Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
m r a m i .m rr' m i 1?» m rr tf- T I * 4T S I IT V J X l ■ C V ! ^ JT í ^ T i ‘ Jí C * Tj^prb D n ' mrp ííin n b -^ r s m ?mm -o ü n i è k rfeán o h a in r m I i v t ; - i - u | s d % 3 * j t v - i v « t j - t ; - t í *jj"jij3 ag g i m a n p ft nmth r n i o çntfp 5?IPp?^ Ü W W l o i?[^ç27?v s jr r a n ir a -^ y onarpi t ^ r y f g ystó ns?K p á rn ^ TffcK mrr i nVn 2 " ; 6 . v - í si __ v t t v | v v s j t s. j | “ í ’ í r í í í nVra ans? ?ò nnb apsrtrç p n a ^ m r Q *ò J í r T |a T V JT l ^ - S - i I I /T S ,* t tfT f í “ 5 | jfV " ! 1“ - * ò a^iòa cTiin :r p n - * ò m b i0 JV -s T Js “ S * f " T I* T D JV “í ■ i a ntfK d t i t i D^ana r o i r r t ó - t f K b a w n r r a i H è e tf ** 3 / T I ¥ 8 “ ? 8 JV -1 L. Alonso Schõkel A PALAVRA INSPIRADA A Bíblia à luz da ciência da linguagem B íblica ; L oyola 9 Edições Loyoia L . A L O N S O S C H O K E L A P A L A V R A INSPIRADA A Bíblia à luz da ciência da linguagem Edições Loyola S U M Á R I O A BR EV IA TU R A S DOS LIV R O S BÍBLIC O S ................................................. 9 PRÓLOGO À P R IM E IR A ED IÇÃ O .................................................................. 11 PRÓLOGO À T E R C E IR A ED IÇÃ O .................................................................. 13 Primeira Parte A PALAVRA DIVINO-HUMANA 1. O A R TIG O DE F É E SEU C O N T E X T O ............................................... 17 Artigo de fé ......................................................................................................... 17 No contexto do espírito ................................................. IS No contexto do logos ...................................................................................... 20 Três caminhos de revelação ............................................................. 22 Revelação pela criação ...................... . . .......................... 23 Revelação pela história ................................................................................... 27 Revelação pela palavra ............................................. . ........... 31 Palavra humana . . ................. 33 Palavras de homens .......... ............... . ^ ........................ 35 2 . A PA LA V RA DIVINO-HUMANA ..................... 36 A ação do Espírito ................... 36 Inspiração e encarnação . ............................................................................. 36 Definições negativas .................................. 39 Quatro analogias ...................... 41 Instrumento ......................................... 42 Ditado .............. 47 Mensageiro ..............................* .......................... 51 O autor e seus personagens ............ 52 Deus, autor da Escritura .......................... 54 Conclusão ............ 58 3 . TESTEM UNHOS BÍBLIC O S .................................. 60 Profetas .............. . 60 Fórmulas proféticas .................................................................................... 62 Análise literária ............ 63 Sumário Sapienciais .............................................................................................................. 64 Os historiógrafos . ............................................................................................. 67 Conclusão: A inspiração do N ovo Testamento ..................................... 69 Apóstolos e profetas .......................................................................................... 69 Unidade e distinções ......................................................................................... 70 Os evangelhos .......................... 72 Conclusão .............................................................................................................. 75 Segunda Parte O CONTEXTO DA LINGUAGEM A E S C R IT U R A C O M O P A L A V R A .......................................... 79 O contexto da lin g u a g e m ..................................................................................... 79 A analogia ........................................................................................................ 80 A encarnação ............................................................................................................ 81 N ovo enfoque ..................................................................... 82 A Escritura como palavra . ...................................................................... 84 Quatro sentidos do termo “ linguagem” .......................................................... 85 Teologia .................................................................................. 89 Conclusão .................................................................................................................. 90 T R Ê S F U N Ç Õ E S D A L IN G U A G E M .......................................................... 91 Exposição ...................................................................................................... 91 A linguagem inspirada ............................................................................ 93 A lguns exemplos ................................................................................................ 94 Funções m onológicas ............ 98 Outras funções da linguagem .................................. 100 T R Ê S N ÍV E IS D A L IN G U A G E M ............................................................. 104 Língua comum ....................................................................................................... 104 Língua técnica .......................... Í06 Língua literária ....................................................................................................... 110 Com paração de níveis ......................................................................................... 112 Terceira Parte OS AUTORES INSPIRADOS P S IC O L O G IA D A IN S P IR A Ç Ã O ......................................... 121 O modelo leonino ................... 121 O m odelo dos manuais teológicos .................................................................. 122 O m odelo de B e n o i t ........................................................................................... 123 O m odelo da criação lite r á r ia .................................. 124 O artista da linguagem .................................................................................. 125 Um grande poeta ................................................................................................ 128 Um simples artesão .......................................................................................... 131 Uma árvore ............................................................................................................ 133 Um detalhe de estilo e um salmo de imitação ....................................... 134 Uma narração ....................................................................................................... 137 Inspiração sucessiva ........................................................................................... 138 A entonação ......................................................................................................... 139 Novo Testamento ................................................................................................ 139 Síntese ..................................................................................................................... 141 S O C IO L O G IA D A IN S P IR A Ç Ã O .............................................................. 145 Crítica .....................................................................................................................149 Língua ..................................................................................................................... 150 Literatura .............................................................................................................. 152 - F A L A R E E S C R E V E R .................................................................................... 154 O problema ........................................................................................................... 155 Soluções ......................................................................................................................... 156 Falar e escrever .................................................................................................. 158 Técnicas de com posição ........................ 159 Com posição literária na Bíblia ..................................................................... 160 A p a la v r a ................................................................................................................ 162 7 Quarta Parte A OBRA INSPIRADA U . A O B R A IN S P IR A D A ..................................................................................... 167 Os livros sagrados ............................................................................................... 167 Obra lite r á r ia ? ....................................................................................................... 169 Estrutura múltipla ............................................................................................... 172 Pluralidade estru tu ra d a ...................................................................................... 175 Consistência ................... 177 Repetibilidade ....................................................................................................... 178 Fidelidade .............................................................................................................. 