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Iv) 3::rc: f
Copyrightby ©EditorialGustavoGili. S.A.. Rosellón87-89.Barcelona,1987.
Título original
'- De losmediosa Iasmediaciones.Comunicación,culturae hegemonia
FichaCatalográficaelaboradapelaDivisão
deProcessamentoTécnico- SIBIfUFRJ
M 379m Martín-Barbero.Jesús
Dos meiosàsmediações:comunicação.culturae
hegemoniaI JesúsMartín-Barbero;PrefáciodeNéstor
GarcíaCanclini;TraduçãodeRonaldPolito e Sérgio
Alcides.Rio deJaneiro:EditoraUFRJ. 1997.
360p.; 15X 20.5cm
1.Comunicaçãodemassa2. Sociedadedemassa
, L Título
CDD 302.23
Para meuspais
e minhafilha alga
ISBN 85-7108-208-1
Capa
Tita Nigrí
Revisão
CecíliaMoreira
J osetteBabo
Maria Guimarães
Projeto Grdfico e
Editoração Eletrônica
EditotaUFRJ
UniversidadeFederaldo Rio deJaneiro
ForumdeCiênciaeCultura
EditoraUFRJ
Av. Pasteur.250 I sala106
Rio deJaneiro- RJ
CEP 22295-900
Te!': (021)295 1595r. 124a 127
Fax:(021)5423899
Apoio:
"b. Fundação Universitária1II José Bonirácio
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I
Prefácio
Introdução
Capítulo 1
SUMÁRIO
PRIMEIRA PARTE
POVO E MASSA NA CULTURA:
OS MARCOS DO DEBATE
11
15
Afirmação e negaçãodo povo como sujeito 23
opovo-mito:românticosversusilustrados 23
Povoe classe:do anarquismoaomarxismo 31
Emergênciadopopularnosmovimentosanarquistas 32
Dissoluçãodopopularnomarxismo 36
Capítulo 2
Nem povo nem classes:a sociedadede massas 43
A descobertapolíticadamultidão
A psicologiadasmultidões
Metaflsicadohomem-massa
Antiteoria:a mediação-massacomocultura
Capítulo 3
Indústria Cultural: capitalismo e legitimação
BenjaminversusAdornoou o debatedefundo
Do lagosmercantilà artecomoestranhamento
44
47
52
57
63
64
65
A experiênciae a técnicacomomediaçõesdas
massascoma cultura
Da críticaà crise
Capítulo 4
Redescobrindoo povo: a cultura como
espaço de hegemonia
opovona outrahistória
Cultura,hegemoniae cotidianidade
SEGUNDA PARTE
MATRIZES HISTÓRICAS DA
MEDIAÇÃO DE MASSA
Capítulo 1
O longo processo de enculturação
Estado-Naçãoe os dispositivosdehegemonia
Centralizaçãopolítica e unificaçãocultural
Rupturasno sentidode tempo
Transformaçõesnosmodosdo saber
Culturapolíticada resistênciapopular
A dimensãopolítica da economia
A dimensãosimbólicadaslutas
Capítulo 2
Do folclore ao popular
Uma literaturaentreo orale o escrito
O quedispõeo mercado
O quedispõeopovo
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142
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148
f
i
"
Uma iconografiaparausosplebeus
Melodrama:o grandeespetáculopopular
Entre o circoe opalco
Estrutura dramdticae operaçãosimbólica
Capítulo 3
Das massasà massa
Inversãodesentidoe sentidosdainversão
Memórianarrativae indústriacultural
O aparecimentodo meio
Dispositivosde enunciação
Dimensõesdo enunciado
Formatoe símbolo
Continuidadee rupturasnaeradosmeios
TERCEIRA PARTE
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE
MASSA NA AMÉRICA LATINA
Capítulo 1
Os processos:dos nacionalismos
às transnacionais
Uma diferençaquenãoserestringeaoatraso
O descompassoentreEstadoe Nação
Massificação,movimentossociaise populismo
Os meiosmassivosna formaçãodasculturasnacionais
Um cinemaà imagemde umpovo
Do circocriolloao radioteatro
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167
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185
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191
213
213
215
220
228
231
234
akiva
Realce
akiva
Realce
A legitimaçãourbana da músicanegra
O nascimentode uma imprensapopular de massas
Desenvolvimentismoe transnacionalização
O novosentidoda massificação
A não-contemporaneidadeentretecnologiase usos
Capítulo 2
Os métodos:dos meios às mediações
Críticadarazãodualista,ou asmestiçagens
quenosconstituem
A impossívelpureza do indígena
A misturadepovo e massano urbano
A comunicaçãoa partirdacultura
O que nemo ideologismonemo injórmacionismo
permitempensar
Cultura epolítica: as mediaçõesconstitutivas
Mapanoturnoparaexploraro novocampo
Sobrea cotidianidade,o consumoe a leitura
A televisãoa partir dasmediações
Alguns sinaisde identidadereconhecíveisno melodrama
O popularquenosinterpelaa partirdo massivo
Bibliografia
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242
247
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258
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303
308
335
PREFÁCIO
Se achamosque os livrosmaisnecessáriossãoos nãocom-
placentes,esteéumdosindispensáveisnosanosnoventa.Ao sepropor
a entenderessasindústriasdasrespostase da consolaçãoque sãoos
meiosdemassa,nãos6asassediacomperguntaseperguntas;dedica-
sea trocarasinterrogaçõesquehaviamorganizadoosestudossobrea
comunicaçãonosanosprecedentes.
Os primeirosinvestigadoresdosmeiosbuscavamsabercomo
elesfazemparamanipularsuasaudiências.A súbitaexpansãodo rádio,
do cinemae da televisãolevoua crerquesubstituíamastradições,as
crençasesolidariedadeshist6ricas,pornovasformasdecontrolesocial.
Estelivro seafastadetaissupostos.Com umavisãomenosingênuade
comosealteramassociedadesedoquefazemcomseupassadoquando
irrompemtecnologiasinovadoras,indagacomosefoi desenvolvendo
a massificaçãoantesque surgissemos meioseletrônicos:atravésda
escolae da igreja,da literaturadecordele do melodrama,daorgani-
zaçãomassivada produçãoindustriale do espaçourbano.
Ao estabelecerqueassociedadesmodernasforamtendoos
traçosatribuídosaosmeiosmuitoantesqueestesatuassem,desmoro-
naramvárioslugares-comunsdo aristocratismoe do populismo.A
cultura contemporâneanão pode desenvolver-sesem os públicos
massivos,nemanoçãodepovo-que nascecomopartedamassificação
social- podeserimaginadacomoumlugarautônomo.Nem acultura
de elite, nem a popular,há temposincorporadasao mercadoe à
comunicaçãoindustrializada,sãoredutosincontaminadosapartirdos
quaissepudesseconstruiroutramodernidadealheiaao carátermer-
cantileaosconflitosatuaispelahegemonia.Ao estudarareformulação
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES ..•
daauraartísticanagrandecidadeeoprocessodeformaçãodopopular
nasnovelasdefolhetim,na imprensaenatelevisão- comexplicações
inauguraissobreas transformaçõeseuropéiase latino-americanas-
ofereceumadasrefutaçõesteóricasmaisconsistentesàsilusõesromân-
ticas, ao reducionismo de tantos marxistase ao aristocratismo
frankfurtiano.
Paracumprirestesobjetivos,a obradeMartín-Barberoper-
correváriasdisciplinas.Dadoquedeslocaaanálisedosmeiosdemassa
atéas mediaçõessociais,não é só um textode comunicação.Bem
informadosobrea renovaçãoatualdosestudossociológicos,antropo-
lógicosepolíticos,pareceumlivroescritoparaconfundirosbibliotecá-
rios.Não estásituadoexclusivamenteemnenhumadessasdisciplinas,
porémservea todas,por exemplo,seuoriginalexameda~noçõesde
povoeclasse,decomosecomplexificamestascategor.iasnasociedade
de massae as alteraçõesque isto geranos estadosmodernos.Sua
explicaçãodecomoo rádioe o cinemacontribuíramparaunificaras
sociedadeslatino-americanaseconformaramaidéiamodernadenação
mostraquanto necessitamosdos estudosculturaispara entendera
política e aindaa economia.
Já Tocqueville,relembraMartín-Barbero,seperguntavaseé
possívelsepararo movimentopela igualdadesocial e política do
processode homogeneizàçãoe uniformizaçãocultural.A democrati"'
zaçãodassociedadescontemporâneassó é possívela partirda maior
circulaçãodebensemensagens.Estafacilidadedeacessonãogarante
queasmassascompreendamo quesepassa,nemquevivamepensem
melhor.A modernidade,e o contraditóriolugarquenelaocupamos
povos,sãomaiscomplicadosqueo quesupõemasconcepçõespeda-
gógicase voluntaristasdo humanismopolítico.
Não sãofreqüenteshojelivrostãoeruditosedesconstrutores
queaomesmotempocontinuemacreditandonapossívelemancipação
dos homens.Onde encontraratualmenteos argumentospara esse
otimismo?Martín-Barberoseafastado nativismoe do populismo,e
12
PREFÁCIO
consideraqueasesperançasnovasseenraízambemmaisnossetores
popularesurbanos.Nas"solidariedadesduradourase personalizadas"
da culturade bairroe dosgruposartísticos,nosgrafitese na música
jovem,nosmovimentosdemulheresedepopulaçõespobres,vêasfon-
tesde uma "institucionalidadenova,fortalecendoa sociedadecivil".
É possívelfazera essesgruposcríticassemelhantesàquelasdestinadas
aosmovimentospopularestradicionais,porquetambémreproduzem
estereótiposehierarquiasinjustasdaculturahegemônica.Todavia,o
conhecimentodeseushábitosdeconsumoeapropriaçãodasindústrias
culturais,assimcomodasformasprópriasde organizaçãoda cultura
cotidiana,são algunsdos caminhospara passardas respostasque
fracassaramàsperguntasquerenovemasciênciassociaiseaspolíticas
libertadoras.
NéstorGarcÍaCanclini
13
í
I
i
INTRODUÇÃO
oqueseencontraaquitrazaspegadasdeumlongopercurso.
Vinha eudafilosofiae,peloscaminhosdalinguagem,medepareicom
aaventuradacomunicação.E daheideggerianamoradadoserfui parar
commeusossosnachoça-faveladoshomens,feitadepau-a-piquemas
comtransmissoresderádioeantenasdetelevisão.Desdeentãotraba-
lho aqui, no campoda mediaçãode massa,de seusdispositivosde
produçãoeseusrituaisdeconsumo,seusaparatostecnológicosesuas
encenaçõesespetaculares,seuscódigosde montagem,depercepçãoe
reconhecimento.
Duranteum certotempoo trabalhoconsistiuem indagar
comonosmanipulaessediscursoqueatravésdosmeiosmassivosnos
faz suportara impostura,como a ideologiapenetraas mensagens
impondo-sea partirdaí a lógicada dominaçãoà comunicação.Per-
corri sociolingüÍsticasesemióticas,leveiacaboleiturasideológicasde
textose depráticas,e dei contadetudo issonum livro queintitulei,
semocultarasdúvidas,Comunicaçãomassiva:discursoepoder.Mas já
então- estoufalandodedezanosatrás- algunspesquisadorescome-
çarama suspeitardaquelaimagemdo processona qual não cabiam
maisfigurasalémdasestratégiasdo dominador, na qualtudo trans-
corria entre emissores-dominantese receptores-dominadossem o
menorindíciodeseduçãonemresistência,enaqual,pelaestruturada
mensagem,nãoatravessavamosconflitosnemascontradiçõesemuito
menosaslutas.Logopor essesanosalgonosestremeceua realidade-
por estaslatitudesosterremotosnãosãoinfreqüentes- tãofortemente
que trouxe à tona e tornou visívelo profundo desencontroentre
métodoesituação:tudoaquiloque,do modocomoaspessoasprodu-
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES •..
zemO sentidodesuavidaecomosecomunicameusamosmeios,não
cabiano esquema.Dito em outraspalavras:os processospolíticose
sociaisdessesanos-, regimesautoritáriosemquasetodaAméricado
Sul,diversaslutasdelibertaçãonaAméricaCentral,amplasmigrações
de homensda política,da artee da investigaçãosocial- destruindo
velhascertezaseabrindonovasbrecha':nosconfrontaramcomaverda-
deculturaldestespaíses:amestiçagem,quenãoésóaquelefatoracial
do qualviemos,masa tramahojedemodernidadeedescontinuidades
culturais,deformaçõessociaiseestruturasdosentimento,dememórias
e imagináriosquemisturamo indígenacomo rural,o ruralcomo ur-
bano,o folclorecom o populare o popularcom o de massivo.
Assima comunicaçãosetornouparanósquestãode media-
çõesmaisque de meios,questãode culturae, portanto,não só de
conhecimentosmasdere-conhecimento.Um reconhecimentoquefoi,
de início, operaçãodedeslocamentometodológicoparare-vero pro-
cessointeirodacomunicaçãoapartirdeseuoutrolado,o darecepção,
o dasresistênciasqueaí têmseulugar,o daapropriaçãoapartirdeseus
usos.Porém, num segundomomento,tal reconhecimentoestáse
transformando,justamenteparaqueaqueledeslocamentonão fique
emmerareaçãooupassageiramudançateórica,emreconhecimentoda
história: reapropriaçãohistóricado tempo da modernidadelatino-
americanae seudescompassoencontrandouma brechano embuste
lógicocomqueahomogeneizaçãocapitalistapareceesgotararealidade
do atual.Pois na AméricaLatina a diferençaculturalnão significa,
comotalveznaEuropaenosEstadosUnidos,adissidênciacontracul-
turalou omuseu,masavigência,adensidadeeapluralidadedascultu-
raspopulares,o espaçodeum conflitoprofundoeumadinâmicacul-
turalincontornável.E estamosdescobrindonestesúltimosanosqueo
popularnãofalaunicamentea partirdasculturasindígenasou cam-
ponesas,mastambéma partirda tramaespessadasmestiçagense das
deformaçõesdo urbano, do massivo.Que, ao menosna América
Latina,econtrariamenteàsprofeciasdaimplosãodo social,asmassas
16 ~.
\)
INTRODUÇÃO
aindacontêm,no duplo sentidode controlarmastambémde trazer
dentro,o povo.Não podemosentãopensarhojeo popularatuanteà
margemdoprocessohistóricodeconstituiçãodomassivo:o acessodas
massasà suavisibilidadee presençasocial,e da massificaçãoem que
historicamenteesseprocessosematerializa.Não podemoscontinuar
construindouma críticaqueseparaa massificaçãoda culturado fato
políticoquegeraaemergênciahistóricadasmassasedo contraditório
movimentoquealiproduzanão-exterioridadedo massivoaopopular,
seuconstituir-seemumdeseusmodosdeexistência.Atenção,porque
o perigoestátantoemconfundiro rostocoma máscara- a memória
popularcomo imagináriodemassa- comoemcrerquepossaexistir
umamemóriasemum imaginário,a partirdo qualsepossaancorar
no presenteealimentaro futuro.Precisamosdetantalucidezparanão
confundi-Ioscomoparapensarasrelaçõesquehoje,aqui, fazemsua
mestiçagem.
Estaé a apostae o objetivodestelivro: mudaro lugardas
perguntas,paratornar investigáveisos processosde constituiçãodo
massivoparaalémdachantagemculturalistaqueosconverteinevita-
velmenteemprocessosdedegradaçãocultural.E paraisso,investigá-Ios
a partir dasmediaçõese dossujeitos,isto é, a partirdasarticulações
entrepráticasde comunicaçãoe movimentossociais.Daí suastrês
partes- a situação,osprocessos,o debate- esuacolocaçãoinvertida:
pois,sendoo lugardepartida,a situaçãolatino-americanaterminará
naexposiçãoconvertendo-seemlugardechegada.Emboraespereque
os marcosdeixadosao longo do percursoativema cumplicidadedo
leitor e permitamdurantea travessiareconhecê-Ia.
Falei no começodaspegadasquedeixouo longopercurso
quesefazlivro aqui,eprecisoassinalaralgumas.Tais comoasdificul-
dades,naprimeiraparte,paraarticularumdiscursoque,sendoreflexão
filosóficae histórica,não sedistanciedemasiadonemsoeexteriorà
problemáticae à experiênciaque setratade iluminar. E em certos
momentos,a sensaçãoduplamenteinsatisfatóriadeterficadoa meio
17
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES ••.
caminhoentreaquelaeesta.Alémdoinegávelsabordeajustedecontas
queconservamcertaspáginas.A aparentesemelhançadasegundaparte
com o traçadode umaarqueologia,que buscano passado,em seus
estratos,a feiçãoautênticade algumasformase algumaspráticasde
comunicaçãohojedesaparecidase degradadas.Quandonaverdadeo
quebuscamosé algoradicalmentediferente:nãoo quesobrevivede
outro tempo,maso que nohojefazcomquecertasmatrizesculturais
continuemtendovigência,oquefazcomqueumanarrativaanacrônica
se conectecom a vida das pessoas.E na terceiraparte,enganosa
impressãode que, ao investigaras formasde presençado povo na
massa,estivéssemosabandonandoa críticaàquilo queno massivoé
mascaramentoedesativaçãoda desigualdadesocialeportantodispo-
sitivodeintegraçãoideológica.Masétalvezopreçoquedevemospagar
por nos atrevermosa rompercom uma razãodualistae afirmaro
entrecruzamentono massivodelógicasdistintas,apresençaaí nãosó
dos requisitosdo mercado,masde uma matriz cultural e de um
sensoriumqueenojaaselitesenquantoconstituium "lugar"de inter-
pelaçãoe reconhecimentodasclassespopulares.
Sãomuitasaspessoaseinstituiçõesqueprestaramseuapoio
à pesquisaemquesebaseiaestelivro. Dentreelasdevoum especial
reconhecimentoà UniversidaddelValle, em Cali, queme concedeu
umabolsadeestudosparamontaroprojetoerecolheradocumentação
necessária,emefacultoutempoduranteváriosanosparalevaradiante
a investigação.Aos professorese pesquisadoresem comunicaçãoda
Universidadde Lima e daAutónomaMetropolitanadeXochimilco,
no México, quereconheceramo valorda propostadesdequandoera
sóum esboçoemeconvidaramváriasvezesadiscutireconfrontarseu
desenvolvimento.Ao IPAL, que tornou possívelum percursopor
várioscentrosdeinvestigaçãoparaadiscussãoe reuniãoatualizadada
informação.Meuagradecimentosinceroparaaquelaspessoa~quenão
sómeajudaramcomseudebateintelectual,masquemeapoia~amcom
seuafeto:PatriciaAnzola, Luis Ramiro Beltrán,Héctor Schmucler,
18
fNTRODUÇÃO
Ana María Fadul, RosaMaría Alfaro, Néstor GarCÍaCanclini, Luis
Peirano.E paraElvira Maldonadoqueagüentoue acompanhoudia
a dia o trabalho.
19
PRIMEIRA PARTE
POVO E MASSA NA CULTURA:
OS MARCOS DO DEBATE
Osconceitosbásicos,dosquaispartimos,deixamrepentinamentede
serconceitosparaconverterem-seemproblemas;nãoproblemasanalí-
ticos,masmovimentoshistóricos,quecontudonãoforamresolvidos.
RaymondWilliams
Fazerhistóriadosprocessosimplicafazerhistóriadascate-
goriascom queos analisamose daspalavrascom queosnomeamos.
Lentamasirreversive1nenteviemosaprendendoqueo discursonão é
um meroinstrumentopassivona construçãodo sentidoquetomam
osprocessossociais,asestruturaseconômicasou osconflitospolíticos.
E queháconceitostãocarregadosdeopacidadeeambigüidadequesó
a sua historicizaçãopodepermitir-nossaberde queestamosfalando
maisalémdo quesupomosestardizendo.O que buscaremosnesta
primeiraparteserápois des-cobrir,no sentidomaisgenéricodeste
verbo,o movimentodegestaçãodealguns"conceitosbásicos":istoé,o
duplotecidodesignificadose referênciasdequesãofeitos.Historicizar
os termosem queseformulamos debatesé já umaformade acesso
aoscombates,aosconflitose lutasqueatravessamos discursose as
coisas.Daí que nossaleituraserátransversal:maisque perseguira
coerênciadecadaconcepção,questionaráo movimentoqueaconstitui
emposição.
CAPíTUL01
AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO
DO POVO COMO SUJEITO
Em sua"origem"o debateseachaconfiguradopordoisgran-
desmovimentos:o quecontraditoriamentepõeemmarchao mito do
povo na política (os ilustrados)e na cultura(românticos);e o que
fundindo política e cultura afirmaa vivênciamodernado popular
(anarquistas)ou a negapor sua"superação"no proletariado(marxis-
tas).
O POVO-MITO:
ROMÂNTICOS VERSUS ILUSTRADOS
Historicamenteo Romantismoéreação,masnãonecessaria-
mentereacionária.Reaçãodedesconcertoefugafrenteàscontradições
brutaisdanascentesociedadecapitalista:é tambémreaçãodelucidez
ecríticafrenteaoracionalismoilustradoesualegitimaçãodos"novos
horrores".Em todocasonãosepodecompreenderosentidodopopular
naculturaquesegerano movimentoromântico,senãopor relaçãoao
sentidoque adquire opovonapolíticatal e como é elaboradopela
Ilustração.
Desdeo iníciodaReforma,edemaneiraexplícitanosDiscorsi
deMaquiavel,vemosorganizar-seemtornodafiguradopovoabusca
deumnovosistemadelegitimaçãodopoderpolíticoque,nostratados
deErasmo,VictoriaeLasCasa'seligaráinclusiveàdefesapioneirade
certosdireitosevalorespopularesquepassandoo temposechamariam
anticolonialistas.Mas uma ambivalênciafundamentalatravessaesse
discurso.Maquiavelchegajá a pensarque "boas leis surgemdos
tumultos"eque"emboraignoranteopovosabedistinguiraverdade";!
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
mas,ao mesmotempo,vêno povoa ameaçamaisinsidiosae perma-
nentecontraas instituiçõespolíticas.E é precisamenteessaameaça
constantede desordemcivil quevemda multidão,e a tentaçãotota-
litáriaqueessadesordemprovoca,o queHobbesconverteno centro
de suareflexãosobreo Estadomoderno.Reflexãoqueé semdúvida
o pensamento-matriza partir do qual constroemos ilustradossua
filosofiapolítica.
À noçãopolítica do povo como instâncialegitimantedo
Governocivil, comogeradordanovasoberania,correspondeno âm-
bito da cultura uma idéia radicalmentenegativado popular, que
sintetizaparaos ilustradostudo o que estesquiseramver superado,
tudo o quevemvarrer a razão:superstição,ignorânciae desordem.
Contradiçãoquetemasuafontenaambigüidadequea figuramesma
do povo tememsuaacepçãopolítica.Mais quesujeitode um movi-
mentohistórico,maisqueatorsocial,"o povo" designano discurso
ilustradoaquelageneralidadequeéacondiçãodepossibilidadedeuma
verdadeirasociedade.Pois é pelopacto"queo povoé um povo (...)
verdadeirofundamentode umasociedade".2De modoqueo povoé
fundadordademocracianãoenquantopopulação,senãosóenquanto
"categoriaquepermitedarparte,enquantogarantia,donascimentodo
Estadomoderno".3Uma sociedademodernanãoépensável,segundo
Rousseau,senãoé constituídaa partirda "vontadegeral",e por sua
vezessavontadeé a queconstituio povo comotal.A racionalidade
queinaugurao pensamentoilustradosecondensainteiranessecircuito
e na contradiçãoque encobre:estácontra a tirania em nome da
vontadepopularmasestácontrao povoemnomeda razão.Fórmula
queresumeo funcionamentodahegemonia.Dadoque,forada"gene-
ralidade",o povoéanecessidadeimediata- o contráriodarazãoque
pensaamediação-, nãoseresponderácomleisàdescobertado povo
como produtor de riqueza,mas com filantropia:como fazerpara
sermosjustoscomsuas"necessidadeshumanas"semestimularnopovo
aspaixõesobscurasqueo dominam,esobretudo"essainvejarancorosa
quesedisfarçade igualitarismo".Assim,na passagemdo político ao
24
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
econômicosefaráevidenteo dispositivocentral:deinclusãoabstrata
e exclusãoconcreta,querdizer,a legitimaçãodasdiferençassociais.
A invocaçãodo povo legitimao poder da burguesiana
medidaexataemqueessainvocaçãoarticulasuaexclusãoda cultura.
E é nessemovimentoque se geramascategorias"do culto" e "do
popular".Isto é, do popularcomoin-culto,do populardesignando,
no momentodesuaconstituiçãoemconceito,um modoespecíficode
relaçãocomatotalidadedo social:adanegação,a deumaidentidade
reflexa,adaquelequeseconstituinãopeloqueémaspeloquelhefalta.
Definiçãodo povopor exclusão,tantoda riquezacomodo "ofício"
político e da educação.Quanto à primeiranão faltamargumentos.
Quanto à segunda,Habermassepergunta:"por quenãochamasim-
plesmenteRousseauopiniãoà opiniãopopularsoberana;por que a
identificacoma opiniãopública"?Porqueareconduçãorousseauniana
da soberaniareal à soberaniapopularnão foi capazde superaro
dilema:a transformaçãoda voluntasem ratio acabatraduzindoo
interessegeralemargumentosprivados,essesquedelimitame cons-
tituem o "verdadeiro"espaçodo político que é o espaçopúblico
burguês.4Sobrea relaçãodo povocoma educação- queé o modo
ilustradodepensaracultura-, trata-sedarelaçãomais"exterior"das
três,poissóapartirdeforapodearazãopenetraraimediatezinstintiva
damentalidadepopular.À qualnadaajuda,nesseaspecto,a bondade
ou essasvirtualidadesnaturaisquesobrevivemàcorrupçãodoscostu-
mes.A relaçãonão poderásersenãovertical:desdeos quepossuem
ativamenteo conhecimentoatéos que,ignorantes,isto é, vazios,só
podemdeixar-sesatisfazerpassivamente.E de um conhecimentoao
qualemúltimainstânciasemprepermaneceramestranhos...excetoem
seusaspectosprdticos.Voltaire o dirá sem evasivas:são outros os
prazeres- diferentesdaquelesdo saber- e "maisadequadosa seu
caráter"os queo governodevebuscarparao povo.
Acusa-seo Romantismode haver-nosdeformadoa Idade
Média, maspoucosperíodospor suavez foram tão preconceituo-
samentevistosa partir da modernidadequanto esteRomantismo,
25
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
reduzidoa "escola"literáriaou musical,eemdefinitivoaum adjetivo
queseconfundecomo melodramáticoesentimental.Hoje surgeoutra
leitura históricaque permitevalorizara rupturaque o movimento
românticointroduzno espaçodapolíticae dacultura.Mas alémdas
modas- esabemosqueaindústriaculturalpodehojevender-nosaté
isso,pondo em modauma épocahistórica- o interesseatualpelo
movimentoromânticoestáligadoàcrisedeumaconcepçãodapolítica
comoespaçoseparado,separadodavidae da cultura,convertidaem
atividadedesapaixonada,um espaçosemsujeitos.
O românticoschegampor trêsvias,nemsempreconvergen-
tes, à "descoberta"do povo. A da exaltaçãorevolucionária,ou ao
menosdeseusecos,dotandoachusma,o populacho,deumaimagem
empositivoqueintegraduasidéias:a de uma coletividadequeunida
ganhaforça,um tipo peculiarde força,e a do heróiqueselevantae
fazfrenteaomal.Umasegundavia:o surgimento,eexaltaçãotambém,
do nacionalismoreclamandoumsubstratoculturaleuma"alma"que
dêvidaà novaunidadepolítica,substratoealmaqueestariamno povo
enquantomatrize origemtelúrica.E por último, umaterceiravia:areaçãocontraaIlustraçãoapartirdeduasfrentes:apolíticaeaestética.
Reaçãopolíticacontraaféracionalistaeo utilitarismoburguêsqueem
nomedo progressotêmconvertidoo presenteem um caos,em uma
sociedadedesorganizada.Logo:idealizaçãodo passadoerevalorização
do primitivoeirracional.Mas nãosedeveesquecerquenessavoltaao
presenteo movimentoromânticotemnãopoucoslaçoscom o socia-
lismo utópico e seu protestocontraa ausênciade uma verdadeira
sociedade."Os românticosquiseramvivera imagemdo possívelque
projetavasobreo futuroo socialismoutópico.Opuseramsuasocieda-
deidealà sociedaderealeprática.Justapuseram,à sociedadeburguesa
real,ado desprezoedaseparação,adacomunidadeedacomunhão".5
E reação,ou melhor,rebeliãoestética,contraa artereale o classicista
princípiodeautoridade,revalorizandoo sentimentoeaexperiênciado
espontâneocomoespaçode emergênciada subjetividade.
26
POVO E MASSA NA CU •..TURA: OS MARCOS DO DEBATE
Com essestrêsingredienteso Romantismoconstróiumnovo
imagináriono qualpelaprimeiravezadquirestatusdeculturao que
vemdo povo.Mas isto foi por suavezpossívelna medidaemquea
noçãomesmade culturamudoudesentido.Da relaçãoentrea mu-
dançana idéiadeculturae o acessodo popularaoespaçoquea nova
noçãorecobre,é bom exemploo fatode queHerder,queem 1778
publicaos Volkslieder,nosquaisapresentacomoautênticapoesiaaque
emergedo povo, "comunidadeorgânica",só uns anosdepois,em
1784,escreveIdéiasparaumafilosofiadahistóriadahumanidade,onde
estabelecea impossibilidadedecompreendera complexidadeda evo-
luçãodahumanidadeapartirdeumsóprincípio,etãoabstratocomo
a "razão", e a necessidadeentão de aceitara existênciade uma
pluralidadedeculturas,istoé,d,ediferentesmodosdeconfiguraçãoda
vida social.A mudançana idéiadeculturavai nessemovimentoem
duasdireções.Umaqueaseparadaidéiadecivilizaçãonummovimen-
to de interiorizaçã06quedeslocao acentodo resultadoexteriorpara
o modo específicode configuração,sejade um "sistemadevida" ou
deuma"realidadeartística".E outra,queaore-conhecerapluralidade
do cultural propõea exigênciade um novo modo de conhecer:o
comparativo.Foi apartirdessanovaidéiaedométodoqueaíseorigina
queHerderchegaacolocarempédeigualdade,istoé,emposiçãode
relacionáveis,apoesialiteráriaeapoesiadoscantospopulares.Daí que
aimportânciahistóricadaposiçãoromânticanestedebate- sejanos
trabalhosde Herder sobreas canções,dos irmãosGrimm sobreos
contosedeArnim sobreareligiosidadepopular- residanaafirmação
dopopularcomoespaçodecriatividade,deatividadeeproduçãotantoou
maisquena atribuiçãoa essapoesiaou a essesrelatosdeumaauten-
ticidadeou umaverdadequejá nãoseachariaemoutraparte.Frente
a tantacríticafácile recorrenteda concepçãoromânticado popular,
naqualsefaztãodifícil separaro quevemdeumapercepçãohistórica
dosprocessosdaquiloqueé propostopor um obstinadopreconceito
racionalista,énecessárioafirmarcomCireseque"aposiçãoromântica
27
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
fazprogredirdefinitivamenteaidéiadequeexiste,paraalémdacultura
oficial e hegemônica,outra cultura.A noçãoromânticado "povo",
cujautilizaçãoconceitualé hoje refutada,foi entãoum instrumento
positivo parao alargamentodo horizontehistóricoe da concepção
humana".?Segueessalinha a releituraefetuadapor Hobsbawmao
estudarasrelaçõesentreromânticose revolucionários,8releituraque
começaa abrircaminhotambémnaAméricaLatina.Assim,Morande
propõeque,emsuarelaçãocomo povo,a renovaçãodo conceitode
culturapassapor um reestudodo conceitode Naçãocom a qual os
românticospõememjogo- frenteaoracionalismoiluminista- "a
valorizaçãodoselementossimbólicospresentesna vidahumana"e a
partirdosquais"aperguntapelaculturaseconvertenaperguntapela
sociedadecomosujeito".9Dimensãoqueadquirehojeumrelevoespecial
na horade pensara crisepolíticae o sentidodosnovosprocessosde
democratizaçãona América Latina e a necessidadeentãode "uma
aprendizagemna dimensãoda estruturaçãosimbólicado mundo,
assegurandoa intersubjetividadedasdiversasexperiênciaspossíveis".10
Uma pistadeacessoaoconteúdoda idéiado populartraba-
lhadapelosromânticosacha-senatopologiatendencialqueassinalao
usodosnomese oscampossemânticosquea partirdaí seconstituem.
Três nomes-folk, volkepovo- que,parecendofalardo mesmo,no
movimento"traiçoeiro"das traduções,impedemde ver o jogo das
diferençase ascontradiçõesentreos diversosimagináriosquemobi-
lizam.11De um ladofolk e volkserãoo pontodepartidado vocábulo
comquesedesignaráanovaciência- folkloreevolkskunde-,enquan-
to peuplenãoseligaráa um sufixonobreparaengendraro nomede
um saber,massim a umamodalizaçãocarregadade sentidopolítico
e pejorativo:populismo.E enquantofolk tenderáa recortar-sesobre
um toposcronológico,volko farásobreum geológicoepeuple,sobre
um sociopolítico.Folklorecaptaantesde tudo um movimentode
separaçãoe coexistênciaentredois"mundos"culturais:o rural, con-
figurado pela oralidade,as crençase a arte ingênua,e o urbano,
configuradopelaescritura,asecularizaçãoeaarterefinada:querdizer,
28
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
nomeiaa dimensãodo tempona cultura,a relaçãona ordem das
práticasentre tradiçãoe modernidade,sua oposiçãoe às vezessua
mistura. Volkskundecaptaa relação- superposição- entredois
extratosou níveisnaconfiguração"geológica"dasociedade:um exte-
rior, superficial,visível,formadopela diversidade,a dispersãoe a
inautenticidade,tudo isto resultadodasmudançashistóricas,e outro
interior,situadodebaixo,naprofundidadeeformadopelaestabilidade
e pela unidade orgânicada etnia, da raça.Nos usos românticos,
enquantofolkloretenderiaa significarantesdetudoa presençaperse-
guida e ambíguada tradição na modernidade, volk significaria
basicamente.a matriztelúricada unidadenacional"perdida"e por
recuperar.Entre o povo-tradiçãoe o povo-raçanãodeixaráde haver
notranscursohistóricolaçosetramasqueosaproximameconfundem,
masdetodo modoestesdois imagináriosnospermitemdiferenciaro
idealismohistórico,o historicismoquesituano passadoaverdadedo
presente,de um racismo-nacionalismotelúricoem sua negaçãoda
história.E frentea estesdois imaginários,o usoromânticodepeuple
_ deHugo aMichelet- falaantesdetudodaoutrafacedasociedade
constituída.Campesinatoe massasoperáriasformamo universodo
povoenquantouniversodesofrimentoedemiséria- "acanalhaé o
começodolorosodo povo",dirá Hugo -, essereversodasociedade
quea burguesiaocultae temeporqueéapermanenteameaçaqueao
assinalaro intoleráveldo presenteindicao sentidodo futuro.
A travessiados imagináriospermitecompreendermelhoro
queaconcepçãoromânticado popularnosimpededepensar,eo que
temfeito atéhoje quasesemprealiadae componenteideológicodas
políticasconservadoras.Em primeirolugara mistificaçãona relação
povo-Nação.Pensadocomo"alma"ou matriz,o povoseconverteem
entidadenãoanalisávelsocialmente,nãotrespassávelpelasdivisõese
pelosconflitos, uma entidadeabaixoou acimado movimentodo
social.O povo-Naçãodos românticosconformauma "comunidade
orgânica",istoé,constituídapor laçosbiológicos,telúricos,por laços
naturais,querdizer,semhistória,comoseriama raçae a geografia.
29
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Analisando a persistênciadessaconcepçãona cultura política dos
populismos,GarcíaCanclini resumeassimaoperaçãodemistificação:
"osconflitosemmeiodosquaisseformaramastradiçõesnacionaissão
esquecidosou narradoslendariamente,comosimplestrâmitesarcaicos
paraconfigurarinstituiçõeserelaçõessociaisquegarantamdeumavez
por todasa essênciada Nação"Y Em segundolugar,a ambigüidade
da suaidéiade "culturapopular",Seos românticosresgatama ativi-
dadedo povo na cultura,no mesmomovimentoem que essefazer
cultural é reconhecido,se produzseuseqüestro:a originalidadeda
culturapopularresidiriaessencialmenteemsuaautonomia,naausência
decontaminaçãoedecomérciocoma culturaoficial,hegemônica.E
aonegaracirculaçãocultural,o realmentenegadoéoprocessohistórico
deformaçãodopopular e o sentidosocialdasdiferençasculturais:a
exclusão,acumplicidade,adominaçãoeaimpugnação.E aoficarsem
sentidohistórico,o queseresgataacabasendoumaculturaquenãopode olhar senãopara o passado,cultura-patrimônio,folclore de
arquivooudemuseunosquaisconservaapurezaoriginaldeumpovo-
menino,primitivo.Os românticosacabamassimencontrando-secom
seusadversários,os ilustrados:culturalmentefalando,o povo é o
passado!Não no mesmosentido,massim emboaparte.Paraambos
o futuro é configuradopelasgeneralidades,essasabstraçõesnasquais
a burguesiaseencarna,"realizando-as":um Estadoque reabsorvea
partir do centro todasas diferençasculturais,já que resultamem'
obstáculosaoexercíciounificadodopoder,eumaNaçãonãoanalisável
em categoriassociais,não divisívelemclasses,já queseachaconsti-
tuída por laçosnaturais,de terrae sangue.
Assim começaa "operaçãoantropológica"13queuneo tra-
balhodosfolcloristascomo projetodosantropólogosqueseiniciaem
Taylor ea transformaçãoconceitualdassuperstiçõesem"sobrevivên-
cias"- survival- culturais.14Em um duplo plano.É medianteo
contatocom as sociedadesprimitivasnão-européiasque a idéia da
diversidadedasculturasadquireestatutocientífico.De formaquea
ruptura do exclusivismocultural só se fará operanteagorae não
30
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
unicamentepor fora - civilizados/bárbaros-, mas tambémpor
dentro- entreculturahegemônicaeculturassubalternas:"Sóatravés
do conceitode 'culturaprimitiva'é quesechegoua reconhecerque
aquelesindivíduosoutroradefinidosdeformapaternalistacomo' ca-
madasinferioresdospovoscivilizados'possuíamcultura".15Mas, por
suavez,"o primitivo",designandooselvagemnaÁfrica ou opopular
na Europa,continuaráobstinadamentesignificando,a partirde uma
concepçãoevolucionistada diferençacultural dominanteaté hoje,
aquiloqueolhaparatrás,um estágiotalvezadmirávelporématrasado
dodesenvolvimentodahumanidadee,poressarazão,expropriávelpor
aquelesquejá conquistaramo estágioavançado.Assimcomoo inte-
ressepelopopularnoprincípiodoséculoXIX racionalizaumacensura
política16_ idealiza-seo popular,suascanções,seusrelatos,sua
religiosidade,justono momentoemqueo desenvolvimentodo capi-
talismona forma do Estadonacionalexigesuadesaparição-, na
scgundametadedo XIX a antropologiaintroduz-secomodisciplina,
racionalizandoe legitimandoa expoliaçãocolonialista.
POVO E CLASSE:
DO ANARQUISMO AO MARXISMO
-4idéia de,povoqUe:geraoQoIIlovimentoromânticovai sofrer
~IO longodo séculoXDCumadissoluçãocompleta:pelaesquerda,nQ
, ~onceitode classesocial,epe:1adireita,no de massa.Abordaremosesse
duplo deslocamentoanalisandoseparadamenteos modósem que se
ef(-waa operaçãode dissolução.
A transformaçãodo conceitodepovono declasseapartirda
M'I',lIndametadedoséculoXIX temumlugardeacessoprivilegiadono
debateentreanarquistase marxistas.Debateem que, enquantoo
;lllarquismoinscrevecertostraçosdaconcepçãoromânticanum pro-
;,'(0 c emalgumaspráticasrevolucionárias,o marxismopelocontrário
ef(-tlIaráuma rupturacompletacom o romântico,recuperandonão
poucostraçosdaracionalidadeilustrada.Mas o quetantoanarquistas
I 111110 marxistasefetuarãode início seráa rupturacomo culturalismo
31
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
dos românticosaopolitizarema idéiadepovo.Politizaçãoquesigni-
fica a explicitaçãoda relaçãodo modode serdo povocom a divisão
da sociedadeem classes,e a historicizaçãodessarelaçãoenquanto
processode opressãodas classespopularespela aristocraciae pela
burguesia.Em síntese,marxistase anarquistascompartilhamde uma
concepçãodo popular que tem como basea afirmaçãoda origem
social,estruturaldaopressãocomodinâmicadeconformaçãodavida
do povo. Frenteaos ilustrados,isso significaque a ignorânciae a
superstiçãonãosãomerosresíduos,senãoefeitosda "misériasocial"
dasclassespopulares,misériaquepor suavezconstituia contraparte
vergonhosaeocultáveld<i"novasociedade".E frenteaosromânticos,
issoimplicadescobrirna poesiae na artepopularesnão uma"alma"
atemporal,masaspegadascorporaisdahistória,osgestosdaopressão
e da luta, a dinâmicahistóricaatravessandoe fendendoo enganosa-
mentetranqüilogerar-seda tradição.
A partir daí a concepçãodo popularnasesquerdasvai se
dividirprofundamente:osanarquistasconservarãoo conceitodepovo
porquealgoseenuncianelequenãocabeou nãoseesgotano declasse
oprimida, e os marxistasrechaçamseu uso teóricopor ambíguoe
mistificador substituindo-opelode proletariado.
Emergência do popular
nos movimentos anarquistas
A concepçãoanarquistado popularpoderiasituar-setopo-
graficamente"a meio caminho"entre a afirmaçãoromânticae a
negaçãomarxista.Porque,de um lado,parao movimentolibertário
o povosedefinepor seuenfrentamentoestruturale sualuta contraa
burguesia,mas,deoutro,osanarquistassenegama identificá-lo com
oproletariadonosentidorestritoqueo termotemnomarxismo.E isso
porquea relaçãoconstitutivado sujeitosocialdo enfrentamentoe da
luta é paraoslibertáriosnão umadeterminadarelaçãocom os meios
de produção,masa relaçãocoma opressãoemtodasassuasformas.
