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AGRADECIMENTOS Um dos grandes privilégios que a FA7 me proporcionou foi o de me lembrar todos os dias que se até aqui cheguei, foi porque tem me ajudado o Senhor1. Hoje dou mais um passo em minha carreira jurídica, carreira essa que foi sonhada e prometida pelo meu Deus muito cedo, e foi somente Nele que encontrei as forças necessárias para prosseguir. Em tuas mãos, Deus da minha esperança, coloco minha vida. À minha mãe, Rosana André Paz Barros, que ainda muito cedo teve de enfrentar dificuldades pelas quais jovem nenhuma deveria passar: a dor de, após uma tragédia, ver-se órfã, sozinha, com uma filha e uma irmã mais nova para criar, mas que pôde encontrar um Deus que tudo faz novo e, hoje, pôde construir, com amor e sabedoria uma família unida que a ama e a admira. Ao meu pai, Paulo Freire Barros, que devido às dificuldades e as faltas que a vida o impôs, muito cedo teve de trabalhar duro, e desde então o vem fazendo. Ah, quantas vezes vi o meu pai saindo às sete da manhã para chegar dez da noite, trabalhando para que nada faltasse em nossa casa e para que hoje eu pudesse estar aqui. Aproveito a oportunidade para deixar registrado o que nunca lhe disse pessoalmente: por mais distante e quieto que pudesse parecer, eu sempre o estive observando e aprendendo com seu exemplo; todo o aprendizado de trabalho duro, honestidade e seriedade, que levo para minha vida, aprendi com o senhor. 1 Samuel 7:12 da Bíblia Sagrada; mensagem posta no pátio do segundo andar da Faculdade 7 de Setembro. À minha irmã, Fernanda Rafaela Barros, que mesmo sem ter tido as oportunidades que eu tive, que para cursar sua faculdade trabalhou como caixa de supermercado, pegando ônibus quase de madrugada, da Praia do Futuro até o Antônio Bezerra, teve sucesso em sua carreira profissional, construiu sua família e presenteou a minha casa com um dos nossos grandes amores, meu sobrinho Paulo André. À minha namorada, Letycia Filgueiras Forte, te digo que o Padre Antônio Vieira no Sermão do Mandato ensinou que só Jesus Cristo amou com perfeição porque só Ele seria capaz de atingir com plenitude os requisitos do amor perfeito: 1) conhecer a si mesmo, 2) conhecer a pessoa a quem se ama 3) e conhecer o fim ao qual se chegará amando. Sei que nunca chegarei sequer próximo a perfeição de Cristo, mas peço a Ele que a cada dia possa me aproximar desse amor e que eu possa ser tudo aquilo que você merece. Cada página de livro lida, cada tarde na biblioteca, não é para outra coisa senão que um dia eu possa orgulhar e honrar cada um de vocês. Aos meus amigos da faculdade, amigos da sala 20, que fizeram dessa caminhada um caminho mais leve, desejo a vocês duas coisas: inicialmente, que tenham sucesso em suas carreiras e, não o digo tão somente pela boa vontade de um amigo em querer ver o sucessos de seus colegas, mas também porque confio na competência e caráter de cada um para trabalhar e lutar por um país e uma realidade mais justa para o nosso povo; e também que nossas amizades não venham a se resumir em cinco minutos de conversa numa segunda-feira devido a um encontro esporádico nos fóruns, mas que continue sendo essa amizade de sábados à noite, do compartilhamento das alegrias e das dores, como tem sido até aqui. Tenho orgulho de afirmar que fui privilegiado durante minha experiência profissional nesses anos de graduação. Ainda no início da faculdade com o Dr. Tibério Augusto de Mello na Defensoria Pública do Estado do Ceará pude conhecer a realidade miserável de tantos cearenses e como um servidor público comprometido com o seu trabalho pode fazer a diferença na vida de pessoas; na Policia Federal com o Delegado Cid Sabóia vi como a corrupção destrói a sociedade brasileira, como o ser humano pode ser ruim e egoísta a ponto de tirar recursos essenciais daqueles que menos têm para simplesmente satisfazer caprichos pessoais; e as Desembargadora Maria Gladys Lima Vieira e Francisca Adelineide Viana e suas respectivas equipes, muitos dos quais se tornaram verdadeiros amigos, com elas pude aprender como a seriedade e qualidade profissional podem fazer a diferença para as vidas que existem por trás de cada número de processo. Agradeço ainda ao Procurador Regional da República Douglas Fischer pela atenção e pela disponibilidade em me ajudar na elaboração deste trabalho. E, por fim, aos meus professores, na pessoa de meu orientador George Marmelstein, que souberam cativar em nossas almas admiração e respeito. Certa vez, ouvi de um professor que ele amava a academia, porque dentro dela o direito sempre é bom e justo, ao contrário do que, muitas vezes, encontra-se na prática jurídica. Aprendi na graduação a amar o magistério e saio esperando, como uma das vertentes de atuação, um dia, voltar para ele. "O crime não vencerá a Justiça. Aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade, impunidade e corrupção. Não passarão sobre os juízes e as juízas do Brasil. Não passarão sobre novas esperanças do povo brasileiro, porque a decepção não pode estancar a vontade de acertar no espaço público. Não passarão sobre a Constituição do Brasil” (Ministra Carmem Lúcia, no julgamento do ex-senador Delcídio do Amaral) SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................ 6 EVOLUÇÃO HISTÓRICA .............................................................................. 12 1 O DIREITO PENAL .................................................................................... 18 1.1 Evolução histórica do direito penal ......................................................... 18 1.2 A teoria do garantismo penal de luigi ferrajoli ......................................... 22 1.3 As visões do direito penal ....................................................................... 30 1.4 A teoria moderna do bem jurídico ........................................................... 35 2 O DIREITO CONSTITUCIONAL ................................................................ 43 2.1 Evolução histórica do direito constitucional ............................................ 43 2.2 A teoria geral dos direitos fundamentais ................................................. 50 2.3 O princípio constitucional do dever de proteção suficiente ..................... 57 2.3.1 Dos princípios ....................................................................................... 57 2.3.2 Do dever de proteção suficiente na doutrina e jurisprudência alemã. . 58 2.3.3 Do reconhecimento do princípio do dever de proteção suficiente na jurisprudência nacional .................................................................................. 63 2.4 O dever de proteção e os direitos humanos ........................................... 67 3 O DEVER DE PROTEÇÃO SUFIENCIENTE EM QUESTÕES PRÁTICAS ..................................................................................................... 73 3.1 A seletividade nos julgamentos de crimes de colarinho branco ............. 73 3.2 A execução provisória da pena ............................................................... 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 114 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 120 INTRODUÇÃO Em um Estado democrático de direito, odireito penal estrutura-se sobre a égide da proteção aos bens jurídicos tidos como mais importantes para cada sociedade. De tal modo que, observando-se certas garantias e procedimentos, o dever de punir estatal deverá incidir sempre que houver afronta a esses valores sociais. A partir do desenvolvimento histórico do ideal constitucionalista e, mais precisamente na realidade brasileira, da atribuição de força normativa à Constituição Federal de 1988, grande parte dessas garantias, além da hermenêutica constitucional que influencia a legislação ordinária, encontra guarida na Carta Magna. No exercício do Direito, por mais árdua que seja a tarefa da interpretação dessas garantias, o intérprete penal constitucionalista não pode acreditar que a leitura do direito constitucional se contrapõe à do direito penal. Esses dois institutos devem ser lidos em consonância, a fim de se resguardar os direitos da sociedade e do indivíduo considerado em si. Ocorre que, a efetivação desses pressupostos que são, sim, legítimos e urgentes, não pode se prestar a afastar a aplicação do direito penal, nos estritos termos de sua teoria. Não se pode olvidar que o direito constitucional e, consequentemente, o surgimento de seus pressupostos 7 garantistas são intrínsecos à aplicação do direito penal em qualquer democracia. Todavia, urge uma necessidade de equilíbrio, que, muitas vezes, é esquecida. Afinal, não se corrobora com o estado meramente penalista, tampouco com as teses que se aproximam do abolicionismo. Assim, qualquer garantismo que constitua óbice à efetivação dos fins ao qual