179 N a I g r e ja ................................................................................................................. 180 i . A O B R A E S U A T R A D U Ç Ã O ................................................................... 183 Princípios teológicos .............................. 183 Revisão histórica .................................................................................................. 184 A tradução grega dos L X X ............................................................... 186 A Vulgata ....................................................................... ............................... .. 188 Traduções modernas ............................................................................................ 189 12 . R E C E P Ç Ã O D A O B R A ................................................................................. 192 A obra mediadora ............................................................................................. 194 N a obra, os fatos ............................................................................................... 195 N a obra, o a u t o r .................................................................................................. 196 Q u in ta P a r te C O N S E Q Ü Ê N C I A S D A I N S P I R A Ç Ã O 1 3 . N O C O N T E X T O D O L O G O S : A V E R D A D E ................................... 203 A verdade literária ............................................................................................. 206 A verdade finita, humana, é muitas vezes busca .................................... 211 A verdade lógica ............................................................................................... 212 V erdade sem erro ................................................... 213 Conclusão .............................................................................................................. 216 14 . A D O U T R IN A E SE U U SO .................................... 2 17 T oda a doutrina? ................................................................................................ 217 Escritura e tradição ........................................................................................... 2 17 U so da doutrina .................................................................................................. 221 Pregação e catequese ................................................................................... 221 Uso na t e o lo g ia ........................................................................................ 223 1 5 . N O C O N T E X T O D O E S P IR IT O : A F O R Ç A ..................................... 227 A linguagem humana ........................................................................... 227 Form as enérgicas da lin g u a g e m ........................ 228 A ntigo Testamento ................. 230 Evangelhos ............................................................... 233 N ovo Testamento ............................................................................................ . 235 Santos padres .......................................................... 239 M agistério .............................................................................................................. 240 Liturgia ................................................................................................................... 244 H om ilia ................................................................................................................... 246 Liturgias bíblicas .................................... 247 Leitura ..................................................................................................................... 248 P A L A V R A E E S P IR IT O : R E F L E X Õ E S À G U IS A D E C O N C L U S Ã O 251 C O N S T IT U IÇ Ã O “ D E I V E R B U M ” S O B R E A D IV IN A R E V E L A Ç Ã O 258 S IG L A S U T IL IZ A D A S ............................................................................................... 265 g Sumário ÍN D IC E O N O M Á S T IC O 266 PRÓLOGO À PRIMEIRA EDIÇÃO Este livro não pretende ser um tratado sobre a inspiração: nem pelo tema, nem pelas categorias com que se desenvolve, nem pelo m odo de exposição. O tema é antes a palavra do que a inspiração; isto é, o artigo de fé “ falou pelos profetas” . E, tratando-se de um mistério amplo e inesgotável, desejei abordá-lo numa região limitada. Christian Pesch me introduziu no milenar pensamento da Igreja e eu pensei em utilizar categorias da filosofia da lingua gem e da realidade literária. Elas representam um campo que, embora limi tado, abrange muitos aspectos particulares numa visão unitária. Eis a linha deste ensaio: a capacidade humana radical de falar — atualiza-se em diversas línguas — cada língua se atualiza no uso individual — o uso indivi dual às vezes se atualiza numa obra — a obra se atualiza na representação e na repetição — a repetição e a representação se encerram na recepção. Para fa lar-nos, Deus desce à capacidade humana de falar (logos, condescendência) — essa descida se atualiza em duas línguas (eleição histórica, social) — Deus atua liza essa eleição movendo homens escolhidos (inspiração, psicologia) — essa m oção se atualiza em muitas obras que se tornam uma obra (obra inspirada, Escritura) — essa obra se atualiza na proclam ação e na leitura na Igreja — essa proclam ação e leitura se encerram na recepção. Deus fala ao homem, o homem escuta e responde. O livro não é um estudo estritamente científico: nem pelo conjunto orga nizado de erudição, nem pela indagação profunda de um problem a único. É an tes o resultado de reflexões que giram em torno dessa realidade misteriosa que é a palavra de Deus na Igreja. A s minhas reflexões buscarammais a amplitude que a profundidade. Em certo sentido, este livro não é senão um intervalo na reflexão, para ordenar e decantar, antes de continuar a refletir. E também para pedir o auxílio da crítica e do diálogo, porque o m onólogo é menos fecundo. Preferi o tom expositivo do ensaio, por ser mais livre e acessível, e remeti a inform ação mais técnica às notas. O ensaio me permite uma reflexão em termos imaginativos e simbólicos, sem chegar muitas vezes à fórmula conceituai diferenciada. A o com por este livro, tive em mente um público cristão adulto, já incor porado ao movimento bíblico. Por isso, o livro gostaria de encontrar nova mente esse público que já esteve presente e ativo na elaboração. Jerusalém, Páscoa de 1964. Rom a, festa de Todos os Santos de 1964. PRÓLOGO À TERCEIRA EDIÇÃO A primeira redação desta obra foi elaborada por mim em Jerusalém, no ano de 1964, como depuração de cinco anos de ensino da matéria. N o Insti tuto Bíblico de Rom a, eu herdara do cardeal Agostinho B ea a cátedra de Ins piração e Hermenêutica. N o decorrer dos cursos, deparara com problemas s pontos de vista novos. E u estava condicionado em parte pela prática da exegese do Antigo Tes tamento, em parte pela experiência literária e por um crescente interesse pela análise da linguagem. A inda não havia se intensificado o envolvente avanço do estruturalismo, com as suas conseqüências e desenvolvimentos. Creio que a novidade da obra consistiu em transpor o tratado de inspira ção do campo do conhecimento para o campo da linguagem. A inspiração costumava ser estudada e proposta como carisma de conhecimento, de julga mento; a verdade bíblica era considerada como qualidade das suas proposições, e a conseqüência principal, se não única, da inspiração era a inerrância. Os dados bíblicos me ofereciam uma imagem diferente: a inspiração como carisma de linguagem, a verdade bíblica freqüentemente sob a form a de re presentação literária, sendo necessário incluir, entre as conseqüências da inspi ração, com unicação e influência. Diante do contraste entre ensino escolar e múltiplos dados bíblicos, ocorreu-me a possibilidade de repensar o artigo de fé sobre a inspiração bíblica com categorias da linguagem: funções, níveis, obra literária. Parecia-me que esse enfoque correspondia melhor à realidade da B í blia e preparava melhor o terreno para uma hermenêutica renovada (o livro de Gadam er, Wahrheit und Methode, de 1960, apenas com eçava a se destacar). Entre 1965/66, a obra foi simultaneamente publicada em inglês e em es panhol, breve se seguindo edições em italiano, francês e alemão, uma segunda edição espanhola e, há pouco, uma polonesa. A pós vinte anos da publicação da obra e da constituição conciliar Dei Verbum, refletimos sobre o trabalho. No que me diz respeito, pude constatar que A Palavra inspirada foi para mim germinal, programática. M uito do que escrevi depois decorre daí. Por essa razão, quis manter isso, citando oportuna mente artigos ou livros. N o que tange a público e tema, desenvolveram-se de m odo semelhante o interesse pela Bíblia e o interesse pela linguagem. Isso pa rece justificar uma nova edição da obra. E la foi submetida a revisões e acrés cimos bibliográficos, mas conserva a estrutura e o teor originais. Rom a, Pentecostes de 1986. PRIMEIRA PARTE A PALAVRA DIVINO-HUMANA Locutus est per prophetas 1. O artigo de fé e seu contexto 2 . A palavra divino-humana 3. Testemunhos bíblicos 1 O ARTIGO DE FÉ E SEU CONTEXTO A RTIG O D E FÉ Na missa dominical, as pessoas, dirigidas pelo sacerdote, se levantam para professar a sua fé. Trata-se de um ato litúrgico solene: a comunidade de pé, não em pé de guerra, mas em pé de profissão; em posição firme, porque está exprimindo firmeza de espírito; em posição uniforme, porque as pessoas exprimem ânimos unânimes. Mas, ao mesmo tempo, humildes, porque o ato de fé é um ato de humildade e um dom da graça. Nesse momento