Aí estáo núcleodapropostabakuniniana:entendero proletariadonão
32
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
comoum setorou umapartedasociedadevitimadapeloEstado,mas
como "a massados deserdados".17E nessesentidoPiu Riverspôde
;lf-lrmarque o conceitode povo se converteuna pedraangularda
políticaanarquista.18E nessecasoo sujeitodaaçãopolíticaseimpreg-
nará de algunstraçosromânticos,só que agoraa partir de uma
~ignificaçãodiferente:averdadeeabelezanaturaisqueosromânticos
descobriramnopovosetransformamagoranas"virtudesnaturais"que
~ãoseu"instintodejustiça",suafé na Revoluçãocomoúnico modo
de conquistar"suadignidade".
A conexãodo movimentolibertáriocom os românticosse
produz sobre vários registros. Há um componente romântico
indubitávelnarealizaçãodasvirtudesjusticeirasdo povo.Ele éaparte
~ãdasociedade,aqueemmeiodamisériatemsabidoconservarintacta
-;I exigênciadejustiçaeacapacidadedeluta.Mas igualmenteclaraserá
;1 ruptura:o quetemsabidoconservaro povonãoéalgovoltadopara
o passado,maspelocontráriosuacapacidadedetransformaropresente
e construiro futuro.Tocamosaí um pontonevrálgiconasdiferenças
entreanarquistase marxistas:o referenteà memóriadopovoe em
particularàmemóriadesuaslutas.19Os libertáriospensamseusmodos
de luta em continuidadediretacomo longoprocessodegestaçãodo
povo.Os marxistasemtrocapõememprimeiroplanoasrupturasnos
llIodosdelutaquevêmexigidaspelasrupturasintroduzidaspelonovo
Illodo de produção.A continuidadeé paraos anarquistasnão uma
Illeratática,masa fontede suaestratégia:aquelaquepensaa ação
políticacomo uma atividadede articulaçãodasdiferentesfrentese
11IOdosdelutaqueopovomesmosedá.Alémdeimplicarnalutatodos
os que estãosujeitosà opressãoenquantocapazesde resistênciae
illlpngnação,desdeas criançase os velhos,até as mulherese os
delinqüentes.É a relaçãodaopressãoea resistênciaà cotidianidadeo
que os libertáriosestavampioneiramenterelevandoao valorizardo
POlltodevistada transformaçãosocial"a luta implícitae informal",
.1 luta cotidiana,paraa qual o marxismo,segundoCastoriadis,tem
(Oll~ervadoumaespecialcegueira.20
33
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
E atravésda memóriadas lutasos anarquistasse ligam à
culturapopular.Não restadúvidade que a visãodessaculturaestá
impregnadade uma concepçãoinstrumental- que em nenhum
momentotratarãodeocultar- mastambémécertaavalorizaçãoque
aí se produz. Poderíamosdizer que num primeiro momento a
instrumentalizaçãofoi aúnicaformadevalorizaçãopossível,já queem
suaambigüidadeoqueoslibertáriospercebiamobscuramascertamen-
te é que,sea luta políticanãoassumiaasexpressõese os modosdo
popular,o próprio povo é queacabariasendousado.
O interessedos anarquistaspela culturapopular, embora
tenhasidoexplícitodesdeo início, demoroumuito tempoa atrairo
interessedoshistoriadoresoudossociólogosdacultura.Sónosúltimos
anostem-secomeçadoaestudaro modocomoosanarquistasassumi-
ram ascopIase os romancesdefolhetim,os evangelhos,a caricatura
ou a leitura coletivados periódicos,quer dizer, a nova idéia que
começama forjar da relaçãoentrepovo e cultura.21E um primeiro
traço-chavedessaimageméalúcidapercepçãodaculturacomoespaço
não só de manipulação,masdeconflito, e a possibilidadeentãode
transformaremmeiosdeliberaçãoasdiferentesexpressõesou práticas
culturais.Isso se materializaem uma política cultural que não só
promoveinstituiçõesdeeducaçãooperáriaquecanalizema "fomede
saber",22masemumasensibilidadeespecialparaa transformaçãodos
modelospedagógicos.23E em umapercepçãoda continuidadeentre
leituracoletivado folhetime a tradiçãodas vigíliasenquantoespaço
deexpressãoeparticipaçãopopular.Ou nadiferençaqueestabelecem
entrea lutacontraa religiãooficial- um anticlericalismoradical-
eo respeitopelasformasefiguraspopularesdoreligioso,tantono nível
dascrençasquantono damoral,emquepercebemprofundasrelações
entrecertasvirtudespopularesealgumasexigênciascristãs,queligam
a libertaçãode que falao Evangelhocom a libertaçãosocial.
Uma segundalinha de trabalhoa resgataré a preocupação
por elaborarumaestéticaanarquista,enaqualo traçoprimordialserá,
por suavez,e por paradoxalquepossasoar,populare nietzschiano:
34
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
a continuidadeda artecom a vida, encarnadano projetode lutar
contratudoo quesepareaartedavida.24Já quemaisdo quenasobras,
aarteresideé naexperiência.E nãonadealgunshomensespeciais,os
artistas-gênios,masaténa do homemmaishumildequesabenarrar
ou cantarou entalhara madeira.Os anarquistasestãocontraa obra-
prima e os museus,masnão que sejam"terroristas",nem por um
"insano amor de destruição"como pensamseuscríticos,mas por
militarememfavorde umaarteemsituação,concepçãodecorrenteda
transposiçãoparao espaçoestéticodo seuconceitopolíticode "ação
direta".De ProudhoneKropotkin,mastambémdeT olstói,aestética
anarquistaretiraseuprojetodereconciliaraartecomasociedade,com
o melhor da sociedadeque é a sedede justiçaque latejano povo.
Romântica,essaestéticaproclamaumaarteantiautoritária,baseadana
espontaneidadee na imaginação.Mas anti-romântica,essamesma
estéticanão crênumaarteque selimite a expressara subjetividade
individual:o quefazautênticaumaarteésuacapacidadedeexpressar
avoz coletiva.E nessesentidoé "realista",aocolocara cotidianidade
em relaçãocom o conflito, que a levaa escolhera facevisível da
experiência,a realidadeftsicada miséria.O que do ponto de vista
plásticoegráficosetraduzemum "impressionismoácrata",25próximo
aodeSeuratePisarro,eno campoliterárioaumexpressionismoà Sué
ou Gorki.
E apartirdaestética,masapontandoparamuitomais"lon-
ge", está a percepçãoanarquistada nova problemáticacultural
estabelecidapelasrelaçõesentrearteetecnologia,queconstituiráanos
depoisum aspectofundamentalda reflexãode Benjamin.Em um
primeiromomentotrata-sedatecnologiacomotema,daafirmaçãodo
(ecnológicono espaçodasartesmediantea introduçãorecorrentedas
Ilovasferramentaseaparatostécnicos:asfábricas,asestaçõesdetrem,
:1 iluminaçãoelétrica,ospostescomosfiosdo telégrafo.Mas emum
segundomomento"já nãosetratasódainclusãodeelementosmecâ-
lIicosfigurativosna esferada arte,masqueessestemastestemunham
;1 mudançade estruturasociale sugeremnovoscaminhosao mesmo
35
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
temposociaiseplásticos.O mundodaindústriaincluíaaparticipação
artísticado homemnãosócomoespectador,mastambémcomoator,
pois o conceitodebelezanaobradearteé substituídopelodesejode
significar".26E dessedesejoparticipam,sim, asclassespopularesem
luta contraaqueleconceitodeartequeacabaexcluindoo popularda
cultura.Em umcomentárioaocinemadeChaplin,intituladoO pobre
e o proletariado,Barthesanalisao sentidodessatransformaçãoda
belezaemdesejodesignificaredapeculiaridadequeissointroduzna
estéticaanarquista."Chaplinviu sempreo proletáriosobostraçosdo
pobre,dali surgea forçahumanadesuasrepresentaçõesmastambém
suaambigüidadepolítica".Em um filme,cujamáximaexpressãoserá
Temposmodernos,éapresentadoumproletário"pré-político",homem
com fome, torpe,golpeadocontinuamentepelapolítica, e contudo
dotadode uma capacidadedesignificar,de umaforçarepresentativa
imensa,tantaque"suaanarquia,discutívelpoliticamente,talvezrepre-
senteem artea formamaiseficazde Revolução"Y
Dissolução do popular no marxismo
Dessaoriginaleambíguaadoçãoqueosanarquistasfazemda
idéia de povo, o marxismo"ortodoxo"28negaráa validadetanto
teóricacomopolítica.Há na reflexãomarxistaquedá contadaexpe-
riênciado movimentooperáriodefinaisdo séculoXIX ecomeçosdo
séculoXX um ponto que a distanciaespecialmentedo pensamento
libertário:aconsciênciadanovidaderadicalqueo capitalismoproduz,
convertidaem expressãodo saltoqualitativono modo de luta do
movimentooperário.O proletariadosedefinecomoclasseexclusiva-
mente pela contradiçãoantagônicaque a constitui no plano das
relaçõesde produção:o trabalhofrenteao capital.Daí que não se
poderá falar de classetrabalhadorasenãono capitalismo,nem de
movimentooperárioantesdaapariçãodagrandeindústria.A explica-
çãodaopressãoeaestratégiadalutasesituamassimemumsóeúnico
plano:o econômico,o daprodução.Todos osdemaisplanosou níveis
36
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
ou dimensõesdo socialseorganizame adquiremseusentidoa partir
dasrelaçõesdeprodução.E todaconcepçãodelutasocialquenãose
centreaí,quenãopartadessecentronemaelesedirija,émistificadora
c enganosa,desviaeobstaculiza.A certezateóricaeaclaridadepolítica
sereforçarãomutuamente,já queo queo marxismoaspiraa transbor-
dar os limites do pensamentoe se apresentacomo o movimento
mesmoda história,feito consciênciana classecapazde realizarseu
sentido.29Frenteà multiplicidadedeníveise planosde luta, frenteà
"ambigüidade"políticaemquesemoviamosanarquistas,o marxismo
possuíaunidadedecritérioeumacréscimodeclaridadequevinhaem
última análisea sujeitara experiênciado movimento- que era o
primordialentreosanarquistas- à análise-confrontaçãodasituação
com a doutrina.O componenteracionalistarompiadefinitivamente
comosresíduosderomanticismoquearrastavamoslibertários,eque
lhes impossibilitavampensara especificidadedo políticocomo um
terrenodemarcáveleseparado,aquelejustamenteemqueerapensável
c efetuávela respostaà dominaçãoeconômica.Nessecontextoteórico
a idéiade povonão poderiaresultarsenãoretóricae perigosa,e em
Iermoshegelianossuperada.
Que implicou todavia,quaisforamos custosdessasupera-
~:;l0?No planomaisvisíveleexterioro fatodequedurantemuitosanos
o apelo ao conceitode povo ficaráreservadoà direita política e
adjacências.Já desdealgunsanosa questão,contudo,voltou a ser
propostaa partir da esquerda.Na Europa, atravésda reescritada
história do movimento operário que, como no caso de E. P.
Thompson,3opropõeexplicitamentea impossibilidadehistóricade
separartaxativamentealutaoperáriadas"lutasplebéias",demodoque
f:tzera história da classeoperáriaimplica necessariamentefazer a
ilistóriadaculturapopular.Ou emA experiênciadomovimentooperá-
rio, deCastoriadis,emquesemapelarexplicitamenteparao conceito
de popularseefetuacontudoumareelaboraçãodo conceitode pro-
letariadoquefazentrarnareflexãonãopoucodoqueaquelesignificava
37
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
no pensamentoanarquistade finaisde século.Na AméricaLatina a
questãodo povoé retomadacomforçanosúltimosanosligadatanto
a umareleituradosmovimentospopulistasquantoà revalorizaçãoda
culturano interiordos projetosde transformaçãodemocrática.31
Em linhas gerais o que começa a ser proposto como
impensável,apartirdanegaçãoefetuadapelomarxismoortodoxodos
conceitosde povo, é em primeiro lugar essaoutra "determinação
objetiva",esseoutropólo dacontradiçãodominanteque,segundoE.
Laclau,sesituanão no planodasrelaçõesde produção,masno das
formaçõessociais,equeseconstitui"no antagonismoqueopõeo povo
aoblocono poder".32Esseantagonismodálugaraum tipo específico
deluta,aluta"popular-democrática".Comentandoo texrodeLaclau,
E. de Ipola particularizao terrenoe ascaracterísticasdessaluta. Seu
lugar de exercíciose'situa predominantementeno ideológicoe no
político:nainterpretação-constituiçãodossujeitospolíticos.Seuscon-
teúdoshistóricossãoaomesmotempomaisconcretos- já quevariam
segundoasépocaseassituações- e maisgeraisqueosconteúdosda
lutadeclasses,poispossuemumacontinuidadehistóricaqueseexpres-sa "na persistênciadastradiçõespopularesfrenteà descontinuidade
que caracterizaas estruturasde classe",33Ainda que "superada",a
questãodo popularnãotemdeixadosemdúvidadeteruma'represen-
tação no marxismo. Uma análise particularmentelúcida dessa
representaçãotem sido realizadapor O. Sunkel.Duas seriamsuas
linhasdeforça:umaidéiadopolitizável naqualnãocabemmaisatores
popularesqueà classetrabalhadora,nem maisconflitosque os que
provêmdo choqueentrecapitale trabalho,nemmaisespaçosqueos
da fábricaedo sindicato;eumavisãoheróicadapolítica,masnãono
sentido dos românticos, e sim deixando de fora o mundo da
cotidianidadee da subjetividade.
A partirdaí seproduzumaduplaoperaçãode negação,ou
melhor,estaseconfiguraemdoismodosdeoperação:anão-represen-
taçãoe a repressão.O popular não-representado"seconstituicomoo
38
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
conjuntodeatores,espaçoseconflitosquesãoaceitossocialmentemas
quenãosãointerpeladospelospartidospolíticosdeesquerda".34Sur-
gemassimatorescomoamulher,o jovem,osaposentados,osinválidos
enquantoportadoresdereivindicaçõesespecíficas;espaçoscomoacasa,
asrelaçõesfamiliares,o segurosocial,o hospital,etc.E um segundo
tipodepopularnãorepresentado,constituídopelastradiçõesculturais:
práticassimbólicasdareligiosidadepopular,formasdeconhecimento
oriundasde suaexperiência,comoa medicina,a cosmovisãomágica
ou asabedoriapoética,todoo campodaspráticasfestivas,asromarias,
aslendase, por último, o mundo dasculturasindígenas.
Opopular reprimido"seconstituicomoo conjuntodeatores,
espaçose conflitosquetêmsido condenadosa subsistiràsmargensdo
social,sujeitosa umacondenaçãoéticae política".35Atorescomo as
prostitutas,oshomossexuais,osal~ólatras,osdrogados,osdelinqüen-
tesetc.;espaçoscomoosreformatórios,osprostíbulos,oscárceres,os
lugaresde espetáculosnoturnosetc.
Mas a negaçãodo popularnãoé só temática,nãoselimita
adesconhecerou condenarum determinadotipo detemasou proble-
mas,masrevelaa dificuldadeprofundado marxismoparapensara
questãoda pluralidadede matrizesculturais,a alteridadecultural.
Reduzidajá em Marx ao problemados modos pré-capitalistasde
produção,cujoparadigmaestariano "mododeproduçãoasiático"-
reduçãoqueR. Bahronãoduvidaemcolocarcomoum problemade
ctnocentrism036-, aquestãoperdeseusentidoeaperspectivateórica,
quandose introduz, ficaráancoradano evolucionismoprimário de
Morgan.Certo queháemLenin umareferênciaexplícitaàquestãoa
propósitoda análiseda formaçãosocialsoviética,na qual distingue
limaculturadominanteburguesa,algumasculturasdominadas- as
do campesinatotradicional-, e"elementosdeumaculturademocrá-
t ica socialista"no proletariado.37Mas o afã de referire explicara
diferençaculturalpela diferençade classeimpediráde se pensara
l'specificidadedosconflitosquearticulaaculturaedosmodosdeluta
39
)
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
quea partirdaí seproduzem;"o papeldasidentidadessocioculturais
como forçasmateriaisno desenvolvimento'dahistória".38E portanto
suacapacidadedeconverterem-seemmatrizesconstitutivasdesujeitos
sociaise políticos,tantono intercâmbioou no enfrentamentoentre
formaçõessociaisdiferentescomono interiordeumaformaçãosocial.
Em últimainstância,trata-seda impossibilidadede remetertodosos
conflitos a uma só contradiçãoe de analisá-losa partir de uma só
lógica:alógicainternaàlutadeclasses.O quenãosignificaquealuta
de classesnãoatravesse,e emdeterminadoscasosarticule,asoutras.
O problemaé pensá-Iacomoexpressãode umapretendida"unidade
dahistória".ParaMarx issonãooferecedúvida,eo livro I d'O Capital
afirma,precisamenteparajustificaradestruiçãodasociedadeatrasada:
"O capitalismoindustrialfundaahistóriamundialaofazercadanação
ecadaindivíduoedependentes,paraasatisfaçãodesuas'necessidades,
do mundo inteiro".Mas a unificaçãoimpostapelocapitalnãopode
todaviaescaparà rupturadaunidadedesentido.O capitalismopode
destruirculturasmasnãopodeesgotara verdadehistóricaqueexiste
nelas.E o marxismonãoescapaa essalógicaquandopretendepensar
associedades"primitivas"dopassadoou asoutrasculturasdo presente
a partir de uma particularconfiguraçãoda vida social erigidaem
modelo.Paraum etnólogocomoP. Clastres,essa"pretensão"a ditar
a verdadede todasasformaçõessociaisquebalizama histórialevou
o marxismoa "reduzir-sea si mesmoreduzindoa espessurado social
a um só parâmetro",pois com essa medidao que se produz é "a
supressãopuraesimplesdasociedadeprimitivacomosociedadeespe-
cífica".39Estudandoo tratamentoquea estéticamarxistadá àsartes
plásticasdasculturasdominadas,Mirko Lauerexplicitaasduasope-
raçõesem que se traduzo desconhecimentoda alteridadecultural:
"indiferençageneralizada"frenteà especificidadedasculturasmargi-
nais, e "incapacidadepara apreenderessasculturasem seu duplo
caráterdedominadasedepossuidorasdeumaexistênciapositivaaser
desenvolvida".40
40
POVO E MASSA NA CU!. TURA: OS MARCOS DO DEBATE
Uma questãomaisgeral,masqueestáprofundamenteligada
à "negação"do popularno marxismo:a equiparaçãoentreo conceito
de culturae o de ideologia.Refiro-memaisuma vezao marxismo
ortodoxo, a esseque tem desconhecidoou deformadoo conceito
gramscianodehegemonia"recuperando-o"no interiorde umacon-
cepçãoquecontinuasendodominante.Foi no debatedosanos3041
'que começarama se fazerpatenteso significadoe os efeitosdessa
equiparação.A impossibilidadede assumire dar contada complexi-
dadeedariquezaculturaldessemomentosematerializaránatendência
a idealizara "culturaproletária"42e a encararcomo decadentea pro-
duçãoculturaldasvanguardas.A críticadessaequiparaçãotemhojejá
bemdelimitadosos impasses,tantoo quesesituana predominância
do sentidonegativo- falsificaçãoda realidade- sobreos outros
sentidose efeitosda ideologia- concepçãodemundo,interpelação
dossujeitos43- comoo queresultadepensarasrelaçõesdeprodução
comoum espaçoexterioraosprocessosde constituiçãodo sentido.44
Por issomeparecefundamentalretomaraquestãoapartirdasrelações
entreculturae modernidade.Como demonstrouRezsler,a teseda
decadênciadaartemodernanãofalasódaestreitezadeummarxismo
vulgar,masde um impassede fundo na teoriamarxistaortodoxa.
Claro que a argumentaçãode Idanov não é a de Lukács, mas o
significadodateseeosefeitospolíticosforamosmesmos.Em ambos ~*'
o quesecondenacomoa-socialpor serindividualista,ou anti-social
por serburguês,é o experimentalismo:acapacidadedeexperimentare
a partir daí questionaras "pretensõesde realidade"que encobriao
realismo.Realismoqueéassumidocomoo gostoprofundoeo modo
deexpressãodasclassespopulares.O paradoxotocafundo:ainvocação
do povo é só paraopor o conservadorismode seugosto,"seubom
sentido",à revoluçãoqueestátransformandoa arte.E a continuidade
que se reclamacom o passadoé "a continuidadecom os valores
culturaisda épocaburguesasolapadospelosmovimentosmodernis-
tas".45Apela-seao povo no sentidomaispopulistae maisnegativa-
41
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
menteromântico:paraexaltarcomocritériosbásicosda "verdadeira"
obradearteasimplicidadeecompreensibilidadeporpartedasmassas.
Em outronívelcertamente,masemumadireçãobempróxima,acha-
seacondenaçãoquefazLukácsdamodernidadepor dissolvera forma
e misturar,confundiros gêneros.Os queestãopróximosda apocalí-
ptica e conservadorateoriada decadênciaculturalna sociedadede
massas,quevamosestudaradiante,configuramumaestranhacoinci-
dência.
42
CAPíTULO 2
NEM POVO NEM CLASSES:
A SOCIEDADE DE MASSAS
A idéiadeuma"sociedadedemassas"é bemmaisvelhado
que costumamcontaros manuaisparaestudiososda comunicação.
Obstinadosemfazerda tecnologiaa causanecessáriae suficienteda
nova sociedade- e decertoda novacultura-, a maioriadesses
manuaiscolocao surgimentoda teoriada sociedadede massasentre
osanos30/40,desconhecendoasmatrizeshistóricas,sociaisepolíticas
de um conceitoque em 1930tinha já quaseum séculode vida, e
pretendendocompreendera relaçãomassas/culturasema maismíni-
ma perspectivahistóricasobreo surgimentosocialdasmassas.Para
começara contaressahistória,queé a únicamaneiradefazerfrente
àfascinaçãoproduzidapelo discursodostecnólogosda mediaçãode
massa,talvezsejaboaumaimagem:o acionamentoduranteo século
XIX da teoriadasociedade-massaé o de um movimentoquevai do j
medoà decepçãoe daí ao pessimismo,masconservandoo asco.Em
seuponto departida- a desencantadareflexãode liberaisfranceses
einglesesno convulsivoperíodopós-napoleônicoquevaidarestaura-
çãoà Revoluçãode 1848- fica bem difícil separaro que há de
decepçãopelocaossocialquetemtrazidoo "progresso"do medodas
perigosasmassasqueconformamasclassestrabalhadoras.46
Até 1835começaa gerar-seumaconcepçãonovado papel
e do lugar dasmultidõesna sociedade,concepçãoque guardasem
dúvida,emsuasdobras,rastrosevidentesdo "medodasturbas"e do
desprezoqueasminoriasaristocráticassentempelo "sórdidopovo".
Os efeitosda industrializaçãocapitalistasobreo quadrode vida das
classespopularessãovisíveis.E vãomaislongedo queasburguesias
talvezesperassem.É todaatramasocialquesevêafetada,transbordada
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÓES
emseuleitopormovimentosdemassasquepõememperigo"ospilares
da civilização".As mudançasseproduziamdeformaque,"à medida
que as técnicaseram mais racionaise as riquezasmateriaismais
abundantes,asrelaçõessociaiserammaisirracionaise a culturado
povo,maispobre(...). Em meadosdo séculoXIX autopiaprogressista
já sehaviaconvertidoem umaideologia.Era umainterpretaçãodo
mundo emevidentecontradiçãocomo estadorealdasociedade"YE
então,junto aosnovosmodosdecontroledosmovimentospopulares
seporáemmarchaum movimentointelectualquea partirda direita
políticatratadecompreender,dedotardesentidoo queestáaconte-
cendo.A teoriasobreasnovasrelaçõesdasmassascom a sociedade
constituiráum dospivôsfundamentaisda racionalizaçãocom quese
recompõea hegemoniae sereadequao papelde umaburguesiaque,
de revolucionária,passanessemomentoa controlare frearqualquer
revolução.O quenãoimplicadenenhummodoainvocaçãodo velho
fantasmadateoriaconspirativa,pois"ateoriadasociedade-massatem
fontesdiferenteseumapaternidademistacompostadeliberaisdescon-
tentes e conservadoresnostálgicos, além de alguns socialistas
desiludidose uns tantosreacionáriosabertos".48
A DESCOBERTA POLíTICA DA MULTIDÃO
A novavisãosobrea relaçãosociedade/massasencontrano
pensamentode Tocqueville49seuprimeiroesboçode conjunto. Se
antessituavam-sefora, comoturbasqueameaçamcomsuabarbáriea
"sociedade",asmassasseencontramagoradentro:dissolvendoo tecido
das relaçõesde poder, erodindo a cultura, desintegrandoa velha
ordem.Estãosetransformandodehordagregáriae informeemmul-
tidão urbana,transformaçãoque,emborasejapercebidaem ligação
com os processosde industrialização,é atribuídaantesde tudo ao
igualitarismosocial,no qualsevêogermedodespotismodasmaiorias.
Trocando em miúdos:Tocquevilleolha a emergênciadas
massassemnostalgia,inclusiveconseguepercebercomnitidezquenela
44
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
resideumachavedo início dademocraciamoderna.lv1asademocracia
de massasportaemsi mesmao princípiode suaprópriadestruição.
Se democráticaé uma sociedadena qual desaparecemas antigas
distinçõesde castas,categoriase classes,e na qualqualquerofício ou
dignidadeé acessívela todos, uma sociedadeassimnão pode não
relegara liberdadedos cidadãose a independênciaindividuala um
planosecundário:o primeiroocuparásempreavontadedasmaiorias.
E dessemodoo quevematerverdadeiraimportâncianãoéaqueleem
quehá razãoevirtude,masaquelequeéqueridopelamaioria,istoé:
o queseimpõeunicamentepelaquantidadedepessoas.Dessamaneira
o queconstituio princípiomodernodo poderlegítimoacabarálegi-
timando a maior das tiranias.A quem poderáapelar,pergunta-se
Tocqueville,umhomemou umgrupoquesofreinjustiça?,eresponde:
"àopiniãopública?Não, poisestaconfiguraavontadedamaioria.Ao
corpolegislativo?Não, esterepresentaamaioriaeaobedececegamen-
te.Ao poderexecutivo?Não, o executivoé nomeadopelamaioriae
a servecomo instrumentopassivo".50
O quefazmaisopressivoessepoderadquiridopelamaioria,
équesobreelaTocquevilleprojetaaimagemdeumamassaignorante,
semmoderação,quesacrificapermanentementealiberdadeemaltares
daigualdadeesubordinaqualquercoisaaobem-estar.Estamosdiante
de uma sociedadecompostapor "uma enormemassade pessoas
semelhanteseiguais,queincansavelmentegiramsobresimesmascom
o objetivode poder dar-seos pequenosprazeresvulgarescom que
satisfazemsuasalmas"Y É a sociedadedemocráticaquevê gerar-se
rapidamenteenaformamaisclaranosEstadosUnidos:essanaçãona
qualjá nãoháprofissãoemquenãosetrabalhepor dinheiro,naqual
"atéo presidentetrabalhapor umsalário(...) quedáatodosum arde
família".E na qualaAdministraçãotendea invadi-Iotodo, todasas
atividadesdavida,uniformizandoasmaneirasdevivereconcentrando
a gestãono vértice.
A justificaçãodo pessimismosocialfaz dessediscursouma
misturaquaseinextricáveldeumacertaanálisedasnovascontradições
45
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
coma expressãodo desencantodo aristocrata.Na linhaabertapor La
Boetieem Da servidãovoluntdria, na qual já no séculoXVI o pessi-
mismoculturalemtermosdefracassomoraltraçavaumaradiografia
desoladoradacumplicidadedo povocom a tirania,Tocquevillepro-
põequeaconvergênciadamecanizaçãointroduzidapelaindústriacom
a"enfermidadedemocrática"conduzeminevitavelmenteà auto-degra-
daçãodasociedade.Um estudiosoatualdo temapensaqueo queesse
esquecidoautordo séculoXIX estavafazendoerapropor profetica-
mente "a deterioraçãoda qualidadeda açãoe da experiêncianas
sociedadesigualitárias",com o que Tocquevilleacabariasendoum
"crítico utópicodo quehoje sechamao problemapós-revolucioná-
rio".52Sem ir tão longe, o que de fato é necessárioreconhecerna
reflexãodeTocquevilleé queelepropôsumaperguntafundamental
sobreo sentidoda modernidade:pode-sesepararo movimentopela
igualdadesocialepolíticadoprocessodehomogeneizaçãoeuniformi-
zaçãocultural?Mas tal e como é propostaem seu momentopor
Tocquevilleessacontradiçãoacabareveladoraantesdetudo do medo
produzidopelasmudanças.Analisandoemboaparteosmesmosfatos
masolhando-ossemessemedo,Engels,emAs condiçõesda classetraba-
lhadora na Inglaterra, vê na massificaçãodas condiçõesde vida o
processode homogeneizaçãoda exploraçãoa partir da qual se faz
possíveluma consciênciacoletivada injustiçae da capacidadedas
massastrabalhadorasparagerarumasociedadediferente.Daí que,por
maislúcidoquesequeira,o conceitodemassaqueiniciasuatrajetória
no pensamentodeTocquevilleracionalizatodaviao primeirogrande
desencantodeumaburguesiaquevêemperigoumaordemsocialpor
elaeparaelaorganizada.O qualnãoimplicadesconhecerquecomo
nomedemassasedesignaaípelaprimeiravezummovimentoqueafeta
aestruturaprofundadasociedade,aomesmotempoemqueéo nome
comquesemistificaaexistênciaconflitivadaclassequeameaçaaquela
ordem.
Menosbeligerantementepolítico,edeempenhomaisfilosó-
fico, o pensamentode StuartMill, já situadona segundametadedo
46
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
séculoXIX, continuae complementao de Tocqueville,elaborando
umaconcepçãodo processosocial,na quala idéiademassaseafasta
de umaimagemnegativado povoparapassara designara tendência
da sociedadea converter-senumavastae dispersaagregaçãode indi-
víduos isolados.De um lado a igualdadecivil pareceriapossibilitar
umasociedademaisorgânica,masaoromper-seo tecidodasrelações
hierarquizadaso queseproduzéumadesagregaçãosócompensadapela
uniformização. Massaé então"a mediocridadecoletiva"quedomina
culturalepoliticamente,"poisosgovernosseconvertememórgãodas
tendênciase dos instintosdasmassas".53
A PSICOLOGIA DAS MUL TIDÓES
Depois da Comuna de Paris, o estudoacercada relação
massa/sociedadetomaumrumodescaradamenteconservador.Mas no
último quarteldo séculoXIX as massas"se confundem"com um
proletariadocujapresençaobscenadeslustrae entravao mundobur-
guês.E entãoo pensamentoconservador,maisquecompreender,o
quebuscaráa seguirserácontrolar.Em 1895,o mesmoanoem que
os irmãos Lumiere põem em funcionamentoa máquinaque dará
origemà primeiraartedemassas,o cinema,GustaveLe Bon publica
Ia psychologiedesfoules,54oprimeirointento"científico"parapensar
a irracionalidadedasmassas.Podemosmedira importânciadesselivro
naressonânciaqueencontrarámesmoemFreud,queemPsicologiadas
massase andlisedo euo situacomoo pontodepartidainevitávelpara
suaprópria reflexão.
L~Bonpartedeumaconstatação:acivilizaçãoindustrialnão
é possívelsemaformaçãodemultidões,eo mododeexistênciadestas
éa turbulência:um mododecomportamentono qualafloraà super-
fície fazendo-sevisívela "almacoletiva"da massa.
Mas queé umamassa?É umfenômenopsicológicopelo qual
os indivíduos,por maisdiferenteque sejaseumodo de vida, suas
ocupaçõesouseucaráter,"estãodotadosdeumaalmacoletivaquelhes
47
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
fazcomportar-sedemaneiracompletamentedistintadecomoo faria
cadaindivíduo isoladamente.Alma cuja formaçãoé possívelsó no
descenso,na regressãoatéum estadoprimitivo,no qual as inibições
moraisdesapareceme a afetividadee o instintopassama dominar,
pondo a "massapsicológica"à mercêda sugestãoe do contágio.
Primitivas,infantis,impulsivas,crédulas,irritáveis... asmassasseagi-o
tam, violam leis,desconhecema autoridadee semeiama desordem
ondequerqueapareçam.Sãoumaenergiamassemcontrole:e nãoé
esseprecisamenteo ofício daciência?O psicólogosepropõeentãoo
estudodo modo comoseproduza sugestionabilidadeda massapara
assimpoderoperarsobreela.A chaveseencontrariana constituição
dascrençasqueemsuaconfiguração"religiosa"permitemdetectaros
doisdispositivosdeseufuncionamento:o mitoqueasuneeo líderque
celebraos mitos.
Le Bon nãoéumnostálgico,já nãoguardanenhumanostal-
gia por outrostemposmelhores.Ao contrário,o que o assustanas
massasé a espéciederetornoaopassadoobscurantistaqueelasrepre-
sentam:o retornodassuperstições.E essatendênciaéidentificadapor
Le Bonpuraesimplesmentecomo retrocessopolítico.A operaçãotem
sua lógica. Reduzidosa "movimentosde massas",os movimentos
políticosdasclassespopularessãoidentificadoscomcomportamentos
irracionaisecaracterizadoscomorecaídasemestágios"primitivos".E
a essalógica se devemafirmações"científicas"do calibredesta:o
movimentosocialistaé essencialmenteinimigo da civilização,que
pode se ler no seguintelivro de Le Bon, intitulado A psicologiado
socialismo.
DizíamosqueFreudapóiaseuestudodasmassassobreaobra
de Le Bon, maselemesmoseencarregade marcarclaramentesuas
distâncias.O quelhe interessouprofundamenteno estudodeLe Bon
é a importânciaqueaí adquireo inconsciente.Mas, "paraLe Bon, o
inconscientecontémantesde tudo os maisprofundoscaracteresda
alma e da raça,o qual não é propriamenteobjeto da psicanálise.
48
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
Reconhecemosdesdejá que o nódulo do eu, ao qual pertence'a
herançaarcaica'da almahumana,é inconsciente,maspostulamos
alémdissoa existênciado 'reprimidoinconscientemente'surgidode
umapartedetalherança.Esteconceito'do reprimido'faltana teoria
deLe Bon".55As duasdiferençasassinaladassãofundamentais.Rechaço
à confusãodo inconscienteestudadopelapsicanálisecomessamemó-
ria biológica da raça que de Le Bon nos conduz diretamenteà
racionalizaçãopsicológicado nazismoou ao substancialismodos ar-
quétiposjunguianos.O inconscienteestáconformadobasicamente
pelo reprimido,queé o que,ao faltarna teoriadeLe Bon, induz ao
segundodesacordoimportante:oqueacontecenamassatalveznãoseja
tãoradicalmentediferentedoquesepassacomo indivíduo.Poiso que
explodena massaestáno indivíduo,porémreprimido.O queequivale
a dizerquea massanão estásubstancialmentefeitade outramatéria
pior que a dos indivíduos.Mas com essaconcepçãoFreud estava
arrebentando,nadamaisnadamenos,o substratodo pensamentoque
racionalizao individualismoburguês.E o queapartirdaíficaránítido
équea teoriaconservadorasobreasociedade-massanãoémaisquea
outrafacedeumasóemesmateoria,aquefazdo indivíduoo sujeito
e motor da história.
O terceirodesacordoestárelacionadocoma obsessãode Le
Bonpelafaltadelíderesnassociedadesmodernas,frenteaoqualFreud
propõenãosóaestreitezaesuperficialidadedaconcepçãoqueLe Bon
temdafiguraedafunçãodo líder,comotambémareduçãodo social
quetodaessateoriasustenta."LeBonreduztodasassingularidadesdos
fenômenossociaisa dois fatores:a sugestãorecíprocadosindivíduos
eo prestígiodo caudilho".56 Com o quesefazmaisnítidaa lógicada
operaçãoquedescrevíamosmaisatrás.A teoriadasociedadedemassas,
tal e comoemergedasproposiçõesdeLe Bon, temnabaseanegação
mesmadosocialcomoespaçodedominaçãoedeconflitos,espaçoquenos
abre ao único modo de recuperaçãoda história sem pessimismos
metafísicosnemnostalgias.E quepermitecompreendero comporta-
49
",'J'
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
mentodasmassasnãosóemsuadimensãopsicológica,mas- escân-
dalo!- emseufazercultural.PoissegundoFreudnasmassashá não
só instintos,masprodução:"Tambéma almacoletivaé capazde dar
vida a criaçõesespirituaisde umaordemgenialcomoo provam,em
primeirolugar,o idioma,edepoisoscantospopulares,o folcloreetc.
Serianecessário,alémdisso,precisarquantodevemo pensadore o
poetaaosestímulosda massa,e se sãorealmentealgo maisque os
aperfeiçoadoresde um laboranímicono qualos demaistêmcolabo-
rado simultaneamente".57
Wilhelm Reich continuaráessadesmistificaçãoda teoria
sobreasmassas.Em umaobraescritanão a posteriori,masempleno
1934,58o autor desmontaa operaçãode "intoxicaçãopsíquicadas
massas"que,iniciadaemLe Bonesuaidentificaçãoda"almacoletiva"
com o inconscienteda raça,encontrarásuaplenitude"na fidelidade
aosangueeà terra"daideologianacional-socialista.Reichtransforma
as perguntaspsicológicasde Freud - que é uma massa?em que
consistea modificaçãopsíquicaque impõe ao indivíduo? - nas
perguntassociológicasque, segundoele afirma, fez pessoalmentea
Freudem1937:"Como épossívelqueumHitler ouumDjungashsvili
[Stalin]possamreinarcomoamossobreoitocentosmilhõesde indi-
víduos?Como é possívelisso?".59Perguntasquenãosãorespondidas
nem a partir de umapsicologiado líder, do caudilhoe seucarisma,
nem a partirdasmaquinaçõesdoscapitalistasalemães.Porque "não
existenenhumprocessosócio-econômicodealgumaimportânciahis-
tóricaquenãoestejaancoradonaestruturapsíquicadasmassase que
nãosetenhamanifestadoatravésdeum comportamentodessasmas-
sas".60E entãoo verdadeiroproblemaqueumapsicologiadasmassas
deveenfrentaré "o problemadasubmissãodo homemà autoridade",
de suadegradação,já que"ondequerquegruposhumanose frações
dasclassesoprimidaslutem 'pelopãoe pelaliberdade',o grupo das
massassemantémà margeme reza,ou simplesmenteluta pelaliber-
dadeno bandode seusopressores".61
50
li
J!
li
,
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
Com a viradado século,aparecepublicadoum livro que,
retomandoasquestõesdeLe Bon, daráa elasumainflexãodiferente,
inaugurandoa "psicologiasocial"com que o funcionalismonorte-
americano dos anos 30-40 iria temperara primeira teoria da
comunicação.Trata-sedeL 'Opinion etIa Foule,62noqualaquestãodas
crençasé objetode um deslocamentofundamental:em lugarde ter
como espaçode compreensãode seuestatutosocialo religioso,as
crençasserecolocamno espaçoda comunicação,desuacirculaçãona
imprensa.A massaé convertidaempúblico e ascrenças,em opinião.
O novo objetodeestudoserápoiso públicocomoefeitopsicológico
da difusãode opinião, isto é: aquelacoletividade"cujaadesãoé só
mental".É a únicapossívelem umasociedadereduzidaa massa,a
conglomeradodeindivíduosisoladosedispersos.Mas comoseproduz
essaadesão?A respostadeTarderevelasuasdívidascomLe Bon: por
sugestão.Só queagoraessasugestãoé "a distância".No pensamento
de Tarde faz-seespecialmenteclaraa inadequaçãoentreo novo do
problemaque sebuscapensare o "velho"dascategoriasem que é
formulado. E isso apesarda renovaçãodo léxico. Sem dúvida, o
relacionamentopostoentremassaepúbliconosinteressaenormemen-
te,já que,maisalémdaquiloqueesseautortematiza,apontaatépara
a novasituaçãoda massana cultura:a progressivatransformaçãodo
ativo - ruidosoe agitado- públicopopulardasfeirase dosteatros
nopassivopúblicodeumaculturaconvertidaemespetáculopara"uma
massasilenciosae assustada".63
Formuladaem termosdas idealidadesdeMax Weber, é
desenvolvidapor FerdinandTõnies uma reflexãoque combinaele-
mentosdasociologiadeTocquevillecomoutrosdapsicologiaproposta
porLe Bon.64ParaTõniesamudançaquesignificaapresençamoderna
dasmassasdeveserpensadaa partirda oposiçãode dois "tipos" de
coletividade:a comunidadee a sociedade(associação).A comunidade
sedefinepelaunidadedopensamentoedaemoção,pelapredominân-
cia dos laços estreitose concretose das relaçõesde solidariedade,
51
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
lealdadee identidadecoletiva.A "sociedade",pelo contrário, está
caracterizadapelaseparaçãoentremeiosefins,compredominânciada
razãomanipulatóriaeaausênciaderelaçõesidentificatóriasdo grupo,
com a conseguinteprevalênciado individualismoe a meraagregação
passageira.A faltadelaçosqueverdadeiramenteaunemserácompen-
sadapelacompetênciaepelocontrole.A propostadeTünies,embora
formuladaemtermosquepretendemdescreversemvalorar,nãopôde
escaparàcargadepessimismoquesuas"idealizações"arrastam,eapar-
tir do qualserálido pelamaioriadosautoresqueseocupamdo tema.
Metafísica do homem-massa
Os acontecimentosquese"precipitam"noprimeiroterçodo
séculoXX vãoconduziro pensamentosobreasociedadeaoparoxismo.
PrimeiraGuerraMundial, RevoluçãoSoviética,surgimentoe avanço
do fascismo,tudo vemcorroborarna direitaliberalou conservadora
suasensaçãodedesastredefinitivoe exacerbaro pessimismocultural.