o direito penal se presta, consubstanciar-se-á exagero. Todavia, a experiência jurídica brasileira tem demonstrado que, nesse exercício, muitas vezes, encontram-se situações e defesas que tendem a atribuir às garantias constitucionais meio de perpetrar a impunidade penal. Tentativas essas, frequentemente, influenciadas por interesses estranhos à própria ciência penalista, conforme discorre a doutrina: “efeitos sociais não declarados na pena também configuram, nessas sociedades, uma espécie de '‘missão secreta’' do direito penal.” (BATISTA, 1999, p. 116) 8 Nesse sentido, pode-se mencionar um contexto fático que bem exemplifica essa situação, qual seja, a corrupção. Sobre a égide de um ordenamento penal que protege os bens jurídicos mais valorizados, as afrontas em face da administração pública deveriam ser evidenciadas, uma vez que esses crimes tendem a causar efeitos sobre um número indeterminado de pessoas. Afinal, como se mensurar os efeitos sobre a vida de crianças que deixam de ter uma educação de qualidade devido ao desvio de recursos públicos que deveriam ter sido destinados para suas escolas? Ou mesmo, quantos pacientes morrem por dia nos corredores dos hospitais brasileiros em decorrência da falta de atendimento de qualidade, muitas vezes ocasionada também por essa corrupção? Malgrado os crimes contra a vida e o patrimônio tenham o potencial de chocar bem mais, enquanto um homicida mata um indivíduo ou, no máximo, determinado grupo, o corrupto “é um verdadeiro ‘exterminador’, uma vez que, com o seu comportamento, pode produzir a morte de centenas de pessoas, pois não permite ao Estado cumprir com as funções sociais que lhe são constitucionalmente atribuídas.” (GRECO, 2012, p. 393) É cediço que a corrupção já se consubstancia como um dos maiores problemas a ser enfrentado pelo povo brasileiro2 2 Pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira - Problemas e Prioridades para 2016, realizada pela Confederação Nacional da Indústria e divulgada em 26 de janeiro de 2016. Disponível em: 9 pois está disseminada no Executivo, Legislativo e Judiciário em nível Federal, Estadual e Municipal. Estima-se que cerca de duzentos bilhões de reais sejam desviados anualmente no Brasil3. Todavia, o seu combate, devido, muitas vezes, à utilização de garantias que não deveriam ser cabíveis, põem-se em um cenário desmotivador. A título de esclarecimento, cita-se o fato que, já sobre a égide da Constituição de 1988, mais de 500 parlamentares foram investigados pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia somente após vinte e dois anos de estabilidade constitucional, em 2010, o povo brasileiro pôde vislumbrar a primeira condenação de um membro do Congresso Nacional4. Desde então, dezesseis parlamentares foram condenados no curso de seus mandatos por diferentes crimes. Desses, cinco foram beneficiados com a declaração da prescrição, três recorrem em liberdade, oito cumpriram ou ainda cumprem suas penas e um está na prisão. Não suficiente, pode- se mencionar que de julho de 2013 até julho de 2015, sessenta <http://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e- estatisticas/estatisticas/2016/01/ 1,80708/rsb-28-problemas-e- prioridades.html>. Acesso em: 10 fev. 2016. 3 Dado de pesquisa coletado na Palestra 10 Medidas Conta a Corrupção, proferida pelo Procurador da República Deltan Dallagnol, na Igreja Batista Central, em 27 de outubro de 2015. 4 O então deputado federal Natan Donadon (PMDB-RO) condenado a treze anos, quatro meses e dez dias de prisão por formação de quadrilha e peculato (Ação Penal 396/RO). Todavia, só veio a ter o mandando de prisão expedido em junho de 2013, devido à interposição de alguns recursos, como um agravo regimental e dois embargos de declaração, meramente protelatórios. 10 e três procedimentos – dentre inquéritos e processos penais – foram arquivados por prescrição, beneficiando, ao menos, trinta e quatro dos cento e treze congressistas da atual legislatura5. Essa situação fática deve ser lida, a partir da ciência que muitos desses congressista se utilizam de técnicas de defesa processual, que não deveriam ser aceitas pelo ordenamento jurídico brasileiro, para se beneficiar de institutos como a prescrição. Como exemplo, pode-se citar o caso do ex- deputado Eduardo Azeredo, réu por peculato e lavagem de dinheiro no STF no caso conhecido como mensalão tucano, que renunciou ao mandato em fevereiro de 2014, logo após o Procurador Geral da República denunciá-lo por desvios do Banco do Estado de Minas Gerais, da Copasa e da Cemig – estatais mineiras – para a sua campanha ao governo de Minas Gerais em 1998. De semelhante forma, o senador Clésio Andrade, réu no mesmo caso, renunciou ao seu mandato. Em ambos os casos, os processos retornaram a Justiça mineira, retardando o julgamento do feito e aproximando-se de uma eventual prescrição6. Nesse sentido, o presente trabalho tenciona, como objetivo geral, demonstrar que a tarefa do intérprete penalista se 5 Deve-se frisar que esses números tendem a aumentar, uma vez que, nesses dados não foram contabilizados as investigações e processos decorrentes da Operação Lava Jato. 6 SALCEDO, Gabriela; SARDINHA, Edson; RESENDE, Sara. Suprema Impunidade. Revista Congresso em Foco, Brasília, n.18 p. 8-28, ago. 2015. 11 consubstancia no fim de aplicar proporcionalmente as garantias desenvolvidas e conquistadas pela sociedade, através do tempo sem, contudo, utilizá-las como óbice à efetivação da tutela penal para os fins aos quais se destina. Enquanto tem como objetivos específicos: a) pesquisar sobre a evolução histórica do direito penal e a teoria do garantismo; b) discorrer sobre a evolução histórica do direito constitucional e o surgimento do princípio do dever de proteção suficiente, a partir da jurisprudênciae doutrina alemã; c) analisar o aludido princípio na jurisprudência pátria; d) estudar e criticar casos concretos a partir da ótica do aludido princípio. O estudo foi realizado utilizando-se o método de abordagem dedutivo de pesquisa do tipo, por meio de levantamento bibliográfico e da respectiva seleção; leitura e análise dos textos legais e da pesquisa e estudo da jurisprudência nacional. Destarte, o trabalho inicia-se fazendo uma breve análise da natureza social humana e do surgimento do Estado com fim precípuo de garantir segurança ao indivíduo, passando pela evolução do direito penal e da teoria do garantismo até a construção histórica do direito constitucional e do princípio do dever de proteção suficiente na jurisprudência alemã, até se chegar à análise da aplicação do instituto no ordenamento jurídico nacional para, por fim, analisar-se e criticar casos práticos a partir da leitura do dever de proteção. EVOLUÇÃO HISTÓRICA Desde a antiguidade, diversos pensadores tentam explicar a natureza social humana. Aristóteles, em sua visão política, vislumbra um homem que tenciona seu interesse na projeção social em contraponto aos próprios objetivos individuais, sendo o homem, assim, um animal eminentemente político que tem sua natureza intrínseca à vida em sociedade (2000, p. 5). Já no fim da Idade Média, surge São Tomás de Aquino, que a partir de sua filosofia cristã, subdivide os preceitos normativos da conduta humana na lei de Deus e dos homens. Nesse sentido, ele discorre sobre a lei humana como espécie de um preceito natural, intrínseco a sua própria condição. Outrossim, preleciona que o indivíduo poderia ir de encontro a essa situação natural de vida em sociedade somente em hipóteses excepcionais, como nos casos de infortúnios – a exemplo de um naufrágio –, corrupção mental – na qual a própria deficiência retira do indivíduo sua capacidade de socialização – ou uma vocação natural – como nos casos de sacerdotes que buscam a solidão em razão de uma maior espiritualização pessoal (NARDER, 2014, p. 56). Em Hobbes, encontra-se o exponencial da defesa do absolutismo, que, ao contrário do pensamento aristotélico e tomista, refuta a tese de associação natural dos homens, uma vez que, somente um contrato, portanto, uma forma artificial de 13 conjectura política, seria capaz de constituir uma sociedade. Para o autor, o homem em um estado anterior à própria sociedade, que o denomina de natureza, viveria inclinado à satisfação de suas próprias vontades, busca essa que fatalmente entraria em conflito com a de seus semelhantes e, destarte, criaria um ambiente de incertezas e medos, pois, nem sempre seria possível se defender contra todos. Surge então a célebre frase de Hobbes: “Para falar imparcialmente, ambas as declarações são verdadeiras: que o Homem é um deus para o homem, e que o homem é lobo do próprio homem.” (2006, p. 9). Nesse sentido, para sua própria proteção, o indivíduo transferiria sua liberdade individual para um soberano que, em troca, garantiria seu bem-estar (HOBBES, 2006, p. 