litúrgico uma onda de graça nivela, levantando todos os presentes; e ela os nivela ao nível do sacerdote, ao nível da vida sobrenatural. Um crescimento sobre-hu mano põe a comunidade de pé, porque flui uma profunda avalancha de graças. Entenderão todas as pessoas o que professam? Sim, pelo menos de modo elementar; porque crer é já compreender, é abrir-se e entregar-se numa com preensão. Entenderão todas as pessoas o mesmo, isto é, com a mesma clareza, profundidade, precisão, riqueza? Não, porque essas perfeições variáveis podem ser ampliadas com a meditação, o estudo. A atividade intelectual, atuando so bre o objeto da fé, nos leva a ganhar conhecimento. Aqui vemos descrita, de maneira sumária, a teologia como atividade: uma fé que busca compreender. Já na liturgia poderia ocorrer uma ampliação do entendimento acerca da fé professada: a composição do ofício litúrgico de uma festa procura iluminar o mistério celebrado, apresentando e revivendo uma harmoniosa e intuitiva com posição de elementos diversos, como leituras do Antigo e do Novo Testamentos, orações, hinos, gestos etc. Além disso, durante a cerimônia litúrgica, o sacer dote pode explicar o sentido da festa e do mistério, sentido que amplia o en tendimento do objeto da fé. Esse aumento do entendimento, por meio da cele bração litúrgica, é mais vital e orgânico, menos consciente e sistemático. Por isso, o cristão continua a buscar uma compreensão da sua fé fora da liturgia e, impelido por ela, numa ciência denominada teologia. A nossa profissão de fé é articulada, ou seja, dividida em artigos. Na ter ceira seção, dedicada ao Espírito Santo, professamos: Qui locutus est per prophetas. E nessas palavras está contida, de modo substancial, a nossa fé na realidade misteriosa da Sagrada Escritura, dos livros inspirados. Entenderão todas as pessoas esse artigo de fé que professam? Sim, pois é fácil compreen der o que é falar, não é difícil ter algumas idéias sobre os profetas e, generi camente, podemos compreender o que é falar por meio de outros. Ora, essa compreensão elementar sobre a atividade do Espírito Santo e sobre a palavra O artigo de fé e seu contexto de Deus também pode ser enriquecida por um estudo teológico: a atividade inspiradora do Espírito, o feito histórico de alguns autores inspirados, a pre sença na Igreja de certos livros inspirados, as conseqüências dessa realidade para a nossa vida cristã. Eis aqui caminhos pelos quais pode ampliar-se a nossa compreensão do artigo de fé Qui locutus est per prophetas. N O C O N T E X T O D O E SP IR IT O Sobre os carism as, além dos com entários às E pístolas aos Rom anos e à prim eira Epístola aos Coríntios, e afora obras gerais, com o a Teologia ãel Nuevo Testam ento, de Meinertz, e o Diccionario teológico ãel Nuevo Testam ento (G. K ittel), pode ser consultado K. Rahner, Lo dinâm ico en la Iglesia, “Quaestiones disputatae” (B arcelona, 1963). Nesse volume, o autor estuda os carism as com o constitutivos da Igreja, bem com o em suas relações com os ofícios. Pode tam bém ser consultado o artigo de síntese de Hans Küng, E s tru ctu ra carism ática de la Iglesia, Concilium 4 (1965), 44-65; com referências bibliográficas, especialm ente na nota 7. H á tam bém a im portante obra de H. Mühlen, Una persona Mystica (T 967), e D. Grasso, Los carism as en la Iglesia (M adri, 1983). Antes de chegar a precisões, consideremos o contexto em que nos m ove remos: 1 trata-se do contexto do Espírito. Este é um “ vento divino” (G n 1 ) , é uma força elementar: o Espírito pairava sobre o abismo no com eço da cria ção, invadia tumultuoso o herói Sansão e o impelia às façanhas que salvaram o seu povo, convergia dos quatro pontos cardeais e vivificava os ossos secos que Ezequiel, o profeta, contemplava; o Espírito também era um sopro de Deus que dava vida a A d ão, umabrisa suave que enxugava a angústia de Elias e um quádruplo vento dócil que embalava o rebento de Jessé; o Espírito é vento furioso e línguas de fogo no dia de Pentecostes, é quem dita, em voz baixa, a invocação “ P ai” , e é dispensador de dons e carismas policromos na Igreja primitiva e em todos os tempos da sua história. Assim devemos considerar o Espírito: forte e libérrimo, ativo e múltiplo, presente e invisível. E é nesse contexto dinâmico e aberto que devemos con ceber a inspiração dos livros sagrados. Perseguiremos definições e o Espírito escapará da nossa classificação mental; aperfeiçoaremos os conceitos e o vento os ultrapassará; aplicaremos distinções e o Espírito as tornará permeáveis. Por que o Espírito sopra onde quer; você ouve a sua voz e não sabe de onde vem nem para onde vai. Num contexto de múltiplos carismas, de Israel e da Igreja, situa-se o ca risma da inspiração da Escritura: permeável a outros carismas e convivendo com eles. Com essa flexibilidade intelectual — cuidando das realidades dinâmicas e dispostos à humildade de sentir-nos ludibriados — , podemos abordar o estudo dos autores e dos livros inspirados, que, em última análise, são um mistério da nossa fé. E, para que possamos entender um pouco a ação do Espírito, que o próprio Espírito nos conceda o dom da inteligência. Quando dizemos que a inspiração é um carisma, professamos uma das características da Igreja. Os livros sagrados pertencem à instituição da Igreja, à sua constituição: são algo institucional e constitutivo. Mas o institucional na Igreja está sempre aberto ao carisma, porque sem carismas a Igreja não pode 1. Sobre o contexto trinitário, vejam-se tam bém pp. 36ss. e 194ss. d contexto do Espírito 19 subsistir. A s suas instituições — papado, episcopado, sacerdócio, definições dogmáticas etc. — estão permeadas de carisma, isto é, da presença ativa do Espírito, que garante na Igreja a existência de coisas sobre-humanas como a infalibilidade ou a santidade; além de todas as instituições conhecidas e registra das, o carisma imprevisto e irresistível sempre encontra lugar nela, porque o Espírito ativo na Igreja não está aprisionado. Por isso, considerar a inspiração um “ carisma” tem conseqüências im portantes: a presença da Escritura na Igreja é um a presença do Espírito e, portanto, uma atividade; é um dos caminhos institucionais da ação do Espírito; e. ao mesmo tempo, a Igreja permanece aberta e disponível a novas ações ines peradas do Espírito. Por outro lado, a leitura e a interpretação da Sagrada Escritura penetram na esfera dos carismas: há uma interpretação infalível e de autoridade, há uma interpretação inspirada e espiritual; e é ao serviço delas que se dispõe o humilde trabalho humano de investigar, trabalho que também pode ser tocado pelo E sp írito .2 Tudo isso é elemento constitutivo da tradição, animada pelo Espírito também através da Escritura inspirada. Considerar a inspiração um “ carisma” nos impele a não pensar nesse mis tério isoladamente dos outros carismas que animam a vida da Igreja: como fios de um único e maravilhoso tapete, se entrecruzam, para dar forma, o ca risma da santidade e o da inspiração, o de milagres e curas, o de sabedoria e conselho, o de pregação etc. H á pouco tempo, o Pe. Benoit tentou ampliar o âmbito da “ inspiração” dividindo e organizando o conceito por “ analogias” . 3 Desse modo, ele fala da inspiração cognoscitiva para conhecer, da inspiração oratória (que se subdivide em profética e apostólica) para falar, da inspiração para escrever ou hagiográ- fica; fala também de uma inspiração dramática para atuar (inspiração ativa na vida de Israel como povo e em personagens eleitos) e da inspiração eclesiásti ca ou assistência no magistério. Essa organização de Benoit restitui a inspiração da Sagrada Escritura a um contexto amplo, múltiplo, “ analógico” , assinalando conexões e o parentesco comum no Espírito. E le pode citar a seu favor a etimologia da palavra “ in-spi- ração” e o uso flutuante de escritores antigos, que também designam como “ inspirados” os concílios e alguns escritores eclesiásticos. Contudo não considero recomendável a terminologia de Benoit. O uso moderno consagrou e especificou o termo “ inspiração” : empregá-lo anulando a diferenciação admitida facilmente nos fará deslizar da analogia para a am bigüidade. Muito mais tradicional e menos perigoso é recorrer ao termo “ ca risma” , enquanto contexto de unificação e de conexões, reservando ao termo “ inspiração” um uso técnico. Isso não nos impedirá de distinguir diversos está gios ou aspectos no processo total da inspiração. Nessa linha, os estudos de Benoit são um progresso na diferenciação especulativa do mistério. Sto. Tom ás nos ensinara a inserir a “ profecia” (não a “ inspiração” em sentido estrito) no contexto dos carismas ou gratiae gratis datae (Suma Teo 2. Na terceira sessão do Vaticano II, em outubro de 1964, esse tem a do E spírito foi apresentado, com particular vigor, por D. Edelby. A constituição Dei V erbu m 12 diz: “A E scritu ra deve ser lida e interpretada com o mesmo E spírito com que foi escrita”. Veja-se o meu com entário no volume publicado pela BAC, Com entários a la constituciõn “Dei V erb u m ” sobre la divina revelación (M adri, 1969). 3. P. Benoit, Les analogies de 1’inspiration, Sacra Pagina I (Gembloux, 1959): 86-99; id., Inspiración y revelación, Con 10 (1965): 13-22. 