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A Palavra inspirada, a Bíblia à luz da ciência da linguagem (Alonso Schöel)

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L. Alonso Schõkel
A PALAVRA 
INSPIRADA
A Bíblia à luz da ciência da linguagem
B íblica ; 
L oyola 9 Edições Loyoia
L . A L O N S O S C H O K E L
A P A L A V R A INSPIRADA
A Bíblia à luz da ciência da linguagem
Edições Loyola
S U M Á R I O
A BR EV IA TU R A S DOS LIV R O S BÍBLIC O S ................................................. 9
PRÓLOGO À P R IM E IR A ED IÇÃ O .................................................................. 11
PRÓLOGO À T E R C E IR A ED IÇÃ O .................................................................. 13
Primeira Parte 
A PALAVRA DIVINO-HUMANA
1. O A R TIG O DE F É E SEU C O N T E X T O ............................................... 17
Artigo de fé ......................................................................................................... 17
No contexto do espírito ................................................. IS
No contexto do logos ...................................................................................... 20
Três caminhos de revelação ............................................................. 22
Revelação pela criação ...................... . . .......................... 23
Revelação pela história ................................................................................... 27
Revelação pela palavra ............................................. . ........... 31
Palavra humana . . ................. 33
Palavras de homens .......... ............... . ^ ........................ 35
2 . A PA LA V RA DIVINO-HUMANA ..................... 36
A ação do Espírito ................... 36
Inspiração e encarnação . ............................................................................. 36
Definições negativas .................................. 39
Quatro analogias ...................... 41
Instrumento ......................................... 42
Ditado .............. 47
Mensageiro ..............................* .......................... 51
O autor e seus personagens ............ 52
Deus, autor da Escritura .......................... 54
Conclusão ............ 58
3 . TESTEM UNHOS BÍBLIC O S .................................. 60
Profetas .............. . 60
Fórmulas proféticas .................................................................................... 62
Análise literária ............ 63
Sumário
Sapienciais .............................................................................................................. 64
Os historiógrafos . ............................................................................................. 67
Conclusão: A inspiração do N ovo Testamento ..................................... 69
Apóstolos e profetas .......................................................................................... 69
Unidade e distinções ......................................................................................... 70
Os evangelhos .......................... 72
Conclusão .............................................................................................................. 75
Segunda Parte 
O CONTEXTO DA LINGUAGEM
A E S C R IT U R A C O M O P A L A V R A .......................................... 79
O contexto da lin g u a g e m ..................................................................................... 79
A analogia ........................................................................................................ 80
A encarnação ............................................................................................................ 81
N ovo enfoque ..................................................................... 82
A Escritura como palavra . ...................................................................... 84
Quatro sentidos do termo “ linguagem” .......................................................... 85
Teologia .................................................................................. 89
Conclusão .................................................................................................................. 90
T R Ê S F U N Ç Õ E S D A L IN G U A G E M .......................................................... 91
Exposição ...................................................................................................... 91
A linguagem inspirada ............................................................................ 93
A lguns exemplos ................................................................................................ 94
Funções m onológicas ............ 98
Outras funções da linguagem .................................. 100
T R Ê S N ÍV E IS D A L IN G U A G E M ............................................................. 104
Língua comum ....................................................................................................... 104
Língua técnica .......................... Í06
Língua literária ....................................................................................................... 110
Com paração de níveis ......................................................................................... 112
Terceira Parte 
OS AUTORES INSPIRADOS
P S IC O L O G IA D A IN S P IR A Ç Ã O ......................................... 121
O modelo leonino ................... 121
O m odelo dos manuais teológicos .................................................................. 122
O m odelo de B e n o i t ........................................................................................... 123
O m odelo da criação lite r á r ia .................................. 124
O artista da linguagem .................................................................................. 125
Um grande poeta ................................................................................................ 128
Um simples artesão .......................................................................................... 131
Uma árvore ............................................................................................................ 133
Um detalhe de estilo e um salmo de imitação ....................................... 134
Uma narração ....................................................................................................... 137
Inspiração sucessiva ........................................................................................... 138
A entonação ......................................................................................................... 139
Novo Testamento ................................................................................................ 139
Síntese ..................................................................................................................... 141
S O C IO L O G IA D A IN S P IR A Ç Ã O .............................................................. 145
Crítica .....................................................................................................................149
Língua ..................................................................................................................... 150
Literatura .............................................................................................................. 152
- F A L A R E E S C R E V E R .................................................................................... 154
O problema ........................................................................................................... 155
Soluções ......................................................................................................................... 156
Falar e escrever .................................................................................................. 158
Técnicas de com posição ........................ 159
Com posição literária na Bíblia ..................................................................... 160
A p a la v r a ................................................................................................................ 162
7
Quarta Parte 
A OBRA INSPIRADA
U . A O B R A IN S P IR A D A ..................................................................................... 167
Os livros sagrados ............................................................................................... 167
Obra lite r á r ia ? ....................................................................................................... 169
Estrutura múltipla ............................................................................................... 172
Pluralidade estru tu ra d a ...................................................................................... 175
Consistência ................... 177
Repetibilidade ....................................................................................................... 178
Fidelidade .............................................................................................................. 179
N a I g r e ja ................................................................................................................. 180
i . A O B R A E S U A T R A D U Ç Ã O ................................................................... 183
Princípios teológicos .............................. 183
Revisão histórica .................................................................................................. 184
A tradução grega dos L X X ............................................................... 186
A Vulgata ....................................................................... ............................... .. 188
Traduções modernas ............................................................................................ 189
12 . R E C E P Ç Ã O D A O B R A ................................................................................. 192
A obra mediadora ............................................................................................. 194
N a obra, os fatos ............................................................................................... 195
N a obra, o a u t o r .................................................................................................. 196
Q u in ta P a r te
C O N S E Q Ü Ê N C I A S D A I N S P I R A Ç Ã O
1 3 . N O C O N T E X T O D O L O G O S : A V E R D A D E ................................... 203
A verdade literária ............................................................................................. 206
A verdade finita, humana, é muitas vezes busca .................................... 211
A verdade lógica ............................................................................................... 212
V erdade sem erro ................................................... 213
Conclusão .............................................................................................................. 216
14 . A D O U T R IN A E SE U U SO .................................... 2 17
T oda a doutrina? ................................................................................................ 217
Escritura e tradição ........................................................................................... 2 17
U so da doutrina .................................................................................................. 221
Pregação e catequese ................................................................................... 221
Uso na t e o lo g ia ........................................................................................ 223
1 5 . N O C O N T E X T O D O E S P IR IT O : A F O R Ç A ..................................... 227
A linguagem humana ........................................................................... 227
Form as enérgicas da lin g u a g e m ........................ 228
A ntigo Testamento ................. 230
Evangelhos ............................................................... 233
N ovo Testamento ............................................................................................ . 235
Santos padres .......................................................... 239
M agistério .............................................................................................................. 240
Liturgia ................................................................................................................... 244
H om ilia ................................................................................................................... 246
Liturgias bíblicas .................................... 247
Leitura ..................................................................................................................... 248
P A L A V R A E E S P IR IT O : R E F L E X Õ E S À G U IS A D E C O N C L U S Ã O 251 
C O N S T IT U IÇ Ã O “ D E I V E R B U M ” S O B R E A D IV IN A R E V E L A Ç Ã O 258 
S IG L A S U T IL IZ A D A S ............................................................................................... 265
g Sumário
ÍN D IC E O N O M Á S T IC O 266
PRÓLOGO À PRIMEIRA EDIÇÃO
Este livro não pretende ser um tratado sobre a inspiração: nem pelo tema, 
nem pelas categorias com que se desenvolve, nem pelo m odo de exposição.
O tema é antes a palavra do que a inspiração; isto é, o artigo de fé “ falou 
pelos profetas” . E, tratando-se de um mistério amplo e inesgotável, desejei 
abordá-lo numa região limitada. Christian Pesch me introduziu no milenar 
pensamento da Igreja e eu pensei em utilizar categorias da filosofia da lingua­
gem e da realidade literária. Elas representam um campo que, embora limi­
tado, abrange muitos aspectos particulares numa visão unitária.
Eis a linha deste ensaio: a capacidade humana radical de falar — atualiza-se 
em diversas línguas — cada língua se atualiza no uso individual — o uso indivi­
dual às vezes se atualiza numa obra — a obra se atualiza na representação e na 
repetição — a repetição e a representação se encerram na recepção. Para fa­
lar-nos, Deus desce à capacidade humana de falar (logos, condescendência) — 
essa descida se atualiza em duas línguas (eleição histórica, social) — Deus atua­
liza essa eleição movendo homens escolhidos (inspiração, psicologia) — essa 
m oção se atualiza em muitas obras que se tornam uma obra (obra inspirada, 
Escritura) — essa obra se atualiza na proclam ação e na leitura na Igreja — essa 
proclam ação e leitura se encerram na recepção. Deus fala ao homem, o homem 
escuta e responde.
O livro não é um estudo estritamente científico: nem pelo conjunto orga­
nizado de erudição, nem pela indagação profunda de um problem a único. É an­
tes o resultado de reflexões que giram em torno dessa realidade misteriosa que 
é a palavra de Deus na Igreja. A s minhas reflexões buscarammais a amplitude 
que a profundidade. Em certo sentido, este livro não é senão um intervalo na 
reflexão, para ordenar e decantar, antes de continuar a refletir. E também para 
pedir o auxílio da crítica e do diálogo, porque o m onólogo é menos fecundo.
Preferi o tom expositivo do ensaio, por ser mais livre e acessível, e remeti 
a inform ação mais técnica às notas. O ensaio me permite uma reflexão em 
termos imaginativos e simbólicos, sem chegar muitas vezes à fórmula conceituai 
diferenciada.