64-65). O absolutismo encontrou outra defesa na teoria de Maquiavel, que inovou ao elevar o patamar da existência e manutenção do Estado como o fim maior da busca do príncipe. Há uma desvinculação da política e moral, uma vez que, o soberano deverá usar de todos os meios necessários para se manter no poder. Pois um homem que, sob todos os aspectos, quiser levar adiante apenas o emprego da bondade, estará propenso a ficar arruinado em meio a tantos que são maus. Assim, um príncipe que queira se manter deve aprender a não ser sempre bom, mas, sê-lo ou não de acordo com a necessidade. (2008, p. 154-155) 14 Em face do absolutismo e em defesa da burguesia, no contexto da Revolução Gloriosa de 1688, que pôs fim ao Absolutismo na Inglaterra, urge John Locke. Este, contratualista, também vislumbra o homem em um estado de natureza anterior à sociedade; todavia, difere do pensamento hobbesiano, pois, para ele, o homem teria modos de compreensão de sua lei natural e não viveria em uma conjectura bélica. Em sua concepção, malgrado a violência fosse uma exceção, que se apresentasse como uma quebra a lei natural humana, ela seria possível e, justamente devido à sua probabilidade, o indivíduo escolheria viver em a conjectura social buscando proteção (2001, p. 83-84). Ou seja, para ele, há direitos naturais inerentes ao homem e preexistentes ao próprio Estado que, a seu turno, surge justamente a fim de protegê-los, evidenciando a defesa da propriedade que, em sua visão, assume abrangência ampla, tutelando a própria vida, a liberdade e os bens. Destarte, contratualmente, o indivíduo transferiria sua liberdade para o Estado, o qual, inclusive para garantir maior proteção à sociedade, deveria ser dividido entre os poderes legislativo, executivo e federativo, dos quais deveria se sobressair o legislativo, como representante primordial do povo (2001, p. 170). Vidal explica: “o pactum societatis deixa de ser atribuído a um único homem (soberano), como na teoria hobbesiana, e passa para um corpo político (Parlamento), que 15 deverá organizar o governo de acordo com os interesses sociais.” (2009, p. 34) Rousseau também confere à propriedade papel primordial no surgimento do Estado. Todavia, ao contrário do que preleciona Locke, constrói seu discurso tecendo-lhe críticas, uma vez que, para ele, o homem seria naturalmente bom no estado de natureza pois não almejaria nada além de suas necessidades; todavia, no surgimento da propriedade privada, residiria o fundamento da infelicidade humana, verbis: O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!". Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa ideia de propriedade, dependendo muito de ideias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais alto, e tratemos de reunir, sob um só ponto-de-vista [sic], essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos na sua ordem mais natural. (ROUSSEAU, 1989, p. 16 29-30) Na verdade, a partir da propriedade, aqueles que deteriam o poder prometem de forma enganosa aos pobres a garantia da ordem política como instrumento de proteção a todos, quando na verdade serviria primordialmente para a manutenção das estruturas de desigualdade. Mascaro explica: “O Estado e o direito daí então se levantam, como enganação coletiva possibilitada por um contrato social feito em face da guerra que arruinava os homens.” (2014, p. 192) Rousseau vislumbra o Estado com temeridade, pois a própria exploração da qual nasce a sociedade afeta a conjectura política de tal forma que corrompe o homem de forma quase irreparável (1989, p. 45). Em resumo, a partir de uma leitura conjunta das teorias que tentam explicar a formação e a manutenção do Estado, pode-se delas extrairuma conclusão em comum, qual seja: tenham se formado as sociedades, por força inerente ao caráter humano ou em decorrência de fatores externos, certo é que a existência humana está intrinsecamente vinculada à vida em sociedade. Em segundo lugar, percebe-se que o Estado surge, primordialmente, para garantir proteção ao indivíduo. Nesse sentido, Jorge Neto preleciona: “a segurança é a primeira razão de ser do Estado. Se não tivesse condições de fornecer outros 17 serviços públicos, o Estado deveria dar ao cidadão pelo menos a segurança.” (2016, p. 80) Contudo, justamente dentro desse convívio, há de se mencionar que, por ser a vivência do indivíduo potencialmente conflituosa, e justamente como forma de efetiva essa função estatal, faz-se necessário o surgimento do direito penal como instrumento necessário para apaziguar as relações sociais. 18 1 O DIREITO PENAL 1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL O direito penal surge de forma naturalmente tirânica, pautando uma estrutura social que sempre se prestou a defender o domínio dos mais poderosos sobre os mais fracos. Todavia, com o passar das épocas, nas sociedades, o que se muda é o conceito de poder. Neste ponto, Foucault defende que, na verdade, esse ideal se relaciona com os modos de produção da economia, verbis: Nessa linha, Rusche e Kirchheimer estabeleceram a relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam: assim, numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão de obra suplementar – e constituir uma escravidão "civil" ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio; com o feudalismo, e numa época em que a moeda e a produção estão pouco desenvolvidas, assistiríamos a um brusco crescimento dos castigos corporais – sendo o corpo na maior parte dos casos o único bem acessível; a casa de correção – o Hospital Geral, o Spinhuis ou Rasphuis – o trabalho obrigatório, a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de comércio. Mas como o sistema industrial exigia um mercado de mão de obra livre, a parte do trabalho obrigatório diminuiria no século XIX nos mecanismos de punição, e seria substituída por uma detenção com fim 19 corretivo. (2012, p. 28) Nas sociedades ditas primitivas, nas quais inexistiam qualquer tutela estatal, o direito penal perfazia-se na vingança privada. Ou seja, quando do cometimento de crimes, a resposta dava-se pela própria vítima, por seus familiares, ou pela comunidade, inexistindo qualquer parâmetro de proporcionalidade ou retributividade, mas tão somente o senso de justiça pessoal do ofendido e o poder do mais forte. Quando da codificação do direito e do estabelecimento de padrões de respostas punitivas, observa-se uma evolução natural do direito criminal. Esse fenômeno é comumente celebrado no Código de Hamurabi, há 1800 a.C., na Mesopotâmia, uma das primeiras formas de se estabelecer procedimentos de punição do qual se tem notícia (MARMELSTEIN, 2013, p. 27-28). Na Idade Média e Moderna, sob a égide do Feudalismo e posteriormente do Absolutismo, evidencia-se a figura dos suplícios: [Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris, [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será́ erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que 20 cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d'Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas. Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: “Meus Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me”. (FOUCAULT, 2012, p. 9) Na realidade, em um contexto de poder máximo atribuído ao governante, há uma confusão entre a figura do príncipe e o Estado, de tal modo que, ao cometer um delito, o criminoso não iria ao encontro, tão somente, da sociedade e do Estado, mas também da própria pessoa do rei. Nesse sentido, a cerimônia dos suplícios não deve ser vista meramente como uma reparação do dano, mas principalmente na demonstração da força do príncipe (FOUCAULT, 2012, p. 48). Essa ideia pode ser melhor percebida em todo o contexto que cerca a cerimônia, qual seja o aparato militar, os arqueiros e sentinelas que atuam na manutenção da ordem, 21 para evitar uma rebelião popular, seja a favor ou contra o condenado. Uma vez que, um levante desse porte fatalmente seria uma demonstração de enfraquecimento do poder real (FOUCAULT, 2012, p. 50). Destarte, a melhor forma desse Estado absoluto, personificado na figura do Rei, demonstrar sua força seria sobre o próprio corpo do condenado, através das cicatrizes, que serviriam para marcar a vítima, tornando-a infame, além de desestimular o desrespeito às leis, trazendo à lembrança da sociedade o sofrimento pelo qual aquele indivíduo passou (FOUCAULT, 2012, p. 36). Com o surgimento do iluminismo e o consequente declínio do absolutismo, que encontra seu apogeu na Revolução Francesa, ao final do século XVIII, urgem diversos pensadores que se tornaram os precursores dos ideais constitucionais e, destarte, do garantismo penal. Dentre eles se evidencia Beccaria, que ainda no século XVII inovou no ordenamento jurídico em um contexto social ainda intrínseco àqueles suplícios estudados por Foucault, trazendo