Dois livrosrecolhemesintetizamessaexacerbação,convertendo-seem
"clássicos"empoucosanosdepublicados:A rebeliãodasmassas,deJosé
Ortegay Gasset,e A decadênciado Ocidente,de OswaldSpengler.65
Propostaumasociologia(Tocqueville)eumapsicologia(Le
Bon, Tarde), já não faltavasenãoo saltona metafísica.É o queleva
a caboOrtega,com suateoriado homem-massa,na qual, como ele
mesmoexplicaemumalinguagemtãopoucometafísicacomoa sua,
trata-sedeir "d<ipele"dessehomemasuas"entranhas".O quesignifica
caminhardo fatosocialdasaglomerações--"amultidãoimediatamen-
te se fez visível.Antes, se existia,passavadesapercebida,ocupavao
fundo do cenáriosocial;agoraseadiantouàsbaterias,é elao perso-
nagemprincipal"66- atéa dissecaçãode suaalma:mediocridadee
especialização.O exterior,ou seja,a história,estáformadopelocres-
cimento demográfico e pela técnica,que têm seu lado bom "no
crescimentodavida"- avidamédiasemovea umaalturasuperior,
pois tem-seampliadoo repertóriode possibilidadesda maioria- e
52
li
1.1·.'i
il
I,
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t'
~
.,.,
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
seulado mauna aglomeração- "essainvasãopelasmassasde todos
os lugares,inclusivedos reservadosàs minoriascriativas"- e na
especializaçãoque desalojade cadahomem de ciênciaa "cultura
integral".O interior nos é descritoatravésde uma longae sinuosa
viagemaocoraçãodo homem-meio,do homem-massa,no qualsóhá
vulgaridadeeconformismo.É comoseosdetritosdohomemocidental
tivessemtomadoseucoração.No final daviagemOrteganos espera
com umafórmulaqueo resumeinteiro:"A rebeliãodasmassasé a
mesmacoisaqueRathenauchamavaa invasãoverticaldosbárbaroi'.67
Ou seja,o retornodaqueladefinitivaIdadeMédia quenãoé a histó-
rica,poisnãoestáno passado,masno futuro-presenteeseusbárbaros
invadindo-nosagoraverticalmente,querdizer, debaixopara cima.
Creioqueéo momentoderecordaraimagemcomqueabria
epretendiasintetizaro sentidodo movimentoquesubjazaolongode
todoo desenvolvimentodestateoria:do medoaodesencantoconser-
vandoo asco.E por maisqueOrteganosrepitaqueo homem-massa
não pertencea uma classe,mashabitatodas,sua referênciasócio-
históricaseachanosdebaixo,dadoqueelessão,naatrasadaEspanha
do começodo século,osqueconformamamaioria,amassaobscena,
amultidãoquenessesanosjustamenterealizadiaapósdiainsurreições,
levantamentosatravésdosquaissealça- verticalmente!- contraa
espessacapado feudalismopolíticoe econômicoenrijecido,e invade
os sagradose aristocráticosespaçosda cultura.Frenteà insurreição
popular,quenosanos30alcança,tantonopolíticocomonocultural,68
o momentomaisaltoefecundodaEspanhamoderna,Ortegaescreve
um livro comprólogoparafranceses,epílogoparainglesese cheiode
piscadelasdeolhosparaa filosofiaalemã,masdo qualestáprofunda-
menteausenteaprópriareferênciahistóricaespanhola.Há umponto,
semdúvida, no qual Ortegatoca a história,e sãoas referênciasà
cumplicidadedasmassascom o Estadofascistae suanecessidadede
segurança.Mas aindaaí acríticaseresolveemumaanálisemaismoral
que política: o Estadoaparecesemraíz no econômicoe o conflito
deslizaparao cultural.Vejamo-Iomaisde perto.
53
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
A relaçãomassa/culturaé tematizadapor Ortega de um
modo especialem A desumanizaçãoda arte,masos dois traços,que
paraeledefinememprofundidadeacultura,formampartesubstancial
da argumentaçãoquesedesdobraem A rebeliãodasmassas.Um: a
"culturaintegral"definidapor oposiçãoà ciênciae à técnica,reafir-
mandoaquelehumanismoquedelimitaa culturapor suadiferença
com a civilização. Propõe-se uma teoria para compreender a
modernidade,maso espaçodo quesepensacomoculturaapresenta-
seseparadodo trabalhocientíficoe técnico,e aferradoa umamistura
do clássicocultivodo espiritualcomelementosda éticaburguesado
esforçoe do autocontrole.Dois: a culturaé antesde tudo normas.
Quantomaisprecisa,quantomaisdefinidaanorma,maioréacultura.
E com esseconceitose"enfoca"a artequesefaznessetempo!
Qual éentãoparaOrtegao tipo derelaçãoqueamassatem
com a cultura?Paradizê-Iosemrodeios:nãosó a massaé incapazde
cultura- issovemsendodito dopovoháséculos- senãoqueo que
salvaa artemoderna,amonstruosaartequefazemDebussy,Cézanne
ou Mallarmé, é que serveparapôr a descobertoessaincapacidade
radicaldasmassasagora,quandoelaspretendemesecrêemcapazesde
tudo, atéda cultura.O melhordessaarteé quedesmascaracultural-
menteasmassas:frentea elanãopodemfingir quegozam,tantolhes
aborreceeirrita.Culturacriativa,anovaarteéavingançadaminoria
que,em meioda igualitarismosociale da massificaçãocultural,nos
tornapatenteque aindahá "classes':E nessadistinçãoque separaé
onde residepataOrtegaa possibilidademesmada sobrevivênciada
cultura.
A artemodernaresultasim essencialmenteimpopularpor-
queseerguecontraaspretensões- osdireitos- comquesecrêem
as massas,produzindo sua incomprensãoou repugnância,incom-
preensãoa queo artistarespondeexacerbandosuahostilidadee sua
distância.Com o quearelaçãoentrearteesociedadeserompe.E des-
integradaa artenãopodenãodes-humanizar-se:a figuradesbota,os
54
I,
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,~
~:
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
gênerosseconfundem,a harmoniaseperde.Mas tambémo quese
ganhaémuito,pensaOrtega,porquenestaprovadefogoqueatravessa
a artesepurificade todo o magmadesentimentalismoe melodrama
queaindaarrastava.Debussydesumanizaamúsicamas"nospossibilita
escutarmúsicasem desfalecimentonem lágrimas".No fundo, ao
separar-sedavida,o quesepassacomaarteéqueseencontraconsigo
mesma:apoesiasefazpurametáforaeapinturapuraformaecor.Ante
a ameaçaquevemda barbárievertical,antea ameaçaqueatormenta
por dentro,a culturaredescobresuasessências.E o paradoxotocará
fundo então.Ao defendera novaarte,Ortegachegaa seuponto de
máximoenfrentamentocomo fascismo."Hitler, Goebbelseosporta-
vozesda cultura'nazificada'atribuemao 'homem-nazi'o reflexode-
fensivotão claramentediagnosticadopor Ortega".69 Porqueparaos
nazisa artemodernaé degeneração,à qual só sepodefazerfrente
resgatandoasessênciasdaverdadeiraartequepermanecena tradição
popular.O modernonãoseriaarteporquerenegasuaorigemétnica
e suarelaçãocomo nacional.SeucosmopolitismoéparaGoebbelso
maisclarosinalde suadecomposição.
Mas o paradoxodeveser lido. Tanto o aristocratismode
Ortega,paraquema verdadeúltimada desumanizadaartemoderna
resideem humilharaspretensõesdasmassase demonstrar-Ihessua
insuperávelvulgaridade,como o nauseabundopopulismonazi com
sua defesade uma artepara o "autêntico"povo-raça,mascarame
mistificamos processoshistóricosde transformaçãoda culturae os
conflitos e contradiçõesque essatransformaçãoarticula.O mérito
indubitávelde Ortegaestáem nos ter feito compreendero graudeopacidadeeambigüidadepolíticacomqueserevesteemnossoséculo
aquestãocultural,eainversãodosentidodopopularquealiseproduz.
Na mesmaépocaque o livro de Ortega,sai publicadoA
decadênciadoOcidente.Nele,Spenglerconduzameditaçãometafísica
sobrea degradaçãoculturaldassociedadesocidentaisatéconvertê-Ia
emfilosofiada história.A filosofiasegundoa qual a vidadascultu-
55
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
ras- quesão"o interiordaestruturaorgânicadahistória"- é uma
vidavegetativa:asculturasnascem,sedesenvolvememorrem.E assim,
ademocraciademassasmarcariao pontodeinflexãofataldo ciclono
Ocidente:o iníciodesuamorte.PoisaculturaéalmadaHistória (com
maiúscula),essa"animidade"queaorientapordentroeaempurraem
formade destino,enquantoascivilizaçõessãoseu"exteriorartificial
esucessivo".E quandoaculturasedegradaa civilizaçãotodasedesa-
gregae perdeseusentido,ficandoreduzidaa mera"exploraçãodas
formasinorgânicase mortas".70
As duasmanifestaçõesmaisevidentesda morteda cultura
ocidentalsão,segundoSpengler,ademocraciaeatécnica.A democra-
ciaporqueemsuaformamodernaacabacom averdadeiraliberdade.
Aí estáo jornal, com a uniformizaçãoque impõe,acabandocom a
riquezaevariedadedeidéiasquefaziapossívelo livro.Como aretórica
na Antigüidade,o jornal fazcomque"cadaqualpensesó o quelhe
fazempensar".O jornal pode assimserao mesmotempo o maior
expoentedacivilizaçãomodernaea expressãomaisacabadadamorte
da cultura.A outramanifestaçãoé a técnica,enquantoela realizaa
dissoluçãoda ciênciae sua fragmentação,atomizaçãoem ciências.
Perdida a unidadedo saber,o que nesseprocessose liqüida é sua
capacidadede orientar a história, e o que restanão é mais que
submissãoà quantidade,aodinheiroe àpolitica.E dessaforma,uma
concepçãoda históriaincapazde dar contadasnovascontradições
mata-segritandoqueé a históriaquechegaao fim.
É certoqueo pensamentodeOrteganãocaino organicismo
de Spenglernememseupessimismosuicida,masaopensamentode
ambosque,fazendoo jogodapseudofatalidade,acabapor encobriras
transformaçõesquevêmdo real-possível,pode-seaplicarestaafirma-
ção de Adorno: "Paraos pensadoresda direitaeramuito mais fácil
penetrarcom o olhar as ideologias,pela simplesrazãode que não
tinhamnenhuminteressenaverdadenelascontidade formafalsa",71
56
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
Antiteoria: a mediação-massa
como cultura
De T ocquevilleaOrtegaosgrandesteóricosdasociedadede
massapertencemaovelhocontinente.Emboranãodevamosesquecer
que o textoinauguralfoi A democraciana Américae que foi nessa
Américado Norte ondesefizeramnítidosostraçosdanovasociedade.
Com o pós-guerra,anos40, o eixodaeconomiasedeslocae com ele
sedeslocatambém,atéinverterseusentido,a reflexão.Mais queum
deslocamentotrata-sede umarevoluçãocopernicana,pois enquanto
paraospensadoresdavelhaEuropaasociedadedemassasrepresenta
a degradação,a lentamorte,a negaçãodequantoparaelessignificaa
Cultura, paraos teóricosnorte-americanosdosanos40-50a cultura
demassasrepresentaaafirmaçãoeaapostanasociedadedademocracia
completa.A "síndromeda liderançamundial"queos norte-america-
nosadquiriramporessesanostemsuabase,segundoHerbertSchiller,
"na fusão da força econômicae do controleda informação"e ao
mesmotempo"na identificaçãoda presençanorte-americanacom a
liberdade:liberdadede comércio,liberdadede palavra,liberdadede
empresa".72Quando teriamexistidono mundo maisliberdades?A
profeciade Tocqueville e de todos os apocalípticosdesmoronava
diante da fusãode igualdadee liberdadeapresentadapelo mundo
norte-americano.Foi necessáriatoda a força econômicado novo
impérioe todo o otimismodo paísquehaviaderrotadoo fascismoe
todaa fé na democraciadessepovo,paraquefossepossívelo inves-
timento - de capitale de sentido- que permitiaaos teóricos
norte-americanosassumira culturaproduzidapelosmeiosmassivos,
ou seja,a culturade massa,comoa culturadessepovo.
O primeiro a esboçaras chavesdo novo pensamentofoi
Daniel Bell, em um livro cujo merotítulo contémjá o sentidoda
inversão:Ofim da ideologia.Porquea novasociedadesóépensávela
partirda compreensãoda novarevolução,a da sociedadedeconsumo,
queliqüidaavelharevoluçãooperadanoâmbitodaprodução.Daí que
57
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
nem os nostálgicosda velhaordem,paraos quaisa democraciade
massaséo fimdeseusprivilégios,nemosrevolucionáriosaindafixados
na óticada produçãoe da lutadeclassesentendemverdadeiramente
oqueestásepassando.Poisoqueestámudandonãosesituano âmbito
dapolítica,masno dacultura,enãoentendidaaristocraticamente,mas
como "os códigosde condutade um grupoou um povo".É todo o
processodesocializaçãoo queestásetransformandopelaraizaotrocar
o lugar de onde se mudam os estilosde vida. "Hoje essafunção
mediadoraé realizadapelosmeiosdecomunicaçãodemassa".?3Nem
a família, nem a escola- velhosredutosda ideologia- sãojá o
espaçochaveda socialização,"os mentoresda novacondutasãoos
filmes,a televisão,a publicidade",que começamtransformandoos
modos de vestir e terminamprovocandouma "metamorfosedos
aspectosmoraismaisprofundos".?4O que implicaque a verdadeira
crítica social tem mudado tambémde "lugar": já não é a crítica
política,masa críticaculturaLAquela que é capazde propor uma
análiseque vá "mais além"das classessociais,pois os verdadeiros
problemassesituamagoranosdesníveisculturaiscomoindicadoresda
organizaçãoe circulaçãoda nova riqueza,isto é, da variedadedas
experiênciasculturais.E oscríticosdasociedadedemassa,tantoosde
direitacomoosdeesquerda,estão"forado jogo" quandocontinuam
opondoosníveisculturaisa partirdo velhoesquemaaristocráticoou
populistaquebuscaa autenticidadenaculturasuperiorou na cultura
populardo passado.Ambasasposiçõestêmsidosuperadaspelanova
realidadeculturaldamassaqueédeumasóvez"o unoeo múltiplo".?5
EdwardShilsirámaislonge.Com o adventodasociedadede
massanãotemosunicamente"aincorporaçãodamaioriadapopulação
àsociedade",o quedealgumamaneirareconhecematéseusinimigos,
mastambémumarevitalizaçãodo indivíduo: "A sociedadede massa
suscitoueintensificouaindividualidade,istoé,adisponibilidadepara
asexperiências,o florescimentodesensaçõeseemoções,aaberturaaté
os outros(...), liberouascapacidadesmoraise intelectuaisdo indivÍ-
duo"76.Dessemodomassadevedeixardesignificaradianteanonimato,
58
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
passividadee conformismo.A culturademassaé a primeiraa possi-
bilitaracomunicaçãoentreosdiferentesestratosdasociedade.E dado
queé impossívelumasociedadequecheguea umacompletaunidade
cultural,entãoo importanteé quehajacirculação.E quandoexistiu
maiorcirculaçãoculturalquenasociedadedemassa?Enquantoo livro
mantevee até reforçoudurantemuito tempoa segregaçãocultural
entreasclasses,foi o jornal quecomeçoua possibilitaro fluxo, e o
cinemae o rádioqueintensificaramo encontro.
Paraosrecalcitrantes,paraaquelesqueaindaseempenham
embuscarrelaçõesentreasociedadedemassaeo totalitarismo,D. M.
White temumaperguntademolidora:"AcasoeraaAlemanhade 1932
uma'sociedadedemassa'quandopermitiupelovotoqueo partidode
Hitler subisseaopoder?(...) Não eraaAlemanhao paísquepossuía
o maiornúmerodeorquestrassinfônicaspercapita,publicavaamaior
quantidadedelivrosedesenvolviaumaindústriacinematográficacom
produçõesde primeiraqualidade?"??
Desbastadoo terrenosetornavapossívelpassarà elaboração
deumateoriasistemática.É o quelevaacaboDavidRiesmanemuma
obracujotítulo temo sabordeumclássico,A multidãosolitdria,ecuja
estruturaé a consagraçãoda psicologiasocial como a ciênciadas
ciências,já queseriaaúnicacapazdeintegrarosdadosdademografia
com os da teoriado conhecimento,da antropologiacoma adminis-
traçãodas empresase da economiacom a moral.Trata-sede uma
caracterizaçãodanovasociedade,queemerge"dasegundarevolução,
da passagemde umaerade produçãoparaumaerade consumo".78
Passagemque é fato pensávelmediantea construçãodos tiposde
sociedade,ou melhor:dostiposde relaçãoentrecardteresociedadeque
permitemdarcontadomovimentodetransformaçõesqueculminana
sociedadede massas.Baseadona articulação primordial entre
demografiae psicologia,Riesmanpropõetrêstiposde sociedade:a
"caracterizada"por serumasociedadedependenteda direçãotradici-
onal, a sociedadedependenteda direçãointerna e a sociedade
dependentedadireçãopelosoutros.A cadaumdessestiposcorresponde
59
)
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
umamodalidadedefamília,deescola,degruposdepares,um modo
denarrar,detrabalhareorganizaro comércio,devivero sexoedirigir
apolítica.DessemodoRiesmanbuscapensaraconstituiçãodacultura
demassacomoprincípiodeinteligibilidadeglobaldosocial.Princípio
quesedesdobraemtrêsdimensõesbásicas.Primeira:a classe-eixoda
sociedadededireçãoparaosoutroséaclassemédia.Segunda:cadadia
maisasrelaçõescomo mundoexterioreconsigomesmoseproduzem
no fluxo da comunicaçãomassiva.Terceira: a análisedo "cardter
dirigidopor outroséaomesmotempoumaanálisedo norte-americano
e do homemcontemporâneo".79Riesmanprojetaassimsobrea dinâ-
micadamodernidadeumaduplafigura:adohomemmédiodissolvendo
asclassessociaisem conflitoe a dos meiosdecomunicaçãoelevadosa
causalidadeeficientedahistória-cultura.Dupla figuraquesintetizao
pensamentodosautoresnorte-americanossobreasociedadedemassas
como aquela,quenão é o fim maso princípio de umanovacultura
queos meiosmassivostornampossível.E issonãosó no sentidoda
circulação,masemoutromaisprofundo:"A sociedadeà qualfaltavam
instituiçõesnacionaisbemdefinidaseumaclassedirigenteconsciente
desê-Ioseamalgamouatravésdosmeiosdecomunicaçãodemassas".80
E um "crítico" como B. Rosemberg,paraquema culturade massa
arrastaa tendênciaa confundirculturacom diversãoe a misturaro
genuínoe o bastardoatétorná-Iosindistinguíveis,proclamacontudo
a mesmacrençana todo-poderosaeficáciada tecnologia,e especial-
menteda mídia:a explicaçãodo surgimentoda novaculturanão se
achanemno capitalismo,nemno nivelamentotrazidopelademocra-
cia,masnumapeculiarconfiguraçãodo caráternorte-americano:"se
pudéssemosarriscar uma formulação positiva, diríamos que a
tecnologiamodernaé a causanecessáriae suficienteda cultura de
massa".81
Daí atéa fórmulamcluhanianaéum passo.Mas certamente
poder-se-iaafirmarqueMcLuhan não fez maisqueexpressarnuma
linguagemexplicitamenteantiteóricaaintuição-obsessãoqueatravessa
de pontaa pontaa reflexãonorte-americanadosanos40-50sobrea
60
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
relaçãocultura/sociedade.Existeumaprofundahomologiaentreos
conceitosbásicose na lógica dos dois livros que condensamessa
reflexão:A multidãosolitdriaeA compreensãodosmeios.A diferençaestá
maisno jargão- "os tiposdecaráter-sociedade"deum e as"idades
tecnológicas"do outro- masadireçãoéamesma:umalongaépoca
"daexplosãoedaangústia"terminaeseiniciaoutranaqual"o efeito
é mais importanteque o significado(...) já que o efeitoabrangea
situaçãototal e nãosó o nível do movimentoda informação".82
Nissochegamos.Uma formidávelcapacidadedeobservação,
umafina sensibilidadeparaasmudançaseumadecisivapercepçãodo
pesoe da forçada sociedadecivil nãopossibilitaram,contudo,quea
afirmaçãodapositividadehistóricadasmassasnasociedadesuperasse
a idealistadissoluçãodo conflito social.ExcetoemW. Mills83e H.
Arendt,84aanáliseculturaléseparadadaanálisedasrelaçõesdepoder.
Isso medianteuma concepçãoda culturaque, emborasuperesem
dúvidao idealismoaristocrático,permaneceamarradaao idealismo
liberalquedesvinculaa culturado trabalhocomoespaçosseparados
da necessidadee do prazer,e conduzindo-aa um culturalismoque
acabareduzindoasociedadeà culturaeaculturaaoconsumo.E desse
modo- outravezo paradoxodacoincidênciaentreadversários- a
teoriaelaboradapor sociólogose psicólogosnorte-americanoscontra
o pessimismoaristocráticodos pensadoresdos séculosXIX e XX
coi~cideco:n ~stee.mum ponto crucial:a incorporaç~odas~assasà \
SOCIedadeslg111ficana,parao bemou parao mal, a dIssoluçao-supe- .
raçãodasclassessociais.Com o quecontinuafazendo-seimpensável
o modode "articulação"específicadosconflitosquetêmseulugarna
cultura e na imbricação da demandacultural na produção de
hegemonia.Resultado:um culturalismoque recobreo idealismode
seuspressupostoscom o materialismotecnologicistadosefeitose da
inflaçãoa-históricade suamediação.
A denominaçãodopopularficaassimatribuídaà culturade
massa,operandocomoum dispositivodemistificaçãohistórica,mas
tambémpropondopelaprimeiravez a possibilidadede pensar em
61
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
positivo o quesepassaculturalmentecom asmassas.E isto constitui
um desafiolançadoaos"críticos"emduasdireções:a necessidadede
incluir no estudodo popularnãosóaquiloqueculturalmenteprodu-
zem as massas,mas tambémo que consomem,aquilo de que se
alimentam;eadepensaro popularnaculturanãocomoalgolimitado
ao queserelacionacom seupassado- e um passadorural -, mas
também e principalmente o popular ligado à modernidade, à
mestiçageme à complexidadedo urbano.
62
CAPíTULO 3
INDÚSTRIA CULTURAL:
CAPITALISMO E LEGITIMAÇÃO
A experiênciaradicalquefoi o nazismoestásemdúvidana
baseda radicalidadecom que pensaa Escolade Frankfurt.Com o
nazismoo capitalismodeixade serunicamenteeconomiae explicita
suatexturapolíticaecultural:suatendênciaà totalização.Daí queos
frankfurtianosnãopossamfazereconomianemsociologiasemfazerao
mesmotempofilosofia.É o quesignificaa críticaeo lugarestratégico
atribuídoà cultura.Por issopodemosafirmarsemmetáforasquena
reflexãode Horkheimer,Adorno e Benjamino debateque viemos
rastreandotoca de perto. Em parteporque os procedimentosde
massificaçãovãoserpelaprimeiravezpensadosnãocomosubstitutivos,
mascomoconstitutivosda conflitividadeestruturaldo social.O que
implica numa mudançaprofundade perspectiva:em lugarde ir da
análiseempíricadamassificaçãoà deseusentidona cultura,Adorno
e Horkheimerpartemda racionalidadedesenvolvidapelosistema-
tal e como pode ser analisadano processode industrialização-
mercantilizaçãodaexistênciasocial- parachegaraoestudodamassa
comoefeitodosprocessosde legitimaçãoe lugarde manifestaçãoda
culturaemquealógicadamercadoriaserealiza.E empartea reflexão
dosfrankfurtianosretiraacríticaculturaldosjornaiseasituano centro
do debatefilosóficode seutempo:no debatedo marxismocom o
positivismonorte-americanoecomo existencialismoeuropeu.A pro-
blemáticaculturalseconvertiapelaprimeiravezparaasesquerdasem
espaçoestratégicoa partir do qualpensarascontradiçõessociais.
Em fins dos anos 60 um pensamentoque prolongapor
herançaoupolêmicaareflexãodosfrankfurtianosvaitomarcomoeixo
a criseentendidacomoemergênciado acontecimento,contracultura,
~
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
implosãodosocial,mortedoespaçopúblicoouimpassenalegitimação
do capitalismo.E maisalémdasideologiasdacrise- dasquaisnão
severálivreninguémqueo aborde- emtornodesseconceitovaise
desenvolverum esforçoimportanteparapensaro sentidodos novos
movimentospolíticos,dos novossujeitos-atoressociais- desdeos
jovenseasmulheresaosecologistas- edosnovosespaçosnosquais,
do bairro ao hospital psiquiátrico, irrompe a cotidianidade, a
heterogeneidadee conflitividadedo cultural.
BENJAMIN VERSUSADORNO
OU O DEBATE DE FUNDO
Com os frankfurtianosa reflexãocrítica latino-americana
estádiretamenteenvolvida.Não sóno debatequepropõeestaescola,
masnum debatecomela.As outrasteoriassobrea culturade massas
nos chegaramcomomerareferênciateórica,associadasa ou confun-
didascom um funcionalismoaoqualserespondia"sumariamente"a
partirdeummarxismomaisafetivoqueefetivo.Os trabalhosdaEscola
de Frankfurt induzirama aberturade um debatepolíticointerno:no
início, porquesuasidéiasnãosedeixavamusarpoliticamentecom a
facilidadeinstrumentalistaà qualdefatoseprestaramoutrostiposde
pensamentodeesquerda,emaistardeporqueparadoxalmentefomos
descobrindotudo o queo pensamentode Frankfurtnos impediade
pensarpornóspróprios,tudoo quedenossarealidadesocialecultural
não cabianememsuasistematizaçãonememsuadialética.Daí que
o quesegueteJ;lhaum inegávelsaborde ajustede contas,sobretudo
como pensamentodeAdorno, queéo quetemtido entrenósmaior
penetraçãoecontinuidade.O encontroposteriorcomostrabalhosde
Walter Benjaminveionãosóaenriquecero debate,masa ajudar-nosa compreendermelhorasrazõesde nossafrustração;do interior da
Escola,masemplenadissidênciacomnãopoucosdeseuspostulados,
Benjamintinhaesboçadoalgumaschavesparapensaro não-pensado:
o popularnaculturanãocomosuanegação,mascomoexperiênciae
produção.
64
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
Do logos·mercantil à
arte como estranhamento
o conceitode indústriaculturalnasceem um texto de
HorkheimereAdorno publicadoem 1947,85e o quecontextualizou
a escrituradessetextoé tantoaAméricado Norte da democraciade
massascomoaAlemanhanazi.Ali sebuscapensaradialéticahistórica
que, partindo da razãoilustrada,desembocana irracionalidadeque
articulatotalitarismopolítico e massificaçãocultural como as duas
facesde umamesmadinâmica.
O conteúdodoconceitonãosedádeumavez- daíoperigo
oferecidopor essasdefiniçõesretiradasde algumafrasesolta- mas
sedesdobraao longode umareflexãoqueenvolvea cadapassomais
âmbitos,ao mesmotempoque a argumentaçãovai-seestreitandoe
seunindo. Parte-sedo sofismaquerepresentaa idéiade "caoscultu-
ral" -" essaperdado centroe conseguintedispersãoe diversificação
dosníveiseexperiênciasculturaisdescobertasedescritaspelosteóricos
dasociedadedemassas- e afirma-sea existênciade umsistemaque
regula,dadoquea produz,a aparentedispersão.A "unidadedesiste-
ma"éenunciadaapartirdeumaanálisedalógicadaindústria,naqual
sedistingueum duplodispositivo:a introduçãonaculturadaprodu-
çãoemsérie"sacrificandoaquilopeloqualalógicadaobrasedistinguia
da do sistemasocial",e a imbricaçãoentreproduçãode coisase
produçãode necessidadesde modo tal que "a força da indústria
culturalresidena unidadecoma necessidadeproduzida";o ponto de
contatoentreum e outro acha-sena "racionalidadeda técnicaqueé
hoje a racionalidadedo domínio mesmo".86
A afirmaçãoda unidadedo sistemaconstituiumadascon-
tribuiçõesmaisválidasdaobradeHorkheimereAdorno,mastambém
dasmaispolêmicas.Por umaparte,aafirmaçãodessaunidadedesvela
afaláciadequalquerculturalismoaonospôr napistada"unidadeem
formaçãoda política" e descobrirmosque as diferençaspodemser
tambémproduzidas.Mas essaafirmaçãoda "unidade"setornateori-
camenteabusivae politicamenteperigosaquandodelase conclui a
65
~ ..
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
totalizaçãodaqualseinferequedo filme maisvulgaraosde Chaplin
ouWelles"todososfilmesdizemo mesmo",poisaquilodequefalam
"nãoémaisqueo triunfodocapitalismoinvertido".87A materialização
da unidadese realizano esquematismo,assimilandotoda a obra ao
esquema,e na atrofiada atividadedo espectador.Assim,a propósito
do jazz,afirma-seque "o arranjador de músicade jazz eliminatoda
a cadênciaquenãoseadequarperfeitamentea seuestilo",semdeixar
clarosetomao jazzcomoexemplo,ou melhor,comoparadigma,da
identificaçãoquedevedemonstrarcadasujeitocomo poderpeloqual
ésubmetido,afirmandoqueestasubmissão"estánabasedassíncopes
do jazz quezombados entravese ao mesmotempoos converteem
normas".88Como provada atrofiada atividadedo espectadorserá
mencionadoo cinema:pois para seguiro argumentodo filme, o
espectadordeveir tãorápidoquenãopodepensar,ecomo,alémdisso,
tudo já estádadonasimagens,"o filme nãodeixaà fantasianemao
pensardos espectadoresdimensãoalgumana qualpossammover-se
por suaprópriaconta,como queadestrasuasvítimasparaidentificá-
10imediatamentecoma realidade".89Uma dimensãofundamentalda
análisevai terminarresultandoassimbloqueadapor um pessimismo
cultural que levaráa debitar a unidade do sistemana conta da
"racionalidadetécnica"como queseacabaconvertendoemqualidade
dosmeioso quenão é senãoum modo de usohistórico.
Talvezaquiloparao queapontaa afirmaçãoda unidadena
indústriaculturalsefaçamaisclarona análiseda segundadimensão:
adegradaçãodaculturaemindústriadediversão.NessepontoAdorno
eHorkheimerconseguemaproximaraanálisedaexperiênciacotidiana
e descobrira relaçãoprofundaqueno capitalismoarticulaos dispo-
sitivos do ócio aos do trabalho,e a imposturaque implica sua
proclamadaseparação.A unidadefalariaentãodo funcionamento
socialqueseconstituiem "a outrafacedo trabalhomecanizado".E
isso tanto no mimetismoque conectao espetáculoorganizadoem
séries- sucessãoautomáticadeoperaçõesreguladas- com a orga-
nizaçãodo trabalhoem cadeia,como na operaçãoideológicade
66
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
realimentação:a diversãotornandosuportáveluma vida inumana,
umaexploraçãointolerável,inoculandodiaadiaésemanaapóssema-
na"acapacidadedecadaumseencaixareseconformar",banalizando
atéo sofrimentonumalenta"mortedo trágico",istoé:dacapacidade
deestremecimentoerebelião.LinhadereflexãoquecontinuaráAdor-
no alguns anos depois em sua valentecrítica da "ideologia da
autenticidade"- nos existencialistasalemãese especialmenteem
Heidegger- desmascarandoapretençãodeumaexistênciaasalvoda
chantageme dacumplicidade,deumaexistênciaconstituídapor um
encontroqueparaescaparàcomunicaçãodegradadaconverte"àrelação
eu-tu no lugar da verdade".90Por paradoxalque pareça,nos dirá
Adorno, aterminologiadaautenticidade,dainterioridadeedo encon-
tro acabacumprindoa mesmafunçãoque a degradadacultura da
diversão,é "do mesmosangue"que a linguagemdos meios,pois
inocula a evasãoe a impotênciapara"modificarqualquercoisadas
vigentesrelaçõesde propriedadee de poder".91
A terceiradimensão,a dessublimaçãodaarte,nãoésenãoa
outrafaceda degradaçãoda cultura,já quenum mesmomovimento
a indústriaculturalbanalizaa vidacotidianae positivizaa arte.Mas
adessublimaçãodaartetemsuaprópriahistória,cujopontodepartida
sesituano momentoemqueaarteconseguedesprender-sedo âmbito
do sagradoemvirtudedaautonomiaqueo mercadolhepossibilita.A
contradiçãoestavajá em sua raiz, a artese liberta mascom uma
liberdadeque"comonegaçãodafuncionalidadesocialqueé imposta
atravésdo mercado,acabaessencialmenteligadaao pressupostoda
economiamercantil".92E só assumindoessacontradiçãoa artetem
podido resguardara suaindependência.De modo quecontratodaa
estéticaidealistatemosdeaceitarqueaarteobtémsuaautonomianum
movimentoque a separada ritualização,a torna mercadoriae a
distanciadavida.Duranteum certoperíododetempoessacontradi-
çãopôdesersustentadafecundamenteparaa sociedadeeparaa arte,
masapartirdeum momentoa economiadaartesofreumamudança
decisiva,o caráterdemercadoriadaartesedissolve"noatoderealizar-
67
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
se de forma integral"e, perdendoa atençãoque resguardavaa sua
liberdade,aarteseincorporaaomercadocomoumbemcultural,mas
adequando-seinteiramenteànecessidade.O quedearteestaráaí não
serámaisdo quesuacasca:oestilo,querdizer,acoerênciapuramente
estéticaque se esgotana imitação.E essaseráa "forma" da arte
produzidapelaindústriacultural:identificaçãocoma fórmula,repe-
tiçãoda fórmula.Reduzidaa cultura,a artesefará"acessívelaopovo
comoosparques",oferecidaaodesfrutedetodos,introduzidanavida
como um objetoa mais,dessublimado.
A reflexãodeHorkheimereAdorno vaiatéaí.A outrapista
despontasódepassagem,a dequeo "aviltamento"atualda arteestá
ligadonãosó ao efeitodo mercado,masaopreçoquepagariaa arte
burguesapor aquelapurezaquea manteveisolada,excluídada classe
inferior.Mas essapistaficano ar,semdesenvolvimento.A quepros-
seguirásedesenvolvendoéado "declíniodaartenacultura".Adorno
dedicaráboapartedesuaobraaoestudodessedeclínio.Vou rastrear
nos dois veiosmestresdessedesenvolvimento,o da críticaculturale
o dafilosofiadaarte,oselementosquedizemrespeitoaonossodebate.
Comecemosporconfessardeinício nossaperplexidade.Len-
doAdorno nuncasesabetotalmentedequeladoestáo crítico.Há tex-
tos emquea tarefaparecesera desmistificação,a denúnciada cum-
plicidade,o desmascaramentodasarmadilhasqueaideologiacompor-
ta.Mas háoutrosemqueseafirmaqueacumplicidadedacríticacom
a cultura"nãosedevemeramenteà ideologiado crítico:mastambém
éfrutodarelaçãodocríticocomacoisadequetrata".93O quenospõe
decididamentesobreoutrapista,queé a quepareceinteressarverda-
deiramenteaAdorno. E daínossaperplexidade:quesentidotemtudo
o quefoi afirmadosobrealógicadamercadoria,quesentidotemcriti-
cara indústriaculturalse"oqueparecedecadênciada culturaé seu
puro chegarasi mesma"?94E deum textoaoutro,aumentaa frustra-
ção,poiso significadodaculturaéremetidoindistintamenteàhistória
- à "neutralizaçãoobtidagraçasà emancipaçãodosprocessosvitais
com a ascensãoda burguesia"95- e à fenomenologiahegelianada
68
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
"frustraçãoimpostapelacivilizaçãoasuasvítimas".96De modoquea
denúnciada sujeiçãoda culturaao podere a perdade seuimpulso
polêmicose"resolvem"naimpossívelreconciliaçãodo espíritoexilado
consigomesmo.Não estaráfalandodissoAdorno quandotratada
impossívelreconciliaçãodaArte coma Sociedade?De A dialéticado
iluminismoà Teoriaestética,obrapóstuma,afidelidadeaospressupos-
tosé completa,aindaqueos temasmudem.Seno primeirotextose
opunhaaarte"menor"ou ligeiraàartesériaemnomedaverdade,essa
oposição"decorre"eseaproximadenossaproblemáticacentralatravés
doproblemadoprazer."Éprecisodemoliro conceitodeprazerartísti-
co",proclamaAdorno,poistalecomoo entendeaconsciênciacomum
- aculturapopular,diríamosnós- o prazerésóum extravio,uma
fontede confusão:quemtemprazercoma experiênciaé sóo homem
trivial.E quandocomeçamosa suspeitarda semelhançadessepensa-
mentocom idéiasencontradasantesideologicamentedo outro lado,
nosdeparamoscomafirmaçõescomoessaquelembrao Ortegamais
reacionário:"A espiritualizaçãodaobradearteestimulouo rancordos
excluídosdaculturae iniciou o gênerodearteparaconsumistas".97O
embaraçodasituaçãonãopodesermaiscompleto:esenaorigemda
indústriacultural,maisquea lógicada mercadoria,estivessede fato
a reaçãofrustradadasmassasanteumaartereservadaàsminorias?
Carregadadeumpessimismoedeum despeitorefinadoque
todavianão impedema lucidez, a reflexãode Adorno segueseu
caminhocolocandofrentea frentea imediatezemqueseencharcao
gozo- puro prazersensível- e a distânciaque, sob a forma de
dissonância,assumeaartequeaindapodechamar-setal.A dissonância
éaexpressãodeseudesgarreinterior,deseunegar-seaocompromisso.
A dissonância- "signodetodo moderno"- é a chavesecretaque,
emmeioà estupidezreinantede umasociologiaquenelavê a marca
daalienação,continuatornandopossível,hoje,aarte,anovafigurade
suaessência,agoraqueaartesetornainessencial.Agoraqueaindústria
culturalmontao seunegóciosobreostraçosdessa"arteinferior"que
nuncaobedeceuaoconceitodearte.Atençãoparao argumento:essa
69
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
artedesobedienteaoconceito"foi sempreum testemunhodo fracasso
daculturaeconverteuessefracassoemvontadeprópria,o mesmoque
fazo humor".98É um argumentopreciosopeloânguloapartirdoqual
sepercebeo sentidoda "arteinferior" e suarelaçãocom a indústria
cultural:areaçãoaofracasso,mastambémseuconvertê-Iaemvontade
própria.E paraquenãohajaa menorconfusãosobreaquiloa quese
referecomoa "arteinferior",aí estáo exemplo:comoo humor...!
Sabemosquea críticaaoprazertemrazõesnãosó estéticas.
Os populismos,fascistasou não,têmpredicadosempreasexcelências
do realismoe têm exigidodos artistasobrasque transpareçamos
significadosequeseconectemdiretamentecomasensibilidadepopu-
lar.Mas acríticadeAdorno, falandodisso,apontacontudoparaoutro
lado.Cheirademaisaum aristocratismoculturalquesenegaaaceitar
a existênciade uma pluralidade de experiênciasestéticas,uma
pluralidadedos modosde fazere usarsocialmentea arte.Estamos
diantedeumateoriadaculturaquenãosófazdaarteseuúnicoverda-
deiroparadigma,masqueo identificacomseuconceito:um "conceito
unitário"99querelegaa simplese alienantediversãoqualquertipo de
práticaou usoda artequenãopossaserderivadodaqueleconceito,e
queacabafazendoda arteo únicolugardeacessoàverdadedasocie-
dade.Mas entãonãoestaríamosmuitoperto,apartirdaarte,daquela
transcendênciaqueosHeidegger,]asperseoutroscreramencontrarna
autenticidadedo encontrodo eu-tu?
Adorno negariaqualquerconvergência,dadoque qualquer
encontropodeguardarostraçosdeumareconciliação,esealgodistin-
gue sua estéticaé a negaçãoa qualquerreconciliação,a qualquer
positividade.É o que nos diz ao colocaro estranhamentono centro
mesmodo movimentopeloquala arteseconstituicomotal: "só por
meiodesuaabsolutanegatividadepodeaarteexpressaro inexpressável:
a utopia".100Por issosepodeentãodistinguirtãonitidamentehoje o
queéartedo queépastiche:essamisturadesentimentbevulgaridade,
esseelementoplebeuquea verdadeiraarteabomina.E quea catarsis
aristotélicavemjustificandoduranteséculosao justificaralgunsmal
70
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
chamados"efeitosda arte".Em lugardedesafiara massacomofaza
arte,o pastichesededicaaexcitá-lamedianteaativaçãodasvivências.
Mas jamaishaverálegitimaçãosocialpossívelparaessaarteinferior
cuja forma consistena exploraçãoda emoção.A funçãoda arteé
justamenteo contrárioda emoção:a comoção.No outro extremode
qualquersubjetividade,acomoçãoéuminstanteemqueanegaçãodo
euabreasportasàverdadeiraexperiênciaestética.Por issonadaenten-
demoscríticosqueaindainsistemnaconversamoledequeaartedeve
sairdesuatorredemarfim.E o quenãoentendemessescríticoséque
o estranhamentoda arteé a condiçãobásicadesuaautonomia.Que
todo compromissocomo pastiche- como kitsch,coma moda-
nãoémaisqueumatraição.Claro queapressãodamassaétantaque
atéosmelhoresacabamcedendo,mas"louvaro jazz eo rockand rol!
emlugardeBeethovennãoserveparadesmontaramentiradacultura,
senãoqueforneceumpretextoà barbárieeaosinteressesdaindústria
dacultura".101Ante a chantagem,atarefadaverdadeiraarteé distan-
ciar-se.É o único caminhopossívelparauma arteque não queira
acabaridentificandoo homemcomsuaprópriahumilhação.Na era
da comunicaçãode massa"a artepermaneceíntegraprecisamente
quandonão participada comunicação".102Lastimávelqueumacon-
cepçãoradicalmentepura e elevadada artedeva,paraformular-se,
rebaixartodasas outrasformaspossíveisatéo sarcasmoe fazerdo
sentimentoum torpee sinistroaliadoda vulgaridade.A partir desse
alto lugar, de onde conduz o crítico sua necessidadede escaparà
degradaçãoda cultura,nãoparecempensáveisascontradiçõescotidi-
anasquefazema existênciadasmassasnemseusmodosdeprodução
do sentidoe de articulaçãono simbólico.