A o com por este livro, tive em mente um público cristão adulto, já incor­
porado ao movimento bíblico. Por isso, o livro gostaria de encontrar nova­
mente esse público que já esteve presente e ativo na elaboração.
Jerusalém, Páscoa de 1964.
Rom a, festa de Todos os Santos de 1964.
PRÓLOGO À TERCEIRA EDIÇÃO
A primeira redação desta obra foi elaborada por mim em Jerusalém, no 
ano de 1964, como depuração de cinco anos de ensino da matéria. N o Insti­
tuto Bíblico de Rom a, eu herdara do cardeal Agostinho B ea a cátedra de Ins­
piração e Hermenêutica. N o decorrer dos cursos, deparara com problemas s 
pontos de vista novos.
E u estava condicionado em parte pela prática da exegese do Antigo Tes­
tamento, em parte pela experiência literária e por um crescente interesse pela 
análise da linguagem. A inda não havia se intensificado o envolvente avanço do 
estruturalismo, com as suas conseqüências e desenvolvimentos.
Creio que a novidade da obra consistiu em transpor o tratado de inspira­
ção do campo do conhecimento para o campo da linguagem. A inspiração 
costumava ser estudada e proposta como carisma de conhecimento, de julga­
mento; a verdade bíblica era considerada como qualidade das suas proposições, 
e a conseqüência principal, se não única, da inspiração era a inerrância.
Os dados bíblicos me ofereciam uma imagem diferente: a inspiração como 
carisma de linguagem, a verdade bíblica freqüentemente sob a form a de re­
presentação literária, sendo necessário incluir, entre as conseqüências da inspi­
ração, com unicação e influência. Diante do contraste entre ensino escolar e 
múltiplos dados bíblicos, ocorreu-me a possibilidade de repensar o artigo de fé 
sobre a inspiração bíblica com categorias da linguagem: funções, níveis, obra 
literária. Parecia-me que esse enfoque correspondia melhor à realidade da B í­
blia e preparava melhor o terreno para uma hermenêutica renovada (o livro 
de Gadam er, Wahrheit und Methode, de 1960, apenas com eçava a se destacar).
Entre 1965/66, a obra foi simultaneamente publicada em inglês e em es­
panhol, breve se seguindo edições em italiano, francês e alemão, uma segunda 
edição espanhola e, há pouco, uma polonesa.
A pós vinte anos da publicação da obra e da constituição conciliar Dei 
Verbum, refletimos sobre o trabalho. No que me diz respeito, pude constatar 
que A Palavra inspirada foi para mim germinal, programática. M uito do que 
escrevi depois decorre daí. Por essa razão, quis manter isso, citando oportuna­
mente artigos ou livros. N o que tange a público e tema, desenvolveram-se de 
m odo semelhante o interesse pela Bíblia e o interesse pela linguagem. Isso pa­
rece justificar uma nova edição da obra. E la foi submetida a revisões e acrés­
cimos bibliográficos, mas conserva a estrutura e o teor originais.
Rom a, Pentecostes de 1986.
PRIMEIRA PARTE
A PALAVRA DIVINO-HUMANA
Locutus est per prophetas
1. O artigo de fé e seu contexto 
2 . A palavra divino-humana
3. Testemunhos bíblicos
1
O ARTIGO DE FÉ E SEU CONTEXTO
A RTIG O D E FÉ
Na missa dominical, as pessoas, dirigidas pelo sacerdote, se levantam para 
professar a sua fé. Trata-se de um ato litúrgico solene: a comunidade de 
pé, não em pé de guerra, mas em pé de profissão; em posição firme, porque 
está exprimindo firmeza de espírito; em posição uniforme, porque as pessoas 
exprimem ânimos unânimes. Mas, ao mesmo tempo, humildes, porque o ato 
de fé é um ato de humildade e um dom da graça. Nesse momento litúrgico 
uma onda de graça nivela, levantando todos os presentes; e ela os nivela ao 
nível do sacerdote, ao nível da vida sobrenatural. Um crescimento sobre-hu­
mano põe a comunidade de pé, porque flui uma profunda avalancha de graças.
Entenderão todas as pessoas o que professam? Sim, pelo menos de modo 
elementar; porque crer é já compreender, é abrir-se e entregar-se numa com­
preensão. Entenderão todas as pessoas o mesmo, isto é, com a mesma clareza, 
profundidade, precisão, riqueza? Não, porque essas perfeições variáveis podem 
ser ampliadas com a meditação, o estudo. A atividade intelectual, atuando so­
bre o objeto da fé, nos leva a ganhar conhecimento. Aqui vemos descrita, de 
maneira sumária, a teologia como atividade: uma fé que busca compreender.
Já na liturgia poderia ocorrer uma ampliação do entendimento acerca da 
fé professada: a composição do ofício litúrgico de uma festa procura iluminar 
o mistério celebrado, apresentando e revivendo uma harmoniosa e intuitiva com­
posição de elementos diversos, como leituras do Antigo e do Novo Testamentos, 
orações, hinos, gestos etc. Além disso, durante a cerimônia litúrgica, o sacer­
dote pode explicar o sentido da festa e do mistério, sentido que amplia o en­
tendimento do objeto da fé. Esse aumento do entendimento, por meio da cele­
bração litúrgica, é mais vital e orgânico, menos consciente e sistemático. Por 
isso, o cristão continua a buscar uma compreensão da sua fé fora da liturgia e, 
impelido por ela, numa ciência denominada teologia.
A nossa profissão de fé é articulada, ou seja, dividida em artigos. Na ter­
ceira seção, dedicada ao Espírito Santo, professamos: Qui locutus est per 
prophetas. E nessas palavras está contida, de modo substancial, a nossa fé na 
realidade misteriosa da Sagrada Escritura, dos livros inspirados. Entenderão 
todas as pessoas esse artigo de fé que professam? Sim, pois é fácil compreen­
der o que é falar, não é difícil ter algumas idéias sobre os profetas e, generi­
camente, podemos compreender o que é falar por meio de outros. Ora, essa 
compreensão elementar sobre a atividade do Espírito Santo e sobre a palavra
O artigo de fé e seu contexto
de Deus também pode ser enriquecida por um estudo teológico: a atividade 
inspiradora do Espírito, o feito histórico de alguns autores inspirados, a pre­
sença na Igreja de certos livros inspirados, as conseqüências dessa realidade 
para a nossa vida cristã. Eis aqui caminhos pelos quais pode ampliar-se a nossa 
compreensão do artigo de fé Qui locutus est per prophetas.
N O C O N T E X T O D O E SP IR IT O
Sobre os carism as, além dos com entários às E pístolas aos Rom anos e à 
prim eira Epístola aos Coríntios, e afora obras gerais, com o a Teologia ãel Nuevo 
Testam ento, de Meinertz, e o Diccionario teológico ãel Nuevo Testam ento (G. 
K ittel), pode ser consultado K. Rahner, Lo dinâm ico en la Iglesia, “Quaestiones 
disputatae” (B arcelona, 1963). Nesse volume, o autor estuda os carism as com o 
constitutivos da Igreja, bem com o em suas relações com os ofícios. Pode tam bém 
ser consultado o artigo de síntese de Hans Küng, E s tru ctu ra carism ática de la 
Iglesia, Concilium 4 (1965), 44-65; com referências bibliográficas, especialm ente 
na nota 7. H á tam bém a im portante obra de H. Mühlen, Una persona Mystica 
(T 967), e D. Grasso, Los carism as en la Iglesia (M adri, 1983).
Antes de chegar a precisões, consideremos o contexto em que nos m ove­
remos: 1 trata-se do contexto do Espírito. Este é um “ vento divino” (G n 1 ) , 
é uma força elementar: o Espírito pairava sobre o abismo no com eço da cria­
ção, invadia tumultuoso o herói Sansão e o impelia às façanhas que salvaram o 
seu povo, convergia dos quatro pontos cardeais e vivificava os ossos secos que 
Ezequiel, o profeta, contemplava; o Espírito também era um sopro de Deus 
que dava vida a A d ão, umabrisa suave que enxugava a angústia de Elias e 
um quádruplo vento dócil que embalava o rebento de Jessé; o Espírito é vento 
furioso e línguas de fogo no dia de Pentecostes, é quem dita, em voz baixa, 
a invocação “ P ai” , e é dispensador de dons e carismas policromos na Igreja 
primitiva e em todos os tempos da sua história.
Assim devemos considerar o Espírito: forte e libérrimo, ativo e múltiplo, 
presente e invisível. E é nesse contexto dinâmico e aberto que devemos con­
ceber a inspiração dos livros sagrados. Perseguiremos definições e o Espírito 
escapará da nossa classificação mental; aperfeiçoaremos os conceitos e o vento 
os ultrapassará; aplicaremos distinções e o Espírito as tornará permeáveis. Por­
que o Espírito sopra onde quer; você ouve a sua voz e não sabe de onde vem 
nem para onde vai.
Num contexto de múltiplos carismas, de Israel e da Igreja, situa-se o ca­
risma da inspiração da Escritura: permeável a outros carismas e convivendo 
com eles.
Com essa flexibilidade intelectual — cuidando das realidades dinâmicas e 
dispostos à humildade de sentir-nos ludibriados — , podemos abordar o estudo 
dos autores e dos livros inspirados, que, em última análise, são um mistério 
da nossa fé. E, para que possamos entender um pouco a ação do Espírito, que 
o próprio Espírito nos conceda o dom da inteligência.