ao direito criminal vários princípios e ditames que hoje passam a ser fundamento de validade para as vertentes material e processual dessa ciência. Beccaria condena veementemente os suplícios, pois em sua visão, o homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz. Ademais, quando discorre sobre a tortura, preleciona que devido à sua dor, até o inocente gritaria que é 22 culpado, contrariando, assim, toda a finalidade do processo penal que deve ser a busca da verdade (2012, p. 34-35). No tocante à duração do processo, ele distingue os crimes hediondos, que englobariam os homicídios, e os não hediondos, nos quais inclui os crimes menos graves, aduz que para aqueles se deve diminuir o tempo da instrução, prolongando-se o tempo da prescrição, pois: “por tal modo, que apressa a sentença definitiva, tira-se dos maus a esperança de uma impunidade tanto mais perigosa quão maiores são os crimes.” (2012, p. 41) Ao discorrer sobre a inevitabilidade das penas, Beccaria assevera que na prevenção dos crimes, a certeza da punição é mais eficaz do que o rigor da pena (2012, p. 59), e conclui seu livro com o célebre trecho que hoje é adotado em quase todos os ordenamentos jurídicos dos estados democráticos de direito: É que para não ser um ato de violência contra o cidadão, a penadeve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionadas ao delito e determinadas pela lei. (2012, p. 99) 1.2 A TEORIA DO GARANTISMO PENAL DE LUIGI FERRAJOLI 23 Em 1989, Ferrajoli – à época magistrado italiano e professor da faculdade de Direito da Universidade de Camerino – através da consolidação de suas pesquisas em direito penal, consagradas em sua obra “Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal”, firmou uma nova ótica jurídica tida pelos ordenamentos modernos como baliza para a efetivação daquilo que se entende por garantismo. Sua obra pode ser entendida como uma condensação do pensamento de matriz liberal e iluminista dos séculos XVI, XVII e XVIII que, ao modo de Beccaria, debruçou-se sobre os pressupostos do direito penal em um estado de direito. Nos séculos XVI e XVII o direito penal foi o terreno principal sobre o qual vem se delineando o modelo do Estado de direito. É com referência ao despotismo punitivo que o jusnaturalismo iluminista desenvolveu suas batalhas contra a intolerância política e religiosa e contra o arbítrio repressivo do ancién régime. E é sobretudo através da crítica dos sistemas penais e processuais que se vem definindo, como veremos, os valores da civilização jurídica moderna: o respeito da pessoa humana, os valores “fundamentais” da vida e da liberdade pessoal, o nexo entre legalidade e liberdade, a separação entre direito e moral, a tolerância, a liberdade de consciência e de expressão, os limites da atividade do Estado e a função de tutela dos direitos dos cidadãos como sua fonte primária de legitimação. (2014, p. 17) 24 Frise-se que, devido à forte influência do pensamento liberal que sofre Ferrajoli, toda sua concepção de garantismo parte do mesmo pressuposto do qual partiram os iluministas, qual seja, uma concepção de atuação estatal em sentido negativo. Afinal, esses pensadores se levantaram justamente para combater as arbitrariedades e excessos, vistos principalmente no âmbito do direito penal, razão pela qual a concepção de liberdade desenvolvida por eles parte do pressuposto de limitação do poder estatal, através de um comportamento omissivo, diante das liberdades do indivíduo (STRECK, 2008, p. 21). Desta feita, Norbeto Bobbio, no prefácio da obra de Ferrajoli, entende que o foco do garantismo atua na “tutela das liberdades do indivíduo frente as variadas formas de exercício arbitrário do poder, particularmente odioso no direito penal.” (2014, p. 7) Quanto à sua concepção de garantismo propriamente dita, Ferrajoli traça uma tabela na qual elenca dez axiomas, os quais formariam, em sua observância, um sistema penal perfeito, que deveriam atuar nos dois principais momentos do processo de criminalização, quais sejam, a prática legislativa (criminalização primária) e a aplicação da lei ao caso concreto (criminalização secundária). Os princípios são: 1) Nulla poena sine crimine, 2) Nullum crimen sine lege, 3) Nulla lex (poenalis) sine necessitate, 4) Nulla necessitas sine injuria, 5) Nulla injuria sine actione, 6) 25 Nulla actio sine culpa, 7) Nulla culpa sine judicio, 8) Nullum judicium sine accusatione, 9) Nulla accusatio sine probatione, 10) Nulla probatio sine defensione7 (FERRAJOLI, 2014, p. 91). Faz-se pertinente salientar que o próprio autor reconhece que dentro de uma sociedade complexa, a observância plena, em um plano abstrato e concreto, desses princípios se perfaz como uma utopia, afinal: “Trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfazível.” (FERRAJOLI, 2014, p. 91) Ferrajoli explica ainda que esses princípios estão sistematizados e relacionados entre si (2014, p. 89) e o seu grau de observância em cada sistema penal pode ser analisado a partir de subtrações sucessivas desses axiomas (2014, p. 95), resultando, assim, em sistemas penais que podem ser resumidos em nove, quais sejam: 1) sem prova e defesa, resultado da subtração dos princípios do ônus da prova e do direito de defesa (2014, p. 95); 2) sem acusação separada, fruto da retirada dos princípios da imparcialidade do juiz e de sua separação da acusação (2014, p. 96); 3) sem culpabilidade, 7 Esses axiomas representariam para Ferrajoli, respectivamente, o princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; princípio da legalidade; princípio da necessidade ou da economia do direito penal; princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; princípio da jurisdicionariedade; princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; princípio do ônus da prova ou da verificação e o princípio do contraditório ou da defesa. 26 resultante da desnecessidade de intencionalidade do delito (2014, p. 97); 4) sem ação, que carece da garantia da materialidade da ação (2014, p. 97-98); 5) sem ofensa, privado da lesividade do fato (2014, p. 97-98); 6) sem necessidade, que não se atém ao princípio da economia do direito penal (2014, p. 99); 7) sem delito, que carece do primeiro axioma (2014, p. 99- 100); 8) sem juízo, no qual se olvida a jurisdicionariedade (2014, p. 99-100) e 9) sem lei, que não observa o princípio da legalidade (2014, p. 99-100). Ademais, evidencia a importância em subdividir as garantias em substanciais e instrumentais, nos termos de que, “ao subordinar a pena aos pressupostos substanciais do crime – a lesão, a conduta e a culpabilidade –, são tanto efetivas quanto mais estes forem objetos de um juízo em que sejam assegurados ao máximo a imparcialidade, a verdade e o controle.” (2014, p. 432) Por fim, vale mencionar que o garantismo é entendido sob três óticas, inicialmente, como modelo normativo pertinente ao próprio Estado democrático de direito que: Sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. (FERRAJOLI, 2014, p. 786) 27 Parte então para o analisar como teoria do direito, no qual explica: Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o “ser” e o “dever ser” no direito; e, aliás, põe como questão teórica central a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentementes garantistas) e práticas operacionais (tendentementes antigarantistas). (FERRAJOLI, 2014, p. 786) E continua: Uma aproximação tal não é nem puramente “normativa” nem puramente “realista”: a teoria que esta é hábil a fundar, precisamente, é uma teoria da divergência entre normatividade e realidade, entre direito válido e direito efetivo, um e outro vigentes. (FERRAJOLI, 2014, p. 786) Em arremate, expõe o garantismo como filosofia política que: [...] requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem finalidade. Neste último sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, 28 ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito. E equivaleà assunção, para os fins da legitimação da perda da legitimação ético- política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo. (2014, p. 787) Mais uma vez, vale ressaltar, como clara demonstração das influências iluministas, em Ferrajoli a concepção de garantismo que pressupõe o distanciamento entre direito e moral (2014, p. 788). Na realidade, a concepção de garantismo deve-se fundar na crítica do direito positivo no que diz respeito aos seus parâmetros de legitimação, sejam externos ou internos, e das ideologias políticas e jurídicas que o fundamentam (2014, p. 799). O modelo garantista de Ferrajoli deve ser lido como objetivo a ser alcançado pelos Estados a fim de se atingir uma democracia substancial plena, embora se deva saber que sua efetivação perfeita se torna impossível em sociedades complexas, malgrado isso não sirva de óbice para o seu estabelecimento, mormente no