A experiência e a técnica corno
mediações das massas com a cultura
Costuma-seestudarBenjamincomointegrantedaEscolade
Frankfurt. Embora haja convergêncianas temáticas,que distantes
estãodessaEscolaalgumasde suaspreocupaçõesmaisprofundas.O
71
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
talentoradicalmentenão acadêmico,a sensibilidade,o métodoe a
formada escriturasãooutros.Só agoracomeçamosa saber103queas
relaçõesde BenjamincomAdorno e Horkheimer- estesem Nova
York ajudando-lhenos últimosanos com o pagamentode artigos
enquantoaqueleviviaseuexílioerrantena Europa- nãoforamtão
amistosas,querdizer,igualitárias.Não só Benjaminfoi recriminado
com freqüênciapor suaheterodoxia,comotambémseusamigosedi-
tores se permitiramalterarexpressõese atrasarindefinidamentea
publicaçãode textos.Além daanedotaimportao queos fatosdizem
da luta de Benjaminparaabrircaminhoa umabuscaquenos revela
não poucodo quenós tambémprocuramospensar.
A rupturaestáno pontodepartida.Benjaminnão investiga
apartirdeumlugarfixo,poistomaarealidadecomoalgodescontínuo.
O único travejamentoestána história, nas redesde pegadasque
entrelaçamumasrevoluçõescomoutrasou o mito com o contoe os
provérbiosqueaindadizemasavós.Essadissoluçãodo centrocomo
métodoéo queexplicaseuinteressepelasmargens,essesimpulsosque
trabalhamasmargenssejaempolíticaouemarte:FouriereBaudelaire,
asartesmenores,os relatos,a fotografia.Daí o paradoxo.Adorno e
Habermas104o acusamde nãodarcontadasmediações,de saltarda
economiaà literaturae destaà políticafragmentariamente.E acusam
distoa Benjamin,quefoi o pioneiroavislumbrara mediaçãofunda-
mentalquepermitepensarhistoricamentea relaçãodatransformação
nascondiçõesdeproduçãocomasmudançasno espaçodacultura,isto
é, astransformaçõesdo sensoriumdosmodosdepercepção,da expe-
riênciasocial.Mas paraa razãoilustradaa experiênciaé o obscuro,o
constitutivamenteopaco,o impensável.ParaBenjamin,pelo contrá-
rio,pensara experiênciaéomododealcançaroqueirrompenahistória
com as massase a técnica.Não se pode entendero que se passa
culturalmentecom asmassassemconsiderara suaexperiência.Pois,
em contrastecom o queocorrena culturaculta,cujachaveestána
obra, para aquelaoutra a chavese acha na percepçãoe no uso.
Benjaminse atreveua dizer isto escandalosamente:"O romancese
72
POVO E ""ASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
distinguedanarraçãopelofatodeestaressencialmentereferidoaolivro
(...). O narradortomao quenarradaexperiência,própriaou relatada.
E por suavezo converteemexperiênciadosqueescutamsuahistória.
O romancistaemtrocasemantémà parte.O lugardenascimentodo
romanceé o indivíduoemsuasolidão".105 Benjaminsepropõeentão
atarefadepensarasmudançasqueconfiguramamodernidadeapartir
do espaçodapercepção,misturandoparaissoo quesepassanasruas
com o que sepassanasfábricase nasescurassalasde cinemae na
literatura,sobretudona marginal,na maldita.E isso é o que era
intolerávelparaadialética.Uma coisaépassarlógica,dedutivamente,
de um elementoa outro elucidandoasconexões.E outra,descobrir
parentescos,"obscurasrelações"entrearefinadaescrituradeBaudelaire
easexpressõesdamultidãourbana,edestascomafiguradamontagem
cinematográfica;ou rastrearasformasdo conflitodeclasseno tecido
deregistrosquemarcamacidadeeaténanarrativadosfolhetins.Esse
é seu método,tão arriscadoque deleafirmou Brecht:"Pensocom
terrorquãopequenoé o númerodosqueestãodispostospelomenos
a não mal-entenderalgoassim".106
Dois temasserãooscondutoresparalerBenjaminapartirde
nossodebate:asnovastécnicase a cidademoderna.
Poucostextostãocitadosnosúltimosanos,epossivelmente
tão pouco e mal lidos, como A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica. Mal lido antes de tudo por sua
descontextualizaçãodo restodaobradeBenjamin.Como compreen-
der o complexosentidoda "atrofiada aura" e seuscontraditórios
efeitossemreferi-Iaàreflexãosobreo olharno trabalhosobreParisou
aotextosobre"experiênciae pobreza"?Reduzidoa umastantasafir-
maçõessobrea relaçãoentreartee tecnologia,tem sido convertido
falsamenteem um canto ao progressotecnológicono âmbito da
comunicaçãoou tem-setransformadosuaconcepçãodamortedaaura
nadamortedaarte.Minha apostadeleituraseachano textosobreE.
Fuchs,no qualBenjaminpropõea importânciacapitaldeuma"his-
tóriadarecepção".Tratar-se-iaentão,maisquedearteou detécnica,
73
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
do modo comoseproduzemastransformaçõesna experiênciae não
só na estética:"Dentro de grandesespaçoshistóricosde tempose
modificam,junto com todaa experiênciadascoletividades,o modo
e maneirade suapercepçãosensorial";busca-seentão"manifestar.as
transformaçõessociaisque acharamexpressãonessasmudançasda
sensibilidade".lolE quemudançasconcretamenteestudouBenjamin?
As quevêmproduzidaspeladinâmicaconvergentedasnovasaspira-
çõesda massae as novastecnologiasde reprodução.E na qual a
mudançaque verdadeiramenteimporta estáem "cercarespeciale
humanamenteas coisas",porque"tirar a envolturade cadaobjeto,
triturarsuaaura,é a assinaturade umapercepçãocujosentidopara o
idênticono mundotem crescidotanto que, inclusive,por meio da
reprodução,conquistao terrenodo irrepetível".lo8Aí estátudo:anova
sensibilidadedasmassaséadaaproximação,issoqueparaAdorno era
o signonefastodesuanecessidadededevoraçãoe rancorresultapara
Benjaminum signo,sim,masnãodeumaconsciênciaacrítica,senão
de umalongatransformaçãosocial,a daconquistado sentidoparao
idênticono mundo.E é essesentido,essenovo sensoriumé o quese
expressaesematerializanastécnicasquecomoafotografiaouo cinema
violam,profanamasacralidadedaaura- "amanifestaçãoirrepetível
de uma distância"-, fazendopossívelourro tipo de existênciadas
coisaseoutromododeacessoaelas.A mortedaaurana obradearte
falanãotantodaartequantodessanovapercepçãoque,rompendoo
envoltório,o halo, o brilho das coisas,põe os homens,qualquer
homem,o homemdemassa,emposiçãodeusá-Iasegozá-Ias.Antes,
paraamaioriadoshomens,ascoisas,enãosóasdearte,por próximas
que estivessem,ficavamsemprelonge,porqueum modo de relação
sociallhesfaziaparecerdistantes.Agora, asmassassentempróximas,
comaajudadastécnicas,atéascoisasmaislongínquasemaissagradas.
E esse"sentir", essaexperiência,tem um conteúdode exigências
igualitáriasquesãoa energiapresentenamassa.Não seráumaradical
incompreeensãodessesentire suaenergiao queescaparáa Adorno
paraentendera nova artequenascecom o cinemae o jazz? Não
74
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
surpreende,portanto,queo cinemaconstituaparaAdornoo expoente
máximo da degradaçãocultural, enquantoque para Benjamin "o
cinemacorrespondea modificaçõesde longo alcanceno aparelho
perceptivo,modificaçõeshojevivenciadasna escalade existênciapri-
vada por qualquertranseunteno tráfegode uma grandeurbe".lo9
Adorno, como Duhamel- de quemafirmouBenjamin:"Odeia o
cinemaenãoentendeunadadesuaimportância."- seempenhaem
prosseguirjulgandoasnovaspráticaseasnovasexperiênciasculturais
apartirdeumahipóstasedaartequeo impededeentendero entique-
cimentoperceptivoque o cinemanos traz ao permitir-nosver não
tantocoisasnovas,masourramaneiradevervelhascoisaseatédamais
sórdidacotidianidade.Aí estáo cinemade Chaplin e o neo-realismo
confirmandoa hipótesede Benjamin:o cinema"coma dinamitede
seusdécimosde segundo"fazendosaltaro mundo aprisionanteda
cotidianidadede nossascasas,dasfábricas,dasoficinas.
Mas atenção:nãosetratadenenhumotimismotecnológico.
NadamaisdistantedeBenjaminquea ilustradacrençano progresso.
"A representaçãode um progressodo gênerohumanona históriaé
inseparáveldarepresentaçãodo prosseguimentodestaaolongodeum
tempohomogêneoe vazio".11O
E seestamostratandodoprogressotécnico,Benjaminvaitão
longequeencontrao conceitomodernode trabalhocúmplicedessa
ideologia:"Nada temcorrompidotantoos operáriosalemãesquanto
a opiniãode queestãonadandocoma corrente.O desenvolvimento
técnicoéparaelesadireçãodeumacorrenteafavordaqualpensaram
quenadavam".]]lSuaanálisedastecnologiasapontaentãoparaoutra
direção:a aboliçãodasseparaçõese dos privilégios.Isso foi o que
perceberam,por exemplo,aspessoasqueconformavamo mundo da
pintura antesdo surgimentoda fotografia,e frenteà qual reagiram
comuma"teologiadaarte".Semseadvertiremdequeo problemanão
eraseafotografiapodiaou nãoserconsideradaentreasartes,masque
aarte,seusmodosdeprodução,aconcepçãomesmadeseualcancee
suafunçãosocialestavamsendotransformadospelafotografia.Mas
75
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
não enquantomera"técnica",e suamagia,masenquantoexpressão
materialda novapercepção.
A operaçãode aproximaçãofaz entrarem declÍnioo velho
modo de recepção,que correspondiaao valor "cultural"da obra,e a
passagemparaoutroquefazprimarseuvalorexpositivo.Os paradigmas
de ambossãoa pintura e a câmarafotográfica,ou cinematográfica,
umabuscandoa distânciaeoutraapagando-aou diminuindo-a,uma
total e outra múltipla. E que requeremportantoduasmaneirasbem
diferentesde recepção:o reconhecimentoe a dispersão.A chavedo
reconhecimentoficoujá indicadaantesquando,apropósitodasdiferen-
ças entre "narração"e romance,Benjamin faz do "indivíduo em
solidão"o lugarprópriodo romance.E agoraacrescenta:"Aqueleque
serecolheanteumaobradeartesubmergenela".É o únicomodoque
parecereconhecerAdorno: o do eu abrindo-se-submergindona pro-
fundidadedaobra.A novaformadarecepçãoépelocontráriocoletiva
e seusujeitoé a massaquesubmergeem si mesmaa obraartística".
Benjamin tem consciênciado chocanteem sua proposiçãoe nos
adverteque essemodo de participaçãoartísticanão tem nenhum
crédito,comoacabade demonstrara reaçãodos eruditosdiantedo
cinema:"Asmassasbuscamdissipaçãomasaartereclamarecolhimen-
to!". Era precisosemdúvidaumasensibilidadebemdesprendidado
etnocentrismodeclasseparaafirmaramassacomomotrizdeumnovo
modo"positivo"depercepçãocujosdispositivosestariamnadispersão,
na imagemmúltiplaenamontagem.Com o queseestavaafirmando
uma nova relaçãoda massacom a arte, com a cultura,na qual a
distraçãoéumaatividadee umaforçadamassadiantedo degenerado
recolhimentodaburguesia.Uma massaque"deretrógradadiantede
um Picassosetransformaem progressistadiantede Chaplin".I 12 O
espectadordecinemasetornaum novotipo deexperto,no qualnão
seopõem,masseconjugamaatividadecríticaeo prazerartístico.Em
francaoposiçãoàvisãodeAdorno,Benjaminvênatécnicaenasmassas
um modo de emancipaçãoda arte.
76
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
Benjaminchegaà relaçãodamassacomacidade- segunda
via de acessoa nossotema- pelocaminhomaislongoe paradoxal,
o da poesiadeBaudelaire.O queo levaa issoé terencontradonessa
literatura"osdadosinquietanteseameaçadoresdavidaurbana".AÍ a
massaapareceatravésde diferentes"figuras".A primeiradelasé a da
conspiração:espaçoem que se nutre a rebeldiapolítica, sobre ele
convergemeneleseencontramosquevêmdo limitedamisériasocial
comosquevêmdaboemia,essagentedaartequejá nãotemmecenas
masqueentretantonãoentrouno mercado.Seulugardeencontroé
a taberna,e o queali reúneoperáriossemtrabalho,literatose cons-
piradoresprofissionais,trapeirosedelinqüentesé que"todosestavam
em um protesto mais ou menos surdo contra a sociedade".113
Baudelairesenteque pela taberna,por "suaemanação",passauma
experiênciafundamentaldosoprimidos,de suasilusõese suacólera.
E issoBenjamindescobreno poematransformadoemprotestocontra
o puritanismodos temase da belezaestúpidadaspalavras,na busca
de outralinguagem,de outro idioma:o damassaentrea tabernae a
barricada.
Uma segundafiguraé a cló~pistas,ou melhor,a da massa
como"esfumaçamentodaspistasdecadaum na multidãoda grande
cidade".Com a industrialização,a cidadecrescee seenchede uma
massaque,deum lado,obscureceaspistas,ossinaisdeidentidadede
quetãonecessitadaviveaburguesia,edeoutroencobre,apagaaspistas
do criminoso.Diantedessasduasoperaçõesda massaurbana,a bur-
guesiatraçasuaestratégianum duplomovimentoquealeva,deuma
parte,a encerrar-see recuperarsuaspistas,seussinais,no desenhoe
armaçãodo interior;epor outra,acompensar"pormeiodeumtecido
múltiplo de registros"a perdadosrastrosna cidade.Em oposiçãoao
realismoque exibea oficina, o interior serefugiana residência,um
interiorquemantémo burguêsemsuasilusõesdepoderconservarpara
si, como parte de si, o passadoe a distância,as duas formasdo
distanciamento.Daí quesejano interiorondeo burguêsdaráasiloà
77
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
arte, e que sejanela onde buscaconservarsuaspegadas.O outro
movimentoé o dos dispositivosde identificaçãocom que se busca
controlara massa.E vãodesdea numeraçãodascasasatéastécnicas
dosdetetives.Com o quealiteraturapolicialseconverteemfilãopara
estudaro urbanoe asoperaçõesda massana cidade.
A terceirafiguraéaexperiênciadamultidão.DelafalaEngels
a propósito da multiplicaçãoda força que supõea concentração
massivadepessoas,umaforçareprimidae a ponto de explodir.Mas
aomesmotempoamassaurbanaconsternaEngels,enessaconsterna-
çãoBenjaminvê a presençade um provincianismoe um moralismo
queo impedemde adentrara verdadeda multidão.Frenteà experi-
ênciadeEngels,adeBaudelaireéaplenamentemoderna,a "do prazer
deestarna multidão",porquejá nãosentea multidãoexterna,como
algumacoisaexteriore quantitativa,mascomoalgointrínseco,uma
novafaculdadedesentir,"um sensoriumqueextraíaencantodo dete-
rioradoe do podre",mascujaembriagueznão despojavacontudoa
massa"de sua terrívelrealidadesocial".1l4É como multidão que a
massaexerceseudireitoà cidade.Pois a massatemduasfaces.Uma
pela qual não é senãoessa"aglomeraçãoconcretamassocialmente
abstrata"cujaverdadeiraexistênciaésóestatística.E outra,queéaface
vivadamassatalecomopercebeuVitor Hugo, adamultidãopopular.
Benjaminnãoseenganaquandolê Baudelaire,sabequehá um socia-
lismoesteticista,queselimitaaadularamassaproletáriasemassumir
o rostodaopressão.Mas issonãoo impededereconhecernaliteratura
deBaudelaireumsentido!sensoriumnovodamassa:aexpressãodeum
novo modo de sentir.
Quesetratavadisso,prova-noso interessedeBenjaminpelas
"artesmenores"queFuchscoleciona,comoacaricatura,apornografia
ou o quadrode costumes.Empurradopelo queAguirre denomina
"uma nostalgialadeira acima",que lhe permite ler a trama que
entreteceo arcaicoaomoderno,Benjaminresumeemseuinteressepe-
lo marginal,pelomenor,pelopopular,umacrençaqueosHorkheimer
eAdorno julgammística:apossibilidadede "libertaro passadoopri-
78
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
mido". Pensoquejustamenteaí sesituao fundo de nossodebate:a
possibilidademesmade pensarasrelaçõesda massacom o popular.
Convencidosdequeaonipotênciadocapitalnãoterialimites,ecegos
paraascontradiçõesquevinhamdaslutasoperáriase da resistência-
criatividadedasclassespopulares,oscríticose censoresde Benjamin
não podemvernastecnologiasdosmeiosde comunicaçãomaisque
o instrumentofatalde umaalienaçãototalitária.ll5O queimplicava
desconhecero funcionamentohistóricoda hegemoniae achatara
sociedadecontrao Estado,negandoeesquecendoaexistênciacontra-
ditóriadasociedadecivil.116Mas especialmenteemAdornoo combate
pareceriacentrar-seunicamenteentre o Estado e o indivíduo. A
afirmaçãonãoéminha,estouapenascitandoHabermas:aexperiência
queAdorno procuradesesperadamenteresguardaré a quevem "da
leiturasolitáriae da escutacontemplativa,querdizer,a via régiade
uma formaçãoburguesado indivÍduo".117Por isso, ao descobrira
fraturahistóricadessacultura,Adorno pensaquetudo estáperdido.
Só aartemaiselevada,amaispura,amaisabstratapoderiaescaparda
manipulaçãoe da quedano abismoda mercadoriae do magma
totalitário.Benjamin,pelocontrário,nãoaceitaqueo sentidotenha
sidonegado,absorvidopelovalor.Já queparaele"o sentidonãoéalgo
quecresçacomoo valor",nãoéproduzido,e simtransformado,pois
dependedo processodeprodução.118E entãoaexperiênciasocialpode
terduasfaces- umobscurecimentoeumempobrecimentoprofundo
- mas,ao mesmotempo,semperdersuacapacidadedecríticae de
criatividade.Porque experimentouisso,Benjaminsupôsdeslocar-sea
tempode umaexperiênciaburguesaquetinhadeixadodesera única
configuradorada realidade.Que no momentoem quea mercadoria
parecia"realizar-se"por completoerao mesmoem que a realidade
socialse desagregavacomeçandoa estremecerdo outro lado, o das
massaseseunovo sensoriumeseucontraditóriosentido.Um desloca-
mento que foi num só tempopolítico e metodológicopermitiu a
Benjaminserpioneiroda concepçãoquedesdemeadosdosanos60
nos estápossibilitandodesbloqueara análisee a intervençãosobrea
79
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
indústriacultural:adescobertadessaexperiênciaoutraqueapartirdo
oprimido configuraalgunsmodosde resistênciae percepçãodo sen-
tido mesmodesuaslutas,pois,comoeleafirmou,"nãonos foi dada
a esperança,senãopelosdesesperados".
DA CRíTICA À CRISE
A perspectivade pensamentoinauguradapor Adorno e
Horkheimervaiencontrardesenvolvimento,nosanos60, na França,
edeummodoparticularnostrabalhosdeEdgarMorin, cujaevolução
nospermitesondarossintomasqueconduzemaoesgotamentodeum
paradigmaanalíticoeaemergênciadeoutro.Refiro-meaessefinaldos
60 emque,como início deumacriseeconômicaqueaindademorará
algunsanosamostrarseusverdadeirosefeitos,temlugaro estourode
umacrisedo políticocujocampoprivilegiadodedesenvolvimentovai
sero cultural.E emboraessacrisedopolíticonacultura,edetodauma
culturapolítica,váexplodirdeumladoeoutrodoAtlântico,deParis
e Milão a Berkeleye Cidadedo México,a experiênciae a reflexãoda
crisena Françameparecemespecialmenterelevantes,já quelevamao
extremoe à rupturaapropostadeFrankfurt.Não obstante,a análise
dacrisevaiencontrarseuspontosdemaiorgeneralidadenostrabalhos
do maislúcido herdeirodosfrankfurtianos:Jürgen Habermas.
Na primeiraetapade suaanáliseda culturade massa,119a
concepçãoque trabalhaMorin devenão pouco de inspiraçãoaos
frankfurtianos,mas não se limita a desenvolverseustemas:entre
dialéticae ecletismoprocurade certomodo combinaro pessimismo
daquelescomo otimismodosteóricosnorte-americanos.À diferença
destesúltimos, não crê na onipotênciadesmistificadorados meios
massivos,masem contraposiçãoaos"apocalípticos"senteuma certa
seduçãopelamutaçãoculturalqueaíseproduz.Aironiaqueperpassa
suaanálisedos mitos que configuramo camposemânticoda nova
culturadesvelaemmaisdeumaocasiãoafascinaçãoqueexercemsobre
o crítico.
80
POVO E MASSA NA CULTURA: OS ."'ARCOS DO DEBATE
Indústria cultura! significa para Morin não tanto a
racionalidadequeinformaessaculturaquantoo modelopeculiarem
queseorganizamosnovosprocessosdeproduçãocultural.Apesardo
título filosófico, O espíritodo tempo,o empenhodaanáliseelaborada
nesselivro, sobretudoem suaprimeiraparte,é o de um sociólogo.
Outra coisaé que,a seutempo,o ecodessaobrasooutãolongedos
sociólogosdadireitacomodosdaesquerda.O textodePierreBourdieu
eJ. C. Passeron120acertaaomostraroslimitesquedo pontodevista
estritamentesociológicoapresentavaessetipo deanálise,masaogene-
ralizarsuascríticasecolocaro trabalhodeMorin no mesmoescaninho
dosvulgarizadoresdaideologiadosmassmediaestavamdemonstrando
suaincapacidadeparadiferenciaro quehaviaali decontribuição,para
elessemdúvidanãorecuperável,dapromessateóricae metodológica
deMorin. E segundoaqual"indústriacultural"passavaasignificaro
conjuntode mecanismose operaçõesatravésdosquaisa criaçãocul-
turalsetransformaem produção.Com umaganânciaquevinhanão
só da descriçãosócio-econômicado processotantodo ladodos pro-
dutorescomodosconsumidores,mastambémda negaçãoa fatalizar
amudança,desmontandoassimum dosmal-entendidosmaistenazes
do pensamentodeHorkheimereAdorno:o dequealgonãopoderia
serartese era indústria.Morin demonstra,a propósitodo cinema
especialmente,comoa divisãodo trabalhoe a mediaçãotecnológica
nãosãoincompatíveiscoma "criação"artística;alémdisso,inclusive
como certaestandardizaçãonão implicaa total anulaçãoda tensão
criadora. Redefinido nessestermos o conceito é desfatalizadoe
operacionalizado.ClaroqueparaAdornoessaoperacionalizaçãotalvez
nãofossesenãoaquedadoconceitonaracionalidadeinstrumentalque
buscavaprecisamentedenunciar.Mas comoproporáMorin em um
textoposterior,121aqueleconceitoimpõe-senamedidaemque,arran-
cando-seda meranegatividade,permitea passagemda análiseda
dimensãopolíticada culturaao desenhode umapolíticaou de polí-
ticasculturais,na medidaemquea negaçãoqueo conceitotematiza
façapossívela aberturaao pensamentodasalternativas.
81
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Redefinidoseusentido,Morin desenvolvea análiseda cul-
tura de massaemduasdireções:a estruturasemântica- campode
operaçõesdesignificaçãoesignificaçõesarquetípicas- eosmodosde
inscriçãono cotidiano. O avançoprimordial no primeiro aspecto
residenadescriçãodaoperaçãodesentidoqueconstituio dispositivo
básicodefuncionamentodaindústriacultural:afusãodosdoisespaços
quea ideologiadiz manterseparados,istoé, o dainformaçãoe o do
imaginárioficcional.Issoimplicará,por um lado,umaanálisehistó-
ricadasmatrizesculturaisedastransformaçõessofridaspelocampoda
imprensaedaliteratura,quepossibilitaramacomunicaçãoentreesses
doisespaços.E, por outro,umaanálisefenornenológicadosmecanis-
mos a que essa"comunicação" dá lugar. Pela primeira vez a
comprensãodaculturademassasevêobrigadaarastrearhistoricamen-
tesuarelaçãocoma "culturafolclórica",descobrindono folhetim"o
primeiromeio de osmose"122entrea correnterealista,queelaborao
romanceburguês,eacorrentefantástica,quevemdaliteraturapopu-
lar. Além de que materialmenteo folhetim é já a ponte: romance
escritona imprensa,isto é, segundoas condiçõesde produçãoda
escriturajornalística.De modoqueserána linguagemda informação
queo novo imaginárioencontrarásuamatrizdiscursiva,masserána
linguagemdo melodramade aventurasque segerarãoas chavesdo
novodiscursoinformativo.A indústriaculturalproduzuma injàrma-
ção onde primam os "sucessos",123isto é, o lado extraordinárioe
enigmáticodaatualidadecotidiana,eumaficção naqualpredominará
o realismo.
N a segundadireção- modosde inscriçãono cotidiano-
o trabalhodeMorin levaa sériooculturalnahoradepensaraindústria
cultural,eadefinecomoo conjuntodos"dispositivosdeintercâmbio
cotidianoentreo reale o imaginário",124dispositivosqueproporcio-
namapoiosimagináriosàvidapráticaepontosdeapoiopráticoàvida
imaginária.O queimplicavasubmeterà críticaum conceitode alie-
naçãoqueconfundiana mesmanegatividadetudo o quesignificasse
passagemparao imaginário,fossejá "sonhos"ou diversão.Claro que
82
aalienaçãoexiste,diráMorin, eémecanismofundamentaldo funcio-
namentodo social,masdaí a convertero processoindustrialem si
mesmona operaçãoconstitutivada alienaçãohá urnadistância.E é
nessadistânciaqueMorin "encontra"Freude suapropostasobreos
mecanismosde identificaçãoe projeção,parapensaros modoscomo
a indústriaculturalresponde,na eradaracionalidadeinstrumental,à
demandade mitose de heróis.Porqueseumamitologia"funciona"
éporquedá respostaa interrogaçõesevaziosnãopreenchidos,a uma
demanda coletiva latente, por meios e esperançasque nem o
racionalismonaordemdossaberesnemoprogressonadoshaverestêm
conseguidoextirparousatisfazer.A impotênciapolíticaeo anonimato
socialemqueseconsomemamaioriadoshomensreclama,exigeesse
suplemento-complemento,querdizer,umarazãomaiordeimaginário
cotidianoparapoderviver.Eis aí, segundoMorin, averdadeiramedi-
ação,a funçãode meio,quecumpredia a dia a culturade massa:a
comunicaçãodo realcom o imaginário.
Em umasériedetextosquevãodo anode 1968aode 1973,
e que foramreunidossob o título de O espíritodo tempo11,Morin
propõea necessidadede unir a mudançade paradigmaanalíticoà
compreensãoda crise sociopolítica. A crise aponta para uma
redescobertado acontecimento,125querdizer,da dimensãohistóricae
da açãodos sujeitos,deixandoparatrásuma concepçãoda cultura
reduzidaa códigoedahistóriaa estrutura.Acontecimentosignificaa
"irrupçãodo singularconcretono tecidodavidasocial",eentãoacrise
pareceser esse momentoem que emergeo sentidodos conflitos
latentesquefazeme desfazempermanentementeo social.A crisede
finaisdos60 revelava"a irrupçãodaenzimamarginal"- os negros,
asmulheres,osloucos,oshomossexuais,oTerceiroMundo - trazen-
do à tonasuaconflitividade,pondo emcriseumaconcepçãodecultura
incapazdedarcontadomovimento,dastransformaçõesdosentidodo
social.Tornando caducauma arteseparadada vida ou umacultura
separadada cotidianidade que vinha "conferir e recobrir de
espiritualidadeo materialismoburguês".Nessalinha a experiência
83
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
mais incisiva seriapropostapelos movimentoscontraculturaisda
Américado Norte e a reflexãomaiscruapelossituacionistas.
Retomandoo pensamentodeFourier,do jovemMarx edos
movimentoslibertários,ossituacionistaslevama cabouma"encena-
ção" demolidorados modos de inscriçãodo poder no tecido da
cotidianidade.É desaídaumavalorizaçãopolíticado tempoconside-
rado normalmente"morto",marginalà vida política.Ora, "não há
tempo morto, nem tréguaentreagressorese agredidos(...). Sob o
ângulo da obrigação,a vida cotidianaestáregida por um sistema
econômicono qual a produçãoe o consumo da ofensatendema
equilibrar-se".126E entãoasnovasperguntas:a quempodebeneficiar
tantafadiga,tantoisolamentoetantahumilhação?comoépossívelque
o quevaleparaminhavidacotidianavalhatãopoucoparaa história
se a históriasó adquireverdadeiraimportânciana medidaem que
organizaa cotidianidade?E acríticaapontaráa "sociedadedo espetá-
culo"127queaolevararelaçãomercantilatéacotidianidade,atéo sexo
eaintimidade,acabapolitizando-os,istoé,convertendo-osemespaços
delutacontraopoder.E aíareflexãodossituacionistascorvergirácom
o abalo teórico-políticomais formidáveldos últimos anos:a nova
concepçãodo poder elaboradapor Michel Foucault.Embora essa
concepçãoextrapoleoslimitesdessedebate,ésumamentepertinente,
contudo,omodopeloqualFoucaultlevaacaboareleituradasrelações
entreculturaepolítica:acolocaçãoemcrisedateoriado Estadoeseus
aparatoscomoorigeme formade realizaçãodo poder."Atualmente
sabemosaproximadamentequemexplora,atéondevaiobenefício,por
quemãospassa,enquantoqueo poder,quemexerceo poder?deonde
o exerce?mediantequerelevoseinstânciasdehierarquia,decontrole,
de vigilância,proibições,coações?"I28E emborao Estadopermaneça
no centro,o poderflui,porquenãoéumapropriedade,masalgoque
seexerce,edeumaformaespecialíssimaapartirdissoqueo Ocidente
tem chamadocultura.Nunca se tinha reveladotão problemáticaa
concepçãoda culturacomosuperestruturaqueà luz dessaconcepção
dopoder comoproduçãodeverdade,deinteligibilidade,delegitimida-
84
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
de.O quenosremeteaocoraçãodenossodebate:ànegaçãodesentido
e legitimidadedetodasaspráticasemodosdeproduçãoculturalque
nãovêmdo centro,nacionalou internacional,à negaçãodo popular
comosujeitonãosó pelaindústriacultural,comotambémpor uma
concepçãodominantedo políticoquetemsido incapazdeassumira
especificidadedo poderexercidoa partirda cultura,e temachatado
a pluralidade e complexidadedos conflitos sociais sobre o eixo
unificantedo conflitode classe.
Próximaemseuspropósitosiniciaisda posiçãodeMorin e
dos situacionistas- crítica daquilo que nos impedede pensara
mobilidadedosconflitosquefazemergira crise-, a investigaçãode
J eanBaudrillardacabarásendo,contudo,umaboaexpressãoda res-
triçãopolítica que entranhaa "dialéticanegativa"postaem marcha
pelosfrankfurtianos.Já Benjaminnostinhaadvertidocontraa tenta-
çãodialéticadecolocarsobreo mesmoplanoontológicoo sentidoe
o valor.Pois bem,todaa obradeBaudrillard,especialmentea partir
de Crítica da economiapolítica dosigno,consistiráemtratardedemons-
traraabsolutadissoluçãodosreferentesesuatransformaçãoemagentes
de uma simulaçãogeneralizada.No fim da era da produçãoe no
começodaeradainformação,acriseseresolveemumareciclagemdo
sistemaque teriasuadinâmicaeconômicana informaçãocomonovo
e único espaçodeproduçãodepodere desentido,e sualegitimação
política na separaçãoaxiomática- Wiener, Shanon,etc. - entre
informaçãoesignificação.ParapensaressatransformaçãoBaudrillard
partedeum duploaxioma:"quantomaisinformaçãomenossentido"
e "quanto mais instituição menos social".129Como para os
frankfurtinaosa racionalidadeinstrumental,quedesencantoua natu-
reza,acaboudesencantandoasrelaçõessociaisatédevoraro sujeitoe
a própria razão, assimpara Baudrillard "as instituiçõesque têm
balizadoosprogressosdosocial(urbanização,concentração,produção,
trabalho,medicina,escolarização,segurançasocialetc.)produzeme
destroemo socialno mesmomovimento".130Movimentocujachave
estáno processode abstração,isto é, a destruiçãodo intercâmbio
85
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
simbólicoe ritualdo qualtêmvividotodasassociedadeatéagora.E
a abstraçãoencontrasua"realização"na informatizaçãogeneralizada.
E convertidaem modeloa informaçãodevorao social.Por doiscami-
nhos. Um, destruindo a comunicaçãoao convertê-Iaem pura
encenaçãodesi mesma:emsimulacro.Algo dissojá tinhasidoformu-
lado por McLuhan ao proporque"o meio devoraa mensagem".Só
queagorao processovaimaislonge:amensagemacaboupor devorar
o real.E, abolindoa distânciaentrea representaçãoe o real,a simu-
laçãonosmeios- emespecialna televisão- chegaaproduzir "um
realmaisverdadeiroque o real".E dois, pondo emfuncionamento,
des-atandooprocessodeentropiaquesubjaznamassa.Diantedosque
pensavamqueinjetandoinformaçãonamassaliberariamsua energia,
o que ocorreufoi o contrário:"A informaçãoproduzcadavezmais
massa",uma massamais atomizada,mais distanteda explosão,o
verdadeiramenteproduzidoé "a implosãodo socialnasmassas".131
Ante esse"fato", segundoBaudrillardirreversível,já não é
possívelrefugiarmo-nosnasvelhasteoriasdamanipulação,porque-
eaquisefazvisívelo "saltonovazio"políticoqueseparaprofundamen-
teo pensamentodeBaudrillarddo dossituacionistasedeFoucault-
ainércia,aindiferença,apassividadedasmassasnãoéefeitodenenhu-
maaçãodo poder,maso modoprópriodeserdamassa.Essaidéianão
lembraaquelasegundoa qual"o quepareciadecadênciada culturaé
seupuro chegara si mesma",deAdorno?Baudrillardo corrobora:a
indiferençapolíticaeapassividade,seusilêncio,éo mododeatividade
dasmassas.E dequefalaessesilêncio?Faladofim dopolítico,diz "que
já não é possívelfalarem seunome,já não é uma instânciaà qual
ninguémpossareferir-secomoemoutrotempoàclasseouaopovo".132
Era previsível.Entreguesà dinâmicaprópriada "dialéticanegativa",
a racionalidadeinstrumentalou o sim,ulacronão páraatédevorá-Iq
inteiramente.Claro queparaqueessalógicafuncioneseráprecisoqúe
eliminar as contradiçõesque vêm de mais alémdas técnicase das
instituições.Assim, o que a implosãoda massaou da cultura nos
apresenta,emsuainfinitacapacidadedeabsorçãodosconflitos,é um
86
~ POVO' MA"A NA CUCTURA,m MARCOSDO D'BAH I
I C 'd' I d'l h 'd dA . dI' . 'b' li'lOrm1ave 1ema:c egou-sea eca enCla a cu turae a 1mposs11-
lidadedo político a partir do processohistóricoou, antes,de uma
situaçãoparticulare de uma experiênciade degradaçãocultural e
impassepolítico?
Uma tentativadenãohipostasiara crise,esim interrogá-Ia,
éadeHabermas,que,colocandoacrisedo políticocomoeixo,chega
todaviaaconclusõesmuitodistintas.O queconstituio (ainstânciado)
político em eixo da criseque mina na atualidadeo capitalismoé a
impossibilidade de que o econômico assegurepor si mesmo a
integraçãosocialnecessária.Nunca o mercadocumpriupor si só essa
funçãoesemprenecessitoudoEstadonagarantiadascondiçõesgerais
de produção.Mas o que agorapercebemosé outra coisa:"Hoje o
Estadodevecumprirfunçõesquenãopodemserexplicadasinvocando
aspremissasdepersistênciado mododeprodução,nemserdeduzidas
do movimentoimanentedo capital".133Estedeslocamentopor suavez
dá lugar,comoo assinalaramossituacionistas,a novosproblemasde
legitimaçãoquesesituamno terrenodas"lutastravadaspeladistribui-
çãoe reprodução".O longociclodascriseseconômicasé substituído
agorapela crisepermanenteque implica a inflaçãoe o déficit das
finanças públicas. Que é o custo, em termos econômicose de
racionalidadeadministrativa,da buscapor satisfazercomserviços-
de saúde,educação,segurança,comunicaçãoetc. - a "crescente
necessidadedelegitimação"dequesofreo sistema.E ainformatização
generalizadadasociedadereduzindoosproblemaspolíticosa proble-
mastécnicos,istoé,deacumulaçãoeorganizaçãodainformação,não
terá nada a ver com esse"déficit de racionalidade"de que fala
Habermas?Mas entãonãosetratariada"morte"do político,masde
suasuplantaçãoe substituição:a informáticacomportandoo suple-
mentode racionalidadede quenecessitaa Administração.
Mas a crisenão é só de racionalidadeadministrativa.É a
mesmadominaçãode classeque fica a descoberto,e não só para
intelectuaise militantes,masparaasgrandesmassasquecomeçama
percebernasformasdo intercâmbioo exercíciodeumacoaçãosocial.
87
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Aí residea crisede legitimaçãopropriamentedita:emque,marginali-
zado de sua funçãode intrumentalidadedo econômico,o sistema
político éobrigadoa assumirexplicitamentetarefasideológicas.Com
o conseguinterechaçoque issogerae a mobilizaçãoqueproduz no
âmbitodo cultural.A expansãodo Estado,queerapercebidacomo
inelutávele irrefreáveltanto por Adorno na figura da esmagadora
administraçãomercantildacultura,comopor Baudrillardnafigurada
administraçãocrescentedasinstituiçõesedasimulaçãoinformacional,
ésegundoHabermaspercebidaconflitivamenteeresistidaativamente
apartirdoâmbitodacultura.E issoporqueéaíquesepõeadescoberto
que"nãoexisteumaproduçãoadministrativado sentido".A cultura
é aí resgatadacomoespaçoestratégicodacontradição,comolugarde
ondeo déficitderacionalidadeeconômicae o excessode legitimação
políticasetransformamemcrisedemotivaçãooudesentido.A implosão
do socialnasmassas,de que falaBaudrillard,como a explosãodas
expectativasdequefalao últimoBell, ou o declivedo públicodeque
falaSennett,134apontamparaa mesmadireção,mas,diferentemente
dos três,a criseculturalparaHabermasnão seidentificacom o fim
do político, e sim com suatransformaçãoqualitativa.A novavalori-
zaçãoda cotidianidade,o modernohedonismoou o novosentidoda
intimidade não são unicamenteoperaçõesdo sistema,mas novos
espaçosde conflitose expressõesda novasubjetividadeem gestação:
"O d I I - I' b'mo o como nos representamosa revouçao evoUl tam em e
inclusiveo processode formaçãode umanovasubjetividade".135Tem razãoBell quandopercebea emergênciade um novo
tipo de contradiçõesentre uma economia regida contudo pela
racionalidadedorendimentoedadisciplina,eumaculturaquecoloca
a espontaneidadee a experimentaçãopessoalcomoo valorsupremo.
E entãoécertoque,semohedonismoqueestimulaaculturademassa,
aindústriacapitalistadesmoronaria,maséessemesmohedonismoque
minaasbasesdaobediênciaedadisciplinacotidianasqueeramasbases
damoralburguesa.136Tem razãoRichardSennettquandodenunciao
desgastecrescentedaquelavidapúblicaqueconstituíaa basedaorga-
88
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
nizaçãodemocráticae da participaçãosocial.Mas em sua extensa
críticada fugaparaa intimidadee a privatização,em suabrilhante
análisedo narcisismomoderno,137Sennettesquecealgofundamental:
o que essafugaparao eu e asquestõespessoaispodemter de des-
afecçãoe atéde rupturacom os interessesgeraisde um siHemaque
caminhacadadia sofisticadae tenazmenteem direçãoao sorte de
direitosdos sujeitosindividuaise coletivos.
Quando a críticada crise"convoca"à criseda crítl:a é o
momentode redefiniro campomesmodo debate.
89
CAPíTULO 4
REDESCOBRINDO O POVO:
A CULTURA COMO ESPAÇO DE HEGEMONIA
1
Nadaexpressamelhoro alcanceeaincidênciaqueacrisetem
no te renoteóricoquearedescobertadopopularefetuadanosúltimos
anos Como seavelhaecombatidacategoriaserecarregassedesentido
por ttãosabermosmuitobemqueprocessosenosdesafiasseadescobrir
a dimensãodo realhistóricoe do realsocialqueaí permaneceinsis-
tindo emsefazerpensar.Além dasmodas- queasuamaneirafalam
tambémdoquemascaramesobreo qual,emúltimaanálise,seapóiam
secretamente- a vigênciarecuperadapelopopularnos estudoshis-
tóricos, nas investigaçõessobrea cultura e sobrea comunicação
alternativa,ou no campoda culturapolíticae daspolíticasculturais,
marcaumaforteinflexão,umabalizanovano debatee algunsdeslo-
camentosimportantes.Paradelimitá-los,começaremospor estudaros
novos contornosque na investigaçãohistóricaadquirea figura do
povo. Não setratade um acréscimodo saberemcifrase dados,mas
de um primeirodeslocamentoque re-situao "lugar"do popularao
assumi-locomopartedamemóriaconstituintedo processohistórico,
presençade um sujeito-outroatéhá pouconegadopor umahistória
paraa qualo povosó podiaserpensado"sobo rótulo do númeroe
do anonimato".138Junto a estamudançada perspectivahistóricadá-
seumatransformaçãonasociologia- explicitadapelassociologiasda
cultura e da vida cotidiana- e na antropologia:da demologiaà
antropologiaurbana.No conjunto,o quecomeçaaseproduziré um
descentramentodo conceitomesmode cultura,tantoemseueixo e
universosemânticocomono pragmático,e um re-desenhoglobaldas
relaçõescultura/povoepovo/classessociais.Nessere-desenhovaijogar
um papel importanteo reencontrocom o pensamentode Gramsci
NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
que,acimadasmodasteóricasedosciclospolíticos,alcançaatualmen-
te umavigênciaque tinha sido isoladaou ignoradadurantelongos
anos.