Quando dizemos que a inspiração é um carisma, professamos uma das 
características da Igreja. Os livros sagrados pertencem à instituição da Igreja, 
à sua constituição: são algo institucional e constitutivo. Mas o institucional na 
Igreja está sempre aberto ao carisma, porque sem carismas a Igreja não pode
1. Sobre o contexto trinitário, vejam-se tam bém pp. 36ss. e 194ss.
d contexto do Espírito 19
subsistir. A s suas instituições — papado, episcopado, sacerdócio, definições 
dogmáticas etc. — estão permeadas de carisma, isto é, da presença ativa do 
Espírito, que garante na Igreja a existência de coisas sobre-humanas como a 
infalibilidade ou a santidade; além de todas as instituições conhecidas e registra­
das, o carisma imprevisto e irresistível sempre encontra lugar nela, porque o 
Espírito ativo na Igreja não está aprisionado.
Por isso, considerar a inspiração um “ carisma” tem conseqüências im­
portantes: a presença da Escritura na Igreja é um a presença do Espírito e, 
portanto, uma atividade; é um dos caminhos institucionais da ação do Espírito; 
e. ao mesmo tempo, a Igreja permanece aberta e disponível a novas ações ines­
peradas do Espírito. Por outro lado, a leitura e a interpretação da Sagrada 
Escritura penetram na esfera dos carismas: há uma interpretação infalível e 
de autoridade, há uma interpretação inspirada e espiritual; e é ao serviço delas 
que se dispõe o humilde trabalho humano de investigar, trabalho que também 
pode ser tocado pelo E sp írito .2 Tudo isso é elemento constitutivo da tradição, 
animada pelo Espírito também através da Escritura inspirada.
Considerar a inspiração um “ carisma” nos impele a não pensar nesse mis­
tério isoladamente dos outros carismas que animam a vida da Igreja: como 
fios de um único e maravilhoso tapete, se entrecruzam, para dar forma, o ca­
risma da santidade e o da inspiração, o de milagres e curas, o de sabedoria e 
conselho, o de pregação etc.
H á pouco tempo, o Pe. Benoit tentou ampliar o âmbito da “ inspiração” 
dividindo e organizando o conceito por “ analogias” . 3 Desse modo, ele fala da 
inspiração cognoscitiva para conhecer, da inspiração oratória (que se subdivide 
em profética e apostólica) para falar, da inspiração para escrever ou hagiográ- 
fica; fala também de uma inspiração dramática para atuar (inspiração ativa na 
vida de Israel como povo e em personagens eleitos) e da inspiração eclesiásti­
ca ou assistência no magistério.
Essa organização de Benoit restitui a inspiração da Sagrada Escritura a 
um contexto amplo, múltiplo, “ analógico” , assinalando conexões e o parentesco 
comum no Espírito. E le pode citar a seu favor a etimologia da palavra “ in-spi- 
ração” e o uso flutuante de escritores antigos, que também designam como 
“ inspirados” os concílios e alguns escritores eclesiásticos.
Contudo não considero recomendável a terminologia de Benoit. O uso 
moderno consagrou e especificou o termo “ inspiração” : empregá-lo anulando 
a diferenciação admitida facilmente nos fará deslizar da analogia para a am­
bigüidade. Muito mais tradicional e menos perigoso é recorrer ao termo “ ca­
risma” , enquanto contexto de unificação e de conexões, reservando ao termo 
“ inspiração” um uso técnico. Isso não nos impedirá de distinguir diversos está­
gios ou aspectos no processo total da inspiração. Nessa linha, os estudos de 
Benoit são um progresso na diferenciação especulativa do mistério.
Sto. Tom ás nos ensinara a inserir a “ profecia” (não a “ inspiração” em 
sentido estrito) no contexto dos carismas ou gratiae gratis datae (Suma Teo­
2. Na terceira sessão do Vaticano II, em outubro de 1964, esse tem a do 
E spírito foi apresentado, com particular vigor, por D. Edelby. A constituição 
Dei V erbu m 12 diz: “A E scritu ra deve ser lida e interpretada com o mesmo 
E spírito com que foi escrita”. Veja-se o meu com entário no volume publicado 
pela BAC, Com entários a la constituciõn “Dei V erb u m ” sobre la divina revelación 
(M adri, 1969).
3. P. Benoit, Les analogies de 1’inspiration, Sacra Pagina I (Gembloux, 
1959): 86-99; id., Inspiración y revelación, Con 10 (1965): 13-22.
20 O artigo de fé e seu contexto
lógica, 1 7 1 -1 7 8 ) . Devotado à sábia ordem das divisões, ele distribuiu os ca­
rismas em três grupos: graças de conhecer, a profecia e o êxtase; graças de 
falar, a glossolalia e o discurso; graças de atuar, os milagres. Dessa maneira, 
a profecia se insere no primeiro grupo, um pouco contra a abundante evidên­
cia bíblica. O respeito rígido a essa divisão acarretou problemas desnecessários 
ao tratado neo-escolástico De Inspiratione Sacrae Scripturae. Adiante teremos 
ocasião de voltar a esse tema. Por ora, basta afirmar, sem entrar em “ questões 
controversas” , que a inspiração é um carisma de linguagem: locutus est.
N O C O N T E X T O D O L O G O S
A teoria da revelação está novam ente ativa e é alvo de interesse. Como 
síntese histórica e exposição sistem ática, pode ser consultado: R. Latourelle, 
Teologia de la revelación (Salam anca, 1966). E m sua parte histórica, essa obra 
oferece resum os claros das teorias e controvérsias m ais im portantes. A parte 
sistem ática tem início com três capítulos intitulados “La revelación com o palabra, 
testim onio y encuentro”, “Revelación y creación” e “H istoria y revelación”. 
Trata-se de um a descrição breve, que não aborda as relações m útuas. Veja-se 
o amplo levantam ento de A. Dulles em Theological Studies, 1964. O livro oferece 
tam bém , além da bibliografia geral, um a bibliografia específica de cada capítulo.
Um ponto de vista m ais fenomenológico e um a exposição m enos acadêm ica 
podem ser encontrados na obra de R. Guardini, Religion unã O ffenbarung 
(W urzburgo, 1958; trad . espanhola: Religión y revelación, Madri, 1960). A prim eira 
parte descreve o fato ou fenômeno da experiência religiosa; a segunda, algumas 
configurações con cretas desse tipo de experiência e a terceira, a sua form ulação 
em conceitos e imagens.
Um a exposição m uito clara pode ser vista em H. Fries, Glauben-W issen. 
W ege zur einer Lõsung des P roblem s (B erlim , 1960; trad . espanhola: C reer y 
saber, M adri, 1963). Além da exposição histórica, o que apresenta grande interesse 
aqui é a descrição da fé na pessoa e da fé em suas proposições. A fé na pessoa 
é um a form a autêntica e superior de saber. Podem-se consultar C. G effré/I. de la 
Pottérie (ed s.), R évélation de Dieu et langage des hom m es (P aris, 1964) e Con­
ciliam 21 (1967), Revelación y fe. Cf. N.Schiepers/K . R ahner/H . Fries, Revelación, 
Sacram entam M undi VI, cols. 78-113, e P. R icoeu r/E . Levinas (ed s.), La révélation 
(Bruxelas, Universidade de Saint-Louis, 1971).
N o carisma da inspiração, a atividade do Espírito se especializa em lingua­
gem: exposição, com unicação, conhecimento. Tudo isso pertence à esfera do 
logos, que é conhecimento mental e sua com unicação em palavras: pensar e 
dizer. Com unicação e conhecimento são elementos de revelação.
Se tomarmos a palavra “ revelação” num sentido amplo, poderemos partir 
de experiências estritamente humanas. Por exemplo, denominamos “ revelar” a 
operação química pela qual a emulsão fotográfica exposta à luz manifesta e 
libera a imagem gravada e escondida. Podem os dizer que os átomos, os genes 
revelam os seus segredos a uma investigação matemática e experimental. Num 
grau mais alto ou mais profundo, posso dizer que uma paisagem, uma tempes­
tade, um céu noturno tropical foram uma revelação para mim, porque me des­
velaram algo que está acima ou por detrás deles. Trata-se de objetos que se 
revelam; ou será que um algo, diverso de um mero objeto, se desvela neles?
Sem se aprofundar tanto, pode-se dizer que o mais humilde objeto do 
mundo está patente, manifestando-se ao homem; o seu ser é presença, mani­
festação; o seu ser é cognoscível e, por isso, diremos que ele tira um véu ou
No contexto do logos 21
se revela. Quando se apodera dessa manifestação e contempla esse ser que 
assim se manifesta à sua inteligência, o homem, num ato do espírito, o nomeia, 
volta a manifestá-lo, atribuindo-lhe uma nova qualidade de presença e de evi­
dência; em certo sentido, o homem revela o objeto a si mesmo e aos outros.
Já vislumbramos aí a conexão radical entre “ revelação” e linguagem. Se 
quisermos agir com escrúpulo terminológico, reservaremos a palavra “ revelação” 
a uma esfera superior. M as, como a linguagem comum não tem esses escrúpulos, 
eu quis com eçar por esse estágio tão sugestivo, anterior ao rigor da diferencia­
ção terminológica. A criança é a grande descobridora de um “ novo m undo” , 
porque todo o mundo é novo para ela; para a criança, tudo é revelação ou 
manifestação, e o fato de dar ou usar nomes também representa um prazer 
para ela.