20 O artigo de fé e seu contexto lógica, 1 7 1 -1 7 8 ) . Devotado à sábia ordem das divisões, ele distribuiu os ca rismas em três grupos: graças de conhecer, a profecia e o êxtase; graças de falar, a glossolalia e o discurso; graças de atuar, os milagres. Dessa maneira, a profecia se insere no primeiro grupo, um pouco contra a abundante evidên cia bíblica. O respeito rígido a essa divisão acarretou problemas desnecessários ao tratado neo-escolástico De Inspiratione Sacrae Scripturae. Adiante teremos ocasião de voltar a esse tema. Por ora, basta afirmar, sem entrar em “ questões controversas” , que a inspiração é um carisma de linguagem: locutus est. N O C O N T E X T O D O L O G O S A teoria da revelação está novam ente ativa e é alvo de interesse. Como síntese histórica e exposição sistem ática, pode ser consultado: R. Latourelle, Teologia de la revelación (Salam anca, 1966). E m sua parte histórica, essa obra oferece resum os claros das teorias e controvérsias m ais im portantes. A parte sistem ática tem início com três capítulos intitulados “La revelación com o palabra, testim onio y encuentro”, “Revelación y creación” e “H istoria y revelación”. Trata-se de um a descrição breve, que não aborda as relações m útuas. Veja-se o amplo levantam ento de A. Dulles em Theological Studies, 1964. O livro oferece tam bém , além da bibliografia geral, um a bibliografia específica de cada capítulo. Um ponto de vista m ais fenomenológico e um a exposição m enos acadêm ica podem ser encontrados na obra de R. Guardini, Religion unã O ffenbarung (W urzburgo, 1958; trad . espanhola: Religión y revelación, Madri, 1960). A prim eira parte descreve o fato ou fenômeno da experiência religiosa; a segunda, algumas configurações con cretas desse tipo de experiência e a terceira, a sua form ulação em conceitos e imagens. Um a exposição m uito clara pode ser vista em H. Fries, Glauben-W issen. W ege zur einer Lõsung des P roblem s (B erlim , 1960; trad . espanhola: C reer y saber, M adri, 1963). Além da exposição histórica, o que apresenta grande interesse aqui é a descrição da fé na pessoa e da fé em suas proposições. A fé na pessoa é um a form a autêntica e superior de saber. Podem-se consultar C. G effré/I. de la Pottérie (ed s.), R évélation de Dieu et langage des hom m es (P aris, 1964) e Con ciliam 21 (1967), Revelación y fe. Cf. N.Schiepers/K . R ahner/H . Fries, Revelación, Sacram entam M undi VI, cols. 78-113, e P. R icoeu r/E . Levinas (ed s.), La révélation (Bruxelas, Universidade de Saint-Louis, 1971). N o carisma da inspiração, a atividade do Espírito se especializa em lingua gem: exposição, com unicação, conhecimento. Tudo isso pertence à esfera do logos, que é conhecimento mental e sua com unicação em palavras: pensar e dizer. Com unicação e conhecimento são elementos de revelação. Se tomarmos a palavra “ revelação” num sentido amplo, poderemos partir de experiências estritamente humanas. Por exemplo, denominamos “ revelar” a operação química pela qual a emulsão fotográfica exposta à luz manifesta e libera a imagem gravada e escondida. Podem os dizer que os átomos, os genes revelam os seus segredos a uma investigação matemática e experimental. Num grau mais alto ou mais profundo, posso dizer que uma paisagem, uma tempes tade, um céu noturno tropical foram uma revelação para mim, porque me des velaram algo que está acima ou por detrás deles. Trata-se de objetos que se revelam; ou será que um algo, diverso de um mero objeto, se desvela neles? Sem se aprofundar tanto, pode-se dizer que o mais humilde objeto do mundo está patente, manifestando-se ao homem; o seu ser é presença, mani festação; o seu ser é cognoscível e, por isso, diremos que ele tira um véu ou No contexto do logos 21 se revela. Quando se apodera dessa manifestação e contempla esse ser que assim se manifesta à sua inteligência, o homem, num ato do espírito, o nomeia, volta a manifestá-lo, atribuindo-lhe uma nova qualidade de presença e de evi dência; em certo sentido, o homem revela o objeto a si mesmo e aos outros. Já vislumbramos aí a conexão radical entre “ revelação” e linguagem. Se quisermos agir com escrúpulo terminológico, reservaremos a palavra “ revelação” a uma esfera superior. M as, como a linguagem comum não tem esses escrúpulos, eu quis com eçar por esse estágio tão sugestivo, anterior ao rigor da diferencia ção terminológica. A criança é a grande descobridora de um “ novo m undo” , porque todo o mundo é novo para ela; para a criança, tudo é revelação ou manifestação, e o fato de dar ou usar nomes também representa um prazer para ela. O termo “ revelação” tem m elhor emprego quando aplicado a sujeitos, pes soas. Duas características servem para descrever a pessoa: a autoposse intelec tual, ou consciência, e a autoposse volitiva, ou liberdade. O cão também tem um conhecimento sensorial, mas não sabe que sabe, possuindo tendências que não possui de modo livre. Inversamente, no ato de conhecer um objeto, eu me conheço como conhecedor em ação, posso acumular o conhecimento e atua- lizá-lo em novas ocasiões, como meu e com o passado: possuo o meu conheci mento e, nele, a mim mesmo. D e m odo ainda mais radical, possuo a minha vontade, pois tomo decisões, suspendo-as, revogo-as, dirijo a atividade para um fim previsto, reflito e pondero antes de decidir, e, depois da ação, sinto-me dono e, por isso, responsável: na decisão, possuo a minha vontade e a mim mesmo, possuo a minha decisão e, nela, a mim mesmo. Essa posse é algo que está interiorizado em mim, está fechada em si mesma; por isso, posso conservar para mim a posse exclusiva dessa atividade, escondê-la dos olhares externos, ou posso revelá-la. Por possuir a mim mesmo, posso esconder-me e fechar-me, ignorando pressões e violências; por possuir a mim mesmo, posso abrir-me em comuni cação com outra pessoa, revelando-m e em doação livre. A q u i, em atos de plenitude pessoal, se justifica o uso do termo “ revelação” . É verdade que, involuntariamente, nos desvelamos em gestos, em reações espontâneas, em ações; há ciências ou técnicas que decifram esses sintomas. Em plena revelação livre, desejada e produzida, não se decifra a partir de sintomas, mas se conhece e se penetra. Essa revelação pessoal, consciente e livre, pode realizar-se em ocasiões intencionais, como a oferta de um ramalhete ( “ diga-o com flores” ), em gestos propositais, com o um aperto de mãos, ou em palavras. Pela revelação pessoal, tornamos o outro partícipe da nossa própria posse e, de maneira recíproca, compartilhamos a sua posse. Desem bocamos de novo na linguagem enquanto veículo ideal de revelação pessoal; além disso, veio à tona o tema da revelação mútua, consumada na palavra dialogada. O tema voltará a aparecer; que baste por ora a sua enun- ciação. E quanto a Deus, é pessoa? Pode ele velar-se e revelar-se? Neste contex to, a fé nos ajuda, pois nos diz que Deus vive em três pessoas; só que a fé já implica um a revelação. A especulação agostiniana sobre a Trindade, baseada em alguns dados bíblicos, nos guiará. Ninguém como Deus se possui, em seu conhecimento e liberdade: a ple nitude de Deus só pode ser possuída por Deus. O P ai possui a plenitude de Deus, que é possuir-se a si mesmo; mas ele não reserva exclusivamente para si essa posse, comunicando numa Palavra, misteriosa e total, a sua plenitude O artigo de fé e seu contexto divina à pessoa do Filho, que, dessa maneira, possui a divindade integral, a mesma do Pai: o F ilho é a imagem, a Palavra do Pai. A plenitude de divin dade, que o Pai e o Filho possuem de forma compartilhada, é comunicada por eles em nome do amor ao Espírito Santo, de tal sorte que a terceira pessoa também possui a plenitude da divindade. Desdobrando muito o termo “ reve lação” , poderíamos dizer que dentro de Deus há uma espécie de revelação, ou melhor, que a vida divina é revelação interna, do Pai para o Filho, do Pai no Filho. Isso é especulação sobre um fato que é mistério. 4 Não saímos com isso da divindade; pelo contrário, entramos na divindade com agostiniana audácia especulativa. Se usamos o termo “ revelação” num sen tido menos amplo, a vida interna de Deus não nos basta; precisamos de um movimento de abertura de Deus que se exteriorize em ações ou palavras. Esse tipo de revelação será possível por parte de Deus? M ais uma vez, seguindo a especulação de Agostinho (que por seu turno se apóia em dados bíblicos), podemos dizer: como há dentro de Deus uma palavra que é expressão total da divindade, é possível a existência de uma ação externa que seja reflexo par cial e m ultiplicado da divindade. Por essa razão, João e Paulo dizem que tudo foi feito por ele e nele, já que toda manifestação externa de Deus reside na m anifestação interna que é o Filho, a Imagem, o Logos. Toda revelação de Deus voltada para o exterior é reflexo da misteriosa manifestação interna de Deus. Se sabemos algo acerca da vida interna de Deus e podemos falar sobre isso é porque se realizou uma revelação externa de Deus que, de algum modo, nos permite penetrar em sua própria vida. T R Ê S C A M IN H O S D E R E V E L A Ç Ã O Hebreus se inicia de maneira solene: “ Em múltiplas ocasiões e de mui tas maneiras Deus falou outrora a nossos pais pelos profetas. A gora, nesta etapa final, falou-nos por um Filho, a quem nomeou herdeiro de tudo, o mes mo por quem criara os mundos e as eras. E le é o reflexo de sua glória, ex pressão de seu ser; ele sustêm o universo com a palavra potente de Deus; e, depois de realizar a purificação dos pecados, sentou-se à direita de sua majes tade nas alturas, tornando-se um protetor mais poderoso, que os anjos, tanto mais extraordinário é o título que herdou” . Nessa síntese teológica só nos falta uma enunciação explícita da revelação pela história ■— enunciação que encontramos no capítulo 11 e que está implí cita nas formas verbais do prólogo. Encontram os uma referência a Cristo co mo resplendor de sua glória e expressão do seu Ser. Essas palavras se referem estritamente ao Cristo encarnado, mas na encarnação existe essa participação da divindade como imagem substancial — o que é próprio da vida trinitária. Vim os, além disso,que por ele foi criado o