plano legislativo, e na busca cotidiana de sua efetivação. Nesse sentido, afirmou Noberto Bobbio ao prefaciar a obra “Direito e Razão”: “para constituir uma meta, o modelo deve ser definido em todos os aspectos. Somente se for bem definido, poderá servir também de critério de valoração e de correção do direito existente.” (FERRAJOLI, 2014, p. 9) As ideias do ilustre autor constituem inegável avanço para a seara penal, embora em alguns pontos não seja imune a 29 críticas8. Todavia, observando o seu ponto máximo, qual seja, os axiomas de efetivação de sistemas penais garantistas, observa-se que por mais dotados de um conteúdo de abstenção estatal que são, nenhum deles podem ser confundidos com a legitimação para a impunidade. Um modelo ideal de processo penal deve buscar a tutela desses axiomas mediante uma leitura proporcional e racional. Desta feita, assevera Douglas Fischer: Segundo Ferrajoli, a sujeição do juiz à lei já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja seu significado, mas sim sujeição à lei enquanto válida, vale dizer, coerente com a Constituição. Deflui daí ser imperioso ao juízo que faça uma análise crítica das leis, (re)interpretando-as sob o filtro dos conteúdos axiológicos da Constituição. Precisamente por intermédio dessa análise crítico-valorativa é que, de modo eficaz, se estará utilizando de meio adequado para o controle da legitimidade constitucional – ou não - das regras de grau inferior, como corolário de um sistema que ancora seus pilares em 8 PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do Garantismo - uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas considerações críticas. In: SANTOS, Rogério Dultra dos. Introdução crítica ao estudo do sistema penal. Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 117-127. FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz. (Orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. 30 um Estado Social e Democrático de Direito. (2006, p. 199) O direito penal nunca poderá se satisfazer com a apenação de um provável culpado – nisso as garantias constitucionais têm importância primordial, a fim de estabelecer padrões mínimos na busca e na consolidação dessas certezas – pois, a condenação de um provável culpado potencialmente deságua na apenação de um inocente e na impunidade do criminoso, culminando no descrédito da Justiça e no próprio enfraquecimento da proteção (DAMASCENO, 2005, p. 75). Todavia, quando se observando o devido processo legal, chegar-se a certeza dos fatos e ao, consequente, estabelecimento de pena, deve-se poder efetivá-la de forma essencial e proporcional ao delito, pois qualquer outra solução constituirá a impunidade. 1.3 AS VISÕES DO DIREITO PENAL A partir do que preleciona a hermenêutica existencial, da qual se sobressaem os alemães Heidegger e Gadamer como seus defensores, não há como se dissociar qualquer tipo de interpretação, mormente as textuais, da própria forma de ver o mundo individual do intérprete. Nesse sentido, conforme expõe Magalhães Filho, a compreensão do texto condiciona-se a preconceitos e prejuízos intrínsecos a qualquer individualidade humana (2011, p. 40-41). 31 Destarte, a fim de melhor se entender as discussões que envolvem diversos temas atinente ao direito penal material e processual, faz-se pertinente compreender as duas principais formas de visão dessa ciência: as correntes do abolicionismo penal e do direito criminal máximo. A primeira vertente, idealizada por Filippo Gramatica, surgiu após a Segunda Guerra Mundial em Gênova no ano de 1945, a partir da ideia de deslegitimação do direito penal, nos termos de Greco, em razão do que se expõe: A crueldade do Direito Penal, a sua natureza seletiva, a incapacidade de cumprir com as funções atribuídas às penas (reprovação e prevenção), a característica extremamente estigmatizante, a cifra negra correspondente às infrações penais que não foram objeto de persecução pelo Estado, a seleção do que deve ou não ser considerado como infração penal, bem como a possibilidade de os cidadãos resolverem, por meio dos outros ramos do ordenamento jurídico (civil, administrativo, etc.), os seus conflitos interindividuais […]. (2010, p. 8) A crítica dos abolicionistas parte da desconstrução do direito criminal a partir da própria ideia de crime, conforme asseveram Hulsman e Celis: Não se costuma perder tempo com manifestações de simpatia pela sorte do homem que vai para a prisão, porque se acredita que ele fez por merecer. "Este homem cometeu um crime'' – pensamos; ou, em 32 termos mais jurídicos, "foi julgado culpável por um fato punível com pena de prisão e, portanto, se fez justiça ao encarcerá-lo". Bem, mas o que é um crime? O que é um “fato punível”? Como diferenciar um fato punível de um fato não punível? Por que ser homossexual, se drogar ou ser bígamo são fatos puníveis em alguns países e não em outros? Por que condutas que antigamente eram puníveis, como a blasfêmia, a bruxaria, a tentativa de suicídio, etc., hoje não são mais? As ciências criminais puseram em evidencia a relatividade do conceito de infração, que varia no tempo e no espaço, de tal modo que o que é "delituoso" em um contexto é aceitável em outro. Conforme você tenha nascido num lugar ao invés de outro, ou numa determinada época e não em outra, você é passível – ou não – de ser encarcerado pelo que fez, ou pelo que é. Não há nada na natureza do fato, na sua natureza intrínseca, que permita reconhecer se se trata ou não de um crime – ou de um delito. (1993, p. 63-64) Em síntese, pode-se afirmar que a teoria abolicionista eleva a dignidade da pessoa humana do preso ao ponto de se abolir o próprio direito penal, deixando os conflitos sociais para serem tutelados pelos demais ramos do ordenamento jurídico. Contrapondo-se, advém o direito penal máximo conhecido pelo movimento Lei e Ordem, que advoga caber ao direito penal a resolução de todos os males sociais, vendo na ciência criminal uma tutela global, independentemente de sua importância. Nesse sentido: “procura-se educar a sociedade sob a ótica do Direito Penal, fazendo com que comportamentos de 33 pouca monta, irrelevantes, sofram as consequências graves desse ramo do ordenamento jurídico.” (GRECO, 2010, p. 15) Seus ideais podem ser vistos claramente nas palavras de Dahrendorf, um dos defensores dessa visão, in verbis: Uma teoria penalque abomina a detenção a ponto de substituí-la totalmente por multas e trabalho útil, por ‘restrições ao padrão de vida’, não só contém um erro intelectual, pois confunde lei e economia, como também está socialmente errada. Ela sacrifica a sociedade pelo indivíduo. Isso pode soar a alguns como incapaz de sofrer objeções, até mesmo desejável. Mas também significa que uma tal abordagem sacrifica certas oportunidades de liberdade em nome de ganhos pessoais incertos. Ser gentil com infratores poderá trazer à tona a sociabilidade escondida em alguns deles. Mas será um desestímulo para muitos, que estão longe do palco criminoso, de contribuir para o processo perene de liberdade, que consiste na sustentação e na modelagem das instituições criadas pelos homens. (1997, p. 109) Ou seja, o direito penal passa a exercer a prima ratio do ordenamento jurídico, não corroborando com qualquer conduta contrária aos bens sociais entendidos de maneira ampla, uma vez que, em qualquer afronta deverá incidir o direito penal, entendido restritamente como o encarceramento. Atualmente, uma das críticas que se faz ao uso do direito penal mínimo, entendido como desdobramento do 34 abolicionismo, é o uso ideológico que se faz dele, segundo Moraes apud Damasceno: É uma curiosa coincidência que esse movimento da intervenção mínima tenha ganho incremento exatamente na fase em que o Direito Penal está se democratizando, exatamente na fase em que o Direito Penal está deixando de alcançar tão somente aqueles delinquentes [sic] etiquetados seletivamente, que constituem a clientela tradicional do sistema repressivo. Na hora em que o Direito Penal começa a se voltar contra uma outra clientela, a que pratica crimes contra a ordem econômica e contra a economia popular, fala-se em descriminalização, despenalização, desjudicialização. (2005, p.29) Na realidade, a leitura que o intérprete fará do direito penal se relaciona com a ótica de sua construção ideológica, seja ela mais afeta ao direito penal máximo ou mínimo. Não há qualquer problema nessa divergência, ao contrário, ela é salutar para a construção e o aprimoramento de um direito penal democrático. Todavia, a partir do momento que se entende que o direito criminal deve servir a sociedade, é necessário que se tenha cuidado para não se corroborar com discursos jurídicos que tendem a tutelar interesses particulares em detrimento do verdadeiro interesse social9. 