O termo “ revelação” tem m elhor emprego quando aplicado a sujeitos, pes­
soas. Duas características servem para descrever a pessoa: a autoposse intelec­
tual, ou consciência, e a autoposse volitiva, ou liberdade. O cão também tem 
um conhecimento sensorial, mas não sabe que sabe, possuindo tendências que 
não possui de modo livre. Inversamente, no ato de conhecer um objeto, eu 
me conheço como conhecedor em ação, posso acumular o conhecimento e atua- 
lizá-lo em novas ocasiões, como meu e com o passado: possuo o meu conheci­
mento e, nele, a mim mesmo. D e m odo ainda mais radical, possuo a minha 
vontade, pois tomo decisões, suspendo-as, revogo-as, dirijo a atividade para 
um fim previsto, reflito e pondero antes de decidir, e, depois da ação, sinto-me 
dono e, por isso, responsável: na decisão, possuo a minha vontade e a mim 
mesmo, possuo a minha decisão e, nela, a mim mesmo. Essa posse é algo que 
está interiorizado em mim, está fechada em si mesma; por isso, posso conservar 
para mim a posse exclusiva dessa atividade, escondê-la dos olhares externos, ou 
posso revelá-la.
Por possuir a mim mesmo, posso esconder-me e fechar-me, ignorando 
pressões e violências; por possuir a mim mesmo, posso abrir-me em comuni­
cação com outra pessoa, revelando-m e em doação livre. A q u i, em atos de 
plenitude pessoal, se justifica o uso do termo “ revelação” .
É verdade que, involuntariamente, nos desvelamos em gestos, em reações 
espontâneas, em ações; há ciências ou técnicas que decifram esses sintomas. Em 
plena revelação livre, desejada e produzida, não se decifra a partir de sintomas, 
mas se conhece e se penetra. Essa revelação pessoal, consciente e livre, pode 
realizar-se em ocasiões intencionais, como a oferta de um ramalhete ( “ diga-o 
com flores” ), em gestos propositais, com o um aperto de mãos, ou em palavras. 
Pela revelação pessoal, tornamos o outro partícipe da nossa própria posse e, 
de maneira recíproca, compartilhamos a sua posse.
Desem bocamos de novo na linguagem enquanto veículo ideal de revelação 
pessoal; além disso, veio à tona o tema da revelação mútua, consumada na 
palavra dialogada. O tema voltará a aparecer; que baste por ora a sua enun- 
ciação.
E quanto a Deus, é pessoa? Pode ele velar-se e revelar-se? Neste contex­
to, a fé nos ajuda, pois nos diz que Deus vive em três pessoas; só que a fé 
já implica um a revelação. A especulação agostiniana sobre a Trindade, baseada 
em alguns dados bíblicos, nos guiará.
Ninguém como Deus se possui, em seu conhecimento e liberdade: a ple­
nitude de Deus só pode ser possuída por Deus. O P ai possui a plenitude de 
Deus, que é possuir-se a si mesmo; mas ele não reserva exclusivamente para 
si essa posse, comunicando numa Palavra, misteriosa e total, a sua plenitude
O artigo de fé e seu contexto
divina à pessoa do Filho, que, dessa maneira, possui a divindade integral, a 
mesma do Pai: o F ilho é a imagem, a Palavra do Pai. A plenitude de divin­
dade, que o Pai e o Filho possuem de forma compartilhada, é comunicada por 
eles em nome do amor ao Espírito Santo, de tal sorte que a terceira pessoa 
também possui a plenitude da divindade. Desdobrando muito o termo “ reve­
lação” , poderíamos dizer que dentro de Deus há uma espécie de revelação, ou 
melhor, que a vida divina é revelação interna, do Pai para o Filho, do Pai no 
Filho. Isso é especulação sobre um fato que é mistério. 4
Não saímos com isso da divindade; pelo contrário, entramos na divindade 
com agostiniana audácia especulativa. Se usamos o termo “ revelação” num sen­
tido menos amplo, a vida interna de Deus não nos basta; precisamos de um 
movimento de abertura de Deus que se exteriorize em ações ou palavras. Esse 
tipo de revelação será possível por parte de Deus? M ais uma vez, seguindo a 
especulação de Agostinho (que por seu turno se apóia em dados bíblicos), 
podemos dizer: como há dentro de Deus uma palavra que é expressão total 
da divindade, é possível a existência de uma ação externa que seja reflexo par­
cial e m ultiplicado da divindade. Por essa razão, João e Paulo dizem que tudo 
foi feito por ele e nele, já que toda manifestação externa de Deus reside na 
m anifestação interna que é o Filho, a Imagem, o Logos. Toda revelação de 
Deus voltada para o exterior é reflexo da misteriosa manifestação interna 
de Deus.
Se sabemos algo acerca da vida interna de Deus e podemos falar sobre 
isso é porque se realizou uma revelação externa de Deus que, de algum modo, 
nos permite penetrar em sua própria vida.
T R Ê S C A M IN H O S D E R E V E L A Ç Ã O
Hebreus se inicia de maneira solene: “ Em múltiplas ocasiões e de mui­
tas maneiras Deus falou outrora a nossos pais pelos profetas. A gora, nesta 
etapa final, falou-nos por um Filho, a quem nomeou herdeiro de tudo, o mes­
mo por quem criara os mundos e as eras. E le é o reflexo de sua glória, ex­
pressão de seu ser; ele sustêm o universo com a palavra potente de Deus; e, 
depois de realizar a purificação dos pecados, sentou-se à direita de sua majes­
tade nas alturas, tornando-se um protetor mais poderoso, que os anjos, tanto 
mais extraordinário é o título que herdou” .
Nessa síntese teológica só nos falta uma enunciação explícita da revelação 
pela história ■— enunciação que encontramos no capítulo 11 e que está implí­
cita nas formas verbais do prólogo. Encontram os uma referência a Cristo co­
mo resplendor de sua glória e expressão do seu Ser. Essas palavras se referem 
estritamente ao Cristo encarnado, mas na encarnação existe essa participação 
da divindade como imagem substancial — o que é próprio da vida trinitária. 
Vim os, além disso,que por ele foi criado o universo, primeira revelação de Deus 
voltada para o exterior. Antes da vinda histórica de Jesus, preparando os dias 
da etapa final, houve uma revelação em muitas palavras, ditas por profetas. 
No Cristo encarnado temos a revelação final e plena, que se realiza em sua 
pessoa (com o “ resplendor e expressão” ), em suas ações de “ purificação dos
4. Veja-se E . E ilers, Gottes Wort. E in e Theologie d er Preãigt nach Bonaven- 
tura (Friburgo, 1941); A. Gerken, Theologie ães W ortes. Das Verhaltnis von 
Schõpfung und Inkarnation bei Bonaventura (Düsseldorf, 1963).
Revelação pela criação 23
pecados” e em suas palavras, visto que nele fala o Pai. Criação, escritura san­
ta, redenção em Cristo — tudo está estreitamente unido, sendo, para nós, ma­
nifestação divina.
R E V E L A Ç Ã O P E L A C R IA Ç Ã O
Além do capítulo específico de R. Latourelle, com a bibliografia correspon­
dente, convém d estacar aqui o tem a do m ito. T rata-se de um tem a de interesse 
central no pensam ento atual e, por isso, a bibliografia é im ensa. Um a exposição 
abundante, suficientemente clara e com boa bibliografia, pode ser encontrada 
em D ictionnaire de la Bible, Supplém ent (D BS) VI, pp. 225-258. E n tre os autores 
m ais reconhecidos e lidos hoje, deve ser citado M ircea Eliade, cujas obras foram 
traduzidas p ara as principais línguas; veja-se, por exemplo, a sua Historia de las 
creencias y de las ideas religiosas, 4 vols. (M adri, Cristiandad, 1978-86). O tem a 
do m ito é desenvolvido em toda a sua obra, sendo abordado de modo especial no 
Tratado de H istoria de las R eligiones. M orfología y ãialéctica de lo sagrado, que 
analisa as “hierofanias” num inosas; ele descobre o hom em no Neolítico em con­
tato com a agricultura e cedo utiliza m itos, ritos e símbolos, que m antêm o 
humano em contato com o divino (M adri, T 981). M encionarem os alguns outros 
dos seus livros; E l m ito ãel eterno retorno (1949), Im ágenes y sím bolos (1952), 
Mito y realiãaã (1968), La nostalgia de los orígenes (1971), Im ágenes y sím bo­
los (1974).
P or sua im portância, devem-se consultar os dois estudos de P . Ricoeur, 
Sym bolism e ãu mal, tom o II de Finitude et culpabilité (Paris, 1960), e Poética 
e sim bólica in Iniciação à prática da teologia, vol. 1 (Edições Loyola, São Paulo, 
1992), 29-48
E m ou tra direção cam inha a com plicada controvérsia sobre a arte de 
desmitologizar o Novo Testam ento, de tal sorte que o Pe. Nober precisou dedi­
car-lhe um título especial em seu “Elenco Bibliográfico Bíblico anual”. O livro 
de H. Noack, Sprache unã O ffenbarung (Gütersloh, 1960), se m ovim enta nesse 
horizonte de problem as, com a típica e difícil linguagem que o caracteriza.
Sobre a m udança na valorização do m ito pode-se consultar J . Pépin, M ythe 
et A llégorie (Paris, 1958) — apenas o prim eiro capítulo. A sua explicação da 
alegoria cristã é equivocada, com o o dem onstra H. de Lubac em sua E xégèse 
Méãiévale. Veja-se tam bém P. Barthel, Interprétation ãu langage m ythique et 
théologie biblique (Leiden, 1963). Cf. J . W. Rogerson, Mith in Olã Testam ent 
Interpretation (N ova Iorque, 1976). Cf. um a boa iniciação ao símbolo em J . Ma- 
teos, Símbolo in Conceptos fundam entales de Pastoral (M adri, 1983), 960-971, 
com bibliografia.