universo, primeira revelação de Deus voltada para o exterior. Antes da vinda histórica de Jesus, preparando os dias da etapa final, houve uma revelação em muitas palavras, ditas por profetas. No Cristo encarnado temos a revelação final e plena, que se realiza em sua pessoa (com o “ resplendor e expressão” ), em suas ações de “ purificação dos 4. Veja-se E . E ilers, Gottes Wort. E in e Theologie d er Preãigt nach Bonaven- tura (Friburgo, 1941); A. Gerken, Theologie ães W ortes. Das Verhaltnis von Schõpfung und Inkarnation bei Bonaventura (Düsseldorf, 1963). Revelação pela criação 23 pecados” e em suas palavras, visto que nele fala o Pai. Criação, escritura san ta, redenção em Cristo — tudo está estreitamente unido, sendo, para nós, ma nifestação divina. R E V E L A Ç Ã O P E L A C R IA Ç Ã O Além do capítulo específico de R. Latourelle, com a bibliografia correspon dente, convém d estacar aqui o tem a do m ito. T rata-se de um tem a de interesse central no pensam ento atual e, por isso, a bibliografia é im ensa. Um a exposição abundante, suficientemente clara e com boa bibliografia, pode ser encontrada em D ictionnaire de la Bible, Supplém ent (D BS) VI, pp. 225-258. E n tre os autores m ais reconhecidos e lidos hoje, deve ser citado M ircea Eliade, cujas obras foram traduzidas p ara as principais línguas; veja-se, por exemplo, a sua Historia de las creencias y de las ideas religiosas, 4 vols. (M adri, Cristiandad, 1978-86). O tem a do m ito é desenvolvido em toda a sua obra, sendo abordado de modo especial no Tratado de H istoria de las R eligiones. M orfología y ãialéctica de lo sagrado, que analisa as “hierofanias” num inosas; ele descobre o hom em no Neolítico em con tato com a agricultura e cedo utiliza m itos, ritos e símbolos, que m antêm o humano em contato com o divino (M adri, T 981). M encionarem os alguns outros dos seus livros; E l m ito ãel eterno retorno (1949), Im ágenes y sím bolos (1952), Mito y realiãaã (1968), La nostalgia de los orígenes (1971), Im ágenes y sím bo los (1974). P or sua im portância, devem-se consultar os dois estudos de P . Ricoeur, Sym bolism e ãu mal, tom o II de Finitude et culpabilité (Paris, 1960), e Poética e sim bólica in Iniciação à prática da teologia, vol. 1 (Edições Loyola, São Paulo, 1992), 29-48 E m ou tra direção cam inha a com plicada controvérsia sobre a arte de desmitologizar o Novo Testam ento, de tal sorte que o Pe. Nober precisou dedi car-lhe um título especial em seu “Elenco Bibliográfico Bíblico anual”. O livro de H. Noack, Sprache unã O ffenbarung (Gütersloh, 1960), se m ovim enta nesse horizonte de problem as, com a típica e difícil linguagem que o caracteriza. Sobre a m udança na valorização do m ito pode-se consultar J . Pépin, M ythe et A llégorie (Paris, 1958) — apenas o prim eiro capítulo. A sua explicação da alegoria cristã é equivocada, com o o dem onstra H. de Lubac em sua E xégèse Méãiévale. Veja-se tam bém P. Barthel, Interprétation ãu langage m ythique et théologie biblique (Leiden, 1963). Cf. J . W. Rogerson, Mith in Olã Testam ent Interpretation (N ova Iorque, 1976). Cf. um a boa iniciação ao símbolo em J . Ma- teos, Símbolo in Conceptos fundam entales de Pastoral (M adri, 1983), 960-971, com bibliografia. A s palavras “ natureza” , “ universo” e “ cosmos” são pobres substitutos da palavra “ criação” . Porque a verdadeira substância de toda a natureza é ser criatura e, como tal, revelação de Deus; ou, se desejamos evitar um vocábulo demasiado preciso, m anifestação de Deus. Tudo o que Deus realiza fora de si mesmo o manifesta, sendo, em sentido amplo, uma espécie de língua: “ Os céus proclamam a glória de D eus” apenas por ele existir e agir. Sem que falem, sem que pronunciem, sem que ressoe sua voz, sua proclam ação atinge toda a terra, e sua linguagem, até os limites do orbe (SI 19 ,4 -5). Quando não se fecham, os olhos mortais compreendem a linguagem da natureza como criatura que fala do Criador. E é uma imagem freqüente, tópi ca, falar do livro da criação: 24 0 artigo de fé e seu contexto Omnis mundi creatura quasi liber et pictura nobis est et speculum escreve A lan o de Insulis (P L 210, 5 7 9 ); e Boaventura, no seu Brevilóquio, afirma: creatura mundi est quasi quidam liber in quo relucet. . . Trinitas fabri- catrix (II, 2 ) . 5 Paulo nos diz: “ O que se pode conhecer de Deus está a seu alcance, pois Deus lho manifestou. Já que, desde a criação, sua natureza invisível, seu poder eterno e sua divindade são conhecidos por uma reflexão sobre as coisas cria das” (R m 1,19 -2 0 ). Ou seja, as criaturas revelam Deus a uma mente que saiba refletir. Paulo não fornece detalhes sobre a realização dessa reflexão, empregando o termo filosófico nooúmena, que podemos traduzir rigorosamente por “ (coisas) pensadas” . E o Livro da Sabedoria o form ula da seguinte m a neira: “ Pela magnitude e beleza das criaturas se descobre por analogia quem lhes deu o ser” (Sb 1 3 ,5 ). Um a form a de reflexão intelectual ocorrerá através de silogismos, que, apoiados no princípio da causalidade, levarão rigorosamen te a Deus, aos seus atributos e perfeições. M ais ou menos, as diferentes provas da existência de Deus, ou “ vias” , são um a aplicação do grande princípio da razão suficiente. Para os gregos do tempo de Paulo, para os homens de uma época científica, os caminhos do silogismo sempre estão franqueados, e todos terminam em Deus. E isso vale radicalmente para todos os homens, já que a racionalidade é essencial ao homem, e a capacidade de raciocinar, em ação, pode conduzi-lo a Deus. Falo aqui de possibilidade, no sentido do Concilio Vaticano 1 . 6 Para povos primitivos, para culturas pré-filosóficas, parece existir outro caminho, a que se costuma dar o nome de simbólico. N ão me refiro ao cam i nho da “ dem onstração” , porque demonstrar é uma operação filosófica rigorosa, ao passo que o caminho simbólico conduz a Deus sem a aplicação do rigor dos silogismos. A percepção de uma presença superior numa tormenta: a tormenta se transcende a si mesma, nela se descobre algo superior e imponente, algo sagrado e divino; não por meio de raciocínios, mas sob a form a de experiência profunda e emocional. O mesmo acontece com um profundo céu estrelado, com um vulcão em erupção, com a imensidão tranqüila do mar, com o silêncio intimidante de uma selva. . . O fato de esse caminho estar mais exposto a deformações é demonstrado pela história com parada das religiões; mas a própria ciência demonstra que esse é o caminho religioso, sinceramente religioso, de muitos povos. O fato de se tratar de um caminho emotivo, carregado de intensa em oção, não exclui a sua natureza intelectual, já que toda percepção simbólica, em bora possa repousar em esquemas subconscientes da alma, é intelectual. Essa 5. E . R. Curtius, E uropãische Literatur unã lateinisches Mittelalter, Berna, 21954, capítulo 16: “O livro com o sím bolo”. Repassando da G récia a Shakespeare, m ostra a constância e as variações do símbolo. De particular interesse é a idéia dos dois livros, natureza e E scritu ra , freqüente em autores medievais (trad . cast.: Literatura europea y E ã aã Media latina, México, 41984), 423-489. Veja-se tam bém H. de Lubac, E x ég èse Méãiévale. Les quatre sens de V Écriture, I (Paris, 1959), 121-125. 6. Veja-se R. Latourelle, Théologie de la Révélation, p. 356. Revelação pela criação 25 percepção simbólica se traduzirá depois em mitos e em grandes imagens poé ticas, dotados de valor cognoscitivo e expressivo.7 Entre os salmos encontramos um que foi tomado e adaptado do culto ca- naneu; isso quer dizer que o autor sagrado viu nele uma autêntica experiência religiosa, formulada com suficiente correção para ser transportada parao con texto javista. Trata-se do SI 29, que canta o Deus presente na tormenta. É poesia autêntica, sem vestígio de raciocínio: um fato da natureza, dinâmico e impressionante, é contemplado e submetido a uma reflexão simbólica — nooúmena — , na qual o trovão se aprofunda em voz de Deus. D e m odo se melhante, os poetas religiosos hebreus utilizam grandes símbolos da religião cananéia para formular alguma qualidade de Deus; por exemplo, o tumulto oceânico, visto como uma rebelião ou desordem, sobre o qual Deus impõe a ordem de forma vitoriosa: Levantam os rios, Senhor, levantam os rios sua voz, levantam os rios seu fragor; porém, mais potente que a vo z de águas caudalosas, mais potente que as vagas do mar, mais potente, no céu, é o Senhor (SI 93,3-4). É equivocado pensar que as imagens, símbolos e mitos dessas religiões orientais sejam puro embuste e falsidade e que, ao entrar no uso israelítico, se transformem de repente em autênticos e santos; não é desse tipo a trans mutação bíblica. E mais ridículo ainda seria pensar que os autores bíblicos procedem através de raciocínios e silogismos, que depois recobrem e dissimulam com imagens, por causa da ignorância ou falta de cultura dos leitores. A poe sia não é a arte de vestir silogismos. Nesses e em numerosos outros exemplos bíblicos aparece um evidente pon to de contato com as religiões do Oriente antigo: isso significa que, pelo menos nesses pontos de contato, e mesmo intersecções, as religiões extrabíblicas dão testemunho de uma autêntica experiência de Deus, muito embora esta se mos tre contaminada e deform ada em muitos outros pontos de não-contato. V eja- -se Treinta Salmos, pp. 296s. D e resto, essa é uma explicação comumente admitida hoje, explicação que continua a ser menosprezada por aqueles que ainda pensam os mitos com ca tegorias iluministas ou racionalistas. Os autores se atêm à discussão das van tagens desses modos de acesso a Deus; quanto a nós, aqui nos interessa sim plesmente o fato de que a criação manifesta Deus. Essa m anifestação de Deus é uma linguagem divina? Ou se realiza por um acréscimo da linguagem humana ao mero dado da natureza? Esse nooúmena da Epístola aos Rom anos não constitui já uma espécie de linguagem interior? N ão ocorre nele uma síntese simbólica, ou um processo racional de proposições encadeadas? D e fato, não faltará nesses casos pelo menos um acompanha mento rudimentar de linguagem interior; mas, por ora, prefiro não considerar essa ação da inteligência como ato formal de linguagem. Será necessário escla recer e empregar diversos sentidos do termo “ linguagem” . 