9 Por exemplo, data maxima venia, não há como se concordar com o Procurador da República e Ex-Ministro da Justiça Eugênio Aragão quando defende que a Operação Lava Jato poderia constituir um risco à economia do país e que, em muitos casos, a corrupção é boa. 35 1.4 A TEORIA MODERNA DO BEM JURÍDICO Greco entende como bem jurídico, em um estado democrático, a seleção que o povo – através de seu parlamento – faz dos valores mais importantes para o convívio social (2012, p. 2). A seu turno, Streck preleciona que: “o conceito de bem jurídico seria, assim, a categoria jurídica utilizada para explicitar os valores sociais protegidos pelo Direito Penal.” (2001, p. 56) Essa concepção deve ser lida em consonância com o fato de a Constituição garantir proteção aos próprios bens jurídicos sociais, destarte: “o direito penal não pode mais ser visto tão somente como um conjunto de normas tendentes a limitar o poder punitivo estatal, mas também como um instrumento dirigido à proteção dos direitos fundamentais.” (DAMASCENO, 2005, p. 32-33) É de se frisar que a sociedade, justamente por ser mutável, tende a transformar suas concepções inclusive sobre aquilo que entende por bens jurídicos. Nesse sentido, a título exemplificativo, pode-se citar a edição da Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, que revogou os crimes sedução, rapto e adultério, tipos penais intrínsecos a uma sociedade patriarcal, na qual foi editado o Código Penal na década de 1940, e em que a Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/923/essa- garotada-do-mpf-nao-tem-a-minima-nocao-de-economia> Acesso em: 23 out. 2016. 36 mulher assumia um papel social diferente do visto hodiernamente (GRECO, 2012, p. 2-3). Todavia, não se pode olvidar que – mormente em um contexto de Estado norteado por um ordenamento jurídico que finca suas bases no constitucionalismo – a tarefa de escolha desses bens jurídicos não é dotada de discricionariedade ampla conferida aos legisladores, uma vez que, deve transpassar duas fronteiras, quais sejam: o princípio da ultima ratio do direito e penal e as balizas constitucionais efetuadas pela própria Constituição Federal. Inicialmente, no que atine ao princípio da ultima ratio (também conhecido como da intervenção mínima) é de se verificar que sua relevância diz respeito à própria força da qual é dotada o direito penal. Afinal, é cediço que de todos os meios coercitivos dos quais o direito é dotado, o encarceramento – expressão máxima do penalismo – é o mais nefasto para o indivíduo, por melhores condições que apresente. Justamente, por esse motivo, o direito penal deve atuar tão somente quando bens jurídicos de relevância sejam atingidos, devendo-se evitar a criminalização de condutas que possam ser tuteladas por outros ramos do direito (GRECO, 2012, p. 48). Damasceno segue o mesmo sentido quando defende que: Tomando a sanção penal como a mais severa 37 restrição de direitos que pode o Estado submeter o indivíduo, correspondendo em grave limitação ao direito à liberdade, o recurso a ela só se faz legítimo se se der com o escopo de preservar outros bens tão relevantes contra agressões também consideradas graves. (2005, p. 25) Portanto, o princípio da intervenção mínima deverá atuar em dois momentos, inicialmente no campo legislativo, quando da escolha dos bens que realmente necessitam de proteção penal e, consequentemente, da descriminalização de condutas que não mereçam tal tutela. Em um segundo momento, quando da própria atividade jurisdicional, oportunidade na qual o intérprete penal deverá analisar a própria lesividade da conduta, a fim de verificar se a conduta realmente consubstancia aquilo que a doutrina entende como a tipicidade conglobante (GRECO, 2012, p. 159). Já no que atina as balizas constitucionais, percebe-se que a Constituição possui a função de direcionar a escolha dos bens jurídicos de relevância, determinando a proteção de determinados valores enquanto proíbe a criminalização de outros. A título de exemplo, pode-se citar o art. 5º, caput, verbis: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL, 1988) 38 Ou seja, quando o aludido dispositivo determina a proteção aos bens jurídicos ali relacionados, surge um dever de atuação positiva do legislador em protegê-los. Nesse sentido, por exemplo, a tipificação prevista no capítulo um da parte especial do Código Penal – dos crimes contra a vida – não se torna mera discricionariedade legislativa, mas verdadeiro dever de proteção, sendo cabível inclusive a ação de inconstitucionalidade por omissão diante da inércia legislativa (DAMASCENO, p. 37, 2005). Veja-se que a partir desse pressuposto, pode-se chegar à conclusão que, embora diante de um plano meramente legal fosse possível a revogaçãode crimes como o homicídio ou de estupro, previstos respectivamente nos artigos 121 e 213 do Código Penal, a partir dessa leitura, observa-se que devido à inconstitucionalidade inerente a sua matéria, tal descriminalização se perfaz como impossível (STRECK, 2008, p. 31-32). Do mesmo modo, quando os incisos VI e VII do artigo 5º da Carta Magna asseguram a liberdade religiosa e de pensamento, há um óbice constitucional à criminalização de diversos tipos de condutas inerentes a um estado liberal democrático, sendo cabível, na afronta, o controle de constitucionalidade, seja pela vida direta ou incidental. Damasceno vai além e traz a questionamento um caso prático pertinente ao art. 34 da Lei nº 9.246/95, quando o 39 legislador descriminalizou a sonegação fiscal, ao adotar a reparação civil antes do recebimento da denúncia como causa de extinção da punibilidade, verbis: E se se tomar, como exemplo, a descriminalização das grandes fraudes fiscais, com a instituição do afastamento da pena pela mera reparação civil antes do processo? A retirada dessa cobertura se mostra de acordo com a Constituição Federal de 1998? Deve-se primeiro verificar se a Constituição instituiu uma “ordem tributária justa” (segundo o princípio da igualdade material) como meio para a consecução dos próprios fins do Estado brasileiro, o que levaria à conclusão de ser, ou não, referido bem digno da proteção penal. Posteriormente, há que se verificar se as grandes fraudes tributárias provocam lesões gravíssimas à ordem tributária e se a ameaça de sanção patrimonial é capaz de inibir a ganância dos grandes sonegadores, convindo perquirir, quanto a isto, se elas não seriam (são) computadas como meros custos do empreendimento ilícito, se o grande sonegador hoje frauda o Fisco como se estivesse agindo na mais perfeita legalidade, considerando o valor sonegado acrescido de multa e juros, como passível perda, fazendo cotejo com o a probabilidade de ser fiscalizado (algo como a opção por fazer ou não um seguro). Concluindo nesse sentido, tem-se claramente a “descriminalização” das grandes fraudes fiscais com inconstitucional. [destacou-se] (DAMASCENO, 2005, p. 38) Neste ponto, mais uma vez, vê-se claramente a ideia de “missão secreta” do direito penal defendida por Nilo Batista, 40 que conforme ensina Streck, pode ser sintetizada na máxima: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos.” (2001, p. 56). Nesse sentido, Streck ainda defende: Vê-se, pois, como é (bem) tratado o sonegador e como é (mal) tratado, p. ex., um ladrão de bicicleta ou de galinha, para o qual, se devolvida sponte sua a res, antes do recebimento da denúncia, restará, tão somente, uma diminuição na pena (art. 16 CP). Por que isto? Por que no Brasil tem leis que são feitas para os que aparecem na Revista Caras e leis que são feitas para os que aparecem no Notícias Populares[...]