A s palavras “ natureza” , “ universo” e “ cosmos” são pobres substitutos da 
palavra “ criação” . Porque a verdadeira substância de toda a natureza é ser 
criatura e, como tal, revelação de Deus; ou, se desejamos evitar um vocábulo 
demasiado preciso, m anifestação de Deus. Tudo o que Deus realiza fora de 
si mesmo o manifesta, sendo, em sentido amplo, uma espécie de língua: “ Os 
céus proclamam a glória de D eus” apenas por ele existir e agir.
Sem que falem, sem que pronunciem,
sem que ressoe sua voz,
sua proclam ação atinge toda a terra,
e sua linguagem, até os limites do orbe (SI 19 ,4 -5).
Quando não se fecham, os olhos mortais compreendem a linguagem da 
natureza como criatura que fala do Criador. E é uma imagem freqüente, tópi­
ca, falar do livro da criação:
24 0 artigo de fé e seu contexto
Omnis mundi creatura 
quasi liber et pictura 
nobis est et speculum
escreve A lan o de Insulis (P L 210, 5 7 9 ); e Boaventura, no seu Brevilóquio, 
afirma: creatura mundi est quasi quidam liber in quo relucet. . . Trinitas fabri- 
catrix (II, 2 ) . 5
Paulo nos diz: “ O que se pode conhecer de Deus está a seu alcance, pois 
Deus lho manifestou. Já que, desde a criação, sua natureza invisível, seu poder 
eterno e sua divindade são conhecidos por uma reflexão sobre as coisas cria­
das” (R m 1,19 -2 0 ). Ou seja, as criaturas revelam Deus a uma mente que 
saiba refletir. Paulo não fornece detalhes sobre a realização dessa reflexão, 
empregando o termo filosófico nooúmena, que podemos traduzir rigorosamente 
por “ (coisas) pensadas” . E o Livro da Sabedoria o form ula da seguinte m a­
neira: “ Pela magnitude e beleza das criaturas se descobre por analogia quem 
lhes deu o ser” (Sb 1 3 ,5 ). Um a form a de reflexão intelectual ocorrerá através 
de silogismos, que, apoiados no princípio da causalidade, levarão rigorosamen­
te a Deus, aos seus atributos e perfeições. M ais ou menos, as diferentes provas 
da existência de Deus, ou “ vias” , são um a aplicação do grande princípio da 
razão suficiente. Para os gregos do tempo de Paulo, para os homens de uma 
época científica, os caminhos do silogismo sempre estão franqueados, e todos 
terminam em Deus.
E isso vale radicalmente para todos os homens, já que a racionalidade é 
essencial ao homem, e a capacidade de raciocinar, em ação, pode conduzi-lo 
a Deus. Falo aqui de possibilidade, no sentido do Concilio Vaticano 1 . 6
Para povos primitivos, para culturas pré-filosóficas, parece existir outro 
caminho, a que se costuma dar o nome de simbólico. N ão me refiro ao cam i­
nho da “ dem onstração” , porque demonstrar é uma operação filosófica rigorosa, 
ao passo que o caminho simbólico conduz a Deus sem a aplicação do rigor dos 
silogismos. A percepção de uma presença superior numa tormenta: a tormenta 
se transcende a si mesma, nela se descobre algo superior e imponente, algo 
sagrado e divino; não por meio de raciocínios, mas sob a form a de experiência 
profunda e emocional. O mesmo acontece com um profundo céu estrelado, 
com um vulcão em erupção, com a imensidão tranqüila do mar, com o silêncio 
intimidante de uma selva. . . O fato de esse caminho estar mais exposto a 
deformações é demonstrado pela história com parada das religiões; mas a própria 
ciência demonstra que esse é o caminho religioso, sinceramente religioso, de 
muitos povos. O fato de se tratar de um caminho emotivo, carregado de intensa 
em oção, não exclui a sua natureza intelectual, já que toda percepção simbólica, 
em bora possa repousar em esquemas subconscientes da alma, é intelectual. Essa
5. E . R. Curtius, E uropãische Literatur unã lateinisches Mittelalter, Berna, 
21954, capítulo 16: “O livro com o sím bolo”. Repassando da G récia a Shakespeare, 
m ostra a constância e as variações do símbolo. De particular interesse é a idéia 
dos dois livros, natureza e E scritu ra , freqüente em autores medievais (trad . cast.: 
Literatura europea y E ã aã Media latina, México, 41984), 423-489.
Veja-se tam bém H. de Lubac, E x ég èse Méãiévale. Les quatre sens de 
V Écriture, I (Paris, 1959), 121-125.
6. Veja-se R. Latourelle, Théologie de la Révélation, p. 356.
Revelação pela criação 25
percepção simbólica se traduzirá depois em mitos e em grandes imagens poé­
ticas, dotados de valor cognoscitivo e expressivo.7
Entre os salmos encontramos um que foi tomado e adaptado do culto ca- 
naneu; isso quer dizer que o autor sagrado viu nele uma autêntica experiência 
religiosa, formulada com suficiente correção para ser transportada parao con­
texto javista. Trata-se do SI 29, que canta o Deus presente na tormenta. 
É poesia autêntica, sem vestígio de raciocínio: um fato da natureza, dinâmico 
e impressionante, é contemplado e submetido a uma reflexão simbólica — 
nooúmena — , na qual o trovão se aprofunda em voz de Deus. D e m odo se­
melhante, os poetas religiosos hebreus utilizam grandes símbolos da religião 
cananéia para formular alguma qualidade de Deus; por exemplo, o tumulto 
oceânico, visto como uma rebelião ou desordem, sobre o qual Deus impõe a 
ordem de forma vitoriosa:
Levantam os rios, Senhor, 
levantam os rios sua voz, 
levantam os rios seu fragor;
porém, mais potente que a vo z de águas caudalosas,
mais potente que as vagas do mar,
mais potente, no céu, é o Senhor (SI 93,3-4).
É equivocado pensar que as imagens, símbolos e mitos dessas religiões 
orientais sejam puro embuste e falsidade e que, ao entrar no uso israelítico, 
se transformem de repente em autênticos e santos; não é desse tipo a trans­
mutação bíblica. E mais ridículo ainda seria pensar que os autores bíblicos 
procedem através de raciocínios e silogismos, que depois recobrem e dissimulam 
com imagens, por causa da ignorância ou falta de cultura dos leitores. A poe­
sia não é a arte de vestir silogismos.
Nesses e em numerosos outros exemplos bíblicos aparece um evidente pon­
to de contato com as religiões do Oriente antigo: isso significa que, pelo menos 
nesses pontos de contato, e mesmo intersecções, as religiões extrabíblicas dão 
testemunho de uma autêntica experiência de Deus, muito embora esta se mos­
tre contaminada e deform ada em muitos outros pontos de não-contato. V eja- 
-se Treinta Salmos, pp. 296s.
D e resto, essa é uma explicação comumente admitida hoje, explicação que 
continua a ser menosprezada por aqueles que ainda pensam os mitos com ca­
tegorias iluministas ou racionalistas. Os autores se atêm à discussão das van­
tagens desses modos de acesso a Deus; quanto a nós, aqui nos interessa sim­
plesmente o fato de que a criação manifesta Deus.
Essa m anifestação de Deus é uma linguagem divina? Ou se realiza por 
um acréscimo da linguagem humana ao mero dado da natureza? Esse nooúmena 
da Epístola aos Rom anos não constitui já uma espécie de linguagem interior? 
N ão ocorre nele uma síntese simbólica, ou um processo racional de proposições 
encadeadas? D e fato, não faltará nesses casos pelo menos um acompanha­
mento rudimentar de linguagem interior; mas, por ora, prefiro não considerar 
essa ação da inteligência como ato formal de linguagem. Será necessário escla­
recer e empregar diversos sentidos do termo “ linguagem” .
7. R. Guardini, Religión y revelación, capítulo prim eiro, “E l caracter sim­
bólico de las cosas” e seu precioso livro Los signos sagrados.
26 O artigo de fé e seu contexto
No Logos, o Pai se diz a si mesmo, comunicando a sua divindade ao Filho 
de maneira integral. Chamamos analogicamente esse ato — pelas suas caracte­
rísticas de vitalidade e de expressão — de palavra, logos. M as ele é único e 
total, não dividido nem articulado: é imagem permanente e natural, não con­
vencional nem transitória. Quando Deus com eça a atuar voltado para o exte­
rior, por intermédio do Filho, é diferente. Deus não pode esgotar a sua imagem 
numa criatura; o que ele faz é dividir e articular a sua imagem em muitas ima­
gens ordenadas e compostas, e isso é uma espécie de linguagem, sistema orde­
nado de formas representativas. Deus não pode comunicar ao exterior a sua 
existência, mas apenas uma existência contingente; e essa necessária perd a d e 
substância também se assemelha a uma linguagem. C ada ser representa, em pe­
quena escala e sem consistência própria, uma perfeição interna de Deus: como 
um imenso vocabulário de palavras significativas. Os seres se relacionam numa 
ordem parcial, representando algo da unidade e das relações divinas: como 
frases bem-compostas. E todos os seres compõem um sistema ordenado: como 
a obra perfeita de uma linguagem. N ão é muito original falar do grande livro 
da natureza. Frei Luis de Granada fala das letras “ que serão depois todas as 
criaturas deste mundo, tão formosas e tão acabadas, mas algumas como letras
desiguais e iluminadas que mostram bem o primor e a sabedoria do autor” . Por
outro lado, Dante escolhe a imagem das folhas soltas na natureza e encader­
nadas em Deus.