O povo NA OUTRA HISTÓRIA
opovo,palavravaga,poucoqueridadoshistoriadores.E, contudo,
hojevoltamosadescobrirarealidadeeopesohistóricodeatoressociais
decontornosmaldefinidos:osjovens,asmassas,aopiniãopública,o
povo.
jacquesLe Goff
Uma mudançana perspectivahistóricasobreo popularim-
plicavaa releiturado períodoemque,parao Ocidente,o popularse
constituiemcultura:a IdadeMédia. Releituraqueprocedendoà sua
des-romantizaçãoacertoucontastambémcoma visãoracionalista.É
o objetivoexplícitodostrabalhosdeLe Goff, queseatreveuacolocá-
10 comotítulo da obraque reúneseustrabalhosmaisrecentes,Pour
uneautreMoyenAge.A primeiracoisaque perdea basedianteda
abordagemde uma outra Idade Média é o hiato estabelecidopelo
racionalismoentremedievoe modernidade,nãopararetomara uma
continuidadeevolucionista,masparadarcontadosmovimentoshis-
tóricos de longo alcancecomo são precisamenteos movimentos
culturais,aquelesnosquaiso quesetransformaéo sentidomesmodo
tempo,a relaçãodoshomenscomo tempoenquantoduraçãonaqual
seinscreveo sentidodo trabalho,dareligiãoeseusdiscursos.É outro
"comprimentode onda" o quepermitecaptara voz - e não só o
"ruído"- dealgunsemissoresnãoaudíveisna"freqüência"doscortes
históricosestabelecidospelosqueescreverama históriaa golpes,e à
custadosvencedores.Nessaoutralongaduração,IdadeMédia deixa
desero tempodalendanegratantoquantoo dalendaáurea,epassa
asero tempo"quecriouacidade,aNação,o Estado,aUniversidade,
o moinho e a máquina,a horae o relógio,o livro, o garfo,a roupa,
apessoa,aconsciênciae, finalmente,aRevolução".139Um tempoque
91
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
seigualacomnossa"modernidadeextraviada"emformadesociedade
pré-industrial,denominaçãona qualo "pré",maisqueumaruptura,
assinalaa matéria-primae o passadoprimordial.Fazerhistóriadisso
significavafazer históriacultural,e "na buscado fio condutor, da
ferramentade análisee de investigaçãoencontreia oposiçãoentre
culturaeruditaeculturapopular".140Atençãoparaasimplicaçõesdessa
citação:o popularparaLe Goff nãoé o tema,maso lugarmetodológico
apartirdoqualsedeverelerahistórianãoenquantohistóriadacultura,
masenquantohistóriacultural.
O procedimentoanalíticogirarásobredois movimentos:o
enfrentamentoeo intercâmbio.A IdadeMédiaprofundaéaquelaem
que o popularseconstituia um só tempoa partir do conflito e do
diálogo. Os dispositivosdo conflito são mais notórios e visíveis,
deixam-seanalisarmelhor,na altaIdadeMédia, na qual "o pesoda
massacamponesaeo monopólioclericalsãoasduasformasessenciais
queatuamsobreasrelaçõesentremeiossociaise níveisculturais".141
O clero,dono da culturaerudita,sedefrontacom a emergênciada
massacamponesacomogrupodepressãocultural- gestorda"cultura
folclórica".Em quepeseaoesforçodeadaptaçãoqueapropagaçãodo
cristianismoexigeeàcumplicidadequedefatoasculturascamponesas
encontravamemcertostraçosdamentalidadedosclérigos,a cultura
clericalchoca-sefrontalmentecoma culturadasmassascamponesas.
Choquequesesituabasicamenteno conflitoentreo racionalismoda
cultura eclesiástica- separaçãotaxativaentre o bem e o mal, o
verdadeiroe o falso,os santose os demônios- e a equivocidade,a
ambigüidadequepermeiatodaaculturafolclóricapor suacrençaem
forçasquesãoora boas,ora más,num estatutomovediçoe variável,
vistoquemaispragmáticoqueontológicodoverdadeiroedo falso.De
formaqueo dualismomaniqueístaeo esquematismosurgemparado-
xalmentenãocomomodosoriginalmentepopulares,massimimpostos
a partirda tradiçãoerudita.Repelida,enãopoucasvezesdesafiada,a
culturaoficialrespondedetrêsmaneiras:adestruiçãodostemplos,dos
objetos,das formasiconográficasdos deusesetc.; a obliteraçãoou
92
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
aboliçãodepráticas,ritos,costumes,devoções;ea desnaturalizaçãoou
deformaçãodas mitologias e das temáticasfolclóricas que, res-
semantizadas,sãorecuperadaspelaculturaclerical.
Mas nemo conflitonema repressãoparalisamo intercâm-
bio. Por vezesinclusiveo estimulam,já queao aproximarmuito de
perto,"corpoa corpo",asculturasenfrentadas,elesas expõem.Com
o tempoa oposiçãovaidandolugara um diálogofeito"depressõese
repressões,deempréstimoseresistências"entreCristoeMerlin, santos
edragões,]oanaD'Arc eMelusiana.LeGoff advertequetantoosabbat
quanto a Inquisição aparecemsó quando a simbiosese rompeu,
enquantoquedurantedezséculostevelugaro grandediálogoentreo
escritoe o oral quetransformouos relatospopularesnas lendascom
queos senhoresfeudaiscomeçama contare escreversuahistória,o
mesmodiálogo que impregnado maravilhosopopular os relatos
evangélicosqueproclamamosclérigosconvertendosantosemfadase
demôniosem fantasmas.
A contribuiçãode Le Goff sustenta-seem ter conseguido
resgatara dinâmicaprópriado processocultural:a culturapopular
fazendo-seemumadialéticadepermanênciaemudança,deresistência
e intercâmbio.Sobretextose contextosdo séculoXVI, M. Bakhtine
C. Ginzburginvestigamtambémadinâmicaculturalmasparaestudar
nãoo processodeconstituiçãodo popular,esimaconfiguraçãoaque
já temchegadoessaculturaeseusmodosdeexpressão.Ambosabor-damo populardedentro:Bakhtinenfatizandonaquiloquea cultura
populartem de estranha,de paralelaà oficial, de outra;Ginzburg
indagandonasresistênciassuacapacidadedeassumiro conflitoativa,
criativamente.
O que Mikhail Bakhtin investigaé aquilo que na cultura
popular, ao opor-seà oficial, a une, aquilo que, ao constituí-Ia,a
segrega.Por issoseuestudocentra-senainvestigaçãodo espaçopróprio,
queé a praçapública- "o lugarno qualo povo assumea voz que
canta"- e o tempofortequeé o carnaval.A praçaé o espaçonão
segmentado,abertoà cotidianidadee ao teatro,masum teatrosem
93
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
distinçãodeatoreseespectadores.Caracterizaapraçasobretudouma
linguagem;ou melhor:apraçaé umalinguagem,"um tipo particular
decomunicação",142configuradoapartirdaausênciadasconstruções
queespecializamaslinguagensoficiais,sejaa daIgreja,a daCorte ou
adostribunais.Uma linguagemnaqualpredominam,no vocabulário
e nos gestos,asexpressõesambíguas,ambivalentes,que não apenas
acumulame dão vazãoao proibido, mas também,ao operarcomo
paródia,comodegradação-regeneração,"contribuíamparaa criação
de uma atmosferade liberdade".Grosserias,injúrias e blasfêmias
revelam-secondensadorasdasimagensdavidamaterial,ecorporal,que
liberamo grotescoe o cômico,os dois eixosexpressivosda cultura
popular.
Depoisde muito me indagare perguntarpelo sentidoque
tema atribuiçãodo realismoaopopular,edeencontrarquasesempre
nessaatribuiçãoumaforteprojeçãodoetnocentrismodeclasse,encon-
treinacaracterizaçãoquefazBakhtindo "realismogrotesco"umapista
fecunda.Trata-sede um realismoquesesituanosantípodasdaquilo
queum racionalismodissimuladofreqüentementeatribuiuaopopu-
lar: o modogrotescofuncionapor exageraçãoe degradaçãoe não por
cópia.Assim,aquiloquepor meiodessasoperaçõesseresgatanão é
uma meraafirmaçãodo real,mas uma topografiaque afirmacomo
realidadeúltimaeessencialo corpo-mundoeo mundodo corpo,isto
é, "a transferênciaaoplanomateriale corporaldo elevado,espiritual,
ideal e abstrato".143Uma topografiaque atuacomo valorizaçãodo
baixo- a terra,o ventre- e nãodo alto- o céu,o rosto- que
afirmao inftrior porque"o inferiorésempreum começo".Diantedo
realismoqueconhecemos,ou melhor,reconhecemoscomotal, queé
um naturalismoracionalizadosegundoo qualcadacoisaé umacoisa
poisseachaseparada,acabadaeisolada,o realismogrotescoafirmaum
mundoemqueo corpoaindanãofoi separadoefechado,já queo que
fazcom queo corposejacorposãoprecisamenteaquelaspartespelas
quaisseabreecomunica-secomo mundo:aboca,o nariz,osgenitais,
94
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
os seios,o ânus,o falo. Por issoé tãovaliosaa grosseria,porqueé
atravésdelaqueseexpressao grotesco:o realismodo corpo.
a carnaval é aqueletempoem que a linguagemda praça
alcançao paroxismo,ou seja,suaplenitude,a afirmaçãodo corpodo
povo, do corpo-povoe seu humor. Que eloqüenteé a confusãoem
castelhanodehumorcomolíquidovisceral- ossecretoshumoresdo
corpoanalisadospelosmédicos- e o humorcomomolaexpressiva
daparódiae da ridicularização.Issoé o cômicoantesdeseconverter
em "gêneromenor":a paródiafeitacorpo,carnaval.Com seusdois
dispositivosfundamentaisno risoenamáscara.a risonãoenquanto
gestoexpressivodo divertido,da diversão,masenquantooposiçãoe
repto,desafioà seriedadedo mundooficial,aoseuascetismodiantedo
pecadoesuaidentificaçãodo valiosocomo superior.a risopopular
é, segundoBakhtin,"umavitóriasobreo medo",já quesurgejusta-
mente por tornar risível, ridículo, tudo o que causa medo,
especialmenteo sagrado- o poder,a moraletc.- queé de onde
procedeacensuramaisforte:ainterior.Enquantoaseriedadeequivale
aomedo,o prolongaeo projeta,o risorelaciona-secoma liberdade.
Umberto Eco trabalhae desenvolveessamesmarelação,quandoao
final de O nomeda rosa,põena bocado cegomongebibliotecárioa
maisformidávelalegaçãocom queseconservoua posiçãoda Igreja
medieval,da culturaoficial, diantedo riso. A alegaçãojustifica a
censurada Igrejasobreum misteriosolivro, o maisnefandodetodos
oslivros,já queneleo risoévalorizadocomomododeexpressãoque
correspondea um mododeverdade.E contraissoa Igrejatemduas
"razões"depeso:que"o risoliberao aldeãodomedododiabo,porque
nafestadosparvostambémo diaboaparececomopobreetolo",eque
aquelelivro "haviajustificadoa idéiade quea línguadossimplesé
portadorade algum saber".144A máscara,o outro dispositivodo
cômicoe do carnaval,exprimeaindamaisplenamentea negaçãoda
identidadecomo univocidade.A máscaraestána mesmalinha de
operaçãoque os sobrenomese os apelidos:ocultação,violação,
95
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
ridiculizaçãoda identidade,e aomesmotemporealizao movimento
dasmetamorfosese asreencarnações,quesãoo movimentoda vida.
Mas a máscarajoga tambémsobreum outro registrode sentido,é
estratégiade encobrimentoe dissimulação,de enganoda autoridade
e inversãodashierarquias.
A partirde outrostextos,muito diferentesdosde Rabelais,
masdo mesmoséculo,aquelesquerecolhemo julgamentoea conde-
naçãodeum moleiropor um tribunaldaInquisição,Cado Ginzburg
investigoua dinâmicaculturalquepermitiuao moleiroMenocchio,
emumpovoadodaitáliadoséculoXVI, elaborarumavisãodemundo
quecondensaa resistênciaativadasclassespopularesdessetempo.A
pista inicial se achana discrepânciaprofundae constanteentreo
mundodequefalamasperguntasdosjuízeseo mundodasrespostas
deMenocchio.Esteúltimoporsuavezformadopordoisestratossobre
os quais se apóia a irredutibilidadee criatividadedo moleiro: um
núcleodecrençaspopularesautônomas,de"obscurasmitologiascam-
ponesas"de remotatradiçãooral, e uma surpreendentemas clara
convergênciadasidéiase posiçõesdeMenocchiocomasdos intelec-
tqais maisprogressistasda época.Compreendera "discrepância"a
partirdaqualseproduzavisãodomoleiroimplicaestudarpor suavez
a memóriaea circularidadeculturaldequesealimentaessavisão.Para
isto, não há outro caminhosenãoa reconstruçãodo modode lerde
Menocchio,esselugarondememóriae circulaçãosãoativadas.
O quetornoupossívelaleituraqueMenocchioefetuadeuns
poucoslivrosnãoétantoagenialidadedomoleiro- eissonãoporque
um moleironãopossasergenial- massim a convergênciaentrea
imprensae a Reforma.A imprensa,possibilitandoqueos livrosche-
guematéasaldeiascamponesas,permitindoassima confrontaçãocom
asidéiasquevinhamda tradiçãooral,e proporcionandoum forneci-
mentodepalavraspara"expressara obscura"e desarticuladavisãodo
mundo que ferviaem seu foro íntimo".145A Reforma,dando-lhe
audáciaparaatrever-sea falare contarseussentimentosaosvizinhos
96
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POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
da aldeiae defendê-Iosdiantedo tribunalda Inquisição.Quão dife-
renteé a concepçãomcluhanianado modo comoGinzburgentende
o papel da imprensa:nenhumaforça intrínsecaà tecnologiaque
expliquenadaapartirdesi mesma,massimumprocessodeliberação
de uma energiasocialque sobrevémna articulaçãoda expansãoda
leituraquea imprensapermitealcançarparaalémdo reduto-mono-
pólio dos doutos,com o radicalismocultural que se expressae se
reforçanaReforma,istoé,comosmovimentossociaisqueachamseu
modo de expressão,nessetempo,atravésda luta religiosa.
A partirdessesprocessosquetornampossívelaleitura,tanto
objetivaquantosubjetivamente,Menocchiolê desviadamenteoquelê.
E que são uns poucoslivros nada"originais":vidasde santos,um
poemaburlesco,um florilégio bíblico, um livro de viagens,uma
crônica, o Alcorão e o Decameron.A chaveda leitura efetuada
tampoucovemdospróprioslivros."Mais importantequeo textoé a
chavede leitura,a peneiraqueMenocchiointerpunhainconsciente-
menteentreelee a páginaimpressa:umapeneiraquepõeemrelevo
certaspassagense ocultaoutras,queexasperavao significadode uma
palavraisolando-ado contexto,que atuavasobre a memóriade
Menocchiodeformandoapróprialeiturado texto".146A eficáciadessa
peneiranos afastados textose nos obrigaa mergulharna memória
culturalcamponesa,nãoparaencontrarnelao queo moleirofaz os
textosdizerem,massima fontedo conflitoqueoriginaodesvio,isto
é,a misturado choquee do diálogoentreo oral e o escritoproposta
por Le Goff. Somenteassimé explicávela presençana concepção
elaboradapor Menocchio de uma tolerânciareligiosaradicalmente
estranhaà intolerânciados inquisidores,umafiníssimasensibilidade
aos diferentes modos de injustiça dos ricos e às formas de
mercantilizaçãodoreligioso,umatendênciaanegligenciaradimensão
dogmáticada religiãoe a insistirna exigênciamoralqueconcordava
comsuatradição,e umautopia"ingênua"queo levavaa desejarque
"houvesseum mundonovo e outro modode viver".
97
-I
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Lendo Ginzburg não sepode negara sensaçãode que, às
vezes,o investigadortambémexerceumaleitura"desviada",istoé,que
recompõeum quadrono qual a culturapopular resultademasiado
coerentee avisãodeMenocchio,excessivamenteprogressista.E sem
dúvidaa riquezae a precisãoda reconstruçãodo contextohistórico
socioculturaledoprocessodematuraçãodasidéiasdeMenocchionos
assegurama veracidadee o acertodas conclusõesa que chegao
historiador.Enfim, a sensaçãoa que me refiro remetetalvezmais,
muitomais,anossacumplicidadecomessadeformaçãoqueconverteu
a afirmaçãode Marx - as idéiasdominantesde umaépocasãoas
idéiasdaclassedominante- najustificaçãodeum etnocentrismode
classesegundoo qual asclassesdominadasnão têmidéias,não são
capazesdeproduziridéias.Estátãoarraigadaemnósessadeformação
queaquiloqueum obscuromoleirode umaaldeiaitalianado século
XVI sejacapazdepensar"comsuacabeça",ou comoelemesmodiz
de"tiraropiniõesdeseucérebro",nosproduzumescândalo.Somente
por enfrentarmosisso,a contribuiçãoda investigaçãode Ginzburg à
compreensãodo funcionamentodasculturaspopularesseriaimpor-
tante,mas,alémdotrabalhodehistoriador,ainvestigaçãodeGinzburg
ofereceum modelometodológicoparaabordara leituracomoespaço
de desdobramentodo conflito e da criatividadeculturaldasclasses
populares.
A partir do séculoXVII ascoisasmudamgrandementeno
mundo popular.As razõesdamudançaassimcomoos novosmodos
de repressãoque se põem em marcha foram estudadospor R.
Muchembledl47no que concerneà França,masseuestudooferece
umaperspectivabásicaparacomprenderos processosde repressãoe
inculturaçãonaEuropadosséculosXVII eXVIII. Com asguerrasde
religião,quereforçamo "sentimentonacional"epromovema eman-
cipaçãodosmercados,produz-seumatransformaçãopolíticadelongo
alcance:o 'início da configuraçãodo Estado modernoa partir da
unificaçãodomercadoedacentralizaçãodopoder.148É ummovimen-
to que ao mesmotempoquedemarcaas fronteirascom o exterior,
98
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
acabacom todo tipo de demarcaçãoou fronteiraque fragmenteo
interior, destruindoou suplantandoa pluralidadede mediaçõesque
teciamavidadascomunidadesou regiões;o Estadoerigeeminstitui-
ção-providênciaquereligacadacidadãocoma autoridadecentraldo
soberanoe velapelo bem-estare segurançade todos.A dinâmica
própriadasculturaspopularesseveráentravadaprimeiroeparalizada
depoispor essanovaorganizaçãodavidasocial.À destruiçãoeconô-
mica de seu quadrode vida pela lentapenetraçãoda organização
mercantilsomar-se-áumaredededispositivosquerecortamprogres-
sivamentea autonomiadascomunidadesregionaisno político e no
cultural.Pouco a poucoasdiferençasculturaisseconvertemem,ou
melhor, são vistascomo ameaçasao poder centralque atravésda
unificaçãodo idioma e da condenaçãodas superstiçõesbuscama
constituiçãode uma culturanacionalque legitimea unificaçãodo
mercadoe a centralizaçãodasinstânciasdo poder.Desdemeadosdo
séculoXVII secomeçaaproduzirumarupturado equilíbriopolítico
quetornavapossívela coexistênciadedinâmicasculturaisdiferentes,
epõe-seemmarcha"ummovimentodeenculturaçãodasmassas"para
um modelogeralde sociabilidade.É nesseponto quea investigação
deMuchembledrepresentaum avançomaissignificativoaodescobrir
nos dispositivosde repressãodasculturaspopularesdesdefinais do
séculoXVII algunsdos traçospreparatóriosda massificaçãocultural
quevisivelmentesedesenvolverádesdeo séculoXIX, ecujadinâmica
dehomogeneizaçãosomentemostraráseuverdadeiroalcancenaatua-
lidade. Como se o processode destruiçãodas diferençasculturais
regionais,viacriaçãodasculturasnacionais,levassejá emsi asemente
de sua própria negação:a construçãode uma cultura supra ou
transnacional.Perspectivaquepermitecompreendercomoa destrui-
çãodasfestasou a perseguiçãodasbruxascoincidemsemintervalo
algumcom a inculturaçãorealizadapelaliteraturadecordel,a divul-
gaçãodeumaiconografiaeatransformaçãodosespetáculospopulares.
Essainculturaçãoseráestudadaem detalhena segundaparte.
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Numalinhadeanálisequeserelaciona,eventualmente,com
o culturalismo,mas que proporcionasem dúvida uma riquíssima
informação,P. Burkel49estudao processodeenculturaçãodo mundo
populare distingueneleduasetapas:umaprimeiraquevai de 1500
a 1650e durantea qual o agenteda enculturaçãoé o clero;e uma
segunda,de 1650a 1800,naqualo agenteprimordialjá éplenamente
laico.A primeiraéacionadapelosurgimentodaReformaprotestante
eda Contra-Reformacatólicaque,apartirdepropostasdogmáticase
métodosde açãodiferentes,convergem,semdúvida,parao mesmo
objetivodepurificaroscostumesdaquiloqueaindarestadepaganis-
mo. E issotantono queserefereàsrepresentaçõesepráticasreligiosas
como àsoutraspráticasculturais,desdeas baladasatéasdançase a
medicina.As críticasdeErasmoaospredicantespopularessãoumaboa
mostradessaconvergência:nadade tolerânciacom a superstiçãoou
com os modos de expressãoem que ela se escondee, portanto,·
nenhumaconcessãoà linguagemvulgar,sobretudo"nenhumabusca
de emoçãoou de históriasque possamcausarriso". Desdeque os
trabalhosdeBakhtineEco nospermitiramcompreendera linguagem
eo risodo povo,entende-semelhoro sentidodesse"pôr-seseriamen-
te"dareligiãoedabuscaatodocustodeumarevoltadecostumesque
rompaamestiçagemdo sagradoe do profano.O racionalismoquejá
Le Goff detectavacomoo ingredientechavedaculturaclericalnaalta
IdadeMédia vaitornardifíceis,agorasim,osintercâmbios.Católicos
e protestantesentrevêemnasdançase nos jogos,nascançõese nos
dramasaquelasperigosasemoções,obscurossentimentose secretas
paixõesque dão asiloà superstição.Há diferençasentrecatólicose
protestantes,quecomportam,semdúvida,nãopoucascontradições.
Segundoprovamos testemunhosreunidospor Burke, enquantoos
católicosbuscama modificaçãodoscostumes,os protestantesempe-
nham-senumaaboliçãocompletadastradiçõese damoralpopular,e
isso em nome das "novasvirtudes"cristãscomo a sobriedade,·a
diligênciae a disciplina,querdizer,asquecompõema mentalidade
requeridapelaprodutividade.Falodecontradiçõesno sentidodeque,
100
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
emboraosprotestantesno princípioencorajassemasrevoltascampo-
nesas,rapidamenteconverteram-seem seus inimigos e foram os
primeirosa romperasrelaçõesentrefestae revoltapopularmediante
umaseparaçãoradicalentrecelebraçãoreligiosae festapopular.Ao
mesmotempoqueintroduzemem suascelebraçõeso idiomafalado
pelaspessoasabolindoo latim,eumcertotipodecançãopopularpara
musicaros hinos religiosos,os protestantesse tornammaise mais
intolerantescom tudo o que,na moraldaspessoas,contémsobrevi-
vênciasdavelhacultuta,comoaespontaneidade,arejeiçãoàpoupança,
quealimentasuagenerosidade,eumcertogostopeladesordemepelo
relaxamento.
Na segundaetapa,mais importanteque a repressãoé o
processode laicização,o des-encantamentodo mundoinduzidopela
expansãodosnovosmodosdeconheceretrabalhar,equeradicalizam
a rupturaentrea culturada minoriae a da maioria.Tanto Calvino
comoCarlos Borromeu,anotaBurke, criam no poderda magia;na
segundaetapa,maisqueumaheresia,a magiaseráconsideradauma
tolice:algoquejánãotemsentido.E assuperstições,emlugardeserem
vistascomofalsareligião,passaramaservistasprimeiroeestudadasde-
poiscomopráticasirracionais.De outrolado,adivisãodo trabalhoe
aestandardizaçãodecertosutensílios- cerâmica,relógios,lençóis-e a organizaçãodosespetáculospor instânciasinstitucionaisvãodei-
xando sem solo a redede intercâmbiode que se alimentavamas
culturaspopulares.
EdwardPalmerThompsondedicouaesse"perdero solo"-
a erosãoda "economiamoraldospobres"- um trabalhodehistória
querenovaradicalmentea concepçãoquesetinha dasrelaçõesentre
movimentossociaise dinâmicacultural.ParaThompsonnão é pos-
sívelumahistóriadaclasseoperáriasemqueelaassumaa memóriae
a experiênciapopulares,e não só comoantecedenteno tempo,mas
tambémcomo constituintedo movimentooperárioem si mesmo.
Propostaqueimplicarepensaros trêsconceitosbásicos:classe,povo
e cultura.150Uma classesocialé, segundoThompson, um modo de
101
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
experimentaraexistênciasocialenãoumrecortequasematemáticoem
relaçãoaosmeiosdeprodução."A classesurgequandoalgunshomens,
comoresultadodeexperiênciascomuns(herdadasou compartilhadas)
senteme articulama identidadedeseusinteressesentreelese contra
outroshomenscujos interessesS3.0 diferentesdos seus(geralmente
opostos)".151 Classeé,assim,umacategoriahistórica,maisqueeconô-
mica. E dizer isso significaromper tanto com o modelo estático
marxistaque derivaas classes,sua posiçãoe até sua consciência,
mecanicamentedeseulugarnasrelaçõesdeprodução,quantocomo
deumasociologiafuncionalistaquereduzasclassesaumaestratificação
quantitativaem termosdesalários,de tiposdetrabalhoou níveisde
educação.De ambosos ladosa tendênciaé pensaras classescomo
"entidades".Mas "asclassesnãoexistemcomoentidadesseparadasque
olhamaoredor,encontramumaclasseinimigaecomeçamlogoalutar.
Pelocontrário,asclassesseencontramnumasociedadeestruturadade
formadeterminada,experimentama exploração,identificampontos
de interesseantagônicos,começama lutar por estasquestõese no
processode luta sedescobremcomoclasse'.152Rompendocomumatenaz
tradiçãohistoriográfica,Thompsonrestabeleceasrelaçõespovo/classe
ao descobrirna multidãodosmotinspré-industriaisum sentidopo-
lítico atéentãodesprezadoou negadoexplicitamente.Mas averdade
équeadimensãopolíticadomotimnãoélegíveldiretamentenasações
esópodesercaptadaremetendo-seo motim à cultura dequefazparte:
umaculturapopularqueThompsonhesitaemqualificarcomocultura
"de classe"ma~que, semdúvida,"não podeserentendidafora dos
antagonismos,adaptaçõese (ocasionalmente)reconciliaçõesdialéticas
declasse".Se,emvezdejulgarmos,apartirdeumanoçãodogmática
do político,osmodosdelutadamultidão,inscrevermosnessesmodos
os antagonismosque suaculturaexpressae dialetiza,descobriremos
queéapartirdo "campodeforçasdaclasse"queasdiferentespráticas
recebemseusentido,aglutinam-see atéadquiremcoerênciapolítica:
dosmotinsatéapicarescazombariadasvirtudesburguesas,o recurso
à desordem,o aproveitamentosediciosodomercado,asblasfêmiasnas
102
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
cartasanônimas,ascançõesobscenase atéos relatosde terror.Pois
todosessessãomodose formasde fazerfrenteà destruiçãode sua
"economiamoral"edeimpugnarahegemoniadaoutraclassesimbo-
lizando politicamentesua força. Na cultura popular que vive a
passagemdo séculoXVIII parao XIX, Thompsondesnudaumaoutra
contradiçãodesprezada,fundamentalparaentenderaindahojeo fun-
cionamentodahegemonia.É a contradiçãoentreo conservadorismo
dasformase a rebeldiados conteúdos,uma"rebeldiaem nome do
costume",que paradoxalmenteexpressauma forma de defendera
identidade.Precisaríamosesperaratéa crisequea idéiade progresso
atravessahoje para entendermoso sentidodessacontradição,e o
"arsenalde protestos"que existeem muitasdaspráticase dos ritos
populares,invisívelarsenalparaquema partirde umanoçãoestreita
do políticoempenha-seempolitizar a culturadesconhecendoa carga
políticaocultaemnãopoucaspráticaseexpressõesculturaisdo povo.
Critica-seThompson por sua ênfasena continuidadeda
consciênciarebeldeeporversinaisderesistênciaondeoutrosnãovêem
senãomostrasde irracionalidade.153Mas é difícil rompercom uma
tradiçãoobstinadasemquenosvejamosobrigadosa extremarcertas
posições.O abaloaquesubmeteudeterminadasconvicçõeseaspistas
reveladasporesseabalocompensambem,semdúvida,osexagerosque. . .
sepreCIsacorngIr.
Um últimoavançona"revisão"daidéiasobreo popularnos
estudoshistóricosé o proporcionadopelatematizaçãodo gosto,da
sensibilidadeedaestéticapopulares.Há bempoucotempoo popular
eraa tal ponto consideradoo contráriodo culto,queseriaautomati-
camentedescartadode tudo aquilo que cheirassea "cultura".Nos
livrosdehistóriapodíamosnos informarsobreasfotmasdevestirou
comer,a músicadequegostavamou comoosricosorganizavamsuas
moradas;sobreospobressomentenosfalavamdesuaestupidezousuas
revoltas,suaexploração,seuressentimentoe seuslevantes:tudo isso
semcotidianidade,é claro,e semsensibilidade.Faço umacaricatura
mascreioquebemreconhecível.Por issoé tãorenovadorum estudo
103
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
comoo deZeldin,154no quala investigaçãodo últimoséculonaFran-
ça- 1848a 1948- nãoinformasomentesobreo bomgosto,mas
tambémsobreo "maugosto",e no qual constituempartedo queaí
aparececomo culturatanto os modosoficiaisde entendera saúde
quantoospopulares,e a decoraçãodo habitatdosbairrosoperáriose
atéo humor.Ao menosa "história"pareceter deixadode confundir
o "mau gosto"com a ausênciado gosto!
CULTURA, HEGEMONIA E COTIDIANIDADE
O caminhoquelevouasciênciassociaiscríticasa interessa-
rem-sepelacultura,eparticularmentepelaculturapopular,passaem
boapartepor Gramsci.Das"releituras",àsquaisosanos60foramtão
dados,houvepoucastãojustamentereclamadaspelomomentoquese
estavavivendo,e tãodecisivas,comoa deGramsci.Porém,maisque
deumareleitura,nestecasosetratadeumadescoberta,inclusivepara
não poucosmarxistas,de um filão de pensamentoque complexas
circunstânciashistóricastinham mantido quasecego,e que outra
conjunturadesnudava,traziaà luz.A análisedo porquêe do alcance
dessereencontrosefezdeum ladoe outro do Atlântico.155Aqui nos
interessaassinalarunicamenteo papeljogado pelo pensamentode
Gramsci no desbloqueamento,a partir do marxismo,da questão
culturale da dimensãode classena culturapopular.
Está,emprimeirolugar,o conceitode hegemoniaelaborado
por Gramsci,possibilitandopensaro processodedominaçãosocialjá
nãocomoimposiçãoapartirdeum exterioresemsujeitos,mascomo
um processono qual uma classehegemoniza,na medidaem que
representainteressesque tambémreconhecemde algumamaneira
comoseusasclassessubalternas.E "namedida"significaaquiquenão
há hegemonia,massim queelasefaze desfaz,serefazpermanente-
mentenum "processovivido", feitonãosó de forçamastambémde
sentido,deapropriaçãodo sentidopelopoder,deseduçãoe decum-
plicidade.O queimplicaumadesfuncionalizaçãodaideologia- nem
104
T
POVO E .MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
tudoo quepensamefazemossujeitosdahegemoniaserveà reprodu-
çãodo sistema- e umareavaliaçãodaespessurado cultural:campo
estratégicona luta paraserespaçoarticulador dosconflitos.156E em
segundolugar,o conceitogramscianodefolclorecomoculturapopu-
lar no sentidoforte,isto é, como "concepçãodo mundo e da vida",
que seacha"em contraposição(essencialmenteimplícita,mecânica,
objetiva)àsconcepçõesdemundooficiais(ou,emsentidomaisamplo,
àsconcepçõesdossetorescultosdasociedade)surgidascomaevolução
histórica".157Gramsciligaculturapopulara subalternidade,masnão
demodosimples.Poiso significadodessainserçãodiz queessacultura
é inorgânica,fragmentária,degradada,mastambémqueestacultura
temumaparticulartenacidade,umaespontâneacapacidadedeaderir
àscondiçõesmateriaisde vida e suasmudanças,tendoàsvezesum
valorpolítico progressista,de transformação.
Em um trabalhodeexplicitaçãoe desenvolvimentoda con-
cepçãogramscianadopopular,A. Ciresetomaporessencialo conceber
"apopularidadecomoumusoenãocomoumaorigem,comoumfato
e nãocomoumaessência,comoposiçãorelacionale nãocomosubs-
tância".158Quer dizerquefrentea todatendênciaculturalista,o valor
dopopularnãoresideemsuaautenticidadeou emsuabeleza,massim
emsuarepresentatividadesociocultural,emsuacapacidadede mate-
rializaredeexpressaro mododeviverepensardasclassessubalternas,asformascomosobreviveme asestratégiasatravésdasquaisfiltram,
reorganizamo quevemdaculturahegemônica,eo integramefundem
com o quevemde suamemóriahistórica.
O resgatepositivo da culturapopular num momentode
crise,como o que atravessamasesquerdas,não podia senãolevara
exageraressapositividade,até fazerda capacidadede resistênciae
respostadasclassessubalternasa chavequasemágica,a forçadonde
proviriao novo impulso"verdadeiramente"revolucionário.Se antes
uma concepçãofatalistae mecânicada dominaçãofazia da classe
dominadaum ser passivo,somentemobilizávelde "fora", agoraa
105
\ 1\
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
tendência será atribuir-lhe em si mesma uma capacidade de
impugnaçãoilimitada,umaalternatividademetafísica.O maisgrave
nestaoscilação,comoanotaGarcÍaCanclini, é que"insistiu-setanto
na contraposiçãoda culturasubalternae da hegemônica,e na neces-
sidadepolíticade defendera independênciada primeira,queambas
forampensadascomoexterioresentresi. Com o pressupostode que
a tarefada culturahegemônicaé dominare a da culturasubalterna
resistir,muitasinvestigaçõesnãoparecemfazeroutracoisaquenãoseja
pesquisarparaalémdasformascomoumae outraculturadesempe-
nham seuspapéisnestelibreto".159Mas o que quer que se tenha
alcançadoatéaí não significa,comoparecepensarGarcÍaCanclini,
queissoreveleoslimitesdo pensamentodeGramsci,já quenãocreio
queissosejaumamera"expansãoentusiasta"deseupensamento,mas
umaprofundadeformação,queconsisteemusaraspalavrashegemonia
e subalternidadepreenchendo-asdo conteúdode exterioridadeque
procuravamromper, só que agoraesseconteúdoestáinvertido:a
capacidadedeação- dedomínio,imposiçãoemanipulação-, que
antesera atribuídaà classedominante,é transferidaagorapara a
capacidadedeação,resistênciae impugnaçãodaclassedominada.E,
então,essadeformaçãofalaédadificuldadequeháno marxismopara
modificarcertosesquemasmentaise certospressupostos,queperma-
necemvivosemsuaaparentenegaçãoou superação.Enfim, a mesma
deformaçãoé a melhor provado acertoda concepçãogramsciana:
estamosem faceda hegemoniapoderosade um funcionalismoque
penetraascategoriasde seuadversárioatébloqueá-Ias.Um antropó-
logo italiano especialmentesensívele crítico da reencarnaçãodos
compartimentose das dicotomias que congelamo dinamismo
sociocultural- tantodolado"brando",o dosdesníveisno sentidoque
lhesdá Cirese,160quantodo "duro",o queexacerbaosantagonismos,
na linha deLombardiSatriani161- situao problemana impossibili- .•
dadeteórico-metodológicade "meter"o conceitoantropológicode
cultura na concepção marxista de classe social sem cair no
alternativismo,assimcomonadificuldadedeassumir,apartirdaárea
106
!
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
de interesseda demologia,o proletariadoindustrial, sem que o
obreirismoimpeçaqueseabordeacomplexidadedasinteraçõesentre
o culturaleo político.162Em todocaso,vero popularapartirdaótica
gramscianaredundatotalmentecontrárioao facilismomaniqueísta
queGarcÍaCanclini critica.Sealgonosensinoué a prestaratençãoà
trama:que nem todaassimilaçãodo hegemônicopelo subalternoé
signodesubmissão,assimcomoamerarecusanãoé deresistência,e
quenemtudoquevem"decima"sãovaloresdaclassedominante,pois
há coisasquevindo de lá respondema outraslógicasquenãosão.as
da dominação.
A tramase faz maisestreitae contraditóriana cultura de
massa.E a tendênciamaniqueístana hora de pensara "indústria
cultural"serámuitoforte.Mas,paralelaaumaconcepçãodessacultura
comomeraestratégiadedominação,surgeoutramuitomaispróxima
dasidéiasde Gramscie Benjamin.Uma obrapioneiranessadireção
é Theusesofliteracy,deR. Hoggart,publicadaem1957.Nelaseestuda
o quea culturademassafazcomo mundodacotidianidadepopular
e a formacomoaquelaculturaé percebidapelaexperiênciaoperária.
Na primeiraparteHoggart investigapor dentro, a partir da vida
cotidianadaclasseoperáriainglesa,aquiloqueconfiguraomundovivo
da experiênciapopular. Um método que combina a pesquisa
etnográficacom a análisefenomenológicapossibilitatrabalharessa
experiênciasemo menor indício de culturalismo,já que a cultura
resgatadanãoé nuncaalgoseparadodascondiçõesmateriaisde exis-
tência. Tem-se reprovadonessadescriçãoa ênfaseexcessivana
coerênciadaspráticaspopulares,masessasensaçãodehomogeneidade
e coerênciaprovémtalvezprincipalmentedo métodode exposição
adotado,quecolocaa açãodo massivo"depois"da descriçãodo que
permanecedeculturatradicionalno estilodevidadasclassespopula-
res.Esseestilode vida entreteceumabipartiçãodo universosocial
entre"elesenós",eumafortevalorizaçãodocírculofamiliar,comuma
grandepermeabilidadeàsrelaçõesdegrupo,especialmenteasdevizi-
nhança,ummoralismoquemisturaogostodo concretocomumcerto
107
I
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
cinismoostentatório,umareligiosidadeelementare um sabervivero
dia,queécapacidadedeimprovisaçãoesentidodoprazer.Há também,
nesseestilodevidapopular,conformismobaseadonadesconfiançaem
relaçãoàsmudanças,certograude fatalismoqueseapóiana longa
experiênciadeseudestinosócio-econômico,eumatendênciaarecluir-
se,a encerrar-seno pequenocírculoquandoascoisassaemmal.
A açãoda indústriaculturalapareceestudadae avaliadaa
partir de um critériobásico:"O efeitodasforçasde mudançaestá
essencialmentecondicionadopelo grauem quea atitudenova pode
apoiar-sesobreumaatitudeantiga".163O quenãoimpedequea ação
do massivosejapor suavezsentidacomoumaoperaçãodedespossessão
cultural.Na articulaçãodessesdoiscritériosseencontrao fundamento
da propostaquepermitea Hoggartdenunciara chantagemmasnão
pouparpor issoa necessidadedeestudarde ondee comoseproduz.
Assim,por exemplo,quandoanalisao funcionamentodeumaimpren-
sa"que,parainclinarosmembrosdaclassespopularesà aceitaçãodo
statusquo, seapóiasobrevalorescomoa tolerância,a solidariedadee
o gostopelavida,nosquaisháapenascinqüentaanosseexpressavaa
vontadedasclassespopularesdetransformarsuascondiçõesdevidae
conquistarsuadignidade".164Assimseencontrasintetizadode forma
explêndidao funcionamentoda hegemoniana indústriacultural:o
encaminhamentodeum dispositivodereconhecimentoedaoperação
de expropriação.Hoggarttraçao mapadessasoperaçõesque"explo-
ram"asaspiraçõesdeliberdadeesvaziando-asdeseusentidoderebeldia
e preenchendo-asde conteúdoconsumista,quetransformama into-
lerância em indiferença ou o sentimento de solidariedade em
igualitarismoconformista,e o apegoàsrelaçõesestreitas,pessoais,na
torpe"personalização".Com o quea intuiçãodeBenjaminencontra
suamaisplenaconfirmação:a razãosecretado êxitoe a do modo de
operarda indústriacultural remetemfundamentalmenteao modo~.
comoestaseinscreveemetransformaaexperiênciapopular.E a essa
experiência- queémemóriaeprática- remetetambémo mecanis-
mo com o qual as classespopularesfazem frente inconscientee
108
I
".
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
eficazmenteaomassivo:a visãooblíquacomquelêem"tirandoprazer
daleiturasemqueelaimpliqueperderaidentidade",comoo demons-
tra o fato de que, comprandoos jornais conservadores,vota no
trabalhismoe vice-versa.
Os obstáculosparapensaratramadequeestáfeitaaindústria
culturalprovêmtantoda dificuldadedecompreendero modo como
ela que articulao popularquantoda diversidadede dimensõesou
níveisemqueoperaamudançacultural.RaymondWilliams dedicou
boa partede suasinvestigaçõesao estudodo segundoaspecto,mas
ligado muito de perto ao primeiro.165Começandopor uma des-
construçãohistóricado conceitomesmode cultura,quedesmontaa
malhade representaçõese interessesqueseentretecemneledesdeo
momentoemquedeixadedesignarodesenvolvimentonaturaldealgo,
a culturacomo cultivodeplantas,animaisou "virtudes"no homem.