. (2001, p. 59-60) A partir dos próprios exemplos citados alhures, vê-se que muitas dessas balizas dizem respeito a própria natureza dos direitos fundamentais, malgrado não se exauram em seu rol, podendo ser encontradas em todo o corpo constitucional e, mesmo, implicitamente e decorrentes de princípios adotados pela Carta, nos termos do que aduz a cláusula de abertura constitucional prevista no parágrafo segundo do aludido artigo 5º. Nesse sentido, lembra Streck que: “o legislador penal pode vulnerar os direitos fundamentais quando a severidade de suas previsões não chega a oferecer uma proteção suficientemente satisfatória e efetiva.” (2008, p. 35) Por sua vez, Damasceno explica que na atuação legislativa criminal pautada pela Constituição, o legislador deve observar uma pequena área na qual a tutela penal é exigida pelo 41 ordenamento jurídico, enquanto há outra área na qual a tutela é vedada, situando-se entre esses campos, de forma até imprecisa, a margem discricionária do legislador (2005, p. 36- 37). Faz-se mister observar mais uma questão, qual seja, a função dirigente e o caráter social da Constituição Federal de 1988. Tal ponto será melhor analisado adiante. Todavia, por ora, pode-se mencionar que a partir da noção de normativismo constitucional em um plano máximo do ordenamento jurídico brasileiro aliado à valorização de direitos coletivos, ligados aos direitos de terceira geração, ambas as características inerentes à atual Carta Magna, haverá uma clara influência na escolha a esses bens jurídicos. Streck preleciona: A Constituição, ao assumir uma função compromissória e dirigente, preocupada em construir uma sociedade solidária, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais, não pode situar os bens jurídicos eleitos como merecedores de tutela penal em um âmbito individualista, mormente porque isso seria incompatível com os preceitos do texto constitucional. A partir dessa ideia, os bens jurídicos não podem ser vistos apartados do todo constitucional, compreendidos pelos preceitos e princípios formadores do Estado Democrático de Direito. Afinal de contas, já está mais do que na hora de entendermos que é a Constituição a responsável por eleger aqueles bens jurídicos dignos de tutela penal, bem como nortear a dogmática penal para uma compreensão supra-individual do direito. (2008, p. 30-31) 42 Há, destarte, uma valorização dos bens jurídicos inerentes à coletividade, razão pela qual tanto o legislador criminal deverá levar em consideração essa escolha do constituinte, quando da tipificação de condutas e o consequente estabelecimento das penas, como o intérprete penal deverá considerá-la quando da atribuição da pena, razão pela qual, nesse contexto, devem ser evidenciados crimes que afetem a generalidade de grupos, como a discriminação, ou mesmo, aqueles cometidos contra a administração pública e o erário. 2 O DIREITO CONSTITUCIONAL 2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL Atenas foi o berço do ideal democrático e constitucional, historicamente, responsável pelo primeiro grande precedente de limitação do poder político, afinal na polis, havia o “governo de leis, e não de homens”; os então cidadãos, por meio das Assembleias que se reuniam nas Ágoras e, assim, diretamente comandavam a administração de sua cidade (BARROSO, 2013, p. 28). Esse fundamento, ainda, foi compartilhado por Roma, ocasião na qual, com a República, surgiu a Lei das Doze Tábuas. Barroso, em seu livro, cita um dos fragmentos dessa Lei, qual seja: “salus populi suprema lex esto,” (2013, p. 29) que pode ser entendido como o bem-estar do povo é o bem-estar supremo, vislumbrando-se, assim, uma total conformidade com a garantia de direitos do povo Entretanto, é a partir do período compreendido entre o fim da Idade Média e o começo da Idade Moderna que surge o pressuposto para o desenvolvimento do constitucionalismo, tal como se concebe hoje. Afinal, é no absolutismo que o poder, até então descentralizado nas mãos dos senhores feudais, passa a concentrar-se nas mãos do soberano. Ou seja, é justamente devido a essa força desenfreada atribuída ao príncipe que se evidencia a 44 necessidade de limitação do poder e garantia de direitos, através da supremacia da lei que atualmente se consubstancia como pressuposto dos ideais constitucionais modernos (BARROSO, 2013, p. 27). Bonavides, discorrendo sobre a necessidade da limitação do poder a partir da definição de soberania, assevera: Mas, como o Estado é o monopolizador do poder, o detentor da soberania, o depositário da coação incondicionada, torna-se, em determinados momentos,algo semelhante à criatura que, na imagem bíblica, se volta contra o criador. (2007, p. 41) Esse fenômeno de limitação do poder e o consequente nascimento do ideal constitucionalista é comumente celebrado na assinatura da Magna Carta, em 1215, pelo rei João Sem-Terra, quando vencido na guerra que travava no continente, em especial na Batalha de Bouvines, contra a França. Esse fato, aliado à crescente força política dos barões feudais, obrigou-o a submeter seu poder, até então absoluto, ao aludido documento jurídico (BARROSO, 2013, p. 32). Originalmente, esse documento garantia aos barões direitos relativos à propriedade, à tributação e às liberdades, inclusive religiosa. Entretanto, devido à amplitude de seus termos, permitiu que assumisse um caráter garantista mais amplo, fazendo parte, até os dias de hoje, daquilo que se entende por ser a Constituição Inglesa (BARROSO, 2013, p. 32). 45 Nasce, assim, a primeira ideia concreta do que se entende como Constituição por dizer respeito justamente àquilo que se vislumbra como o fundamento de seu conteúdo material, qual seja, mais uma vez, a limitação do poder e a garantia de direitos. Todavia, na Inglaterra, a luta por direitos não findou nessa época. Afinal, a partir do momento que o povo percebe que o poder estatal existe em razão da sociedade, e não que a sociedade existe em razão do governo, descobre que não há força maior do que aquela existente na sua união. Com efeito, percebe-se que na Inglaterra, essa realidade se mostrou exemplarmente pois a partir da Magna Carta, diversos outros direitos foram conquistados em outras cartas jurídico-políticas, tais como: a Petição de Direitos de 1628, o Acordo do Povo de 1947, o Instrumento do Povo de 1653, o Ato de Habeas Corpus de 1679, a Declaração de Direitos de 1689, o Ato do Parlamento de 1911, o Estatuto de Westminster de 1931 (BARROSO, 2013, p. 33). Barroso, ainda, sintetiza: Fruto de longo amadurecimento histórico, o modelo institucional inglês estabeleceu-se sobre raízes tão profundas que pôde prescindir até mesmo de uma Constituição escrita, sem embargo da existência de documentos relevantes de natureza constitucional. Embora a Revolução Inglesa não tenha tido o tom épico e a ambição e os propósitos da Revolução Francesa, o modelo inglês projetou sua 46 influência sobre diversas partes do mundo, diretamente ou indiretamente (através dos Estados Unidos). (2013, p. 32-34) Dentro dessa ótica, faz-se imprescindível analisar outro ordenamento constitucional diretamente influenciado pelo inglês, o dos Estados Unidos da América. Nesse contexto, evidencia-se o fato de que a independência norte-americana da colonização inglesa resultou na primeira constituição escrita do mundo, fundamentada na independência das colônias, na superação do modelo monárquico e na implementação de um governo constitucional, pautado na separação de poderes, na igualdade e na supremacia da lei (BARROSO, 2013, p. 39). Nada obstante o seu pioneirismo, o constitucionalismo americano encontrou seu exponencial ao proclamar a supremacia das normas constitucionais que serviriam inclusive, conforme ensina Jânio Nunes Vidal, “de parâmetro de aferição da validade das demais normas produzidas pela legislatura comum.” (2009, p. 81). Esse papel constitucional foi sedimentado no célebre caso Marbury contra Madison: In compliance with the Judiciary Act of 1801, President John Adams signed a commission for Willyan Marbury as a justice of the peace for the county of Washington, DC. The seal of the United States was affixed to the commission, but it never reached Marbury. James Madison, the incoming secretary of state under Jefferson (a Democratic Republican rather than a 47 Federalist), refused to deliver the commission. Marbury went directly to the U.S. Supreme Court for a writ of mandamus requiring Secretary of State Madison to deliver to Marbury his commission. The Judiciary Act of 1789 in section 13 had provided the Supreme Court could issue writs of mandamus10. (VILE, 2014, p. 107) Na apreciação do writ, John Marshal, então relator do caso, no que diz respeito ao mérito, entendeu que Marbury tinha o direito de ser empossado, uma vez que a sua nomeação não poderia ser revogada, sendo, portanto, as condutas do presidente Jefferson e de seu Secretário de Estado James Madson ilegais. Todavia, denegou a ordem em face de uma questão preliminar, qual seja, a inconstitucionalidade da seção 13 do Judiciary Act de 1789, que indevidamente ampliou a competência da suprema corte, o que somente poderia ser feito através de outra lei de igual hierarquia (VIDAL, 2009, p. 84). Com louvor, Vidal sintetiza as premissas da aludida decisão: 10 De acordo com o Judiciary Act of 1801, o Presidente John Adams nomeou Willian Marbury como juiz de paz pelo condado de Washington, DC. O selo dos Estados Unidos foi afixado à nomeação, mas nunca entregue a Marbury. James Madsion, o Secretário de Estado do Governo de Jefferson (um republicano democrata, em vez de federalista), recusou-se a entregar a nomeação. Marbury foi diretamente à Suprema Corte, através de um writ of mandamus requerendo que o Secretário de Estado lhe entregasse sua nomeação. O Judiciary Act de 1789 em sua seção 13 previu que a Suprema Corte poderia apreciar writs of mandamus. 