7. R. Guardini, Religión y revelación, capítulo prim eiro, “E l caracter sim bólico de las cosas” e seu precioso livro Los signos sagrados. 26 O artigo de fé e seu contexto No Logos, o Pai se diz a si mesmo, comunicando a sua divindade ao Filho de maneira integral. Chamamos analogicamente esse ato — pelas suas caracte rísticas de vitalidade e de expressão — de palavra, logos. M as ele é único e total, não dividido nem articulado: é imagem permanente e natural, não con vencional nem transitória. Quando Deus com eça a atuar voltado para o exte rior, por intermédio do Filho, é diferente. Deus não pode esgotar a sua imagem numa criatura; o que ele faz é dividir e articular a sua imagem em muitas ima gens ordenadas e compostas, e isso é uma espécie de linguagem, sistema orde nado de formas representativas. Deus não pode comunicar ao exterior a sua existência, mas apenas uma existência contingente; e essa necessária perd a d e substância também se assemelha a uma linguagem. C ada ser representa, em pe quena escala e sem consistência própria, uma perfeição interna de Deus: como um imenso vocabulário de palavras significativas. Os seres se relacionam numa ordem parcial, representando algo da unidade e das relações divinas: como frases bem-compostas. E todos os seres compõem um sistema ordenado: como a obra perfeita de uma linguagem. N ão é muito original falar do grande livro da natureza. Frei Luis de Granada fala das letras “ que serão depois todas as criaturas deste mundo, tão formosas e tão acabadas, mas algumas como letras desiguais e iluminadas que mostram bem o primor e a sabedoria do autor” . Por outro lado, Dante escolhe a imagem das folhas soltas na natureza e encader nadas em Deus. N el suo pro fondo vidi c h e s’interna, legato co n am ore in un volum e, ciò ch e p er Vuniverso se squaderna (Par 33, 8 3 ) . s O A T emprega a representação da linguagem no próprio momento da ação criativa. O autor de G n 1 faz uma sutil distinção nas primeiras obras: a rigor, tem precedência a ordem, seguindo-se a existência, o nome. Isso fica muito claro quando o vocábulo é diferente no chamado criativo e na imposição do nome: “ Q ue a luz exista, e a luz existiu. . . e Deus chamou à luz dia” . P o demos falar de uma “ vocação” à existência e, depois, de uma “ nom eação” em seu ser. O chamado à existência é um “ dizer” de Deus — “ Deus disse” — , aparece como ato de linguagem, com um fortíssimo e invencível impulso na forma verbal “ exista” e com uma diferenciação sucessiva nos substantivos “ luz, água, continente” . N a sucessiva nom eação, proclam ada por Deus, fica estabeleci da a realidade distinta de cada ser, a sua presença cognoscível. D esde o princípio são nomeadas e para sempre continuam a ser nomeáveis. Nos atos criativos se guintes, o autor mantém a sublime economia da sua descrição, renunciando por essa razão à multiplicidade explícita. N o quarto dia, Deus chama à existência os “ luzeiros” e, entre todos, distingue os dois luzeiros maiores, um diurno e outro noturno: estes recebem a sua função própria, “ sol, lua” . Seria contrário ao estilo simples e hierático desse capítulo nomear separadamente as inumerá veis estrelas; o autor contenta-se em dizer “ e as estrelas” . Mas, no SI 147, le- mos que Deus chama as estrelas pelo nome, o que implica que lhes impusera um nome a cada uma, tal como o fizera com o sol e com a lua. A lgo seme lhante ocorre nos atos criativos seguintes: o autor insiste no fato de serem criados “ segundo a sua espécie” , dotados de virtudes “ segundo a sua espécie” , sem repetir o nome imposto por Deus a cada um. 8. E . R . Curtius, Literatura europea y Eãaã M edia latina, 457ss. Revelação pela história 27 Na Bíblia atual, em que o capítulo 2 prolonga o 1, parece que Deus cede a A dão o direito de nomear os animais de m odo diferenciado. Com o o ho mem age à imagem e semelhança de Deus, a sua nomeação correta não exclui a designação prévia, fundacional, de Deus. O redator que uniu as duas narrações não encara todos os problemas teo lógicos: podemos afirmar que o “ dizer” de Deus é o princípio da existência dos seres e que o “ nom ear” divino é o princípio da sua nomeabilidade. Isso ocorre de form a eficaz, diferenciada, ordenada. Recordem os que, entre su- mérios e babilônios, o com eço da ciência consiste na confecção de listas de nomes por grupos ordenados: plantas, animais, fenômenos atmosféricos etc.; trata-se de uma prática ainda viva em toda a ciência ocidental, nas classifica ções de Linné, na série de M endeleyef, na anatomia descritiva, nos dicionários por campos de linguagem. 9 Deus cria com a sua palavra, que é sabedoria e ação orientada para fora: a sua ação é corretamente representada como manifestação em linguagem arti culada e que articula; e o resultado dessa ação é o sistema ordenado de seres, que, pela sua nomeabilidade diferenciada e ordenada, pode ser comparado com uma linguagem e que, com a chegada do homem, se transformará em lingua gem formal. É possível que se pense que nos movemos num círculo vicioso: partimos da nossa experiência comum de linguagem para explicar, por analogia, a ati vidade criativa de Deus; depois encontramos umasemelhança de linguagem nessa atividade, seja na Bíblia, seja na especulação teológica. Contudo o uso bíblico conseqüente, que explica a ação criadora sob a form a de linguagem, e as fórmulas teológicas de João, prolongadas pelo uso secular dos santos padres, garantem-nos a validade da nossa explicação. Se podemos partir da nossa experiência de linguagem para explicar analogicamente a atividade divina, isso ocorre porque a nossa linguagem de fato imita a atividade divina. Verem os como mais adiante. Em conclusão, temos a primeira manifestação de Deus — que denomina mos genericamente revelação — através das obras da sua criação, através das criaturas. Nestas encontramos já uma prefiguração e uma analogia da lingua gem formal, que será a revelação em sentido estrito. R E V E L A Ç Ã O P E L A H IS T Ó R IA É atual o tem a da revelação pela história, sobretudo na teologia protestante. E n tre as obras recentes, podem-se consultar: W. Pannenberg (ed .), R evelación com o historia (Salam anca, 1977) e Teologia dei Antlguo Testam ento, de G. von Rad. A. Vogtle, Revelación e historia en el Nuevo Testam ento, Concilium 21 (1967), 43-55. E xistem agora duas obras teológicas que, ao b uscar a renovação da teologia segundo o espírito do Vaticano II , p artem da base da realidade histórica da revelação. M ysterium Salutis, a prim eira delas, tem com o subtítulo “M anual de Teologia com o historia de la salvación”. Consta de cinco grandes volumes, cujos títulos exprim em de fato a sua orientação: I. Fundam entos da Teologia com o H istória da Salvação (1102 pp.); II . A H istória da Salvação Antes de Cristo (933 pp.); III . O Acontecim ento Cristo (1105 pp.); IV. A Igreja (1700 pp., 2 vols.); V. O Cristão no Tempo e a Consumação Escatológica (891 pp.). Publicado por Ediciones Cristiandad, Madri, 1980-85. 9. Listenw issenschaft: veja-se G. von Rad, Teologia dei Antlguo Testam ento I (Salam anca, 1969), 441ss., com bibliografia. O artigo de fé e seu contexto A segunda obra, Iniciação a prática da teologia, que está sendo publicada por Edições Loyola (1992ss.), consta tam bém de 5 vols.: I. Introdução; II . Dogmá tica l ; m . Dogm ática 2; IV. É tica ; V. A P rática . Ações P astorais. Preparada pelos Dominicanos de Paris, trata-se da resposta francesa à concepção alem ã de teologia. Com m enor intenção crítica e científica, a obra é m ais simples e acessível aos que se iniciam nessa m atéria. No com entário da BAC à constituição Dei V erbum , pode-se ler o artigo C arácter histórico de la revelación, cujo índice é: A H istória com o Cenário da Revelação; com o Objeto; com o Prova; A H istória Reveladora. O Progresso dos Esquem as. Os Fatos Reveladores: a razão bíblica. O fato e a série: teoria de Pannenberg. Palavras e fatos: relação orgânica; o Fato Humano, sua ambigüidade, densidade e unicidade. A Palavra com o F ato . Conseqüências Teológica e Pastoral. Sobre esse tem a existe um a alentada bibliografia recente. Citarem os os livros que julgam os m ais im portantes: E . Cassirer, Filosofia de la Ilustración (M éxico, 1943, sobre a revelação da M odernidade); R . Bultm ann, U historicité de Vhom m e et la révélation, vol. I de Foi et com préhension (P aris, 1970); E . Lévinas/ P. Ricoeur (ed s.), La révélation (B ruxelas, 1977); Ch. Duquoc, Alianza y discurso sob re Dios, em Iniciación a la práctica de la Teologia, II (M adri, 1984), 19-86 (edição brasileira no prelo). A natureza não é mais que o cenário da história. A rigor, só o ho mem tem história, enquanto processo contínuo de fatos irreversíveis. U m pen samento evolucionista, também em sua versão aceitável, transpõe essa dimen são de história ao grande processo da natureza. A história dos homens re vela o homem. Pode ela também revelar Deus? U m a primeira resposta nos dirá que sim, que a história humana revela a providência divina. Contudo, pa ra muitos, a história da humanidade é mais um