É no séculoXVIII quandoculturacomeçaa significaralgo em si
mesma,um valorquesetem,oumelhor,quesóalgunstêmoupodem
aspirara ter. A operaçãode espiritualizaçãovai de par com a de
exclusão,pois a verdadeiraculturase confundecom educação,e a
educaçãosuperior- artese humanidades- ficaráreservadaaos
homenssuperiores.Assimiladaà vida intelectual,por oposiçãoà
materialidadequedesignaa civilização,a luta seinterioriza,sesubje-tiva,seindividualiza.Mas nessepontoo conceitoexplode,serompe
e passaa designar,já em meadosdo séculoXIX, seu"contrário",o
mundodaorganizaçãomaterialeespiritualdasdiferentessociedades,
das ideologias e das classessociais. Junto ao movimento de
desconstrução,Williamslevaacabooutrodereconstruçãodoconceito
queinteressamaisao nossodebate.Trata-se,por um lado,da emer-
gênciada cultura comum,datradiçãodemocráticaquetemseueixona
cultura da classetrabalhadora:e por outro, da elaboraçãode um
modeloquepermitadar contada complexadinâmicadosprocessos
culturaiscontemporâneos.166No querespeitaàemergênciadopopular
comocultura,o maisnotáveldo trabalhodeWilliams éaformacomo
captaa articulaçãodaspráticas.
109
II
,11
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Assim,paraestudara imprensapopular,167investigaasme-
diaçõespolíticas- formasde agrupamentoe expressãodo protes-
to -, a relaçãoentreaformadeleiturapopulareaorganizaçãosocial
datemporalidade,o lugardeondevêmosmodosdenarrarassimilados
por essaimprensa- oratóriaradical,melodrama,sermõesreligio-
sos- e asformasdesobrevivênciae comercializaçãodaculturaoral.
A linhadefundo,quepermiteenlaçartodaessavariedadedepráticas,
éamesmadeHoggart;o massivotrabalhandopor dentrodo popular.
De modoqueapossibilidadedecompreendero querealmentesepassa
na imprensapopulartemtantoou maisa vercomo quesepassana
fábricae nataberna,nosmelodramasenoscomícioscomseualarido,
com suasfaixase seuspanfletos,quecom o quesepassano mundo
dosperiódicosmesmo.Semqueissosignifiquerebaixara importância
da revoluçãotecnológicae seu"seqüestro"peloscomerciantes.
A construçãopor Williams de um modeloparapensara
dinâmicacultural contemporâneatem duas frentes.A teórica,que
desenvolveasimplicaçõesda introduçãodo conceitogramscianode
hegemonianateoriacultural,deslocandoaidéiadeculturado âmbito
da ideologiacomoúnicoâmbitopróprio,istoé,dareprodução,atéo
campodosprocessosconstitutivos,eportantotransformaçõesdo social.
E a metodológica,mediantea propostade umatipologiadasforma-
ções culturais que apresentatrês "estratos":arcaico, residual e
emergente.Arcaicoéo quesobrevivedopassadomasenquantopassado,
objeto unicamentede estudoou de rememoração.À diferençado
anterior,o residualé "o que,formadoefetivamenteno passado,acha-
se hoje, contudo, dentro do processocultural (...) como efetivo
elementodo presente".168É a camadapivô, e se torna a chavedo
paradigma,já queo residualnãoéuniforme,mascomportadoistipos
de elementos:os que já foram plenamenteincorporadosà cultura
dominanteou recuperadospor ela,eosqueconstituemumareservade "
oposição,a impugnaçãoaosdominantes,osquerepresentamalterna-
tivas.A terceiracamadaé formadapelo emergenteque é o novo, o
processodeinovaçãonaspráticasenossignificados.E issotampouco
110 .'3
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
éuniforme,poisnemtodonovoéalternativoàculturadominantenem
paraela funcional.A diferençaentrearcaicoe residualrepresentaa
possibilidadede superaro historicismosemanulara história,e uma
dialética do passado-presentesem escapismosnem nostalgias.O
emaranhamentode que estáfeito o residual,a tramanele do que
pressionapor tráse o querefreia,do quetrabalhapeladominaçãoe
o que,resistindoaela,searticulasecretamentecomo emergente,nos
proporcionaa imagemmetodológicamaisabertaeprecisaquetemos
atéhoje.E umprogramaquenãoésódeinvestigação,masdepolítica
cultural.
A idéia-matrizqueorientao programadetrabalhodesenvol-
vido por Bourdieuéa queelemesmocolocoucomotítulodo estudo
sobreo sistemaeducativo:ade reprodução.Pensarareproduçãoépara
Bourdieua formadetornarcompatívelno marxismoumaanáliseda
culturaqueultrapassesuasujeiçãoàsuperestruturamasqueo tempo
todo desveleseucaráterde classe.Da investigaçãosobreo sistema
educativoatéos trabalhossobreo conhecimentoou a arte,essepro-
pósitoseviu operacionalizadono conceitode habitus de classe,queé
o quemantémpor suaveza coerênciado trajetoe dominasuateoria
geraldaspráticas.Em suaprimeiraversão,o habitusé definidocomo
"o produtodainteriorizaçãodosprincípiosdeumexpedientecultural,
capaz de perpetuar nas práticas os princípios do expediente
interiorizado".169E seu modo de operaçãoé caracterizadopela
moldagemdaspráticassegundoosdiferentesmodosde"relaçãoa"-
a linguagem,aarte,aciência- queresultamdasdiferentesmaneiras
deaquisiçãodessesbensculturais."Em matériadeculturao modode
adquirir seperpetuano que é adquiridosob a formade uma certa
maneirade usá-Io,o modo de aquisiçãoexpressaem si mesmoas
relaçõesobjetivasentreascaracterísticassociaisdaquelequeadquiree
a qualidadesocialdo adquirido".170Dessadefinição,que em sua
generalidadesemantémsemdúvidaligadaa umaconcepçãorestrita
do cultural,passaráBourdieuaumapropostadeanálisedacompetência
cultural totalmentecentradanumateoriageraldaspráticas.Nela, o
111
lil
II
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
habitusdeixadeservistodefora- oproduto- parapassaraser"um
sistemadedisposiçõesduráveisque,integrandotodasasexperiências
passadas,funcionacomo matrizde percepções,de apreciaçõese de
ações,e tornapossívelo cumprimentode tarefasinfinitamentedife-
renciadas".17lAnalisadaa partir dos habitusda classe,a aparente
dispersão das práticas cotidianas revela sua organicidade, sua
sistematicidade.Onde nãohaviasenãocaosevaziodesentido,desco-
bre-seumahomologiaestruturalentreaspráticaseaordemsocialque
nelasse expressa.Nessaestruturaçãoda vida cotidianaa partir do
habitusé quesefazpresentea eficáciada hegemonia"programando"
asexpectativaseosgostossegundoasclasses.E poraípassamtambém
os limitesobjetivos-subjetivosqueproduzemasclassespopulares.172
O campoemqueo habitusfuncionamaismascaradamente
éo daarte.Terrenopor excelênciadanegaçãodo social,ésemdúvida
aqueleemquedemodomaisfortesedemarcamasdiferentesformas
de relaçãocom a cultura.Fabulosoparadoxoquesendoa músicaa
mais"espiritual"dasartesnãohajanadacomoosgostosmusicaispara
afirmar a classee distinguir-se.Eis aí a palavraque em seu jogo
semânticoarticulaasduasdimensõesda competênciacultural:a dis-
tinção,feita de diferençase de distância,conjugandoa afirmação
secretado gostolegítimoe o estabelecimentode um prestígioque
procuraadistânciairrecuperávelparaaquelesquenãopossuemogosto.
É o queemcastelhanodiz a frase"terclasse",equeestábempróxima
do jogo desentidoqueocorreao dizeremqueumapessoaé "culta",
istoé,quepossuiculturalegítimaenquanto"domínio,práticaesaber
dosinstrumentosdeapropriaçãosimbólicadasobraslegítimasou em
viasdelegitimação".173Mas aafirmaçãodadistinçãonãoselimita aos
terrenosda arte,todaa vida é seucampode operação:o vestuárioe
aalimentaçãocomoo esportetambémsolicitamerevelamaafirmação
declasse.De modoqueosquehabitamaculturalegítimaacabampor
vivê-Iacomoverdadeirosindígenas.E é a issoqueBourdieuchama
etnocentrismodeclasse,ao "considerarnatural,querdizer,ao mesmo
tempoóbviaefundadananaturezaumamaneiradeperceberquenão
112
~
-f
I
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
émaisqueumaentreoutraspossíveis".174Etnocentrismoqueconverte
a divisãode classesemsuanegação:a negaçãode quepodemexistir
outrosgostoscomdireitoa seremtais.Uma classeseafirmanegando
aoutrasuaexistêncianacultura,desvalorizandopuraesimplesmente
qualqueroutraestética,istoé,qualqueroutrasensibilidade,queéo que
emgregoquerdizerestética.Afirmadanadistinção,aculturalegítima
rechaçaantesdetudoumaestéticaquenãosabedistinguirasformas,
osestilose sobretudoquenãodistinguea artedavida.É o queKant
chamavao "gostobárbaro",o quemisturaasatisfaçãoartísticacoma
emoçãofazendodestaa medidadaquela,essemesmoqueescandaliza
Adorno aoencontrá-Ioinformandoa indústriacultural.Mais adiante
abordaremosaquestãodaestéticapopular,sobreaqualBourdieutraça
ummapaque,emboracorrespondatambémaumcertoetnocentrismo,
nãocaitodavianemno dualismokantianonemno populismo,como
o demonstraaoafirmarque"atentaçãodeprestaracoerênciadeuma
estéticasistemáticaàstomadasdeposiçãoestéticadasclassespopulares
nãoémenosperigosaqueainclinaçãoasedeixarimpor,semnosdar-mosconta,a representaçãoestritamentenegativadavisãopopularque
estáno fundo detodaestéticaculta".175Como dissedesdeo início, a
idéiaqueorientaaconcepçãoque iourdieutemdo queéumaprática
acabapor colocara reprodu\~ãoumo processosocialfundamental.
A partir daí Bourdieuelabon:'. . 11 modelomaisaberto,completo
e menosmecânicopossívelparacompreendera relaçãodaspráticas
comaestrutura,masdeixoudefora,nãopensada,a relaçãodaspráti-
cascom as situaçõese o que a partir delasseproduzde inovaçãoe
transformação.
Uma dascríticasmaiscerteirasàsimplicaçõesdesserecorte,
eumadasintençõesmaisexplíticasparaincluirnareflexãoesse"outro
lado"daspráticas,foi aempreendidaporCerteau.176É muitoperigoso
pensarquea únicasistematicidadepossívelnaspráticas,a únicapos-
sibilidadedeinteligibilidade,lhesvenhadalógicadareprodução.Isso
equivaleriaa deixarsemsentidotodoum outroprincípiodeorganiza-
çãodo sociale de algummodo todo um outro discurso.E nãopara
113
'11,I
I'
li!'
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
negaro quenumateoriacentradanohabitusseresgata,masparatornar
pensávelo queaí nãotemrepresentação,Certeaupropõeumateoria
dos usoscomooperadoresde apropriaçãoque,sempreemrelaçãoa um
sistemadepráticasmastambéma umpresente,a um momentoe um
lugar, instauramuma relaçãode criatividadedispersa,oculta, sem
discurso,a da produçãoinseridano consumo,a quesefazvisívelsó
quandotrocamosnãoaspalavrasdoroteiro,maso sentidodapergun-
ta:quefazemaspessoascomo queacreditam,como quecompram,
como quelêem,como quevêem.Não há umasólógicaqueabarque
todasasartesdo fazer.Marginalao discursoda racionalidadedomi-
nante,refratárioa deixar-semedirem termosestatísticos,existeum
modo de fazercaracterizadomaispelas tdticasque pela estratégia.
Estratégiaéo cálculodasrelaçõesdeforça"possibilitadopelapossede
um lugarpróprio,o qualservedebaseàgestãodasrelaçõescom uma
exterioridadediferenciada". Táticaé,pelocontrário,o modo de ope-
ração,deluta,de"quemnãodispõedelugarpróprionemdefronteira
que distingaao outro comoumatotalidadeviSÍvel":177o que faz da
táticaum modo de açãodependentedo tempo,muito permeávelao
contexto,sensívelespecialmenteà ocasião.É o modo como operaa
perrouque, essamaneiracomo os operários,aproveitando"horasli-
vres",utilizammateriaisdo lugarondetrabalhame com asmesmas
máquinasdeseuofíciofabricamutensíliosparasuafamília,aomesmo
tempoqueliberamacriatividadecastradapeladivisãoepelotrabalho
emcadeia.É ap,áticadaspopulaçõesdo nordestebrasileirointrodu-
zindo no discur,soreligiosoastutamentefatosdavida,da atualidade,
o que convertea narraçãodo milagredo santoem uma forma de
protestocontraa inalterabilidadeda ordem,quedeixaassimde ser
ordemdanaturezae setornahistória.Sãoosmodosde ler-ouvirdas
pessoasnão-letradasinterrompendoalógicadotextoerefazendo-aem
funçãoda situaçãoe dasexpectativasdo grupo. •
Certeaupensaqueoparadigmadessaoutralógicaacha-sena
culturapopular.Não setrata,emnenhumsentido,deumaida atéo
passadoou atéo primitivoembuscadeum modeloparao autêntico
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
ou o original.Contra a tendênciaa idealizaro popular,contraesse
"cultocastrador",CerteautemreconstruÍdoosmarcosdesuaprópria
históriaeo mapadoqueessecultoencobre.17sA culturapopularaque
se refereCerteaué a impura e conflitivacultura popular urbana.
Popularéo nomeparaumagamadepráticasinseridasnamodalidade
industrial,ou melhor,o "lugar"apartirdo qualdevemservistaspara
sedesentranharemsuastáticas.Culturapopularfalaentãonãodealgo
estranho,masde um restoe um estilo.Um resto:memóriada expe-
riênciasemdiscurso,que resisteao discursoe se deixadizer só no
relato.Resto feito de saberesinúteisà colonizaçãotecnológica,que
assimmarginalizadoscarregamsimbolicamentea cotidianidadee a
convertemem espaçode umacriaçãomudae coletiva.E um estilo,
esquemadeoperações,mododecaminharpelacidade,habitaracasa,
de ver televisão,um estilode intercâmbiosocial,de inventividade
técnicae resistênciamoral.
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14
15
16
17
NOTAS
Maquiavel,Discorsi.LivroL No Príncipe,opovosurgeconstituídoemator
políticoquandoencontraumpríncipequedávozaseusentiremobilizasua
vontade.
J. J. Rousseau,Du contratsocial,Livro I, capoVII. Ver tambémM.
HorkheimereTh. W. Adorno,Dialécticadei Iluminismo,BuenosAires,
1971,eL. Goldman,La philosophiedesLumiéres,Paris,1970.
]. Mairet,"PuebloyNación",emHistoria deIasideologias,vol.III, p.47.
]. Habermas,Historiay críticadeIa opini6npública, pp. 118e 133.
H. Lefébvre,Introduction a Ia modernité,p. 194.Ver também:Iris M.
Zavala,Romdnticosy socialistas,Madri, 1972.
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A. M. Cirese,EnsayosobreIasculturassubalternas,p. 74.
E. J. Hobsbawm,Las revolucionesburguesas,vol.lI, pp.473sS.
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B. Mouralis,"Discoursdupeupleetsurlepeuple",emLescontralittératures,
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CitadoemT. Kaplan,OrígenessocialesdeianarquismoenAndalucía,p. 159.
C. Castoriadis,"La cuestióndeIahistoriadelmovimientoobrero",em
Introducci6naLa experienciadeimovimientoobrero,Barcelona,1979.
Ibidem,p. 70.
Ver emespecial,L. Litvak,Musa libertaria,Barcelona,1981.E. Olivé,
PedagogíaobreristadeIa imagen,Barcelona,1978.C. H. Coob,La cultura
y elpueblo, Barcelona,1980.M. Siguan,Literatura popular libertaria,
Barcelona,1981.
P. Solá,Eisateneusobrersi Iaculturapopulara Catalunya,Barcelona,1978.
Tambémo livrojácitadodeC. H. Coob.
C. E. Lida, "EducaciónanarquistaenIa EspanadelOchocientos",em
Revistade Occidente,n. 97, 1971.
Doistextosfundamentaisaesserespeito:A. Reszler,La estéticaanarquista,
CidadedoMéxico,1945,eo jácitadodeL. Livak,Musa libertaria.
L. Livak,op.cit.,p. 65.
Ibidem,pp.321e322.
R. Barthes,Mitologías,pp.41e42.
TomamosaexpressãonosentidoquelhedáprecisamenteReszlerparaopô-
10 no terrenoda análiseculturalao marxismo"antidogmático",em
Marxismoy Cultura, p. 83.
Veraanálisequeaessepropósitofez].-P.SartreemQuestionsdeméthode,
pp.27ss.
Referimo-nosaLa fõrmaci6nhist6ricadeIa cfaseobrera,3vols.,Barcelona,
1977.
Essaproblemáticaseráobjetodeumatematizaçãoexplícitana terceira
parte,aoabordar-searelaçãoentremassificação,formaçãodasculturas
nacionaisepopulismo.
E. Laclau,Política e ideologíaenIa teoríamarxista,p. 125.
E. deIpola,Ideologíay discursopopulista,p. 105.
O. Sunkel,Raz6ny pasi6nenIaprensapopular,p. 41.
Ibidem,p.43.
R. Bahro,La alternativa,pp. 51ss.
Lenin,"Notascríticassobreelproblemanacional",emSobreIa literatura
y elarte,BuenosAires,1946.
117
I
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
38 A. Argumedo,Conscienciapopulary conscienciaenajenada,p.4.
39 P. Clastres,Investigacionesenantropologíapolítica,p. 170.
40 M. Lauer,Crítica dela artesanía,p.49.
41 Sobreessedebate,naEspanha:C. H. Coob,La culturay elpueblo,Barce-
lona,1980;naFrança:M. Martinet,Cultureproletarienne,Paris,1976.
42 A. Swingewoodestabeleceessaidealizaçãoemdoistermos:"Aodespojara
culturaproletáriadesuabasehistóricaesuarelaçãocomaclassedominante
e a ideologiadominante,temsedesenvolvidoummitodeumacultura
proletáriapura", emEl mitodeIa culturademasas,p. 48.
43 Veraesserespeito:J. L. Najenson,"Cultura,ideologíaydemoeidio",em
AméricaLatina, ideologíay cultura,pp.52a82.
44 G. Jiménez,"LaculturaenIatradiciónmarxista",emPara unaconcepción
semióticadela cultura,p. 17ss.VertambémE. deIpola,"Soeiedad,ideo-
logíaycomunicaeión",emComunicaciónycultura,n. 6,pp. 171a 187.
45 A. Rezsler,Marxismoy cultura,p. 104.
46 Ver o livrodeL. Chevalier,ClaseslabourieusesetclasesdangereusesàParis
pendant IapremieremoitiéduXIX siecle,Paris,1958.
47 M. Martín-Serrano,La mediaciónsocial,p. 16.
48 S. Giner,Sociedadmasa,p.45.
49 A elaestádedicadaasuaobraDeIadémocratieenAmérique,aprimeiraparte
publicadaem 1835e a segundaem 1840.Ediçãoqueuso: Gallimard,
1951.A traduçãocastelhana:Guadarrama,Madri, 1969.
50 A. deTocqueville,op.cit.,v. lI, p.215.
51 Ibidem.p, 324.
52 R. Sennett,"LoqueTocquevilletemía",emNarcisismoy culturamoderna,
p.l07.
53 CitadoemS.Giner,Sociedadmasa,p. 84.
54 Há traduçãocastelhana:Psicologíade Ias muchedumbres,BuenosAires,
Albatros.
55 S.Freud,"PsicologíadeIasmasasy análisisdelyo",emObrasCompletas,
p. 2566,notaderodapé.
56 Ibidem,p.2575.
57 Ibidem,p.2572.
118
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POVO E MASSA NA CULTURA, OS MARCOS DO DEBATE
58 W. Reich,La psicologíademasasdeifascismo.DoisanosdepoispublicaLa
sexualidadeneldebatecultural,obraemquecontinuaaanálisedopapel
desempenhadopelasexualidadenaformaçãodasmassaspelonazismo.
59 Reichparle deFreud,p.46.
60 W. ReichemSexualidad:liberdado represión,p. 100.
61 Ibidem,p. 102.
62 Alcan,Paris,1901.
63 Sobreessatransformação:R. Sennett,El declivedei hombrepúblico,
pp. 159ss.
64 F. Tonnies,Comunidady sociedad,BuenosAires,1947.
65 J. Ortegay Gasset,La rebelióndeIasmasas,EditorialEspasa-Calpe,S.A.,
Madri, 1937,começouaserpublicadoemumdiáriodeMadriem1926.
A ediçãoqueuso éade 1961.O. Spengler,La decadenciade Occidente,
Madri,EditorialEspasa-CalpeS.A.,1925.
66 J. Ortegay Gasset,op.cit.,p. 37.
67 Ibidem,p. 62.
68 Doislivrosqueestabelecemarelaçãoentreambososespaçosdainsurreição:
M. Tunón deLaraetal., Movimiento obrero:política y literatura en Ia
Espanacontempordnea,Madri,1974;V. Fuentes,La marchaaipuebloenlas
letrasespanolas,Madri, 1980.
69 A. Reszler,Marxismoy cultura,p.72.
70 O. Spengler,op.cit.,p. 370.
71 Th. W. Adorno,Crítica culturaly sociedad,p. 28.
72 H. I. Schiller,Comunicacióndemasase imperialismoyanqui, p. 12.
73 D. Bell,"Modernidadysociedaddemasas",emlndustriaculturaly sociedad
de masas,p. 16.
74 Ibidem,p.17.
75 Trintaanosdepois,Belljáadmitiráaexistêncianãodedesníveis,masde
contradiçõesnacultura:Las contradiccionesculturalesdeIcapitalismo,
Madri, 1977.Voltaremosaessepontomaisadiante.
76 E. Shills,"La sociedadde masasy sucultura",em Industria culturaly
sociedaddemasas,p. 158.
119
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
D. M. White,"A culturademaSsanosEstadosUnidos",em Cultura de
massa,p. 29.
D. Riesman,La muchedumbresolitaria,p. 19.
Ibidem,p. 35.
D. Bell,emIndustria eulturaly sociedaddemasas,p. 14.
B. Rosemberg,"A culturademassanosEstadosUnidos",emCultura de
massa,p. 25.
McLuhan,La comprensióndelosmedios,p. 51.
C. W. Mills, La élitedeipoder,CidadedoMéxico,1957.
H. Arendt,La CrisedeIa eulture,Paris,1972.
M. Horkheimery Th. W. Adorno, Dialéctica dei Iluminismo, Buenos
Aires,EditorialSur, 1971.
M. HorkheimereTh. W. Adorno,op.cit.,pp. 147,148e 165.
Ibidem,p. 15I.
Ibidem,184.
Ibidem,153.
Th. W. Adorno,La ideologíacomolenguage,p. 24.
Ibidem,p. 30.
DialécticadeiIluminismo,p. 188.
Th. W. Adorno,Crítica culturaly sociedad,p. 210.
Ibidem,p.213.
Th. W. Adorno,Sociológica,p. 8I.
DialécticadeiIluminismo,p. 170.
Th. W. Adorno,Teoríaestética,26.
Ibidem,p. 30.
Paraumacríticada"identificaçãodaorigemdaartecomoadventodeseu
conceitounitário":M. Lauer,Crítica deIa artesanía,pp.22ss.
Th. W. Adorno,Teoríaestética,p. 51.
Ibidem,p.414.
Ibidem,p. 416.
120
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POVO E MASSA NA CULTURA, OS MARCOS DO DEBATE
Ver o númeromonográficodaRevued'Esthétique,n. 1,1981,dedicadoa
W. Benjamin,eoPrólogodeJ. AguirrenotomoI delluminaciones,Madri,
1980.
EscreveAdorno:"Seumétodomicrológicoefragmentárionuncaseade-
quouplenamenteàidéiademediaçãouniversalqueemHegeleemMarx
fundaatotalidade",emCrítica eulturaly sociedad,p. 124.
W. Benjamin,"EInarrador",emRevistadeOccidente,n.129,1973,p.306.
CitadoporJ. Aguirreno PrólogoaDiscursosinterrumpidos,vaI.I, p. 11.
W. Benjamin,Discursosinterrumpidos,vaI.I, p. 24.
Ibidem,p. 25.
Ibidem,p. 52emnotaderodapé.
Ibidem,p. 187.
Ibidem,p. 184.
Ibidem,p. 44.
W. Benjamin,Iluminaciones,vaI.11,p. 32.
Ibidem,p. 75.
Paraumacríticadessavisãoesuasconseqüênciasnateoriaenapolítica:A.
Mattelartel-Mo Piemme,"Lasindustriasculturales:génesisdeunaidea",
emUNESCO, Industriasculturales:elfuturo deIa cultura,pp.62a 81.
EssacríticaéformuladaaosfrankfurtianosporA. SwingewoodemEI mito
deIa culturademasas,p. 80.
l Habermas,"L'ActualitédeW. Benjamin",emRevued'Esthétique,n. 1,
p. 116.
CitadoporHabermasnaRevued'Esthétique,p. 120.
Referimo-nosàexpostaemL 'Espritdu temps,Paris,1962.
P. Bourdieuel-C. Passeron,Mitosociología,Barcelona,1975.
"DeIaculturanalyseaIapolitiqueculturelle",emCommunications,n. 14,
1969,pp.5 a39.
E. Morin, L 'Espritdu temps,p.77.
Veja-seaanálisedeR. Barthessobrea"Estructuradelsuceso",emEnsayos
críticos,Barcelona,1967.
121
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
123
145 C. Ginzburg,op.cit.,p. 103.
146 Ibidem,p. 72.
147 R. Muchembled,Culturepopulaireeteulturedesélites,Paris,1978.
148 EstepontoserátrabalhadonoCapítulo1dasegundaparte.
149 P. Burke,Culturapopolarenell'Europamoderna,Milão, 1980.
150 E. P. Thompsonsemovedentrodalinhadetransformaçãodosestudos
históricosqueincluiostrabalhosdeHobsbawmeG. Rudé,massedistancia
delespelaimportânciaqueatribuià experiênciaculturaldasclassespopu-
laresparaalémdofuncionamentoideológicodessasculturas.
151 E. P. Thompson,Ia jOrmaciónhistóricadeIa claseobrera,vaI.I, p. 8.
152 E. P. Thompson,Tradición, revueltay concienciadeclase,p. 37.
153 M. Shiach,Analysisof the Conceptof 'thePopular' in theCulture Sudies,
pp. 58ss.
154 Th. Zeldin,Histoiredespassionsftançaises,vaI.3:Goútetcorruption,Paris,
1979.
155 C. BuciGlucsman,Gramsciy elEstado,Cidadedo México,1980;I. c.
Portantiero,Ios usosde Gramsci,CidadedoMéxico,1981.
156 De Gramsciemcastelhano:Antología,seleção,traduçãoe notasdeM.
Sacristán,SiglaXXI, CidadedoMéxico,1974;Culturay literatura,seleção
deJordiSolé-Tura,EdicionesPenínsula,Barcelona,1977.Paraumadeli-
mitaçãodoconceitodehegemonia:P.Anderson,Sur Gramsci,emespecial
ocapítulointitulado"Hegemonie:I'histoireduconcept",pp.23a44;Ch.
Mouffe,"HegemoníaeideologíaemGramsci"em Arte, sociedad,ideolo-
gia, n. 5,CidadedoMéxico,1978.
A. Gramsci,Culturay literatura,p.329.
A. Cirese,EnsayossobreIasculturassubalternas,p. 51.
N. GarcÍaCanclini,"GramsciconBourdieu",emNuevasociedad,n. 71,
p.70.
GarcÍaCanclinitemumacríticaexplícitaaoconceitode"desnívelcultural"
emIas culturaspopularesenelcapitalismo,pp.69e70.
L. M. LombardiSatriani,Apropiacióny destruccióndela culturadeIasclases
subalternas,CidadedoMéxico,1978.
P. Clemente,"Il cannocchialesulleretrovie- Notesuproblemidicampo
edi metodo di unapossibiledemologia",em Ia ricercajOlklorica, n. 1,
157
158159
160••
I
161
162
~.
122
124 E. Morin, L 'Espritdu temps,p. 104.
125 O n. 18darevistaCommunicationsde1972,estádedicadointeiramenteà
análisedo acontecimento,ealémdecoordenaressenúmero,E. Morin
publicaneleumtextodecisivo:Ie Retourdel'evénement,pp.6 a20.
R. Vaneigem,Tratadodeisabervivir para usode lasjóvenesgeneraciones,
p.24.
É o títulodaobradeGuy Debord,Paris,1971.
M. Foucault,Un didlogosobreelpoder,p. 15.
J. Baudrillard,"LaimplosióndelsentidoenlosmediayIaimplosióndeIasocialenIasmasas",em Alternativaspopularesa Ias comunicacionesde
masa,p. 106.
I. Baudrillard,A Ia sombradeIasmayoríassilenciosas,p. 67.
I. Baudrillard,"La implosióndelsentido...", p. 111.
Ibidem,p. 115.
J. Habermas,Problemasdelegitimaciónenel capitalismotardio,p. 71.
Referimo-nosa D. Bell, Ias contradiccionesculturalesdei capitalismo,
Madri, 1977;eR. Sennett,El declivedeihombrepúblico,Barcelona,1978.
J. Habermas,"L'ActualitédeW. Benjamin",emRevued'Esthétique,n. 1,
p.127.
Trata-sedeumaproblemáticaabordadaespecialmenteporMarcuse,tanto
emsuacríticadarazãoburguesa,quantonadaunidimensionalidade.Veja-
secomosíntesedesuaposição:"ApropósitodeIacríticadelhedonismo",
emCulturay sociedad,BuenosAires,1967.
137 R. Sennett,Narcisismoy culturamoderna,Barcelona,1980.
138 C. Ginzburg,El quesoy losgusanos,p. 22.
139 I. LeGoff, Tiempo,trabajoy culturaenel Occidentemedieval,versãocaste-
lhanadePour uneautreMoyenAge,p. 10.
140 Ibidem,p. 14.
141 Ibidem,p. 213.
142 M. Bakhtin,Ia culturapopular en Edad Media y en el Renacimiento,
pp. 139ss.
143 Ibidem,p. 24.
144 U. Eco,El nombredeIa rosa,pp.574e576.
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169170171172
173
174
175
176
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Brescia,1980;tambémNotesualcuniquadri interpretativiper10studiodelle
culturesubalterne,Siena,1982.
163 R. Hoggart,The UsesofLiteracy,p. 223.
164 Ibidem,p. 226.
165 R. Williams, Culture and Society:1180-1950, Ia. ed.,1958; The Long
Revolution,1961.
166 R.WiIliams,Marxismoyliteratura,Barcelona,1980;Cultura.Sociologíade
Ia comunicacióny deiarte,Barcelona,1982.
167 R. WiIliams,"Thepressandpopularculture:anhistoricalperspective"
em Newspaperhistory:from the 17th centuryto thepresentday, pp. 41
a51.
R. WiUiams,Marxismoy literatura,p. 144.
P. BourdieueJ.-c. Passeron,La Reproduction,p.47.
Ibidem,p. 145.
P. Bourdieu,Esquissed'unetheoriedeIapractique,p. 178.
UmaleituradeBourdieuapartirdaAméricaLatina:N. GarcíaCanclini,
Desigualdadculturalypodersimbólico.La sociologíadeP. Bourdieu,mimeo.,
CidadedoMéxico,1984.
P. Bourdieu,La Dist!nction,p.24.
P. Bordieu,"ElementosdeunateodasociológicadeIapercepciónartísti-
ca", em Sociologíadeiarte,p.47.
P. Bourdieu,La Distintion, p. 33.
M. deCerteau,L 7nventiondu quotidien.Arts de Faire, Paris,1980;La
Cultureaupluriel, Paris,1974;"Practiquesquotidienes",emLes Cultures
populaires,Paris,1980.
177 M. deCerteau,L 7inventiondu quotidien,pp.20a23e86a 89.
178 M. deCerteau,"LaBeautédumort",emLa Cultureaupluriel,pp.55a94.
124
SEGUNDA PARTE
MATRIZES HISTÓRICAS DA
MEDIAÇÃO DE MASSA
Dadoquea culturapopularé transmitidaoralmentee nãodeixa
vestígiosescritos,énecessáriopediràrepressãoquenosconteahistória
doquereprime.
R. Muchembled
Quandochegoua noitedo primeirodiadeluta,ocorreuqueem
várioslugaresdeParis,independenteesimultaneamente,disparou-se
contrao relógiodastorres.
WalterBenjamin
Do popularao massivo:a meraenunciaçãodessepercurso
poderesultardesconcertante.O percurso,semdúvida,indicaa mu-
dançade sentidoquehoje nos permiteir de umacompreensãodos
processossociaisbaseadana exterioridadeconspirativadadominação
a outraqueospensaa partirdahegemoniapelaqualseluta,na qual
seconstituemasclassese setransformaincessantementea relaçãode
forçase sentidosquecompõema tramado social.Pensara indústria
cultural,aculturademassa,apartirdahegemonia,implicaumadupla
ruptura:com o positivismotecnologicista,quereduza comunicação
a um problemade meios,e com o etnocentrismoculturalista,que
assimilaaculturademassaaoproblemadadegradaçãodacultura.Essa
dupla ruptura ressituaos problemasno espaçodas relaçõesentre
práticasculturaisemovimentossociais,istoé,no espaçohistóricodos
f
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deslocamentosdalegitimidadesocialqueconduzemda imposiçãoda
submissãoà buscado consenso.E assimjá não resultatão descon-
certantedescobrirquea constituiçãohistóricado massivo,maisque
à degradaçãoda culturapelosmeios,acha-seligadaao longo e lento
processodegestaçãodo mercado,do Estadoe daculturanacionais,e
aosdispositivosque nesseprocessofizerama memóriapopular en-
trar em cumplicidadecom o imagináriode massa.
126
CAPíTULO 1
O LONGO PROCESSO DE ENCUL TURAÇÃO
ESTADO-NAÇÃO E OS
DISPOSITIVOS DE HEGEMONIA
De ondepartee sobrequeseapóiaa repressãodasculturas
popularesna Europa moderna?Em funçãode que interessese em
virtudede quemecanismossejustificae institucionalizaa desvalori-
zaçãoe desintegraçãodo popular?Apenasse começaa tematizar
historicamenteesseprocesso,a deixardeservistoa partirdasgenera-
lidadeseconomicistasou culturalistase reatadoao vastoprocessode
transformaçãopolíticaqueacarreta,doséculoXVI aoXIX, aformação
do Estadomodernoesuaconsolidaçãodefinitivano Estado-Nação.A
Nação como mercadonão seráuma realidadeaté o momentode
maturaçãodo capitalismoindustrial,pois foi duranteos séculosde
desenvolvimentodo mercantilismoqueseconfigurouo Estadomoder-
no: aqueleno quala economiadeixadeser"doméstica"eseconverte
emeconomiapolítica,aquelequelevaa caboumaprimeiraunidade
do mercadobaseadana identificaçãodosinteressesdo Estadocom o
"interessecomum"ecujo índicesimbólicoseráa unidademonetária.l
A fragmentaçãointroduzidano cristianismopelaReformaprotestante
vaijustificaralgumasguerrasdereligiãonasquaiso sentidodonacional
vai exercerum papelpreponderante.De formapioneira,a luta dos
PaísesBaixoscontraFelipe II tornaráexplícitoo conteúdodo que
começaachamar-se"sentimentonacional":osinteressesdaburguesia
integrandoreivindicaçõesde língua e religião.A integraçãoque se
materializana delimitaçãode uma matrizterritorialcujo verdadeiro
alcanceseacha,bemmaisque na demarcaçãodasfronteirascom o
exterior,na centralização"interior"do poderpolítico.
'I"
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Centralização política e unificação cultural
Dois sãoos dispositivosbásicossobreos quaisfuncionaa
centralização.2De umapartea integrarãohorizontal.O Estadoquese
constituimostraprogressivamentesua incompatibilidadecom uma
sociedadepolissegmentadacomo aquelaconformadapelasculturas
popularesregionais,locais;istoé,umasociedadeorganizadasobreum
sistemacompostodemultiplicidadedegruposesubgrupos- classes,
linhagens,corporações,fraternidades,gruposdeidadeetc.- e cujas
relaçõese equíbrio internosestãoregidospor complexosrituais e
sistemasde normas.Os forose particularidadesregionais,em quese
expressamasdiferençasculturais,seconvertememobstáculosà uni-
dadenacionalquesustentao poderestatal.De outraparte,a integrarão
vertical:aimplantaçãodedeterminadasrelaçõessociaisnovasmedian-
te asquaiscadasujeitoé desligadodasolidariedadegrupale religado
àautoridadecentral.Desligamentoqueaoromperasujeiçãoaogrupo
"liberava"cadaindivíduo,convertendo-oemmão-de-obralivre, isto
é, disponívelparao mercadode trabalho.A Igrejacumpriu a este
respeitoum trabalhopioneiroao proclamarumafé que integravao
individualismo- nadoutrinadolivrearbítrio- comumasubmissão
cegaàhierarquia,concepçãoqueminavajá assolidariedadestradicio-
nais em que estavabaseadaa culturapopular,as solidariedadesde
clã, de família etc.: "todasasvelhasrelaçõeseramsubstituídaspor
umarelaçãovertical,queunecadacristãoàdivindadepor intermédio
da hierarquiaeclesiástica".3E o Estado,frenteà complexaredede
associaçõesdequeestavatecidaavidadosindivíduos,àsquaisestava
sujeito,e dasquaisrecebiasegurança,seerguerámaisà frente,bem
como a lei do soberano,enquantouma instituição-providênciaque
garantea segurançadetodos.O Estadoseráo únicoaparatojurídico
da coesãosocial.
EsseEstadoencontrarásuaplenitudenoEstado-Naçãoracio-
nalizadopelosilustrados,esua"realização"sedeuapartirdaRevolu-
çãoFrancesa.Paraos ilustradosNaçãosignificaao mesmotempoa
128
I
I
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
soberaniado Estadoe a unidadeeconômicae social.É a idéia de
"pátria"revestindo-sede sentidosocialao implicara predominância
do bem público sobreos interessesparticularese a aboliçãodos
privilégios.A soberaniatestemunhaa "vontadegeral"dos cidadãos,
encarnadano poder doEstado.Mas o Estadoafirmasua unidade
paradoxalmenteno momentohistóricoemqueemergemasclassesem
.luta.A soberaniaentão,maisquea mortedo príncipe,resultará,na
realidade,em seu deslocamento."Ao sustentara soberaniacomo
princípiodeEstado,osrevolucionáriosperpetuavamo 'príncipe',quer
dizer,o modeloestatal(...). Ao situaraNaçãono primeiroplanoda
cenapolítica os revolucionáriosdeslocaramo monarca.Mas nesta
amplatransformaçãonãosebuscousenãoumacoisa:ocuparo lugar
do Rei".4 O paradoxoencontrasuamelhorexpressãono movimento
pelo qual a Nação,ao dar corpoao povo,acabasubstituindo-o.Do
pluraldospovosàunidadedo povoconvertidoemNação,e integrado
apartirdacentralidadedo poderestatal,põe-seemmarchaa inversão
de sentidoque tornarávisívela culturachamadapopularno século
XIX. E quandoaculturademassaseapresentacomoculturapopular,
nãofarásenãocontinuara substituiçãoquea Naçãofezdo povo,no
planopolítico.Substituiçãoquesófoi possívelmediantea dissolução
dopluralque,instituindoaintegração,realizavaacentralizaçãoestatal.
O quepossibilitaa passagemda unidadede mercadoà unidadepo-
lítica seráa integraçãocultural.A estabilizaçãomesmadasfronteiras
com o exteriorestavaligadaà "superação"das barreirasinteriores
erguidaspeloscostumese foros.As diferençasculturaisentravavama
livre circulaçãodasmercadoriase representavamparao absolutismo
umainadmissíveldivisãodo poder.Parasuperarambososobstáculos
contribuiráa construçãode uma culturanacionaLE é justo nesse
momentoqueasculturaspopulares,locais,ficamsemchão,no mo-
mentoemqueselhesnegao direitoaexistir,quandoosestudiososse
interessamporelas."A repressãopolíticaestánaorigemdacuriosidade
científica(...). Foi necessáriocensurar(aculturapopular)paraqueela
129
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
fosseestudada".5Inicia-seaí umaconstantehistórica:é sóquandoos
pobressãoimpedidosde falarqueos "estudiosos"seinteressampor
seuidioma.
A eficáciadarepressãonãoprovémcontudodealgumdesíg-
nio malvado,provém e se produz a partir de uma multidão de
mecanismoseprocedimentosdispersose,àsvezes,inclusivecontradi-
tórios. Como na análiseefetuadapor Foucault,6assimtambéma
destruiçãodasculturaspopularessalvada destruiçãoseuquadrode
vida,masoperadesdeo controledasexualidade- desvalorizaçãodas
imagensdo corpo,da "topografiacorporal"investigadapor Bakhtin
- atéa inoculaçãodeum sentimentodeculpabilidade,inferioridade
e respeitomediantea universalizaçãodo "princípio de obediência"
que,partindodaautoridadepaterna,desembocanado soberano.Em
doiscampossefazespecialmenteclaroo sentidotomadopeloprocesso
deenculturação:a transformaçãodo sentidodetempoque,abolindo
o cíclico,impõeo linear,centradosobreaprodução,a transformação
do sabere seusmodos de transmissãomediantea perseguiçãodas
bruxase o estabelecimentoda escola.
Rupturas no sentido de tempo
O tempocíclicoéumtempocujoeixoestánafesta.As festas,
com suarepetição,ou melhor,com seuretorno,balizama tempo-
ralidadesocialnasculturas·populares.Cadaestação,cadaano,possui
a organizaçãodeum cicloemtornodo tempodensodasfestas,denso
enquantocarregadopelomáximodeparticipação,devidacoletiva.A
festanãoseconstitui,contudo,por oposiçãoàcotidianidade;é,antes,
aquiloquerenovaseusentido,comosea cotidianidadeo desgastasse
eperiodicamenteafestaviessearecarregá-Ionovamenteno sentidode
pertencimentoà comunidade.E issoé realizadopelafesta,quepro-
porcionaàcoletividadetemposperiódicosparadescarregarastensões,
paradesafogaro capitalde angústiaacumuladoe, atravésde rituais
econômicos,assegurara fertilidadedos campose dos animais.O
130
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
tempobalizadopelasfestas,o tempodosciclos,é por outraparteo
tempovividonãosópelacoletividadee suamemóriarecorrente,mas
tambémpelosindivíduosenquanto"tempoda vida" balizadopelos
ritos de iniciaçãoe dasidades/ e enquantoduração-medida,isto é,
"definiçãoocupacional"de uma tarefapelo tempo empregadona
feitura do pão ou numareza.