48 a) A Constituição escrita é a norma fundamental (lex superior), expressão do poder constituinte originário que institucionaliza o Estado, ao mesmo tempo que delimita seus poderes. Reafirma-se, assim, o princípio da supremacia constitucional, segundo o qual nenhum ato do Poder Público poderá ser considerado válido, se for contrário à Constituição; b) Confere-se a todo juiz ou tribunal, quando chamado a decidir um caso concreto, o poder de deixar de aplicar uma norma da legislatura comum que não esteja na conformidade da Constituição [destacou-se]. A harmonia do sistema é assegura pela força vinculante dos precedentes (stare decisis), de tal modo que o julgamento de um caso concreto pela Suprema Corte regulará a atuação dos demais órgãos do Poder Judiciário; c) A lei contrária à Constituição não é aplicada ao caso concreto, ou seja, considera-se inválida desde a sua edição, cabendo ao Poder Judiciário, tão somente, declarar a sua não aplicação. Assim, a decisão judicial limita- se a reconhecer uma situação de inconstitucionalidade preexistente, operando efeitos retroativos, ou seja, considerados nulos todos os atos praticados, sob a égide da lei declara incompatível com a Constituição [destacou- se]. (2009, p. 85-86) Destarte, malgrado se perceba que o aludido modelo americano influenciou diretamente a jurisdição constitucional brasileira no que diz respeito ao controle de constitucionalidade difuso incidental, sabe-se que a jurisdição constitucional brasileira não se exaure nesse ponto, fazendo-se imprescindível 49 a análise das premissas do modelo constitucional austríaco, fortemente influenciado por Hans Kelsen: Kelsen conceberia um Tribunal Constitucional com a tarefa de ser o guardião da Constituição, um tribunal com competências para controlar a constitucionalidade dos atos dos demais poderes. Kelsen teve a oportunidade de associar, a um só tempo, uma teoria destinada a dar consistência ao ordenamento jurídico (concebido de forma piramidal e hierárquica), à possibilidade de colocá-la em prática, o que seria feito com a elaboração da Constituição austríaca de 1920. (VIDAL, 2009, p. 86-87) Nesse sentido, o modelo austríacofundamenta-se nos seguintes aspectos: 1) a Constituição como norma jurídica suprema; 2) a existência de um tribunal constitucional que, com exclusividade, exerceria o papel de guardião da Constituição; 3) as decisões desse tribunal teriam efeitos gerais e vinculantes (VIDAL, 2009, p. 88). O modelo de jurisdição brasileira forma-se a partir da junção desses dois parâmetros: há um tribunal constitucional responsável pela análise em abstrato das normas constitucionais, com decisões dotadas de eficácia erga omnes e vinculantes, ao passo que, também é atribuído a todo juiz e tribunal o poder de declarar a inconstitucionalidade das leis nos casos concretos. 50 2.2 A TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O ideal constitucional que se consubstancia na limitação do poder e na garantia de direitos através da supremacia da lei (BARROSO, 2013, p. 27) encontra sua evidenciação a partir do desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais. Destarte, fala-se que os direitos fundamentais podem ser entendidos a partir de duas concepções: a formal e material. A primeira é ligada à ideia de positivação, ou seja, que são fundamentais aqueles direitos, assim, definidos pela Constituição, enquanto sob a ótica material, seriam classificados como tais aqueles que: “por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal.” (SARLET, 2013, p. 77) Sarlet preleciona que a concepção meramente formal dos direitos fundamentais é insuficiente para o atual estágio constitucional, mormente no caso brasileiro, em função da existência da cláusula de abertura prevista no art. 5º, §2º da Constituição de 1988 (2013, p. 75), razão pela qual evidencia a necessidade do estabelecimento de limites para a conceituação material desses direitos, propondo a observância dos seguintes requisitos: 1) a relevância e o conteúdo do direito (2013, p. 92- 93); 2) a fundamentação axiológica no princípio da dignidade da pessoa humana (2013, p. 93-111); 3) a função protetiva desses 51 direitos, na medida em que necessariamente asseguram a proteção de bens individuais ou coletivos considerados essenciais (2013, p. 111-115). Bonavides, conceituando os direitos fundamentais, cita Konrad Hesse, para quem os direitos fundamentais objetivariam “criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e dignidade humana.” (BONAVIDES, 2016, p. 674) O autor continua a explicação ao defender que sob o aspecto formal, “os direitos fundamentais são aqueles que o direito vigente qualifica como tais” (2016, p. 674) e parte para a análise dos critérios estabelecidos por Carl Schmitt, para quem os direitos fundamentais são estabelecidos no instrumento constitucional ou que, ao menos, tenham recebido da Constituição uma imutabilidade ou uma forma mais gravosa de alteração (2016, p. 675). Marmelstein, a seu turno, preleciona: Os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivados no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico. (2013, p. 17) Outra grande contribuição para a teoria dos direitos fundamentais advém da Teoria das Gerações propostas por Karel Vasak, que na aula inaugural de 1979 dos Cursos do 52 Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, dividiu a evolução histórica dos direitos fundamentais, a partir do lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Os direitos de primeira geração relativos às liberdades civis coincidiriam com a fase inaugural do constitucionalismo, surgindo a partir das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII (BONAVIDES, 2016, p. 577). Dessa forma, são dotados de forte influência do pensamento liberal iluminista. Diversas cartas políticas nascem a partir desse movimento, em especial: a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 (MARMELSTEIN, 2013, p. 41). Obviamente, o conteúdo desses direitos estava intrinsecamente atrelado aos interesses da própria burguesia. Nesse sentido, evidencia-se a necessidade de proteção à propriedade; a observância da lei que é aprovada pelos representantes dessa classe econômica dominante; a liberdade de mercado, fundamentada na doutrina econômica do laissez- faire, laissez-passer11; além de outras liberdades individuais, em especial a religiosa, que ganha força a partir da Reforma Protestante (MARMELSTEIN, 2013, p. 41). O ideal ligado aos direitos de primeira geração está representado na célebre citação inglesa: “o vento e a chuva 11 Deixai fazer, deixai passar. 53 podem entrar na cabana do pobre, o rei não. Todo cidadão inglês, não importa se funcionário público ou nobre, está submetido, de igual modo, à lei e aos juízes ordinários.” (HEARN, 1867, p. 89-91) Ocorre que os direitos de primeira geração urgem a partir de uma desconfiança da sociedade frente ao Estado, pois se desenvolvem em um contexto de Estado ilimitado e autoritário, no qual os direitos mais básicos da sociedade eram frequentemente violados. Dessa forma, esses direitos passam a ter forte caráter de abstenção estatal. Nestes termos, Bonavides classifica-os como “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.” (2016, p. 578) E mais à frente continua: Entram na categoria de status negativus de Jellinek e faz também ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvalor teórico pelas correntes do pensamento liberal de teor clássico. (2016, p. 578) Então, com fundamento na Revolução Industrial e nas teorias antiliberais do século XX, surgem os direitos fundamentais de segunda geração, classificado na concepção de Vasak como aqueles pertinentes à igualdade, englobando os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades (BONAVIDES, 2016, p. 578). Esses 54 direitos surgem como resultado de uma busca histórica da sociedade por uma igualdade material, fruto das lutas sociais, em especial a dos empregados por melhores condições de trabalho. É nesse período que se desenvolve a teoria do bem- estar social e que se edita a Constituição Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919 (MARMELSTEIN, 2013, p. 45-46). Todavia, desenvolve-se uma nova concepção da postura estatal. O Estado que, até então, deveria se limitar a não interferir na vida do indivíduo, passa a ser exigido que tome posturas concretas a fim de garantir a igualdade material da sociedade. Por fim, os direitos de terceira geração, classificados como aqueles relativos à fraternidade, isto é, o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, o patrimônio comum da sociedade e à comunicação (BONAVIDES, 2016, p. 584). A doutrina mais recente fala em novas dimensões, como a quarta, relativa ao direito ao desenvolvimento e a quinta, pertinente à paz (BONAVIDES, 2016, p. 585-586 e 594-609). Além disso, critica-se o uso da expressão geração, pois esse termo daria uma ideia de superação dos direitos anteriores pelos posteriores, quando na verdade ocorre um processo de cumulação, complementariedade,
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