escândalo que uma manifestação de Deus; e não é tão fácil ver continuamente a providência de Deus em todos os acontecimentos da nossa vida, adversos, humilhantes, estúpidos, anódinos. O SI 136, genial síntese de criação e de história, escolhe entre as criaturas um cenário em três planos: o céu (m orada de D eu s), a terra (m orada dos ho m ens), as águas inferiores (m orada das forças adversas); e os dois luzeiros que assinalam os tempos. Se não é inteiramente consciente, essa referência ve lada à história não deixa de ser um achado genial. A natureza vinculada com a história e já parte dessa h istória .10 Descartando por ora um procedimento que chamaríamos de distante e ge nérico, interessa-nos algo mais concreto: Deus pode ser um personagem ativo na história humana e revelar-se nessa atividade? Um historiador que quisesse escrever a verdadeira história de uma aldeia chamada Lourdes teria de contar com um personagem, muitas vezes protago nista, que é Deus. É certo que, para explicar corretamente alguns fatos histó ricos, ele precisaria de uma luz penetrante, a fé. Um agnóstico deveria registrar na história de Lourdes uma cadeia de fatos enigmáticos que passam a determi nar a história da cidade. O agnóstico chegaria a um a narração de fatos e a uma reflexão negativa: “ Sem explicação até o momento” ; aquele que crê re colheria o fenômeno perceptível e explicaria o seu verdadeiro sentido. É ver dade que, para explicar o sentido profundo, a um só tempo revelado e oculto no fato, ele usaria certos meios narrativos que não estão previstos no método da historiografia moderna, segundo Bernheim ; mais ainda, só leitores que crêem entenderiam de fato a história dessa cidade. 10. L . Alonso Schõkel, Psalm us 136 (135), VD 45 (1967): 129-138, revisado em Treinta Salm os: Poesia y oración (M adri, 21986), 389-402. T ratei desse tem a, de modo relativam ente extenso, no início do com entário a Profetas I (M adri, 1980), 17-28: “La palabra profética”. Revelação pela história 29 O que dizemos de Lourdes poderia ser transposto a outras regiões e épo cas em que a presença e a ação da Igreja exigem uma explicação superior do processo histórico. E , para além desse âmbito, temos de contar com uma rea lidade histórica, um povo cujo nome e cujos feitos são registrados pelas crô nicas profanas, e cuja história só pode ser explicada mediante a introdução de Deus com o protagonista. O fato de essa história, contada pelos que a viveram, não empregar os métodos da historiografia crítica moderna não se deve apenas ao distanciamento temporal e cultural, mas também ao seu gênero peculiar: eles queriam narrar a verdadeira história, a profunda, a que é entendida à luz da fé. E essa história tem um protagonista: Deus. Ora, quando reduz um pouco a sua transcendência para intervir na história, Deus manifesta a sua presença e a sua ação. Se reitera as intervenções, até criar uma continuidade de ação, as revelações particulares, que se assemelha vam a pontos, unem-se numa linha e a linha esboça uma figura. A figura de uma continuidade e de uma constância: Deus revela-se em sua atuação cons tante, e o homem pode conhecê-lo com o uma pessoa amiga e exigente, clari- vidente e protetora. Deus revela-se na história. O que a história é para um povo, a biografia é para um indivíduo: tam bém este, refletindo sobre a própria vida, pode descobrir uma série de pontos de intervenção divina especial e traçar sobre eles uma linha, compondo com essa linha uma figura, que revela Deus. Essa revelação entra igualmente na presente categoria, muito embora tenha um caráter sobretudo privado. N ão nos esqueçamos de que essa revelação privada pode ser comunicada a outros, partilhada com eles, e transformar-se em ponto de irradiação divina, já que todo povo se com põe de pessoas individuais. Teoricamente, a ação de Deus pode impor-sepor sua força ou unicidade; quando da terceira praga, os magos confessam: “ O dedo de Deus está aqui” . Costumamos precisar de uma palavra acrescentada à ação para que esta revele o seu sentido. No filme “ V iver um Grande A m or” (adaptado do romance de Graham G reen e), o diretor Dm itrik faz-nos contemplar uma cena sem palavras: a casa de M aurício, o escritor, bombardeada, o terror de Sara. Gestos, ação, ruído, estrépito: nenhuma palavra. O film e prossegue e a protagonista com eça a agir de maneira estranha, incoerente, e não é compreendida nem pelo personagem principal nem pelo espectador. Isso até que o protagonista encontra o diário dela, senta-se e com eça a lê-lo em voz alta (para si mesmo e para o especta d or). A o fazê-lo, retorna a cena inicial, com as mesmas imagens, a voz do protagonista lendo as palavras da mulher. E a cena torna-se inteligível pela palavra. O exemplo tomado do cinema sugere-nos uma pergunta: a ação de Deus na história não será uma espécie de linguagem? Isso no que tem de aber tura para fora, do que possui de diferenciação e ordem. É possível falar da “ linguagem cinem atográfica” , num sentido analógico legítimo; Eisenstein, entre os criadores, e Renato M ay, entre os críticos, expõem algumas carac terísticas dessa linguagem: elementos formais, significativos, expressivos, sin taxe e estilística.11 Neste caso, a analogia não é fruto de capricho, mas ins trutiva, fazendo-nos conhecer de fato. O cinema, mesmo o sonoro, consta subs- 11. S. Eisenstein, Film Form . Film Sense (N ova Iorque, 1957); Renato May, II linguaggio dei cinem a. L ’avventura dei cinem a. O artigo de fé e seu contexto '.ancialmente de imagens: imagens que se sucedem, se compõem, se articulam; imagens que contam uma história. Isto é, um a série de ações que traça um desenho inteligível, revelando os personagens e a história em ação. R ecorde mos alguns expoentes do cinema mudo, “ O Encouraçado Potem kin” , de Eisens- tein, “ A M ãe” , de Pudovkin, “ Joana d’A r c ” , de Dreyer, e teremos elementos suficientes para atribuir à ação um caráter de linguagem; naturalmente, através da seleção e com posição das imagens, que realizam essa ação de modo artístico. D a mesma maneira, poderíamos dizer que a ação de Deus na história é uma espécie de linguagem analógica, já que também Deus escolhe, realiza e com põe sabiamente as suas ações, dotando-as de sentido. A lém disso, Deus emprega a linguagem como meio de ação na história: o profeta não apenas prevê um fato futuro como também age com o oráculo na história. 12 O povo de Deus com eça a existir convocado por Deus, convocado a existir com o “ povo de D eus” , de tal modo que o nome “ meu povo” , “ povo do Senhor” , é um nome que define e subordina a sua consistência. Esse povo recebe uma ordem ativa, religiosa e ética, numa série de mandamentos, que se denominam “ palavras” . Assim como a história de um amor não transcorre sem elementos de linguagem dialogada, assim como a criança vai realizando a sua existência sob a ação do pai e em diálogo com ele, também o povo de Deus de fato tem a Deus como protagonista e interlocutor. N ão podemos separar, a não ser mentalmente, a revelação de Deus pela história da revelação em palavras. Recordemos de passagem que Deus atua na história usando a natureza co mo instrumento: esse é o signo das teofanias, da ação cósm ica nos transcen dentes “ dias do Senhor” , da presença cósmica como testemunha do julgamento do Senhor. Retom emos agora o nosso exemplo cinematográfico para extrair as con clusões: para manifestar o seu sentido, para chegar à plena m anifestação, a história requer normalmente o concurso da palavra. N o cinema, os fatos, reais ou fictícios, transformam-se e subsistem em imagens organizadas, e nesse es tado já recebem e transmitem a sua interpretação; bastante medíocre é o di retor que precisa ir explicando o sentido de suas imagens, seja em voz nar rativa, seja levando os personagens a discursar. Deus atua na história, cria e dirige essa história; ele envia a sua palavra para explicar o sentido de sua obra. Esta é a grande tarefa do profeta, do inspirado: interpretar o sentido da história, contando-a. N ão se trata de primeiro contar os fatos, como uma voz em off ; trata-se de, contando, interpretar. A seleção e com posição dos fatos é significativa; interpretando o verdadeiro sentido dos fatos, revela Deus como protagonista. A lém disso, o autor sagrado reserva-se o direito de utilizar outros meios de linguagem para interpretar fatos: discursos na boca de personagens, introduções, reflexões etc. Por meio da palavra de M oisés e dos profetas, o povo de Deus com eça a compreender a história que está vivendo; essa com preensão é-nos legada em alguns escritos que poderíamos denominar “ as m e mórias de D eus” . 