N el suo pro fondo vidi c h e s’interna,
legato co n am ore in un volum e,
ciò ch e p er Vuniverso se squaderna (Par 33, 8 3 ) . s
O A T emprega a representação da linguagem no próprio momento da ação 
criativa. O autor de G n 1 faz uma sutil distinção nas primeiras obras: a rigor, 
tem precedência a ordem, seguindo-se a existência, o nome. Isso fica muito 
claro quando o vocábulo é diferente no chamado criativo e na imposição do 
nome: “ Q ue a luz exista, e a luz existiu. . . e Deus chamou à luz dia” . P o ­
demos falar de uma “ vocação” à existência e, depois, de uma “ nom eação” em 
seu ser. O chamado à existência é um “ dizer” de Deus — “ Deus disse” — , 
aparece como ato de linguagem, com um fortíssimo e invencível impulso na 
forma verbal “ exista” e com uma diferenciação sucessiva nos substantivos “ luz, 
água, continente” . N a sucessiva nom eação, proclam ada por Deus, fica estabeleci­
da a realidade distinta de cada ser, a sua presença cognoscível. D esde o princípio 
são nomeadas e para sempre continuam a ser nomeáveis. Nos atos criativos se­
guintes, o autor mantém a sublime economia da sua descrição, renunciando por 
essa razão à multiplicidade explícita. N o quarto dia, Deus chama à existência 
os “ luzeiros” e, entre todos, distingue os dois luzeiros maiores, um diurno e 
outro noturno: estes recebem a sua função própria, “ sol, lua” . Seria contrário 
ao estilo simples e hierático desse capítulo nomear separadamente as inumerá­
veis estrelas; o autor contenta-se em dizer “ e as estrelas” . Mas, no SI 147, le- 
mos que Deus chama as estrelas pelo nome, o que implica que lhes impusera 
um nome a cada uma, tal como o fizera com o sol e com a lua. A lgo seme­
lhante ocorre nos atos criativos seguintes: o autor insiste no fato de serem
criados “ segundo a sua espécie” , dotados de virtudes “ segundo a sua espécie” ,
sem repetir o nome imposto por Deus a cada um.
8. E . R . Curtius, Literatura europea y Eãaã M edia latina, 457ss.
Revelação pela história 27
Na Bíblia atual, em que o capítulo 2 prolonga o 1, parece que Deus cede 
a A dão o direito de nomear os animais de m odo diferenciado. Com o o ho­
mem age à imagem e semelhança de Deus, a sua nomeação correta não exclui a 
designação prévia, fundacional, de Deus.
O redator que uniu as duas narrações não encara todos os problemas teo­
lógicos: podemos afirmar que o “ dizer” de Deus é o princípio da existência 
dos seres e que o “ nom ear” divino é o princípio da sua nomeabilidade. Isso 
ocorre de form a eficaz, diferenciada, ordenada. Recordem os que, entre su- 
mérios e babilônios, o com eço da ciência consiste na confecção de listas de 
nomes por grupos ordenados: plantas, animais, fenômenos atmosféricos etc.; 
trata-se de uma prática ainda viva em toda a ciência ocidental, nas classifica­
ções de Linné, na série de M endeleyef, na anatomia descritiva, nos dicionários 
por campos de linguagem. 9
Deus cria com a sua palavra, que é sabedoria e ação orientada para fora: 
a sua ação é corretamente representada como manifestação em linguagem arti­
culada e que articula; e o resultado dessa ação é o sistema ordenado de seres, 
que, pela sua nomeabilidade diferenciada e ordenada, pode ser comparado com 
uma linguagem e que, com a chegada do homem, se transformará em lingua­
gem formal.
É possível que se pense que nos movemos num círculo vicioso: partimos 
da nossa experiência comum de linguagem para explicar, por analogia, a ati­
vidade criativa de Deus; depois encontramos umasemelhança de linguagem 
nessa atividade, seja na Bíblia, seja na especulação teológica. Contudo o uso 
bíblico conseqüente, que explica a ação criadora sob a form a de linguagem, e 
as fórmulas teológicas de João, prolongadas pelo uso secular dos santos padres, 
garantem-nos a validade da nossa explicação. Se podemos partir da nossa 
experiência de linguagem para explicar analogicamente a atividade divina, isso 
ocorre porque a nossa linguagem de fato imita a atividade divina. Verem os 
como mais adiante.
Em conclusão, temos a primeira manifestação de Deus — que denomina­
mos genericamente revelação — através das obras da sua criação, através das 
criaturas. Nestas encontramos já uma prefiguração e uma analogia da lingua­
gem formal, que será a revelação em sentido estrito.
R E V E L A Ç Ã O P E L A H IS T Ó R IA
É atual o tem a da revelação pela história, sobretudo na teologia protestante. 
E n tre as obras recentes, podem-se consultar: W. Pannenberg (ed .), R evelación 
com o historia (Salam anca, 1977) e Teologia dei Antlguo Testam ento, de G. von Rad. 
A. Vogtle, Revelación e historia en el Nuevo Testam ento, Concilium 21 (1967), 43-55.
E xistem agora duas obras teológicas que, ao b uscar a renovação da 
teologia segundo o espírito do Vaticano II , p artem da base da realidade histórica 
da revelação. M ysterium Salutis, a prim eira delas, tem com o subtítulo “M anual de 
Teologia com o historia de la salvación”. Consta de cinco grandes volumes, cujos 
títulos exprim em de fato a sua orientação: I. Fundam entos da Teologia com o 
H istória da Salvação (1102 pp.); II . A H istória da Salvação Antes de Cristo 
(933 pp.); III . O Acontecim ento Cristo (1105 pp.); IV. A Igreja (1700 pp., 2 vols.); 
V. O Cristão no Tempo e a Consumação Escatológica (891 pp.). Publicado por 
Ediciones Cristiandad, Madri, 1980-85.
9. Listenw issenschaft: veja-se G. von Rad, Teologia dei Antlguo Testam ento
I (Salam anca, 1969), 441ss., com bibliografia.
O artigo de fé e seu contexto
A segunda obra, Iniciação a prática da teologia, que está sendo publicada 
por Edições Loyola (1992ss.), consta tam bém de 5 vols.: I. Introdução; II . Dogmá­
tica l ; m . Dogm ática 2; IV. É tica ; V. A P rática . Ações P astorais. Preparada 
pelos Dominicanos de Paris, trata-se da resposta francesa à concepção alem ã 
de teologia. Com m enor intenção crítica e científica, a obra é m ais simples e 
acessível aos que se iniciam nessa m atéria.
No com entário da BAC à constituição Dei V erbum , pode-se ler o artigo 
C arácter histórico de la revelación, cujo índice é: A H istória com o Cenário da 
Revelação; com o Objeto; com o Prova; A H istória Reveladora. O Progresso dos 
Esquem as. Os Fatos Reveladores: a razão bíblica. O fato e a série: teoria de 
Pannenberg. Palavras e fatos: relação orgânica; o Fato Humano, sua ambigüidade, 
densidade e unicidade. A Palavra com o F ato . Conseqüências Teológica e Pastoral.
Sobre esse tem a existe um a alentada bibliografia recente. Citarem os os 
livros que julgam os m ais im portantes: E . Cassirer, Filosofia de la Ilustración 
(M éxico, 1943, sobre a revelação da M odernidade); R . Bultm ann, U historicité de 
Vhom m e et la révélation, vol. I de Foi et com préhension (P aris, 1970); E . Lévinas/ 
P. Ricoeur (ed s.), La révélation (B ruxelas, 1977); Ch. Duquoc, Alianza y discurso 
sob re Dios, em Iniciación a la práctica de la Teologia, II (M adri, 1984), 19-86 
(edição brasileira no prelo).
A natureza não é mais que o cenário da história. A rigor, só o ho­
mem tem história, enquanto processo contínuo de fatos irreversíveis. U m pen­
samento evolucionista, também em sua versão aceitável, transpõe essa dimen­
são de história ao grande processo da natureza. A história dos homens re­
vela o homem. Pode ela também revelar Deus? U m a primeira resposta nos
dirá que sim, que a história humana revela a providência divina. Contudo, pa­
ra muitos, a história da humanidade é mais um escândalo que uma manifestação 
de Deus; e não é tão fácil ver continuamente a providência de Deus em todos 
os acontecimentos da nossa vida, adversos, humilhantes, estúpidos, anódinos.
O SI 136, genial síntese de criação e de história, escolhe entre as criaturas
um cenário em três planos: o céu (m orada de D eu s), a terra (m orada dos ho­
m ens), as águas inferiores (m orada das forças adversas); e os dois luzeiros 
que assinalam os tempos. Se não é inteiramente consciente, essa referência ve­
lada à história não deixa de ser um achado genial. A natureza vinculada com 
a história e já parte dessa h istória .10
Descartando por ora um procedimento que chamaríamos de distante e ge­
nérico, interessa-nos algo mais concreto: Deus pode ser um personagem ativo na 
história humana e revelar-se nessa atividade?
Um historiador que quisesse escrever a verdadeira história de uma aldeia 
chamada Lourdes teria de contar com um personagem, muitas vezes protago­
nista, que é Deus. É certo que, para explicar corretamente alguns fatos histó­
ricos, ele precisaria de uma luz penetrante, a fé. Um agnóstico deveria registrar 
na história de Lourdes uma cadeia de fatos enigmáticos que passam a determi­
nar a história da cidade. O agnóstico chegaria a um a narração de fatos e a 
uma reflexão negativa: “ Sem explicação até o momento” ; aquele que crê re­
colheria o fenômeno perceptível e explicaria o seu verdadeiro sentido. É ver­
dade que, para explicar o sentido profundo, a um só tempo revelado e oculto 
no fato, ele usaria certos meios narrativos que não estão previstos no método 
da historiografia moderna, segundo Bernheim ; mais ainda, só leitores que crêem 
entenderiam de fato a história dessa cidade.