O sentidodo temponasculturaspopularesserábloqueado
por doisdispositivosconvergentes:o quede-formaasfestaseo queas
desloca,situandona produçãoo novo eixo de organizaçãoda tem-
poralidadesocial.A deformaçãooperapelatransformaçãodafestaem
espetdculo:algo quejá não é paraservivido, masvisto e admirado.
Convertidaemespetáculo,a festa,queno mundopopularconstituía
o tempoeo espaçodemáximafusãodosagradoedo profano,passará
asero tempoeo espaçoemquesefaráespecialmentevisívelo alcance
desuaseparação:ademarcaçãonítidaentrereligiãoeproduçãoagora
simopondofestaevidacotidianacomotemposdo ócioedo trabalho.
Só o capitalismoavançado,o da "sociedadedo espetáculo"refuncio-
nalizaráa oposiçãoproduzindoumanovaverdadeparasuanegação.
O deslocamentoque situa na produçãoo eixo da nova
organizaçãoda temporalidadeé um dispositivode longoalcanceque
faz sua aparição,segundoLe Goff, no séculoXIV. A apariçãodo
relógiopossibilitaa unificaçãodos tempos,e a "descoberta"pelo
mercadordo valordotempodáorigemaumanovamoraleaumanova
piedade:"Perder o tempo se converteem pecadograve,em um
escândaloespiritual.Sobreo modelodo dinheiro,à semelhançado
mercadorqueseconvertenumcontadordotempo,desenvolve-seuma
moralcalculadorae umapiedadeavara".8Do tempodo mercadorao
docapitalismoindustrialseconservaaprimaziaalcançadapelotempo-
medidaepelotempo-valorfrenteaotempo-vivido,masseproduzuma
mudançaprofunda:o tempovalorizado,ou melhor,a fontedo valor,
já não é o da circulaçãodo dinheiro e dasmercadorias,mas o da
produção,o do trabalhoenquantotempoirreversÍvelehomogêneo."É
131
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
o tempodo trabalho,pelaprimeiravezlibertodo ciclo,ao qual está
unidaaexistênciadaburguesia,poiselaéaprimeiraclassedominante
paraaqualo trabalhoéumvalor(...), aquenãoreconhecemaisvalor
queo queprovémdaexploraçãodo trabalho."9 Abstrato,o tempoda
produçãodesvalorizasocialmenteostemposdossujeitos- individuais
ou coletivos- e institui um tempoúnico e homogêneo- o dos
objetos- fragmentávelmecanicamente,tempopuro. E irreversível,
pois seproduzcomo "tempogeralda sociedade"e da história,uma
históriacujo "segredo"estána dinâmicada acumulaçãoindefinidae
cuja razãosuprimetoda alteridadeou a torna anacrônica."Como
capitalizaro tempodosindivíduos,acumulá-Ioemcadaum deles,em
seuscorpos,em suasforçasou suascapacidadese de um modo que
sejasuscetívelde utilizaçãoe controle?"1OEis aí a perguntaque ilu-
mina a faceocultado tempo-produção:seutornar-semedida- em
seusdoissentidos,o demedireo deregular- decontroleedisciplina
doscorpose dasalmas.Disciplinaemtorno da qualsedesenvolvea
místicacom quesesublimaa exploraçãoqueasnovascondiçõesde
produçãoimplicam:a místicadotrabalho,originadano "sermãoque
organizao dispositivomoralsobreosprincípiosqueorganizamo dis-
positivo mecânico".II A integraçãodas classespopularesna socie-
dadecapitalistaé a proletarizaçãonão só no sentidoda vendado
trabalho,mastambémnaqueleoutroque representaa interiorização
da disciplinae da moralque"os novostempos"exigem.
Transformaçõesnos modos do saber
o outro espaçoessencialda enculturação foi a transfor-
maçãodo sabere os modospopularesde sua transmissão.Com a
perseguiçãodasbruxasa novasociedadeprocuraperfuraro núcleo
duro a partirdo qual resistemasvelhasculturas.Hoje começamosa
entendê-Io:a bruxasintetizaparaosclérigose osjuízescivis,paraos
homensricoseoscultos,o mundoqueéprecisoabolir.Porqueéum
mundodescentrado,horizontaleambivalentel2queentraemconflito
132
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
radicalcom a novaimagemdo mundoqueesboçaa razão:vertical,
uniformeecentralizado.O sabermágico- astrológico,medicinalou
psicológico- permeiainteiramenteo conceitopopulardo mundo.
Não éumameraatividadeou um sentimento,é "umacertaqualidade
davidaedamorte",um imagináriocorporalqueprivilegiaas"regiões
maisbaixas",aomesmotempocomolugardo gozoe dossignos,dos
tabus.Um saberpossuídoetransmitidoquaseexclusivamentepor mu-
lheres:maisdesetentapor centodosacusados,torturadosejustiçados
por bruxariaforammulheres.Estáporseestudar,semospreconceitos
quemisturammachismocomracionalismo,o papelqueasmulheres
têm desempenhadona transmissãoda memóriapopular,suaobsti-
nadarecusaduranteséculosda religiãoe da culturaoficiais.Eram as
mulheresquepresidiamasvigílias,asreuniõesdascomunidadesaldeãs
ao cairda tarde,nasquaisseconservaramalgunsmodostradicionais
de transmissãocultural.Vigílias em que,junto ao relatode contos
demedoedebandidos,faz-seacrônicadossucessosdasaldeias,trans-
mite-seuma moral de provérbiose partilham-sereceitasmedicinais
quereúnemum sabersobreasplantaseo ciclodosastros.A bruxare-
presenta,junto comos levantes,segundoMichelet,13um dosmodos
de expressãofundamentaisda consciênciapopular.
No solapamentodessaconsciência,aescolavaidesempenhar
um papelpreponderante.A escolanãopodecumprirseuofício, isto
é,introduzirascriançasnosdispositivospréviosparao ingressonavida
produtiva,sem desativaros modos de persistênciada consciência
popular.Por issoaescolafuncionarásobredoisprincípios:aeducação
como preenchimentode recipientesvaziose a moralizaçãocomo
extirpaçãodos vícios.A aprendizagemda novasociabilidadecomeça
pelasubstituiçãodanocivainfluênciadospais- principalmenteda
mãe- na conservaçãoe transmissãodassuperstições.E passasobre-
tudo pela mudançanos modos de transmissãodo saber.Antes se
aprendiapelaimitaçãodegestoseatravésdeiniciaçõesrituais;anova
pedagogianeutralizardaaprendizagemaointelectualizá-Ia,aoconver-
133
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
tê-Iaemumatransmissãodesapaixonadadesaberesseparadosunsdos
outrosedaspráticas.14E daqui,maisaindaquedosjulgamentosetor-
turasdasbruxas,seráde ondecomeçaráa difundir-seentreasclasses
popularesadesvalorizaçãoe o menosprezodesuacultura,quedepois
passaráaasignificarunicamenteoatrasadoeo vulgar.E istonãorepre-
sentanenhumaalegaçãoutopista"contraa escola",maso assinala-
mentodo pontodepartidanadifusãodeum sentimentodevergonha
entre as classespopularesde seumundo cultural, sentimentoque
acabarásendodeculpabilidadeemenosprezodesimesmasnamedida
em quesesentemirremediavelmenteprisioneirasda in-cultura.
Mas o sentimentodein-culturaseproduzhistoricamentesó
quandoa sociedade"aceita"o mito de umaculturauniversal,queé
por suavezo pressupostoe a apostahegemônicada burguesia,esta
classepelaprimeiravezuniversal,segundoMarx. "A idéiamesmade
culturasurgecomotentativadeunificarosargumentosdelegitimação
do poderburguêssobreo sentido."15Ou, dito de outro modo, com
aidéiadeculturaaburguesiadesigna,nomeia,aunificaçãodo sentido
queela"realiza"aouniversalizaro sentidoquereduztodasasdiferen-
çasao seuequivalentegeral:o valor.A razãomÍticade uma cultura
universalfazpartedo imaginárioproduzidopelaburguesiae a partir
do qualelasevêe secompreendea si mesma".16Muito antesde que
a antropologiase fizessedisciplinacientífica,a burguesiapôs em
marchaa "operaçãoantropológica"mediantea qual seumundo se
converteuno mundo e suacultura,na cultura.É essaunificaçãodo
sentidoo que os antropólogosracionalizamna concepção-mãeda
antropologia,queéaevolucionista,esegundoaqualqualquerdiftrença
culturalnãoé, nãopodesermaisque atraso.E o atrasadonão pode
deixarde sê-Iosenãoevoluindoparaa modernidadequea burguesia
ocidentalencarna.
A idéiade culturavai permitirà burguesiacindira história
easpráticassociais- moderno/atrasado,nobre/vulgar- eaomesmo
temporeconciliarasdiferenças,incluídasasdeclasse,no credoliberal
134
r
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
e progressistade umasó culturapara todos.Durante o séculoXIX,
constataHobsbawm,17a burguesiafaz a simbiosedo nobre e do
populare nãosóconciliaasclassesemsuacultura,comotambémos
fins e os meiosna unidadede umasó razãoque integracultura e
tecnologia: razão instrumentalque contudo não poderá desvin-
cular-sede seuestarconstituídaa partirda negaçãoe da exclusãode
qualqueroutra matriz cultural não integrantena dominante.Esse
caráterde dominação,istoé, de rupturaentreprogressoe libertação,
asclassespopularesperceberammuito antesde quefosseconvertido
emdis-cursopolítico,o perceberame o enfrentarama seumodo nos
movimentosqueresistiramà enculturação.
CULTURA POLíTICA DA
RESISTÊNCIA POPULAR
É necessáriovisualizartambémo processoapartirdo outro
lado.Porqueo processodeenculturação, emúltimainstância,só re-
velaseusentidona experiênciadosdominados,na maneiracomo as
classespopularesa perceberame a elaresistiram.Aos historiadores,
semdúvida,atéhá bempouco,pareceriaquea únicacoisaque lhes
interessounessaexperiênciafoi o queelatinhade reação,deoposição
ao progresso.Mas na reaçãohaviaalgomais,haviaumaluta contra
asnovasformasde exploração.Ou não foi por acasoem nome do
progressoqueforamjustificadasasjornadasde 16horas,o trabalho
"emcadeia"e ossaláriosde fome?Por quenãoiriam misturarentão
asclassestrabalhadorasum e outro?Não é fácil hoje separarasduas
coisas.E armadosdeumalógica- hegelianatalvez- atribuíremà
"alienadaconsciência"dasmassasa culpadenãoteremsabidodistin-
guir e apreciaro progressoqueo capitalismoindustrialrepresentava
frenteà opressãofeudal.E semdúvidaéemsuareação,aelamisturada
suateimosiaemaferrar-sea suacultura,deondepode-selero sentido
políticodesuaresistência.O queo capitalismodestruíaeranãosóum
modo de trabalhar,masseumodo inteirode viver.Um capitalismo
135
\ I:
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
que identificae reduza vida à produção,induzindoseuscríticosa
identificare reduzira issoa política.Assim,paranãoreduzira resis-
tênciaa reação,precisamosescapardessalógicalendo a culturaem
chavepolíticae a políticaemchavede cultura.
A dimensão política da economia
Tem-sedenominado"pré-industrial"o períodode cercade
cem anos- de meadosdo séculoXVIII a meadosdo XIX para
Inglaterrae França- "duranteo quala sociedadevai seadaptando
às mudançasproduzidaspor uma industrializaçãoem cujo final a
sociedadeestátransformadaintegralmente".18Duranteesseperíodoas
classespopularessãosujeitoativodemovimentosquasepermanentes
deresistênciaeprotesto.Vistos defora essesmovimentos,"motinsde
subsistência"ou turbas(themob),sereduzema lutaspelospreçosdo
pão, e se caracterizampela açãodireta- incêndios,destruiçãode
casase de máquinas,imposiçãode controlesobreos preços- e a
espontaneidade,isto é, pelafaltade organizaçãoe conseguintetrans-
formaçãodo protestoem revoltacom atentadosà propriedade.Mas
umaaproximaçãodosmotivosedosobjetivosdessesmovimentosnos
descobrenãosóaparcialidadedessavisão,massuafalácia,já quenão
vêno protestopopularmaisqueo queeletemde respostaa estímulos
econômicos.
Durantemuito tempohistoriadoresdedireitaedeesquerda
têmcoincididonessaconcepção,da qualnão é possívelescaparnem
idealizandoasmassasem"povo",nemdescrevendodetalhadamentea
composiçãosocialda turba,descriçãocoma qualsebuscasuperaros
preconceitoscomqueadireitaimpregnasuaconcepçãodopopulacho.
É eminvestigaçõescomoa deEric J. Hobsbawm19 eAlbert Soboul,20
e maisclaramentecontudonasdeEdwardP. Thompson,quesefaz
presenteuma verdadeiramudançade perspectiva:a emergênciada
dimensãopolíticaqueperpassaesustentaosmovimentosdeprotesto
articulandoformasde luta e culturapopular.
136
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
A mudançapassaemprimeirolugarpelasuperaçãode uma
Vlsaoespasmódica"da história que reduz o protestopopular aos
motins,istoé,a irrupçõescompulsivascujaexplicaçãoseencontraria
toda nas más colheitase na "reaçãoinstintivada virilidadeantea
fome".Mas osmotinssãosóapontado iceberg;o verdadeiroalcance
e o sentido dos movimentosse achammais abaixo:no atropelo
permanenteeflagrantequeaeconomiademercadorealizasobreo que
Thompsonchamaa "economiamoraldospobres".Em sualiberdade
de mercadoa novaeconomiaproduz des-moralizaçãoda economia
tradicional,essaqueseexpressavano "atodefixaro preço"que,mais
quea pilhageme o incêndio,constituia açãocentraldo motim e o
conectacom as formasde resistência,de luta cotidianaimplícita,
"informal" da multidão.As classespopularestinhama convicçãode
que,sobretudoemépocasdeescassez,ospreçosdeviamserregulados
por mútuo acordo.E essaconvicçãomaterializavacostumestradicio-
nais,direitosepráticaslegitimadasnaculturapopular.Demodoque,
atravésdosmotins,o quesefaziavisíveleraalgomaisqueadefesa"do
pãoe da manteiga",eratodaa velhaeconomiado deverser,do inter-
câmbiocomoobrigaçãorecíprocaentresujeitosnegando-sea aceitara
novasuperstição,a deumaeconomianatura~auto-regulada,derela-
çõessó entreobjetos,economiada abstraçãomercantil.Já queo que
essaabstraçãominavaeramasbasesmesmasda culturapopular,seus
supostosmorais,seusdireitose costumeslocais,regionais.As inova-
ções,tantoeconômicascomotécnicas,eramexperimentadas,sentidas
pelasclassespopularesantesdetudocomoisso:expropriaçãoedisso-
lução de seusdireitos.Disso fala a destruiçãodas máquinaspelos
luditas,um movimentoquepassouparaa históriacomumaimagem
caricaturalelaboradapeladireita,masqueoshistoriadoresdeesquerda
engoliramtambématé pouco tempo.A de que foi a ignorância,
misturadaa preconceitosreligiosos,a que impôs aos trabalhadores
destruirasmáquinasdetrabalho,os tearesmecânicos.Hoje sabemos
semdúvidaqueosorganizadoresdo movimentoluditanãoforamos
trabalhadores"maisprimitivos",masosmaisinstruídosequalificados,
137
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
aquelesmesmosquecontinuaramseumovimentoparatravardepois
aprimeirabatalhapelajornadade 10horas.E nãoforampreconceitos
religiosos,masumapercepçãoagudada relaçãoentreasmáquinase
asnovasrelaçõessociais,entreo formatodo dispositivomecânicoe a
organizaçãodo trabalhona fábrica,o que motivoua destruiçãodas
máquinas.Os luditasestavamrespondendoàsuamaneiraestapergun-
ta:"porquetipodealquimiasocialasinovaçõestécnicasparasuprimir
trabalhoseconvertiamem máquinasde empobrecimento?".21
O verdadeiroconflitoquetraduziao motim nãosesituava
entreumamultidãofamintaealgunsmonopolizadoresdetrigo,nem
a luta se esgotavaem castigaros proprietáriosque abusavam.O
verdadeiroconflito eraentreos modospopularesde vida e a lógica
emergentedo capital.Daí quea lutachegasseatéo terrenoexplícito
do político: contrao fortalecimentoprogressivodo Estado,contra.a
centralizaçãoquedestruíaos forose asformaslocaisde fazerjustiça.
Soboul afirmaexplicitamente:"os antagonismossociaisse enchiam
tambémde oposiçõespolíticas.O movimentopopulartendiaà des-
centralizaçãoe à autonomialocal: tendênciaprofundaquevinha de
longe".22E seessaeraaexpressãoapartirdaqualviviamaspessoassua
relaçãocom a nova economia,pouco sentidotem discutir sobrea
melhoraou apiorado "níveldevida"no períodopré-industrial,pois,
comodiz Thompson,"dá-seo casodequeasestatísticase asexperi-
ênciashumanaslevama direçõesopostas.Um incrementoper capita
defatoresquantitativospodedar-seaomesmotempoqueum grande
transtornoqualitativono modo devida do povo, emseusistemade
relaçõestradicionalenassançõessociais".23Aí, naexigênciaderessar-
cimentopela traiçãoque se lhes infligia, na "certezade um agravo
intolerável",estáo sentidopolítico dosmovimentospopulares.
A dimensão simbólica das lutas
As formasde luta popularduranteo períodopré-industrial
secaracterizam,segundooshistoriadores,pelaausênciadeorganização
138
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
eprojeçãopolítica.A esterespeito,comoanteriormente,é necessário
começarpordesvelaropreconceitoquelevaaconfundiretacharcomo
imediatismoalgoqueconstituium traçobásicodaculturapopular:a
escassapossibilidadeque os pobrestêm de planejaro futuro, e em
virtude do que essasclassesdesenvolvemum peculiarsentido de
decifraçãodasconjunturas.Trata-sedessalógicadaaçãoqueCerteau
chamoua lógicada conjuntura,dependentedo tempoe articulada
sobreascircunstâncias,um"saberdarogolpe"queéumaartedofraco,
do oprimido.24
O sentidodasformasdeorganizaçãoedelutanosmovimen-
tospopularesestásendorecolocadoradicalmentenaatualidadeapartir
dosestudossobreosmovimentosanarquistasdo séculoXIX. Durante
muito tempoessesmovimentosseviramconfundidoscomosmilena-
ristase reduzidosa "fomede religião".Mas já secomeçaa valorizar
aprofundainserçãodosanarquistasnosmodosdevidaeexpressãoda
culturapopular,deixandosembasea desgastadaargumentaçãocom
quesepretendiaexplicaressesmovimentospor uma"fúriairracional
contraforçasdesconhecidas"ou pela.meratransferênciadalealdadee
dafé na igrejaparaasideologiasrevolucionárias.25Em todasasargu-
mentaçõesdessetipo sesubestimaa claracompreensãoqueo movi-
mentotinhadaorigemsocialdaopressão;sedesconheceou seoculta
queasformasdelutadosmovimentoslibertáriossedesenvolvemem
grandemedidaa partirdetradiçõesorganizativasdeprofundasraízes
entreos camponesese os artesãos,e semenosprezao explícitoenca-
recimentodevotadopelosanarquistasàsformasemodospopularesde
comunicação.26
Mais queirracionalidade,o queosanarquistasmobilizamé
uma longa experiênciade resistênciapopular,como o demonstraa
forma como escolhiamas épocaspara lançar suas"grevesgerais":
quandoasboascolheitase o aumentoda demandaproduziamuma
escassezde mão-de-obra.Ou a forma pela qual essesmovimentos
forammodificandosuaestratégiaàmedidaqueo desenvolvimentodo
capitalismotransformavaasrelaçõessociais.O paradoxalé quepara
139
lil
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
nãopoucoshistoriadores,inclusivede esquerda,sejaa solidariedade,
ofOrtesentidocomunitáriodo movimentolibertário,o queélevantado
comoprovadesuairracionalidade!De ondetiraramosanarquistassua
estratégiada grevegeral,na qualasmulheres,osmenores,os anciãos
estavamimplicados,senãodo sentidopopular da solidariedade?E
dessamesmaculturaaprenderamuma espontaneidadeque se acha
menospróximado espontaneísmoque da defesada autonomiapor
partedacomunidadelocal,equeéantesdetudoresistênciaàcoerção,
à "disciplinaadministrativa"na qual os libertáriosdo séculoXIX já
pressentiamsuaprofundavinculaçãocomasestratégiasprodutivasdo
capitalismo.
Articuladasaessaoutralógicaaparecemasformaspopulares
deprotestosimbólico.Tanto no casodosoperáriosinglesesno século
XVIII quantono dosanarquistasespanhóisdo séculoXIX, umavelha
cultura,conservadoraem suasformas,vai albergarconteúdosliber-
tários,de resistênciae confrontação.Em ambosos casosrecorre-seà
invocaçãode regulamentospaternalistasou expresõesbíblicaspara
legitimaroslevantes,osataquesàpropriedadeou asgreves."Não têm
outra linguagemparaexpressarumanovaconsciênciaigualitária."27
Da queimadebruxase deheregesasmassastomamo simbolismode
queimarem efígieseusinimigos.As cartasanônimasde ameaçaaos
ricosseenchemdaforçamágicadoversoedablasfêmia.As procissões
bufas são o contra-teatroem que os símbolosda hegemoniasão
ridicularizadose ultrajados.Eis aí uma chave:dado que as classes
popularessãomuitosensíveisaossímbolosdahegemonia,o campodo
simbólico,tantoou maisqueo daaçãodireta,seconverteemespaço
precisoparainvestigaras formasdo protestopopular.Nem os mo-
tins, nem asgrevesgerais,seesgotamno "econômico",pois estavam
destinadosa simbolizarpoliticamente,isto é, a desafiara segurança
hegemônica,mostrandoà classedominantea forçadospobres.
O processode enculturaçãoquevinhaatuandojá há mais
de um século,nãopôdeimpedirque,no tempoforteda crisesocial
140
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
preparadapelainstauraçãodo capitalismoindustrial,asclassespopu-
lares se reconheçamna velha cultura, ainda espaçovital de sua
identidade,aproletarização.Desdemeadosdo séculoXVIII a cultura
popularviveumaaventurasingular:ameaçadadedesaparição,vai ser
aomesmotempotradicionale rebelde.Vistaapartirdaracionalidade
ilustradaessaculturaaparececonformadaunicamentepor mitos e
preconceitos,ignorânciae superstição.E é indubitávelquecontinha
muito disso. Mas o que a partir dessaracionalidadenão se podia
entenderé a significaçãohistóricade queestavamcarregadosalguns
doscomponentesdessamesmacultura:desdeaobstinadaexigênciad~
fixar"frenteafrente"ospreçosdotrigo,àsprocissõesbufaseàscanções
obscenase aos relatosde terror.Que maior desafioà mentalidade
ilustradaqueo dessesrelatosdeterrordosquaissealimentamasclasses
popularesemplenoséculodasluzes!Mas talvezresultemaisescanda-
losoafirmarsemnostalgiaspopulistasquenessaculturadatabernae
dosromanceiros,dosespetáculosdefeirae da literaturadecordel,se
conservouum estilodevidano qualeramvaloresaespontaneidadee
a lealdade,a desconfiançafrenteàsgrandespalavrasda moral e da
política,umaatitudeirônicaparacomalei eumacapacidadedegozo
quenem os clérigosnemos patrõespuderamamordaçar.
Que não erasomenteumacultura tradicional,quer dizer,
conservadora,prova-oacapacidadedessaculturaparareinterpretaros
acontecimentose asnormas,convertendo-sena matrizde umanova
consciênciapolítica,queorientaospioneirosdaslutasoperáriaseque
seexpressariaporexemplona"imprensaradical"inglesaenacaricatura
políticado séculoXIX espanhol.Estudandoosprocessosculturaisdo
início de nossoséculo,R. Hoggartreconheceaindaos indíciosdessa
cultura que "ao longo do séculoXIX permitiu aos trabalhadores
inglesespassardo mododevidaruralaourbano,semconverterem-se
em lumpemproletariadoamorfo".28
141
I
CAPíTULO 2
DO FOLCLORE AO POPU LAR
oprocessodeenculturaçãonãofoi emnenhummomento
um processodepurarepressão.Já desdeo séculoXVII vemospôr-se
emmarchaumaproduçãodeculturacujosdestinatáriossãoasclasses
populares.Atravésdeuma"indústria"denarrativase imagens,vai-se
configurandoumaproduçãoculturalquede umavezmedeiaentree
separaasclasses.Poisaconstruçãodahegemoniaimplicavaqueopovo
fossetendoacessoàslinguagensemqueelasearticula.Mas nomeando
ao mesmotempoa diferençae a distânciaentreo nobree o vulgar,
primeiro,entreo cultoeo popular,maistarde.Não háhegemonia-
nemcontra-hegemonia- semcirculaçãocultural.Não épossívelalgo
de cima que'não implique algummodo de ascensãodo de baixo.
Vamosexaminarumaproduçãoculturalquesendodestinadaaovulgo,
ao povo, nãoé contudopura ideologia,já quenão só abreàsclasses
populareso acessoàculturahegemônica,masconferea essasclassesa
possibilidadede fazercomunicávelsuamemóriae sua experiência.
Certoquenãopodemosdeixar-nosenganarpeloléxico,poisasintaxe
dessaculturajá nãoé a popular,masé o próprio ascoe desprezodas
classesaltaspor elao quenosasseguraqueali nãohá só imposiçãoe
manipulação:paramanifestar-seculturalmentea classehegemônica
não teveoutro remédiosenãodesignara outrae suacultura.
UMA LITERATURA ENTRE
O ORAL E O ESCRITO
Há uma literatura que,ausentepor inteirodasbibliotecase
livrariasdeseutempo,foi contudoaquetornoupossívelparaasclasses
populareso trânsitodo oralaoescrito,enaqualseproduza transfor-
I
J
,$
maçãodofolclóricoempopular. Refiro-meàquelaliteraturaquesetem
chamadona Espanhade cordele na Françade colportage.Literaturas
queinauguramumaoutrafunçãoparaa linguagem:a daquelesque
semsaberescreversabemcontudoler. Escrituraportantoparadoxal,
escrituracomestruturaoral.E issonãosóporestaremboaparteescrita
em verso,pois transcrevecançõese romances,copIase refrões,mas
porqueestásociologicamentedestinadaa ser lida em voz alta, coleti-
vamente.Mas escritura,enfim,eportantodispositivodenormalização
eformalização,meioetecnologia,racionalidadeprodutivaetécnicade
fabricação.
Ainda queseorigineme desenvolvamsimultaneamente,as
literaturasde cordele colportageapresentamdiferençaspreciosasque
permitemaprofundara análisedascontradiçõesque dinamizamos
modosdepresençadopopularnelas.Digamosjádeinícioqueenquan-
to a literaturade colportageestápredominantementedirigida à
populaçãocamponesa,comoatestamseuscircuitosde difusão,a de
cordelé plenamenteurbana.A denominaçãomesmadessaliteratura
como vulgar estáindicando, segundoum de seusestudiosos,sua
diferençacom o popular-camponês.Pois enquantoesteúltimo é já
sinônimono séculoXVII do "próximoànatureza",vulgaré "o quese
movena cidade",29vulgaré o plebeue o vagabundo,o desviadoe o
contaminado.
o que dispõe o mercado
Não seicomoseconsente
quemil inventadascoisas
aosignorantessevendam
peloscegosqueastomam.
Ali secontammilagres,
martírios,mortes,desonras,
quenãofindaramnomundo
enofimsevendeecompra.3D
143
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
AssimvêLope deVegaa literaturadecordelatravésde um
personagemdesuacomédiaSantiagoojovem.Mas nãoésóatravésde
personagens;nummemorialdirigidoaoRei emdefesadeseusdireitos
deautor,3!Lopenosofereceumapreciosaeprecisacaracterizaçãodas
"copIasde cego" ou "pliegosde cordel".32E de quem eram seus
compositorese vendedores:"Homens que desassossegamo vulgo,
enfastiama nobreza,deslustrama polícia (apregoando)pelas ruas
Relações,CopIaseoutrosgênerosdeversos;mulatosevagabundosque
vãopelasruasalvoroçandoaspessoascomvozesaltasedescompostas,
dizendoemprosaasumadoquecontêmseusversos".Quaiseramseus
gênerosesuastemáticas:"Os acontecimentosquebuscam,astragédias
quefabricam,asfábulasqueinventamdehomensquenascidadesda
Espanhaviolentamsuasfilhas,matamsuasmães,falamcomo demô-
nio, negama fé, dizemblasfêmias.E outrasvezesfingemmilagrese
publicamsátirascontraascidadeseaspessoasquesepodemconhecer
por títulos,ofíciose acontecimento".E nosinformatambémsobreo
quemaislhedói: "A malíciadesseshomens(seatreve)comashonras
e opiniõesdos queescreveme comos nomesde pintoresexcelentes
queremvendersuasatrevidasfalsidadeseignorâncias.(...) A liberdade
com queimprimeme apregoam,aosolhosdo quenuncavieramtais
papéis,quequemos compôsfoi Ledesma,Lifián, Medinilla, Lope e
outraspessoasconhecidas".
O quadrotraçadonãotemexagero.Nele seexpressanãosó
a "consciênciade autor"frentea umaliteraturaquea solapae paro-
dia- rouba-lheo nome,resumeedeformao texto,misturaosgêne-
ros- masa reaçãodeumhomemquetevetambémclaraconsciência
de fabricante,que sabiaque ao entrarno circuito do "consumo"a
escrituradecomédiasseestereotipava.E osabiaatéopontodeescrever
A artenovadejazer comédiaspara essetempo.Por issoaparecemtão
claramenteindicadoso circuitoeosprocedimentos:acon-fusãoentre
o anonimatodequemedita-escreveesuaatribuiçãoanomesfamosos:
a reescrituracomochavedessestextos,suavendapelasruas,o resumo
quede seuconteúdofazo pregão,a miscelâneade sucessoe tragédia,
144
~
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
defábulaemilagre,desátiraeblasfêmia.E dequepor aípassavaalgo
mais que a "imagem"do vulgo no imagináriodos nobressão boa
provaos "efeitos"queLope lhe atribuiu:inquietao vulgo,enfastiaa
nobreza,deslustraa polícia (quenessetemposignificaa políticae a
ordemsocial).
As denominaçõessão tambémum bom ponto de acesso.
Pliegoindicao "meio":umasimplesfolhadepapeldobradaduasvezes,
ouváriasfolhasdobradasformandoumcaderninho,impressoemduas
outrêscolunas.Cordelassinalao mododedifusão,poisospliegoseram
exibidose vendidospenduradosem um cordelna praça.CopIa ou
romancede cego,porqueé elequemos apregoaou canta,e com o
tempoquemoscompõe- com ajudade "oficiais"querecolhemos
acontecimentosqueo cegoselecionae os escrevemseguindopautas
queeleelabora-, oseditae osvende.Mereceriaum estudoà parte
a figurado cegoe seusofícosno mundodo popular,desdea mítica
cegueirados rapsodosatéa picarescado barrocoespanhol,suaespe-
cializadarelaçãocomo cantoeaexpressãoverbal.O preçodospliegos
é mínimo masoscilaem funçãode umacomplexarededevendase
um subterfúgiodo negócioquecarreiapleitosentreos impressorese
a irmandadede cegos.
Temosassimum meioque,à diferençado livro esemelhança
doperiódico,vaibuscarseusleitoresnarua.E queapresentaumafeitura
naqualo títuloéreclameemotivação,publicidade;segue-seaotítulo
um resumoqueproporcionaao leitor aschavesdo argumentoou as
utilidadesa quesepresta,e umagravuraqueexplorajá a "magia"da
imagem.Temosum mercadoquefuncionacomo jogo daofertae da
demandaa talpontoqueostítuloseresumosacabamestereotipando-
se atéa fórmula quemelhor consegueexpressarcadagênero.Uma
evoluçãoquemostraa passagemde uma empresademeradifusão-
deromances,vilancicosecanções- aoutrade composiçãoderelações
(notícias)dosacontecimentose dealmanaques.Evoluçãoqueacom-
panhaa gestaçãodo divórciodo gostoquedesdefins do séculoXVII
145
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
seaprofundabarateandoaimpressãodostextosegravuraseexacerban-
do o sensacionalismo.33
Mas nãosóémeio:aliteraturadecordelé mediação.Por sua
linguagem,quenãoéaltanembaixa,masamisturadasduas.Mistura
delinguagensereligiosidades.É nissoqueresideablasfêmia.Estamos
diantedeoutra literaturaquesemoveentreavulgarizaçãodoquevem
decimaesuafunçãodeválvuladeescapedeumarepressãoqueexplode
em sensacionalismoe escárnio.Que em lugarde inovarestereotipa,
masnaqualessamesmaestereotipiadalinguagemou dosargumentos
nãovemsódasimposiçõescarreadaspelacomercializaçãoeadaptação
do gostoa algunsformatos,mastambémdo dispositivoda repetição
e dos modosdo narrarpopular.
Na França,a literaturade colportageou bufarinheiramostra
contudomaisàsclarasa estruturaindustrialdeproduçãoe difusão.34
Em começosdo séculoXVII umafamíliadelivreiros-edito-
res,os Oudot, começama publicarna cidadedeTroyesunsfolhetos
impressosem papel mais grossoe granulado,mal costuradose
recobertospor umafolhadecorazulquedariao títuloaessaliteratura:
a "BibliothequeBleu". O editoraproveitaos caracteresdasletrasjá
muito gastase põe os próprios tipógrafose demaisoperáriosda
imprensaa resumire reescreverromances,contosde fadas,vidasde
santos,receitasmédicas,calendáriosetc.Quer dizer,o editorutilizaos
trabalhadoresdaimprensacomo mediadoresparaselecionartradições
oraise adaptar textosquevêmda tradiçãoculta.Mas a organização
"industrial"nãoterminaaÍ. Junto à organizaçãoda ediçãoencontra-
mos uma rede de colporteurs, de bufarinheiros, ou vendedores
ambulantes,quedefeiraemfeirapercorremoscamposeaspequenas
vilasdistribuindoosfolhetoseretomandoumaou duasvezespor ano
atéo editorparainformar-lhedo quesevendeedo quenãosevende,
devolvendo-lheo quenãosevendeueorientandoassimaproduçãoem
funçãodademanda,istoé,servindodemediadoresentrea clientelae
o empresário.É quando,em começosdo séculoXIX, Ch. Nissard,
encarregadopelogoverno,deinvestigaressaliteratura,descobriráque
146
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
maisde trêsmil colporteurspercorremorganizadamenteo paíse dis-
tribuemcercade20milhõesdefolhetospor ano."Em suacanastraou
fardo,entrebotões,agulhas,óculose remédiosmilagrosossepodem
encontrarlibretosquecustamde 1a2 sous.Suasescassaspáginassão
deum papelcoloridocinzasujo,demáqualidade,queseencharcade
tinta e estácobertode garatujas.Suasletrasescritascom caracteres
gastosmal sedistinguem".35Como osdecordel,tambémosfolhetos
da"BibliothequeBleu"vãoàbuscadeseusleitoresmisturadoscomas
coisaselementaresda vida, bradadospor mercadoresde feira que
estabelecem,aseumodo,o jogodepredileçõeserecusasqueconfigura
a sensibilidadedo novopúblico leitor.E issoa partirdeum "fundo"
editorialno qual convergemrelatos- cançõesde gestae livros de
cavalaria-, literaturaclericalealgunstextosprovenientesdacultura
"científica".Dos 450 títulos que seconservaram,120sãolivros de
piedade,80 são"romances"ou peçasde teatro,40 sãolivrosde his-
tóriae o resto,livros"práticos",sejamdeconhecimentosou receitas,
textosde ciênciasexatase ocultas,tábuasde aritméticae calendários
metereológicos;tambémcanções,umasdedicadasaoamoreoutrasàs
virtudesdo vinho.
RobertMandrou completaseuexameintroduzindona aná-
lisedo circuito o dispositivode recepção:a vigília, lugarpopularda
leitura,testemunhadapela iconografiae a ralhaçãodos pregadores.
Ainda nasaldeiasmaisremotasháalguémquesabeler,eaoanoitecer,
quandoretomamaspessoasdostrabalhosno campo,homense mu-
lheres,menoreseadultossereúnemjunto aofogoparaescutaraquele
quelê em voz alta,enquantoasmulheresremendamou teceme os
homenslimpamferramentasde trabalho.Leituracoletiva,quepare-
ceradesconhecidapelamaioriadoshistoriadores,paraos quaisfalar
de leitorespopularesantesdo séculoXIX seriaum absurdo,pois só
uma ínfima minoria da populaçãosabialer, quer dizer... assinar!
Confusãoentreleiturae escritaque,unidaà dificuldadedeconceber
outro tipo de leituradiferenteda do indivíduo encerradocom seu
livro, conformaos preconceitos"cultos"que têmimpedidode pres-
147
I"
I'",
tar atençãoà leiturapopular,a suaexistênciae peculiaridades.36Diz
o estalajadeiro,no capítulo32 da primeirapartede Dom Quixote,
falandodasleiturasderomancesdecavalaria:"Porquequandoétempo
da colheitareúnem-seaqui, nassestas,muitos segadores,e sempre
há algumquesabeler; elepegaum desseslivros e nós o rodeamos,
maisde trinta,escutando-ocom tantogostoqueé comolançarmos
fora mil cãs".E séculosdepoisos rudeslavradoresanarquistasda
Andaluzia compravamo jornal mesmosem saberemler, para que
alguémos lesseparasuafamília.Trata-sede uma "leituraoral" ou
auditiva,muito distintada leiturasilenciosado letrado,tantocomo
dos modosde difusãoe aquisiçãodo que se lê. Porque ler paraos
habitantesda culturaoral é escutar,masessaescutaé sonora.Como
adospüblicospopularesno teatroeaindahojenoscinemasdebairro,
comseusaplausoseassobios,seussoluçosesuasgargalhadas.Leitura,
enfim,na qualo ritmo nãomarcao texto,maso grupo,e na qual o
lido funcionanãocomoponto dechegadae fechamentodo sentido,
mas ao contrário, como ponto de partida, de reconhecimentoe
colocaçãoem marchada memóriacoletiva,umamemóriaqueacaba
refazendoo textoemfunçãodo contexto,reescrevendo-oao utilizá-Ia
parafalardo queo grupovive.Ainda estápor sefazerumahistória
socialda leituraque incorporea históriados modosde ler a uma
tipologiadospúblicosleitorese dasmediaçõesquetêmpermitidoa
passagemdeunsaoutros.Mas o dispositivodaleiturajá estámaisdo
ladodo queo povodispõequedo quedispõeo mercado,ou melhor,
do que fazseuencontro.
o que dispõe o povo
O "outro lado" da indústriade"narrativasé o que nos dá
acessoaoprocessodecirculaçãoculturalmaterializadonaliteraturaque
estamosestudando:um novomododeexistênciaculturaldo popular.
Nas literaturasde cordele colportageestãoas chavespara traçaro
caminhoquelevado folclóricoaovulgare daí aopopular.Que a ela
148
chegao folcloreo testemunhaUnamuno:"Eram os pliegoso senti-
mentopoéticodosséculos,quedepoisdehaveremnutridooscantos
e as narrativasque têm consoladoda vida a tantasgerações,circu-
lando de bocaa ouvido e de ouvido a boca,contadosao calor da
fogueira,vivempeloministériodecegosandarilhosnafantasiasempre
jovem do pOVO".37Aí chegatambém,ou melhor, aí tem lugar a
primeiragrandeempresade vulgarização,que tanto irrita espíritos
cultoscomoValera:"O espíritocavalheirescoeasfaçanhas,avalentia
e os amoresdosheróise dasdamasdeCalderóne Lope têmpassado
aviltando-sea dara últimamostradesi na ínfima plebe".Há vulga-
rizaçãono duplo sentido:postaaoalcancedo vulgo,e rebaixamento,
querdizer, simplificaçãoe estereotipia.E na literaturade cordelhá
um terceirosentido,aquelequeindicao vulgocomo "aquiloquese
movena cidade",o popular-urbanoemsuaoposiçãoao camponês,o
sinal da emergênciade um novo sentidodo popularcomolugarde
mestiçagense reapropriações."Ao passarpelos lábios dos cegos
trovadoresasidéiasde 'honra'ede 'cavalaria'seadaptamafigurasde
bandoleirose toureirosdando lugara uma novacriação,que man-
tendoa essênciado velhoromanceo põea serviçodessenovo esta-
mento que crescee enfrentaa pudibundaaristocracianeoclássica,
põe-noa serviçode um povo quecomeçaa viver."38Não só o que
vem do povo se contaminae deforma,tambémo povo deformae
re-significaos "grandestemas"do amore da paixão,profanaas for-
masnarrativase elevaasvidasmarginaisa modelosdehonradez.De
tudoissoresultaumalinguagemnovaque,por um lado,gozacomos
adjetivosribombantes,maspor outro seacomodaa seuritmo, sua
ironia e seuatrevimento.