12. Sobre a palavra profética com o elemento ativo na história: G. von Rad, Teologia dei Antiguo Testam ento I, pp. 381ss. Cf. igualmente id., Sabiãuría en Israel (M adri, 1985), em especial pp. 183-220: “Epifanía de la creación”. Será proveitosa a leitura do livro, perspicaz e repleto de sugestões, de P. Beaucham p, Ley-Profetas-Sabios (M adri, 1977), particularm ente o cap. I I : “Los P rofetas”, pp. 71-101. Veja-se tam bém do próprio Beaucham p, Le récit, la lettre et le corps (1982), em especial os caps. IV e V. Revelação pela palavra 31 D iz Paulo (IC o r 1 0 ,1 1 ) : “ Estas coisas sucediam a eles para que apren dessem, e foram escritas para que nos corrijam os” . Os fatos transformados em palavra narrativa, recebendo assim a interpretação autêntica através da palavra, elevando-se a revelação formal. M ais uma vez concluímos acerca dessa segunda forma de revelação, pela história: ela mostrou-nos o seu caráter específico e, ao mesmo tempo, a sua união íntima com a palavra ativa e interpretativa. R E V E L A Ç Ã O P E L A P A L A V R A Introduzirei o capítulo 4 com um a bibliografia escolhida. Por ora, podemos considerar o artigo de J . R. Geiselmann, Revelación in Conceptos funãam entales ãe la Teologia II (M adri, J1979), 569-578, com am pla bibliografia. P ara um horizonte bíblico e p atrístico, veja-se R. Gõgler, Z ur Theologie ães B iblischen W ortes bei O rigenes (Dusseldorf, 1963). J . Levie, La Biblia palabra hum ana y m ensaje ãe Dios (Bilbao, 1961). P. Grelot, La Biblia, palabra ãe Dios (H erder, B arcelona, 1968). A palavra é a forma plena de com unicação humana, e Deus escolheu tam bém, e sobretudo, essa forma de comunicar-se, de revelar-se. Pensemos numa experiência humana intensa: amor, dor, beleza, desco berta. . . A vivência é algo total, envolvente: parece-nos que o eu navega arras tado pela intensidade da experiência, que somos testemunhas levadas pelas águas, mudos de estupor, sem sequer compreender. Saímos então dessa tor rente, interpomos uma distância contemplativa, confrontamo-nos com a nossa experiência. Primeiro dividimos a totalidade contínua em peças discretas; de pois, compomos essas peças numa unidade significativa, numa estrutura orde nada. J3 A experiência transformou-se numa peça de linguagem: A i minhas entranhas, minhas entranhas! Estremecem-me as paredes do peito, o meu coração está perturbado e não posso calar; porque eu mesmo escuto o toque de trombeta, o alarido de guerra, um golpe chama outro golpe, o país está devastado; de repente destroçam-se as tendas e em um momento os pavilhões. A té quando terei de ver a bandeira e escutar a trombeta em alarme? e,v'i n r. . . _ , rf l i .U I iJfj!;,- h - -V i! - - í b í ; !í' M eu povo e insensato, nao me reconhece, ÇTlÇ .L , ' : ' 1' 'l são filhos néscios que não rememoram: wm v L g ; são hábeis para o mal, ignorantes para o bem. Observo a terra: caos informe! O céu: está sem luz; observo os montes: tremem; as colinas: dançam;observo: não há homens, as aves do céu migraram; observo: o vergel é um páramo, os povoados estão arrasados: pelo Senhor, pelo incêndio de sua ira (Jr 4 ,19 -2 6 ). 13. Veja esses aspectos na linguagem poética: Amado Alonso, M atéria y fo r m a en poesia (M adri, 1955), sobretudo o prim eiro artigo, “Sentimiento e intuición en la lírica”, 11-20. O artigo de fé e seu contexto Tendo dado form a à minha vivência, domino-a e possuo-a, posso atuali zá-la mais tarde com clareza, posso comunicá-la. D escrevi o movimento articulatório: do contínuo da experiência passamos ao caráter discreto de elementos que recompomos em unidade de linguagem; porque a unidade natural de linguagem é a sentença. M as podemos acrescentar outros movimentos: um complementar, outro de direção oposta. O movimento complementar ocorre quando, em lugar da vivência intensa, temos uma obser vação multiplicada, ou um a série de impressões que pode confundir-me com a sua variedade; essa multiplicidade tende a fundir-se e confundir-se num con tínuo, e mais uma vez a linguagem, agrupando, compondo, ajuda-me a dividir e a ordenar. Mais importante que o movimento complementar é o movimento contrário: neste caso, o ponto de partida é o simples nomear. O ser concreto, que se manifesta em sua presença e é apreendido pelo espírito, que nomeia essa pre sença enquanto tal. A to elementar e espiritual que, no nomear, possui o objeto e a si mesmo; que designa o ser concreta e globalmente, ainda sem precisões nem distinções (a distinção seria uma parte do movimento articulatório). O no me é idêntico à sua significação, porque todo ele é significação, mas global e concreta. D o nomear passa-se à sentença, que com põe num ato dois nomes ou designações ou significações, porque os apreendeu em sua relação e reflexo mútuo; essa relação e esse reflexo apreendidos estão presentes na sentença, que, por um lado, precisa na com posição as significações globais de cada nome e, por outro, eleva as duas significações a um sentido. M ais uma vez, esse sentido é idêntico à sentença, é global e concreto, e pode diferenciar-se ulterior- mente através do contexto de ação, de vida, de pensamento, no qual ocorre a sentença. Tam bém na sentença, e com maior plenitude, o homem possui os objetos em unidade, bem como a si mesmo, num ato espiritual. Esse terceiro movimento é de tipo ascendente e partilha com o anterior o caráter estrutural; diferenciação e ordem, possibilidade de divisão e com po sição, posse e comunicabilidade. Ou, de preferência, a necessidade de comunicar-me com outra pessoa for ça-me a articular a minha vivência. Nomeio e enuncio apenas para mim, para a minha própria posse do mundo e de mim mesmo? O u nomeio e enuncio para poder comunicar a minha posse a outrem, num afã de revelação pessoal e mútua? O homem foi criado como ser social; “ criou-os homem e mulher” , que não significa exclusivamente a inicial e elementar sociedade de dois, mas que esses dois são a origem necessária da sociedade, pela vontade de Deus: “ Crescei e m ultiplicai-vos” . Socialmente subsiste o homem, socialmente se aperfeiçoa, socialmente do mina a terra; e o meio natural de convivência social é a linguagem, ou, se se preferir, o diálogo. Por isso é muito difícil, talvez infrutífero, decidir se a lin guagem é, em primeiro lugar, ato pessoal ou ato social. D ada a situação social em que cresci, é possível que eu adapte a minha vivência ou que nomeie para o meu uso particular, o que é um exercício posterior à situação social primária. 14 Numa sociedade ampla, existirão os diversos tipos: o comunicativo, o reservado. Isso não diminui o caráter social da linguagem, nem sua forma natural de diálogo. 14. As funções monológicas da linguagem costum am ser consideradas pos teriores. Veja-se F r. Kainz, Psychologie d er Sprache, volume III , A 1.2. Palavra humana 33 O mundo humaniza-se ao entrar em nossa vida e nós o transformamos num novo mundo ordenado, no qual nos revelamos. A linguagem é uma cria ção feita pelo homem à sua imagem e semelhança: é múltipla e ordenada, re vela uma riqueza e uma ordem. Diz-se no Gênesis que A d ão gerou um filho a sua imagem e semelhança, e chamou-o de Set. N a linguagem, o homem também exerce uma paternidade. O Filho é a expressão plena do Pai: é sua Palavra; o homem, na palavra autêntica, sente-se como que gerando um filho à sua imagem. Agostinho diz: “ Escreve de modo que, sentindo-te pai, tu te sintas vivificado pelo filho que geraste” . M as a linguagem, mesmo nas mais elevadas criações literárias, não possui a consistência da pessoa humana. O ho mem revela-se dividindo e diluindo consistência. N a atividade de falar, o homem também é imagem e semelhança de Deus: criando uma ordem, ele se revela. Cumpre-se na linguagem a suprema revelação humana. E Deus escolhe também esse modo de com unicação para revelar-se ao homem, superando assim a natureza e a história. E trata-se de revelação formal, em sentido estrito. Confirm a-o Ch. Pesch da seguinte maneira: “ Toda revelação sobrenatural, à medida que se opõe à revelação natural de Deus, é imediata. Na revelação natural, Deus cria e governa as criaturas, que o homem pode usar como meios para chegar ao conhecimento analógico de Deus: isto é, Deus manifesta-se co mo objeto cognoscível de maneira mediata. Em contrapartida, na revelação so brenatural, Deus manifesta a sua mente, tal como uma pessoa comunica os seus pensamentos a outra: em linguagem propriamente dita. Essa manifesta ção pessoal, como sujeito, é, por natureza, mais imediata do que a manifestação como objeto, da causa pelo efeito. E D eu s nos fala im ediatam ente na E scritura, porque a Escritura é palavra de Deus formal em sentido estrito” . J5 Delimitamos o contexto da nossa profissão de fé: o fato de Deus falar pertence ao contexto do Logos, da revelação; concreta, formalmente, através da palavra. Deus se abre, revela-se a nós como pessoa a pessoa, num meio pessoa] ou interpessoal. É interessante notar que, no com eço da Epístola aos Hebreus, o verbo “ falar” não tem objeto direto, enunciando apenas as pessoas: “ Antigam ente Deus falou a nossos p a is . . . ago ra . . . falou-nos. . . ” Nesse contexto, devemos continuar a fazer precisões, tal como o faz o nosso artigo de fé locutus est p e r prophetas. Deus fala-nos numa linguagem humana, por meio de homens. A qu i o artigo de fé com eça a adensar o próprio mistério. P A L A V R A H U M A N A M as pode Deus falar-nos em palavras humanas? Se deve falar-nos a nós, homens, não pode fazê-lo de outro modo. A palavra é meio de comunicação interpessoal quando a língua é comumente compartilhada por duas pessoas: um meio comum torna a ambas vasos comunicantes. Deus pode ter uma linguagem em comum com os homens? Suponhamos um missionário que procure traduzir a nossa elaborada teologia, ou parte dela, para uma língua primitiva: entre a língua culta ocidental e a hipotética língua primitiva há um desnível de recursos, sobretudo no âmbito de conceitos e rela ções intelectuais. Para compensar o desnível, o missionário extrai alguns ele 15. De Inspiratione Sacrae Scripturae (Friburgo, 1905), n. 411. 34 O artigo ãe fé e seu contexto mentos do seu ensinamento para colocá-los ao alcance da língua menos de senvolvida; se fizer um esforço sistemático nesse sentido, de tanto adaptar e traduzir, irá elevando o nível da língua primitiva. Esses contatos de tradução e adaptação nivelaram, no melhor sentido, muitas línguas à nossa cultura oci dental. M as, nesses casos, partimos de uma semelhança radical, à medida que todas as línguas partem da faculdade humana, comum, de com unicação arti culada; em todas as línguas humanas realiza-se uma essência comum. O mesmo não ocorre com a linguagem de Deus; o desnível é de uma or dem incalculável.
Compartilhar