10. L . Alonso Schõkel, Psalm us 136 (135), VD 45 (1967): 129-138, revisado em 
Treinta Salm os: Poesia y oración (M adri, 21986), 389-402. T ratei desse tem a, de 
modo relativam ente extenso, no início do com entário a Profetas I (M adri, 1980), 
17-28: “La palabra profética”.
Revelação pela história 29
O que dizemos de Lourdes poderia ser transposto a outras regiões e épo­
cas em que a presença e a ação da Igreja exigem uma explicação superior do 
processo histórico. E , para além desse âmbito, temos de contar com uma rea­
lidade histórica, um povo cujo nome e cujos feitos são registrados pelas crô­
nicas profanas, e cuja história só pode ser explicada mediante a introdução de 
Deus com o protagonista. O fato de essa história, contada pelos que a viveram, 
não empregar os métodos da historiografia crítica moderna não se deve apenas 
ao distanciamento temporal e cultural, mas também ao seu gênero peculiar: 
eles queriam narrar a verdadeira história, a profunda, a que é entendida à luz 
da fé. E essa história tem um protagonista: Deus.
Ora, quando reduz um pouco a sua transcendência para intervir na história, 
Deus manifesta a sua presença e a sua ação. Se reitera as intervenções, até 
criar uma continuidade de ação, as revelações particulares, que se assemelha­
vam a pontos, unem-se numa linha e a linha esboça uma figura. A figura de 
uma continuidade e de uma constância: Deus revela-se em sua atuação cons­
tante, e o homem pode conhecê-lo com o uma pessoa amiga e exigente, clari- 
vidente e protetora. Deus revela-se na história.
O que a história é para um povo, a biografia é para um indivíduo: tam­
bém este, refletindo sobre a própria vida, pode descobrir uma série de pontos 
de intervenção divina especial e traçar sobre eles uma linha, compondo com 
essa linha uma figura, que revela Deus. Essa revelação entra igualmente na 
presente categoria, muito embora tenha um caráter sobretudo privado. N ão 
nos esqueçamos de que essa revelação privada pode ser comunicada a outros, 
partilhada com eles, e transformar-se em ponto de irradiação divina, já que 
todo povo se com põe de pessoas individuais.
Teoricamente, a ação de Deus pode impor-sepor sua força ou unicidade; 
quando da terceira praga, os magos confessam: “ O dedo de Deus está aqui” . 
Costumamos precisar de uma palavra acrescentada à ação para que esta revele 
o seu sentido.
No filme “ V iver um Grande A m or” (adaptado do romance de Graham 
G reen e), o diretor Dm itrik faz-nos contemplar uma cena sem palavras: a casa 
de M aurício, o escritor, bombardeada, o terror de Sara. Gestos, ação, ruído, 
estrépito: nenhuma palavra. O film e prossegue e a protagonista com eça a agir 
de maneira estranha, incoerente, e não é compreendida nem pelo personagem 
principal nem pelo espectador. Isso até que o protagonista encontra o diário 
dela, senta-se e com eça a lê-lo em voz alta (para si mesmo e para o especta­
d or). A o fazê-lo, retorna a cena inicial, com as mesmas imagens, a voz do 
protagonista lendo as palavras da mulher. E a cena torna-se inteligível pela 
palavra.
O exemplo tomado do cinema sugere-nos uma pergunta: a ação de Deus 
na história não será uma espécie de linguagem? Isso no que tem de aber­
tura para fora, do que possui de diferenciação e ordem. É possível falar 
da “ linguagem cinem atográfica” , num sentido analógico legítimo; Eisenstein, 
entre os criadores, e Renato M ay, entre os críticos, expõem algumas carac­
terísticas dessa linguagem: elementos formais, significativos, expressivos, sin­
taxe e estilística.11 Neste caso, a analogia não é fruto de capricho, mas ins­
trutiva, fazendo-nos conhecer de fato. O cinema, mesmo o sonoro, consta subs-
11. S. Eisenstein, Film Form . Film Sense (N ova Iorque, 1957); Renato May,
II linguaggio dei cinem a. L ’avventura dei cinem a.
O artigo de fé e seu contexto
'.ancialmente de imagens: imagens que se sucedem, se compõem, se articulam; 
imagens que contam uma história. Isto é, um a série de ações que traça um 
desenho inteligível, revelando os personagens e a história em ação. R ecorde­
mos alguns expoentes do cinema mudo, “ O Encouraçado Potem kin” , de Eisens- 
tein, “ A M ãe” , de Pudovkin, “ Joana d’A r c ” , de Dreyer, e teremos elementos 
suficientes para atribuir à ação um caráter de linguagem; naturalmente, através 
da seleção e com posição das imagens, que realizam essa ação de modo artístico.
D a mesma maneira, poderíamos dizer que a ação de Deus na história é 
uma espécie de linguagem analógica, já que também Deus escolhe, realiza e 
com põe sabiamente as suas ações, dotando-as de sentido. A lém disso, Deus 
emprega a linguagem como meio de ação na história: o profeta não apenas 
prevê um fato futuro como também age com o oráculo na história. 12 O povo 
de Deus com eça a existir convocado por Deus, convocado a existir com o “ povo 
de D eus” , de tal modo que o nome “ meu povo” , “ povo do Senhor” , é um nome 
que define e subordina a sua consistência. Esse povo recebe uma ordem ativa, 
religiosa e ética, numa série de mandamentos, que se denominam “ palavras” . 
Assim como a história de um amor não transcorre sem elementos de linguagem 
dialogada, assim como a criança vai realizando a sua existência sob a ação do 
pai e em diálogo com ele, também o povo de Deus de fato tem a Deus como 
protagonista e interlocutor. N ão podemos separar, a não ser mentalmente, a 
revelação de Deus pela história da revelação em palavras.
Recordemos de passagem que Deus atua na história usando a natureza co­
mo instrumento: esse é o signo das teofanias, da ação cósm ica nos transcen­
dentes “ dias do Senhor” , da presença cósmica como testemunha do julgamento 
do Senhor.
Retom emos agora o nosso exemplo cinematográfico para extrair as con­
clusões: para manifestar o seu sentido, para chegar à plena m anifestação, a 
história requer normalmente o concurso da palavra. N o cinema, os fatos, reais 
ou fictícios, transformam-se e subsistem em imagens organizadas, e nesse es­
tado já recebem e transmitem a sua interpretação; bastante medíocre é o di­
retor que precisa ir explicando o sentido de suas imagens, seja em voz nar­
rativa, seja levando os personagens a discursar. Deus atua na história, cria e 
dirige essa história; ele envia a sua palavra para explicar o sentido de sua 
obra. Esta é a grande tarefa do profeta, do inspirado: interpretar o sentido 
da história, contando-a. N ão se trata de primeiro contar os fatos, como uma 
voz em off ; trata-se de, contando, interpretar. A seleção e com posição dos fatos 
é significativa; interpretando o verdadeiro sentido dos fatos, revela Deus como 
protagonista. A lém disso, o autor sagrado reserva-se o direito de utilizar outros 
meios de linguagem para interpretar fatos: discursos na boca de personagens, 
introduções, reflexões etc. Por meio da palavra de M oisés e dos profetas, o 
povo de Deus com eça a compreender a história que está vivendo; essa com ­
preensão é-nos legada em alguns escritos que poderíamos denominar “ as m e­
mórias de D eus” .
12. Sobre a palavra profética com o elemento ativo na história: G. von Rad, 
Teologia dei Antiguo Testam ento I, pp. 381ss. Cf. igualmente id., Sabiãuría en 
Israel (M adri, 1985), em especial pp. 183-220: “Epifanía de la creación”. Será 
proveitosa a leitura do livro, perspicaz e repleto de sugestões, de P. Beaucham p, 
Ley-Profetas-Sabios (M adri, 1977), particularm ente o cap. I I : “Los P rofetas”, 
pp. 71-101. Veja-se tam bém do próprio Beaucham p, Le récit, la lettre et le corps 
(1982), em especial os caps. IV e V.
Revelação pela palavra 31
D iz Paulo (IC o r 1 0 ,1 1 ) : “ Estas coisas sucediam a eles para que apren­
dessem, e foram escritas para que nos corrijam os” . Os fatos transformados em 
palavra narrativa, recebendo assim a interpretação autêntica através da palavra, 
elevando-se a revelação formal.
M ais uma vez concluímos acerca dessa segunda forma de revelação, pela 
história: ela mostrou-nos o seu caráter específico e, ao mesmo tempo, a sua 
união íntima com a palavra ativa e interpretativa.
R E V E L A Ç Ã O P E L A P A L A V R A
Introduzirei o capítulo 4 com um a bibliografia escolhida. Por ora, podemos 
considerar o artigo de J . R. Geiselmann, Revelación in Conceptos funãam entales 
ãe la Teologia II (M adri, J1979), 569-578, com am pla bibliografia.
P ara um horizonte bíblico e p atrístico, veja-se R. Gõgler, Z ur Theologie 
ães B iblischen W ortes bei O rigenes (Dusseldorf, 1963).
J . Levie, La Biblia palabra hum ana y m ensaje ãe Dios (Bilbao, 1961).
P. Grelot, La Biblia, palabra ãe Dios (H erder, B arcelona, 1968).
A palavra é a forma plena de com unicação humana, e Deus escolheu tam­
bém, e sobretudo, essa forma de comunicar-se, de revelar-se.
