Direitos Humanos surge como resposta às atrocidades ocorridas durante o Pós-Segunda Guerra mundial (BITTAR; ALMEIDA, 2006, p. 544; CASELLA, 2007a, p. 17; MIRAGEM, 2005, p. 308 e 311-2; PIOVESAN, 2003, p. 59), de certa forma buscando superar a conclusão de Hannah ARENDT de que de nada adianta conservar a condição de homem no Estado, porque ela não impede o cometimento das maiores atrocidades contra aqueles que se encontram desprovidos da qualidade de cidadão (ARENDT, 2004, p. 333-4). Constatada a obsolescência do modelo de Direito Internacional legado e herdado fundado na voluntariedade estatal – um Direito Internacional interestatal, porque 72 constituído à imagem e semelhança dos Estados, e para estes exclusivamente -, o contexto Pós-Moderno percebe o Direito Internacional como fruto racional da sociedade civil internacional, com o objetivo de o tornar mais próximo possível de uma dimensão humana (CASELLA, 2006, p. 1290-1), de modo a evitar o recometimento das barbáries experienciadas pela humanidade na Segunda Guerra Mundial (BITTAR; ALEMIDA, 2006, p. 546). Direito internacional pós-moderno não mais somente como emanação dos estados e da vontade destes, projetada para o plano externo, mas construindo dimensão humana mais abrangente. Que venha o ser humano a ocupar papel e espaço de atuação específicos no direito internacional pós-moderno é necessário e desejável, mas, todavia, não se tem os modelos específicos para a canalização e a veiculação de tal atuação. (CASELLA, 2006, p. 1291). Segundo esta específica concepção de encaminhamento do Direito Internacional no ambiente da Pós-Modernidade, a inserção do homem como exercendo um papel central na formação do Direito Internacional é o valor fundante e fim deste contexto Pós-Moderno, no qual
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