Pensemos numa experiência humana intensa: amor, dor, beleza, desco­
berta. . . A vivência é algo total, envolvente: parece-nos que o eu navega arras­
tado pela intensidade da experiência, que somos testemunhas levadas pelas 
águas, mudos de estupor, sem sequer compreender. Saímos então dessa tor­
rente, interpomos uma distância contemplativa, confrontamo-nos com a nossa 
experiência. Primeiro dividimos a totalidade contínua em peças discretas; de­
pois, compomos essas peças numa unidade significativa, numa estrutura orde­
nada. J3 A experiência transformou-se numa peça de linguagem:
A i minhas entranhas, minhas entranhas!
Estremecem-me as paredes do peito, 
o meu coração está perturbado e não posso calar; 
porque eu mesmo escuto o toque de trombeta, 
o alarido de guerra,
um golpe chama outro golpe, o país está devastado; 
de repente destroçam-se as tendas 
e em um momento os pavilhões.
A té quando terei de ver a bandeira
e escutar a trombeta em alarme? e,v'i n r.
. . _ , rf l i .U I iJfj!;,- h - -V i! - - í b í ; !í'
M eu povo e insensato, nao me reconhece, ÇTlÇ .L , ' : ' 1' 'l
são filhos néscios que não rememoram: wm v L g ;
são hábeis para o mal, ignorantes para o bem.
Observo a terra: caos informe! O céu: está sem luz; 
observo os montes: tremem; as colinas: dançam;observo: não há homens, as aves do céu migraram; 
observo: o vergel é um páramo, os povoados estão arrasados: 
pelo Senhor, pelo incêndio de sua ira (Jr 4 ,19 -2 6 ).
13. Veja esses aspectos na linguagem poética: Amado Alonso, M atéria y fo r­
m a en poesia (M adri, 1955), sobretudo o prim eiro artigo, “Sentimiento e intuición 
en la lírica”, 11-20.
O artigo de fé e seu contexto
Tendo dado form a à minha vivência, domino-a e possuo-a, posso atuali­
zá-la mais tarde com clareza, posso comunicá-la.
D escrevi o movimento articulatório: do contínuo da experiência passamos 
ao caráter discreto de elementos que recompomos em unidade de linguagem; 
porque a unidade natural de linguagem é a sentença. M as podemos acrescentar 
outros movimentos: um complementar, outro de direção oposta. O movimento 
complementar ocorre quando, em lugar da vivência intensa, temos uma obser­
vação multiplicada, ou um a série de impressões que pode confundir-me com 
a sua variedade; essa multiplicidade tende a fundir-se e confundir-se num con­
tínuo, e mais uma vez a linguagem, agrupando, compondo, ajuda-me a dividir 
e a ordenar.
Mais importante que o movimento complementar é o movimento contrário: 
neste caso, o ponto de partida é o simples nomear. O ser concreto, que se 
manifesta em sua presença e é apreendido pelo espírito, que nomeia essa pre­
sença enquanto tal. A to elementar e espiritual que, no nomear, possui o objeto 
e a si mesmo; que designa o ser concreta e globalmente, ainda sem precisões 
nem distinções (a distinção seria uma parte do movimento articulatório). O no­
me é idêntico à sua significação, porque todo ele é significação, mas global e 
concreta. D o nomear passa-se à sentença, que com põe num ato dois nomes 
ou designações ou significações, porque os apreendeu em sua relação e reflexo 
mútuo; essa relação e esse reflexo apreendidos estão presentes na sentença, 
que, por um lado, precisa na com posição as significações globais de cada nome 
e, por outro, eleva as duas significações a um sentido. M ais uma vez, esse 
sentido é idêntico à sentença, é global e concreto, e pode diferenciar-se ulterior- 
mente através do contexto de ação, de vida, de pensamento, no qual ocorre a 
sentença. Tam bém na sentença, e com maior plenitude, o homem possui os 
objetos em unidade, bem como a si mesmo, num ato espiritual.
Esse terceiro movimento é de tipo ascendente e partilha com o anterior 
o caráter estrutural; diferenciação e ordem, possibilidade de divisão e com po­
sição, posse e comunicabilidade.
Ou, de preferência, a necessidade de comunicar-me com outra pessoa for­
ça-me a articular a minha vivência. Nomeio e enuncio apenas para mim, para 
a minha própria posse do mundo e de mim mesmo? O u nomeio e enuncio 
para poder comunicar a minha posse a outrem, num afã de revelação pessoal 
e mútua? O homem foi criado como ser social; “ criou-os homem e mulher” , 
que não significa exclusivamente a inicial e elementar sociedade de dois, mas 
que esses dois são a origem necessária da sociedade, pela vontade de Deus: 
“ Crescei e m ultiplicai-vos” .
Socialmente subsiste o homem, socialmente se aperfeiçoa, socialmente do­
mina a terra; e o meio natural de convivência social é a linguagem, ou, se se 
preferir, o diálogo. Por isso é muito difícil, talvez infrutífero, decidir se a lin­
guagem é, em primeiro lugar, ato pessoal ou ato social. D ada a situação social 
em que cresci, é possível que eu adapte a minha vivência ou que nomeie para 
o meu uso particular, o que é um exercício posterior à situação social primária. 14 
Numa sociedade ampla, existirão os diversos tipos: o comunicativo, o reservado. 
Isso não diminui o caráter social da linguagem, nem sua forma natural de 
diálogo.
14. As funções monológicas da linguagem costum am ser consideradas pos­
teriores. Veja-se F r. Kainz, Psychologie d er Sprache, volume III , A 1.2.
Palavra humana 33
O mundo humaniza-se ao entrar em nossa vida e nós o transformamos 
num novo mundo ordenado, no qual nos revelamos. A linguagem é uma cria­
ção feita pelo homem à sua imagem e semelhança: é múltipla e ordenada, re­
vela uma riqueza e uma ordem. Diz-se no Gênesis que A d ão gerou um filho 
a sua imagem e semelhança, e chamou-o de Set. N a linguagem, o homem 
também exerce uma paternidade. O Filho é a expressão plena do Pai: é sua 
Palavra; o homem, na palavra autêntica, sente-se como que gerando um filho 
à sua imagem. Agostinho diz: “ Escreve de modo que, sentindo-te pai, tu te 
sintas vivificado pelo filho que geraste” . M as a linguagem, mesmo nas mais 
elevadas criações literárias, não possui a consistência da pessoa humana. O ho­
mem revela-se dividindo e diluindo consistência. N a atividade de falar, o homem 
também é imagem e semelhança de Deus: criando uma ordem, ele se revela.
Cumpre-se na linguagem a suprema revelação humana. E Deus escolhe 
também esse modo de com unicação para revelar-se ao homem, superando assim 
a natureza e a história. E trata-se de revelação formal, em sentido estrito.
Confirm a-o Ch. Pesch da seguinte maneira: “ Toda revelação sobrenatural, 
à medida que se opõe à revelação natural de Deus, é imediata. Na revelação 
natural, Deus cria e governa as criaturas, que o homem pode usar como meios 
para chegar ao conhecimento analógico de Deus: isto é, Deus manifesta-se co­
mo objeto cognoscível de maneira mediata. Em contrapartida, na revelação so­
brenatural, Deus manifesta a sua mente, tal como uma pessoa comunica os 
seus pensamentos a outra: em linguagem propriamente dita. Essa manifesta­
ção pessoal, como sujeito, é, por natureza, mais imediata do que a manifestação 
como objeto, da causa pelo efeito. E D eu s nos fala im ediatam ente na E scritura, 
porque a Escritura é palavra de Deus formal em sentido estrito” . J5
Delimitamos o contexto da nossa profissão de fé: o fato de Deus falar 
pertence ao contexto do Logos, da revelação; concreta, formalmente, através 
da palavra. Deus se abre, revela-se a nós como pessoa a pessoa, num meio 
pessoa] ou interpessoal. É interessante notar que, no com eço da Epístola aos 
Hebreus, o verbo “ falar” não tem objeto direto, enunciando apenas as pessoas: 
“ Antigam ente Deus falou a nossos p a is . . . ago ra . . . falou-nos. . . ”
Nesse contexto, devemos continuar a fazer precisões, tal como o faz o 
nosso artigo de fé locutus est p e r prophetas. Deus fala-nos numa linguagem 
humana, por meio de homens. A qu i o artigo de fé com eça a adensar o próprio 
mistério.
P A L A V R A H U M A N A
M as pode Deus falar-nos em palavras humanas? Se deve falar-nos a nós, 
homens, não pode fazê-lo de outro modo. A palavra é meio de comunicação 
interpessoal quando a língua é comumente compartilhada por duas pessoas: um 
meio comum torna a ambas vasos comunicantes.
Deus pode ter uma linguagem em comum com os homens? Suponhamos 
um missionário que procure traduzir a nossa elaborada teologia, ou parte dela, 
para uma língua primitiva: entre a língua culta ocidental e a hipotética língua 
primitiva há um desnível de recursos, sobretudo no âmbito de conceitos e rela­
ções intelectuais. Para compensar o desnível, o missionário extrai alguns ele­
15. De Inspiratione Sacrae Scripturae (Friburgo, 1905), n. 411.
34 O artigo ãe fé e seu contexto
mentos do seu ensinamento para colocá-los ao alcance da língua menos de­
senvolvida; se fizer um esforço sistemático nesse sentido, de tanto adaptar e 
traduzir, irá elevando o nível da língua primitiva. Esses contatos de tradução 
e adaptação nivelaram, no melhor sentido, muitas línguas à nossa cultura oci­
dental. M as, nesses casos, partimos de uma semelhança radical, à medida que 
todas as línguas partem da faculdade humana, comum, de com unicação arti­
culada; em todas as línguas humanas realiza-se uma essência comum.
O mesmo não ocorre com a linguagem de Deus; o desnível é de uma or­
dem incalculável.

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