Ao divórciocultural,àdistânciaeàsbarreirasqueaclassealta
espanholado séculoXVIII erigeostensivamente,o povo responde
revolvendo,imitandoburlescamentee mestiçando.Devemosa Caro
Baroja ter sabidoler a literaturade cordela partir do ângulodas
mestiçagens.Às históriasamorosasprovenientesde "dramase comé-
dias estimadas"misturam-secenasde violênciae sortilégios.E ao
149
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
contrário:as históriasde bandoleirossãoconvertidasem lancesde
honradeondeseexaltao queviveforadalei e seglorificao valorde
viverperigosamente.Os heróissão,na literaturadecordel,os Diego
Corrientes,FranciscoEstebane Luis Candelas.Não hásó anacronis-
mo,comopensamosliteratos,maso usorebeldedaculturatradicional
dequefalaThompson,um contra-teatroqueaorevolvereconfundir
ostempospermiteaopovofazerouvirsuavoz.Aoaplicaras"velhas"
idéiasde honra e de cavalheirismoaos bandoleirose outros delin-
qüentes,ospliegosdecordelnãofalam,ou aomenosnãofalamsó,de
um passadotresnoitado,se vingama seumodo de uma burguesia
aristocráticaerigindoseusprópriosheróis:"Os grandesbandoleiros
perpassama mentepopular com uma distânciaque apontavapara
reivindicaçãoanarquista".39
O outrograndefilãodaliteraturadecordelsãoos aconteci-
mentos,especialmenterelatosde crimes,nos quaiso pliego lançaas
basesdaquiloquemaistardeseriao jornalismopopular.Conta Julio
Nombela- umfolhetinistaquedurantesuajuventudetrabalhoupara
um cego- que "quandoocorriaum crimedos quehoje chamam
passionais,quandosecometiaalgumroubo de importância,o cego
chamavaumdosdoisou trêspoetasquenãotinhamondecairmortos
eestavamàsuadisposição,passava-Ihesinstruçõesdetalhadasarespei-
to do romancequelhesencomendavae seesteficavade seugosto,
remuneravaseutrabalhocom trinta ou quarentareais".40E nessas
instruçõesseencontravamos sinaisdo jornalismosensacionalista.É
justamentenosrelatosdecrimesqueencontramoso saltodopliegoem
versosaopliego emprosa:umadescriçãosemadornos,com seutom
de "objetividade"nosdetalhese suabuscadas"causas".Essesrelatos
depõemtambémsobrea obsessãopopularpeloscrimes.Em alguns
deles,o importante,o captado,é a brutalidadepura e sua força
catártica.Mas existemoutrosnos quaiso narradQapontaem outra
direção,a da reparaçãode agravoscomoformapopularde regulação
social.Que éjustamenteaorientaçãodeum tipo denarrativana qual
o sensacionalismopassionaldoscrimesruraiscedeemfavorde uma
150
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
descrição,exaltaçãoda marginalizaçãosocialna cidade,narrativana
qual,junto comadescriçãodo crime,"sedácontadavidaedosfeitos
de vigaristase bandidos".
Por último, os almanaques, lugar de misturase entrecru-
zamentosespeciais.Nesteso que semisturasãodiferentestipos de
saberes.Saberesde baixoe saberesde cima,saberesvelhose novos,
astrologiaeastronomia,medicinapopularenemtãopopular,romance
ehistória."Duranteosalvoresdo XVIII o prognósticosetransforma
evaiincorporandoaspectoscientíficoseutilitários.Estabelece-seuma
novarelaçãocom o mundo cotidianonão somentecomo revelação
do amanhã,mas como conselhospráticose simplespara a vida
diária".41Um exemplofiáveldasmisturase da circulaçãoquepassa
pelosalmanaquessãoos escritosde TorresVillarroel,queem 1752,
no Prólogodeum deles,afirma:"Escrevoparao vulgoporqueesteé
o quedesejainformar-seda novidade,esteé o queestáassustado,e
esteé que precisaser sacudidodo espantoe da ignorância".Os
almanaquessãoa primeiraenciclopédiapopularonde conselhosde
higienee desaúdeseachammisturadoscomreceitasmágicas,e onde
já sepropõememformade perguntase adivinhaçõesquestõesde fí-
sicae matemática.Um investigadorda indústriaculturaldessessé-
culos, e tão pouco "romântico"como Robert Escarpit,disserefe-
rindo-sea essaliteratura:"Os romancesda 'BibliothequeBleu' e a
modestaciência dos almanaquesfizeramcertamentemuito mais
pelaelevaçãoculturaldasmassasdosséculosXVII eXVIII quetoda
a organizaçãoda culturaoficial".42
Na Françaosestudossobrea literaturade colportagederam
recentementelugaraumapolêmicaemqueapolarizaçãodasposições
se extrema.Para uns os almanaquese narrativasda "Bibliotheque
Bleu" resgatariama expressãode uma culturaque ou provinhado
mundo popular,ou ao menosencontrouneleuma acolhidae uma
respostaprofunda.Paraoutros,essaliteraturafoi meraimposiçãoe
estratagemamanipulador,ou nemmesmoisso,poisnuncachegouao
povo,senãoàsclassesmédias.É indubitávelqueo mododeprodução
151
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
ecirculaçãodaliteraturadecolportageestámaisorganizadoapartirde
cimae,portanto,deixoumuitomenosmargemàcriatividadepopular
queno casodospliegosdecordel.Contudo,aconclusãoquesetirado
debatena Françaé quesealgunstendema umaimagemaçucaradae
espontaneístada culturapopular,os outros tendema reproduzira
dicotomiaquenos impedede pensara complexidadeda circulação
cultural:o quevemdecimanãochegaatocarosdebaixo,porquenão
temnadaa vercom estes,ou secheganadafazalémde manipulare
alienar,como hoje a cultura de massa.Ora, ainda que a cultura
veiculadapor pliegose almanaquesjá nãosejao folclore,tampoucoé
a cultura de massa.É justamentea que "medeia"entreas duas,e
constituia expressãode um modonovodeexistênciadopopularqueé
fundamentalcompreenderparanãoopor maniqueístae facilmenteo
populare o massivo.
UMA ICONOGRAFIA PARA USOS PLEBEUS
A relaçãodas classespopularescom a imagemé muito
distintada suarelaçãocom ostextosescritos.Cifradastambém,mas
a apartirde códigosde composiçãoe de leitura"secundários",43as
imagensforamdesdea IdadeMédia o "livro dospobres",o textoem
que as massasaprenderamuma história e uma visão do mundo
imaginadasem chavecristã.Com asfigurase cenasdos retábulose
capitéis,e depoiscom os gruposescultóricose os baixos-relevosdas
catedraisgóticas,a igreja cria uma imagináriacompartilhadapor
todos,clérigose leigos,ricosepobres.Mas a "proximidade"do povo
àsimagenséparadoxal:o mundoqueapresentaa iconografiaémuito
mais estranho,exteriore distantedo mundo popular que o que
recolheme difundemos relatosescritos.Precisamenteporque nas
imagensse produziaum discursoacessívelàs massas,a seleçãodo
dizívele difundívelserámuito maiscuidadosae censurada.A popu-
laridadedasimagensnãovirátantodostemas- quenãotêmorigens
folclóricas,salvoemalgumasreferênciasavestidosedanças- ou das
formas,masdos usos:ao aferrarem-sea determinadasimagensas
152
classespopularesproduziramnelasum efeitode arcaísmoproxlmo
aodoscontospopulares,e ao usá-lascomoamuletosasreinscreviam
no funcionamentode suaprópriacultura.
Com as possibilidadesde reproduçãoabertasa partir do
séculoXV pelagravura,44asimagensescapamasuafixaçãoadetermi-
nadoslugaresparainvadiro espaçocotidianodascasas,dosvestidos
e dos objetos.A maioriadas imagensé, contudo,de temáticareli-
giosa - de uma coleçãodessetempo que reúne 2047imagens
impressas,apenascem são de temasprofanos- e suasfunções
primordiaissãoa preservaçãoe a edificaçãopiedosas.45Bordadasnos
vestidosou fixadasnos armáriose baús,asimagensprotegemcontra
asenfermidades,osdemôniose osladrões.E seo baúseabre,a ima-
gemcoladana faceinterior da tampao converteem altarem volta
do qualsereza.As oraçõessãomaiseficazessesetemdiantedosolhos
a imagemdo santoao qual se reza.Muchembledfalada "insidiosa
penetraçãodo sagrado"quecomportaa difusãodasimagens,pois a
palavrado sermãovai ser substituídapor elas,que a prolongame
mantêmvivasuamensagem.
Duranteo séculoXV a Igrejaé a grandedistribuidorade
imagens,sejaatravésdas confrarias- cadauma identificadapela
imagemde um santopadroeiroou de um objeto-símboloda paixão
de Cristo - ou das indulgênciasassociadasa determinadasdevoções
que exigiama presençade uma determinadaimagemparacumprir
seuefeito.Em conjuntoo quesedifundegiraem torno de duaste-
máticas:os mistérios,queencenama vidade Cristo ou daVirgem, e
os milagres,quemodelamcenasdavidadossantos.E datade então
o êxito de algumasimagens,como a de São Cristóvãogigantecar-
regandoo meninoparaatravessarum rio, quechegaráintactaatéos
parabrisasdostáxise ônibusde nossascidades.A escassaiconografia
profanagiraemtornodas lendas- do Rei Artur, deCarlosMagno,
deGodofredo- edasmoralidades-o galovigilante,araposaastuta,
o gatoladino- aosjogosdenaipesealgumasfarsasesdtirasreligioso-
políticas.
153
,
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Já no séculoXVI, porémmaisclaramenteapartirdo XVII,
a reproduçãoedifusãodeimagenssofreumafortetransformação.Da
xilografiaquepermitiaa impressãodecercade400folhaspor matriz,
passa-seà água-forteque, ao usarsoluçõesde ácido nítrico sobre
pranchasdecobre,permitetexturasnãosómaisnítidascomovariadas
e um aumentoconsideráveldefolhaspor prancha.Ao mesmotempo
aprodução,aindaqueartesanal,seaproximajá daindústriamediante
umaespecializaçãodasfunções:o desenhista,o iluminador,o grava-
dor, o impressor.A distribuiçãoporsuapartepassadasmãosdaIgreja
- quecontinuaráexercendopor outrosmodosum controleideoló-gico- àsdoscomerciantes,quevendemgravurasem almanaquese
asdifundempeloscamposatravésdosvendedoresambulantesquevão
de feiraem feiraou pelosbairrosnos diasde mercado.É entãoque
seiniciaapressãodeumademandapopularque,dirigidasemdúvida
pelo que lhe ofereceme pela censurareligiosa,começacontudo a
incidir naconformaçãodeumaiconografia"popular".Dissodáconta
a multiplicidadede testemunhosqueconvergememconstatara pre-
sençade gravurasna maioriadascasas,tanto da cidadecomo do
campo,dequeeram"o únicoluxodo pobre",eapaixãopor imagens
raras"que vem compensaras classespossuidorasde sua perda de
privilégioscom respeitoà imagemem geral".46Mais tardeserána
qualidadeda imagem,de umagravuraque imita a pintura,de onde
se buscarádiferenciare distanciaros gostos.Às classespopulares
chegarámajoritariamentea gravurabarata,a que reproduzimagens
tradicionaise num desenhotosco.Mas, detodojeito, há umatrans~
formaçãoquelentamentechegatambémaopovo:asecularizaçãoque
começaa afetarostemasesobretudoasformas.A secularizaçãolibera
acriatividadeiconográficadapressãoreligiosa,eaReformaprotestan-
te,aodeixarsemchãoasindulgênciasepôr emdúvidaamediaçãodos
santos,abrecaminhoparaumaiconografiaque caricaturizaasinsti-
tuiçõese as figuraseclesiásticas- o Papaconvertidoem burro, os
cardeaisemraposasetc.- e ampliaosmotivossubstituindoossantos
154
I!
fi
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
por figurasda mitologiae quadrosde costumesque introduzemna
representaçãoo espaçoda vida cotidiana.47
Em respostaa essasmudançasa Igrejavai buscara "popu-
larização"de suamensagemmedianteumacertamundanizaçãodas
devoçõesque retomaa afirmaçãovitalistado barroco,e uma certa
tolerânciaparacom os restosdo paganismoaindaconservadosnelas
as massaspopulares.Essapopularizaçãose traduzirána difusãode
uma iconografiaqueaproximaa vida dos santosà daspessoas,que
tolerausosmágicosdasimagensreligiosase buscaa expansãoe a di-
vulgação,maisqueo aprofundamento.48Por suaparte,a burguesia
encontranovasfunçõesparaas imagense uma especialmentediri-
gida ao povo: educá-lo cívica,politicamente.Aproveitandoas cele-
braçõese comemoraçõesde vitórias,os "acontecimentospátrios",e
descobrindoacargaemotivaeo poderdesugestãoqueaimagemtem
paraalémdesuareferência,montam-seimagináriassobrebatalhasou
históriascombasenosestoquesdeimagensqueguardamoseditores.49
A transformaçãopodeserconstatadafinalmentenasmudan-
çasproduzidasna relaçãoentreiconografiae imaginária.Desde o
séculoXVI há umasériede motivosqueseincorporamà iconografia
popular,como"o mundoàsavessas","o diabólicodinheiro","aárvore
do amor".Entre eleshá um, "a escadada vida",quetemservidode
suporteparaavisualizaçãodasmudançasna representação.Como "a
rodada fortuna",o temada escadaou dasidadesda vida é de fato
um temamedievalquecomeçaaterrepresentaçãográficajá no século
Xv. Mas atéo séculoXVII trata-sesemprede uma imagemreligiosa
dasetapasdavida,do nascimentoà morte.Em umagravurade 1630
asetapasou grausou degraussãocinco:à direitaestãocolocadosos
símbolosdavidaeàesquerdaosdamorte,debaixodaescadaseencena
o juízo. Em um almanaquede 1673cadaidadeaparecerepresentada
por um casal,um ditadoe um epíteto,e as idadessãodoze;sob o
vérticeaparecetambémo JuÍzo Final e quatromedalhõesquerepre-
sentamo batismo,o matrimônio,a extrema-unçãoe o funeral.Mas
155
1I
II
I,
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
a partir do séculoXVIII a função religiosae a imagemmacabra
desaparecemesãosubstituídaspor umaimagináriaeufóricaesecular.
A escadasetransformana escadadaascensãosociale do processode
"maturação"do indivíduoatéchegaraela.Ficaaescadaaeaindicação
de um trajeto,mas esvaziadototalmenteda imagináriareligiosae
referidoà de umaburguesiaquedifundeassimseunovo imaginário:
o idealde vidajá não é a salvação,maso êxitosocial,50
Ao longo dessaevoluçãohá algo que marcade maneira
explícitaa distânciaqueaprofundae encobrepor suaveza popula-
rizaçãodasimagens.Trata-sedequeenquantoa pinturade cavalete,
ao rompercom a forma-retábulo,vai rechaçara representaçãoem
imagens de uma temporalidadeseqüencial, de uma seqüência
narrativa,estavaicontinuarpresenteevaidesenvolver-senaiconografia
popular.A queencontraránastirasde quadrinhosna imprensaseu
ponto de chegada.Nessepercurso,um papel decisivoé desempe-
nhadopelas"imagensde Épinal".
Desde1660seestabeleceemÉpinal,umacidadedo noroeste
francês,a maiorindústriade imagensde seutempo.51Ali seproduz
todo tipo de imagens:estampasreligiosas,cartasde jogo e de tarô,
dominós,almanaques,coleçõesdesoldados,ilustraçõesdecançõesetc.
Mas o quevai fazersuafama,o quevai recebero nomede "imagens
deÉpinal"serãoprecisamenteasnarrativasemimagensquelançamno
mercadoos irmãosPellerin,estabelecidosna cidadedesde1740.Ini-
cialmenteessasnarrativassedirigemaumanovaclientela,osmenores
deidade.Trata-sedecontar-Iheshistóriasemimagensmedianteuma
folhadivididaem 16quadrosou vinhetasconsecutivas,dispostasem
4 fileirasqueselêemdaesquerdaparaadireitae decimaparabaixo.
Cada vinhetatem debaixoum pequenotexto escrito.O êxito do
formatoserátantoquea históriaem imagenspor episódiosdeixará
logo de limitar-seao público infantil e passaráa ser utilizadapara
todo tipo denarrativas,especialmenteasquefazem"caricatura".Seu
desenvolvimentoiconográficoestarásobretudoligado à represen-
taçãoimagéticade lendase contospopulares.
156
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
Na Espanha,ospliegosdecordeltraziamquasesempreuma
ilustraçãogravadana primeirapágina,e àsvezesoutraquedividia o
caderninhoemduaspartes.O queospliegosreproduzeminicialmente
sãogravurastomadasdelivrosequetinhamalgumarelaçãocomo te-
ma.Maspoucoapoucovãoevoluindo:deumaprimeiraetapa,naqual
setransfereparao pliegoa gravuratal ecomoestáno livro dequefoi
retirada,a umasegundanaqual,combaseemfigurassoltasdeperso-
nagenstomadosdeum estoque,searmamcenas,e a umaterceira-
já no séculoXVIII - naqualsefazemgravurasespeciaisparailustrar
ospliegos.52Mas essasgravurasrepresentamsempreumaúnicacena.
A narrativaem imagens'seadia tambémligadaao pliego de cordel,
porémpor outroslados.Em primeirolugar atravésdos cartazesde
feira ou decegoqueilustravamcomimagensdispostaspor episódios
o conteúdodopliegoqueo cegorecitava.O guiadecego,ouummoço
aserviçodo cego,ia indicandocomumavaretaavinhetaqueilustrava
a passagema quealudiao cego.E emsegundolugarnas aleluias ou
jogos-da-glóriaque apresentavamum formatomuito similarao das
imagensdeÉpinal:umasuperfíciequadriculadana qualcadaquadro
contém um desenhoe o conjunto desenvolveum tema ou uma
história.As aleluiasversamsobretodosostemasdaliteraturadecordel
e, segundoCaro Baroja,são"a últimafaseno processode resumire
de abreviaros relatos".
O passoseguintena indústriadaiconografiapopularserájá
o jornalilustrado,quefazsuaapariçãoem1832como PennyMagazin
deLondres.Mas issonosintroduzjá emoutraetapa:na daprimeira
culturade massas.
MELODRAMA: O GRANDE
ESPETÁCULO POPULAR
Desde 1790vai-sechamar melodrama, especialmentena
Françae na Inglaterra,um espetáculopopularqueé muitomenose
muito maisqueteatro.Porqueo queaí chegae tomaa forma-teatro,
maisque com uma tradiçãoestritamenteteatral,tem a ver com as
157
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
formasemodosdosespetáculosdefeiraecomostemasdasnarrativas
quevêmda literaturaoral, emespecialcom os contosde medoe de
mistério,comos relatosdeterror.Além disso,desdefinaisdo século
XVII, disposiçõesgovernamentais"destinadasacombatero alvoroço"
proíbemnaInglaterraenaFrançaaexistênciadeteatrospopularesnas
cidadesY Os teatrosoficiaissãoreservadosàsclassesaltas,e o queé
permitidoao povo são representaçõessemdiálogos,nem faladasnem
sequercantadas,e issosobo pretextodeque"o verdadeiroteatronão
sejacorrompido".A proibiçãoserásuspensanaFrançasóem 1806por
um decretoque autorizaem Paris o uso de algunsteatrosp~raa
encenaçãodeespetáculospopulares,maslimitandoestesasótrês.~±-be
outraparte,e por estranhoqueissopossasoarhoje,o melodramade
1800,o que temseuparadigmaem Celinaou afilhado mistériode
GilbertdePixerecourt,estáligadopormaisdeumaspectoàRevolução
Francesa:à transformaçãoda canalha,do populachoem povo e à
cenografiadessatransformação.É aentradado povoduplamente"em
cena".As paixõespolíticasdespertadase as terríveiscenasvividas
durantea Revoluçãoexaltarama imaginaçãoe exacerbarama sensi-
bilidadedecertasmassaspopularesqueafinalpodemsepermitiren-
cenarsuasemoções.E paraqueestaspossamdesenvolver-seo cenário
seencheráde cárceres,de conspiraçõesejustiçamentos,de desgraças
imensassofridaspor inocentesvítimase detraidoresqueno final pa-
garãocaropor suastraições.Não é por acasoestaa moralidadeda
Revolução?"Antesdeserum meiodepropaganda,o melodramaserá
o espelhode umaconsciênciacoletiva."55
A pantomimaencenadafoi "ensaiada"aoar livrepor ruase
praçasonde a mímicaserviuà ridicularizaçãoda nobreza.E toda a
maquinariaqueaencenaçãodomelodramaexigeestáemrelaçãodireta
com o tipo de espaçoqueo povonecessitaparafazer-sevisível:ruas
epraças,maresemontanhascomvulcõeseterremotos.O melodrama
nascecomo"espetáculototal"paraum povo quejá podeseolharde
corpo inteiro, "imponentee trivial,sentenciosoe ingênuo,solenee
bufão,queinspiraterror,extravagânciasejocosidade".56Daí apeculiar
158
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
cumplicidadecomo melodramade um públicoque- "escritopara
os quenão sabemler", dirá Pexerecourt- não procutapalavrasna
cena,masaçõese grandespaixões.E essefortesaboremocionalé o
que demarcarádefinitivamenteo melodrama,colocando-odo lado
popular,poisjustonessemomento,anotaSennett,57a marcadaedu-
cação burguesase manifestatotalmenteoposta, no controle dos
sentimentosque,divorciadosda cenasocial,seinteriorizame confi-
gurama "cenaprivada".
A cumplicidadecom o novo público populare o tipo de
demarcaçãoculturalque ela traçasãoas chavesque nos permitem
situaro melodramanovérticemesmodoprocessoquelevadopopular
ao massivo:lugarde chegadade umamemórianarrativae gestuale
lugar de emergênciade uma cenade massa,isto é, ondeo popular
começaaserobjetodeumaoperação,deum apagamentodasfrontei-
rasdeslanchadocomaconstituiçãodeumdiscursohomogêneoeuma
imagemunifieadadopopular,primeirafiguradamassa.O apagamento
da pluralidadedesinaisnos relatose nosgestosobstruisuapermea-
bilidadeaoscontextos,e o rebaixamentoprogressivodos elementos
maisfortementecaracterizadoresdo popularseráacompanhadopela
inclusãode temase formasprocedentesda outra estética,como o
conflito de caracteres,a buscaindividualdo êxitoe a transformação
do heróicoe maravilhosoem pseudorealismo.
Entre o circo e o palco
O quesefaz teatrono melodramafoi duranteséculosespe-
táculode troupesambulantesquevãodefeiraemfeira,e cujo ofício,
maisqueo de"atores",éaqueleoutroquemisturaa representaçãode
farsase entremezesao de acrobatas,saltimbancose advinhadores.
Desde1680aproibiçãodos"diálogos"vaiobrigaro espetáculopopu-
lar nãosóa reencontrar-secomamímica- "aartedo atorressuscita
porqueo atornãopodeexpressar-secompalavras"58- comotambém
a inventarumasériedeestratagemascênicosquesemantêmÍntegros
159
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
na cumplicidadedo espectador.Algumasvezesa soluçãoseráquesó
um atorfaleeosoutrosrespondamcomgestos,ou queo outroentre
emcenaquandoo quefalousair.Mas asestratégiasmaisutilizadasse-
rãoa utilizaçãodecartazesou faixasnasquaisestáescritaa falaou o
diálogoquecorrespondeà açãodosatores,59ea utilizaçãodeletrasde
cançõesquefazemo públicocantarseguindoascopIasimpressasem
volantesquelhedãoàentradacomamelodiadascançõesconhecidas.60
Frenteao teatroculto, que é nessetempoum teatroemi-
nentementeliterário,isto é, cujacomplexidadedramáticaestádita e
se sustentainteiramentena retóricaverbal,o melodramaapóiasua
dramaticidadebasicamentena encenaçãoe num tipo de atuação
muito peculiar.
Por predominânciadaencenaçãoéprecisoentendera prio-
ridadequetemo espetáculosobrea representaçãomesma."O quese
pagaé o quesevê",disseum críticodessaépoca.E Pixerecourt,que
escreviaumapeçaemapenasquinzeou vintedias,precisavade dois
ou trêsmesesparasuaencenação."A açãodramáticaforneciao tema
paraaexecuçãodeumapaisagem",61o "lugardaação"eobjetodeuma
verdadeirafabricaçãocombaseemmaquinariascomplicadíssimaspara
a movimentaçãodas decoraçõese os efeitosóticos e sonorosque
permitiam"presenciar"umnaufrágioou umterremoto.Os críticosde
teatropermanecemescandalizados:aspalavrasimportammenosque
osjogosdemecânicaede ótica.Uma economiadalinguagemverbal
se põe a serviçode um espetáculovisuale sonoroonde primam a
pantomimae a dança,62e ondeosefeitossonorossãoestudadamente
fabricados.Como a utilizaçãoda músicaparamarcaros momentos
solenesou cômicos,paracaracterizaro traidoreprepararaentradada
vítima, para ampliara tensãoou relaxá-Ia,além das cançõese da
músicadosbalés.A funcionalizaçãodamúsicaeafabricaçãodeefeitos
sonoros,queencontrarãonasnovelasderádioseuesplendor,tiveram
no melodramanão só um antecedente,mas todo um paradigma.
Quanto aosefeitosóticos,fazemsuaapariçãoumamultiplicidadede
truquesparaosquais,comonascomédiasdemagia,seutilizamdesde
160
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
fantasmagoriasatésombraschinesas.O parentescodo cinemacom o
melodramanãoésótemático,boapartedos truquesqueo preparam,
e dosquaislançarámãoparaproduzirsua"magia",estãojá aÍ. Não
sepodeesquecerquequeminiciaa conversãodo aparatotécnicoem
dispositivocinematográfico,Mélies,eraum ilusionistade barracade
feira,um prestidigitador.63
A efetividadedaencenaçãosecorresponderácomum modo
peculiarde atuação,baseadona "fisionomia":uma correspondência
entre figura corporal e tipo moral. Produz-seaí uma estifização
metonímica64quetraduza moralem termosde traçosfísicossobre-
carregandoa aparência,a partevisíveldo personagem,de valorese
contra-valoreséticos.Correspondênciaqueé coerentecomum espe-
táculoem queo importanteé o quesevê,masquepor suaveznos
remeteaumafortecodificaçãoqueasfiguraseosgestoscorporaistêm
naculturapopular,edaqualospersonagensda commediadeffarte,os
arlequinsepolichinelos,sãoa expressão.Atuaçãoentãoqueestreitae
reforçaa cumplicidadecom o público,cumplicidadede classee de
cultura!Assimo atestaSennett:"As salaspopularesinglesaseramtão
barulhentase respondonasque muitosteatrosdeviamreconstruire
redecorarseu interior periodicamente,em conseqüênciado grande
dano que o público produziaao demonstrarsuaaprovaçãoou seu
desprezopelo que tinha acontecidono cenário.Esta paixãoe este
sentimentoespontâneodo públicoseproduziaempartedevidoà clas-
sesocialdos atores".65Pelosmesmosanos,na Espanha,o ilustrado
Jovellanos,encarregadopelorei deinvestigaros espetáculose formas
de diversãopopular,denunciaessamesmacumplicidadee propõe
que qualquerreformadeverácomeçarpor abolir o modo vulgarde
atuar,isto é, "osgritose uivosdescompostos,asviolentascontorções
e atrevimentos,os gestose trejeitosdescompassados,e finalmente
aquelafaltadeestudoedememória,aqueleimpudentedescaramento,
aquelesolhareslivres,aquelesmeneiosindecentes,aquelafalta de
propriedade,dedecoro,depudor,depolíciae de arnobrequetanto
alvoroçaa gentedesobedientee petulante,e tanto tédio causanas
161
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
pessoascordatase bemcriadas".66Quando o melodramae seumodo
deatuaçãoatravésdegrandesefeitossetornemplenamentemassivos,
com o cinemae o rádio, tender-se-áa atribuiresseafãem produzir
efeitosportentososa umameraestratégiacomercial.Todavia,emsua
origem,no melodramade 1800,esseafãfalaa seumodo de Outras
coisasqueseriabomnãoperderdevista,inclusivehoje,sequeremos
entendero que culturalmentesepassapor aqui: talvezo afãporten-
toso do gestomelodramáticoestejahistoricamenteligado menosà
influênciada comédia larmoyanteque à proibição da palavranas
representaçõespopulares- Com a correspondentenecessidadede
um excessode gesto- e à expressividadedossentimentosem uma
culturaquenãopôdeser"educada"pelo padrãoburguês.
Estrutura dramática e operação simbólica
A idéiade"espetáculototal"nãoserestringeno melodrama
só ao nível da encenação,estátambémno planode sua estrutura
dramática.67Tendo comoeixocentralquatro sentimentosbásicos_
medo,entusiasmo,dor e riso-, aelescorrespondemquatrotiposde
situaçõesquesãoao mesmotemposensações- terríveis,excitantes,
ternase burlescas- personificadasou "vividas"por quatropersona-
gens- o Traidor,o Justiceiro,aVítima eo Bobo- queaojuntar-se
realizama misturade quatro gêneros:romancede ação,epopéia,
tragédiae comédia.Essaestruturanos revelano melodramaumatal
pretensãode intensidadequesósepodealcançarà custada complexi-
dade.O queobrigaapôr emfuncionamento"sistematicamente"duas
operaçõesque, se bastantede estratégia,nem por isso deixamde
remetera uma matriz cultural: esquematizaçãoe polarização.A
esquematizaçãoé entendidapelamaioriados analistasem termosde
"ausênciadepsicologia",ospersonagenssãoconvertidosem signose
esvaziadosdo pesoe daespessuradasvidashumanas,o contráriodos
personagensdo romancesegundoLukács,isto é, não-problemáticos.
Mas Benjamin abriu outra pista ao propor que a diferençaentre
narraçãoe romancetema vercom a especialrelaçãodaquelacom a
162
11
1I'I
li
~!
f
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
experiênciaeamemória:nãopodeterentãoamesma"estrutura"o que
é paraserlido e o queé parasercontado.E o melodramatem um
parentescomuito forte, estrutural,com a narração.Seguindoessa
pista,Hoggartvê nos esquematismose nos estereótiposaquilo que
tempor função"permitirarelaçãodaexperiênciacomosarquétipos".68
A polarizaçãomaniqueístae sua "reduçãovalorativa"dos persona-
gensabonsemausacabasendo,segundoosanalistas,umachantagem
ideológica.Goimardnãodesconheceessaoperaçãomasa remete"por
debaixo"à regressãoqueestaria,segundoFreud,na basedetodaobra
dearte,carregandoospersonagensquesão"objetode identificação"
com o signopositivoe os personagensquesão"objetode projeção"
como signonegativodosagressores.69Northrop Frye,referindo-seà
estruturadoromancesentimental,propõequeapolarizaçãoentrebons
e mausnão se produz só nessetipo de narrativa:ela se encontra
tambémnasnarrativasque dão contade situações-limiteparauma
coletividade,de situações"derevolução",o quepermitiráinferir que
aoposiçãoentrebonsemausnãotemsempreum sentido"conserva-
dor",edealgummodo,inclusive,o melodramapodeconterumacerta
formade dizerdastensõese dosconflitossociais.70
É necessário,então,visualizarmaisdepertoa redeformada
pelosquatropersonagensquesãoo núcleodo drama.O Traidor-
ou Perseguidorou Agressor- é semdúvidao personagemque liga
o melodramaao romancede açãoe à narrativade terrortal e como
seconcretizano romancegóticodoséculoXVIII enoscontosdemedo
quevêmde longo tempo.Suafigutaé a personificaçãodo male do
vício, mastambéma do magoe do sedutorquefascinaa vítima,e a
do sábioem fraudes,em dissimulaçõese disfarces.Secularizaçãodo
diabo e vulgarizaçãodo Fausto,o Traidor é sociologicamenteum
aristocratamalvado,um burguêsmegalomaníacoe inclusiveum clé-
rigo corrompido.Seumodo de açãoé a impostura- mantémuma
secretarelaçãoinvertidacom a vítima, pois enquantoela é nobre
crendo-sebastarda,eleécomfreqüênciaumbastardoquesefazpassar
por nobre- esuafunçãodramáticaéencurralaremaltrataravítima.
163
I
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Ao encarnaraspaixõesagressorasoTraidor éopersonagemdoterrível,
o queproduzmedo,cujasimplespresençasuspendea respiraçãodos
espectadoresmastambémé o quefascina:príncipee serpentequese
movena escuridão,nos corredoresdo labirintoe do secreto.
A Vítima éa heroína:encarnaçãodainocênciae davirtude,
quasesempremulher.Anota Fryeque"o ethosromânticoconsiderao
heroÍsmocadavezmaisem termosde sofrimento,resignaçãoe pa-
ciência(...) É tambémo ethosdo mito cristão.Esta mudançana
concepçãodo heroÍsmoexplicaemgrandepartea proeminênciados
personagensfemininosnosromances",71querdizer,natragédiapopu-
lar. Essa na qual o dispositivocatárticofunciona fazendorecaira
desgraçasobreum personagemcujadebilidadereclamao tempotodo
proteção- excitandoo sentimentoprotetorno público- mascuja
virtudeéumaforça quecausaadmiraçãoedecertomodotranqüiliza.
Sociologicamenteavítimaéumaprincesaquesedesconheceenquanto
tal eque,tendovindodecima,aparecerebaixada,humilhada,tratada
injustamente.Mais de um crítico viu, nessacondiçãoda vítima de
estar"privadadeidentidade"econdenadapor issoasofrerinjustiças,
a figurado proletariado.Claro queno melodramaa recuperaçãoda
identidadepor parteda vítimaseresolve"maravilhosamente"e não
pela tomadade conciênciae pelaluta, masa situaçãonão deixade
estarcolocadae algunsdosfolhetinsmais"populares"assima leram:
"A alienaçãosocialnãoestáescamoteadano melodrama:é seutema,
aindaquesubmetidaa umatransposiçãofantasmática".72
O justiceiro ou Protetoré o personagemque, no último
momento,salvaa vítima e castigao Traidor. Vindo da epopéia,o
Justiceiro tem tambéma figurado herói, maso "tradicional":um
jovemeenfeitadocavaleiro- algumasvezeso papeldejovemganha
um acréscimodegentilezaeelegâncianum homemdeidadeavança-
da - ligadoà vítimapor amorou parentesco.É, pelagenerosidade
e sensibilidade,a contrafacedo Traidor. E portantoo que tempor
funçãodesfazeratramademal-entendidosedesvelaraimposturaper-
mitindo que"averdaderesplandeça".Toda, a daVítima e a do Trai-
164
!
;1
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
dor.Mas, mutilandoatragédia,essefinalfelizaproximao melodrama
do conto de fadas.
E por últimoo Bobo,queestáforadatríadedospersonagens
protagonistas,maspertencesemdúvidaà estruturado melodrama,na
qual representaa presençaativado cômico,a outravertenteessencial
da matrizpopular.A figurado Bobo no melodramaremetepor um
lado à do palhaço no circo, isto é, aqueleque produz distensãoe
relaxamentoemocionaldepoisde um fortemomentode tensão,tão
necessárioem um tipo de dramaque mantémas sensaçõese os
sentimentosquasesempreno limite. Mas remetepor outro lado ao
plebeu, o anti-heróitorto e atégrotesco,com sua linguagemanti-
sublimee grosseira,rindo-seda correçãoe da retóricadosprotago-
nistas,introduzindoa ironiadesuaaparentetorpezafísica,sendoco-
mo éum equilibrista,esuafalacheiaderefrõesedejogosdepalavras.
A estruturadinâmicado melodramacuntémalémdissoalgo
queos estudiososcostumamconfundircomsua"ideologiareacioná-
ria". Tem razãoFollain quandoafirmaqueo "velho"teatropopular
eramuito menosrespeitosoparacomasnormasestabelecidasque o
melodrama.73E Reboulquandodenunciaque,no melodrama,o que
ficada revoluçãoé suamoralidadee queestamosportantodiantede
umaoperaçãodepropaganda.Mas aoperaçãosimbólicaquevertebra
o melodramanãoseesgotaaí, temoutraface,outroespaçodedesdo-
bramentoeoutrouniversodesignificaçãopeloqualseligacomaquela
matrizculturalquevínhamosrastreando:a "afirmaçãode umasigni-
ficaçãomoralnumuniversodessacralizado".71Essaafirmaçãomoraljá
fala,no início do séculoXIX, umalinguagemduplamenteanacrônica:
adasrelaçõesfamiliares,deparentesco,comoestruturadasfidelidades
primordiais,e a do excesso.
Todo o pesodo dramaseapóiano fato de queseachano
segredodessasfidelidadesprimordiais aorigemdossofrimentos.O que
convertetodaexistênciahumana- desdeosmistériosdapaternidade
aodosirmãosquesedesconhecem,ouaodosgêmeos- emumaluta
contraasaparênciase osmalefícios,é umaoperaçãodedecifração.É
165
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
issoo queconstituio verdadeiromovimentodatrama:a ida do des-
conhecimentoaore-conhecimentodaidentidade,"essemomentoemque
a moral se impõe".75E se essamoralque se impõenão passasseda
"economiamoral"dequefalaThompson,ou aomenosaelaremetes-
se?Caberiaentãoa hipótesedequeo enormee espessoenredamento
das relaçõesfamiliares,que como infra-estruturafazema tramado
melodrama,seriaaformapelaqualapartirdopopularsecompreende
e se expressaa opacidadee a complexidadeque revestemas novas
relaçõessociais.O anacronismosetorna,assim,metáfora,modo de
simbolizaro social.
Segundoanacronismo:a retóricado excesso.Tudo no me-
lodramatendeaoesbanjamento.Desdeumaencenaçãoqueexageraos
contrastesvisuaisesonorosatéumaestruturadramáticaeumaatuação
queexibemdescaradaeefetivamenteossentimentos,exigindootempo
todo do público uma respostaem risadas,em lágrimas,suorese
tremores.Julgado como degradantepor qualquerespíritocultivado,
esseexcessocontémcontudoumavitória contraa repressão,contra
umadeterminada"economia"daordem,adapoupançaedaretenção.
A obstinadapersistênciado melodramamaisaléme muito
depoisdedesaparecidassuascondiçõesdesurgimento,esuacapacida-
de de adaptaçãoaosdiferentesformatostecnológicos,nãopodemser
explicadasnos termosde uma operaçãopuramenteideológicaou
comercial.Faz-seindispensávelpropor a questãodasmatrizescultu-
rais,poissódaíépensávela mediaçãoefetivadapelomelodramaentre
o folcloredasfeiraseo espetáculopopular-urbano,querdizer,massivo.
Mediaçãoqueno plano dasnarrativaspassapelo folhetime no dos
espetáculospelomusic-halleo cinema.Do cinemaaoradioteatro,uma
históriadosmodosde narrare da encenaçãoda culturade massasé,
em grandeparte,umahistóriado melodrama.
166
t
~
fII,
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CAPíTULO 3
DAS MASSAS À MASSA
o conceitode massasurgecomoparteintegranteda ideologia
dominantee daconsciênciapopularno momentocmqueo focoda
legitimidadeburguesasedeslocadecimaparadentro.Agorasomostodos
massa.
A. Swingewood
Tãoprontamentecomoamassadenão-proprietárioselegeasregras
geraisdotráficosocialcomotemadeseuraciocíniopúblico,areprodução
davidasocialcomotaléconvertidaemassuntogeralnãomaismeramente
emsuaformadeapropriaçãoprivada.
Jiirgen Habermas
INVERSÃO DE SENTIDO E
SENTIDOS DA INVERSÃO
O longoprocessode enculturaçãodasclassespopularesno
capitalismosofredesdemeadosdo séculoXIX umarupturamediante
a qualobtémsuacontinuidade:o deslocamentoda legitimidadebur-
guesa"de cimaparadentro",isto é, a passagemdosdispositivosde
submissãoaosde consenso.Esse"salto"contémumapluralidadede
movimentosentreosquaisosdemaislongoalcanceserãoadissolução
do sistematradicionaldediferençassociais,a constituiçãodasmassas
emclasseeo surgimentodeumanovacultura,demassa.O significado
desteúltimo quasesempretemsidopensadoemtermosculturalistas,
comoperdade autenticidadeou degradaçãocultural,e não em sua
articulaçãocom os outrosdois movimentose, portanto,no quetraz
de mudançana funçãosocialda própriacultura.
,
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Mudança cujo sentidosó pode ser abordadoa partir dos
diferentessentidosqueassumehistoricamente,"aapariçãodasmassas
no cenáriosocial",desdeaconcentraçãoindustrialdemão-de-obranas
grandescidadestornandovisívelaforçadasmassasatéa constituição
do massivoenquantomododeexistênciadopopular.
A visibilidade,a presençasocialdasmassas,remetefunda-
mentalmenteaum fatopolítico.É arevoluçãoconvertendoo Estado,
comodisseMarx, emassuntogeral,liberandoo políticoeconstituin-
do-o "emesferadacomunidade,aesferadosassuntosgeraisdo povo".
Torna-seassimpossívela entradadascamadassociaisnãoburguesas,
damassadenão-proletários,naesferapública,.como quesetransforma
o sentido que a burguesialiberal tinha conferidoao público, ao
desprivatizá-loradicalmente.ExplicaHabermas:"A dialéticade uma
estatizaçãoprogressivada sociedade,paralelaa uma socializaçãodo
Estado, começapaulatinamentea destruiras basesda publicidade
burguesa:a separaçãoentreEstadoe sociedade.Entre ambas,e por
assimdizerde ambas,surgeumaesferasocialrepolitizadaque con-
fundea diferençaentreo públicoe o privado".76E não obstante_
segundosentidoda inversão-, a crisequea dissoluçãodo público
produzna legitimidadeburguesanãoconduzà revoluçãosocialesim
a uma recomposiçãode hegemonia:"A ocupaçãoda esferapolítica
pelasmassade despossuídosconduziua uma imbricaçãode Estado
e sociedadeque acabouarruinandoa antigabasedo público, sem.
dotá-Iode outra,nova".??É a partirdaí quea culturaé redefinidae
modificadaem sua função. O vazio abertopela desintegraçãodo
públicoseráocupadopelaintegraçãoqueproduzomassivo,aculturade
massa.Uma culturaque, em vezde sero lugar onde as diferenças
sociaissãodefinidas,passaa sero lugarondetaisdiferençassãoenco-
bertase negadas.E isto não ocorrepor um estratagemados domi-
nadores,esimcomoelementoconstitutivodo novomododefuncio-
namentoda hegemoniaburguesa,"comoparteintegranteda ideo-
logia dominantee da consciênciapopular".78
168
'Ii
I
I
'ii
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
Massadesigna,no movimentoda mudança,o modo como
asclassespopularesvivemasnovascondiçõesdeexistência;tantono
queelastêmdeopressãoquantono queasnovasrelaçõescontêmde
demandae aspiraçõesde democratizaçãosocial.E de massaseráa
chamadaculturapopular.Isto porqueno momentoemquea cultura
popular tendera converter-seem cultura de classe,seráela mesma
minadapor dentro,transformando-seemculturademassa.Sabemos
que essainversãovinhasendogeradahá muito tempo,maselanão
podiatornar-seefetivasenãoquando,aosetransformaremasmassas
em classe,a culturamudou de profissãoe se converteuem espaço
estratégicodahegemonia,passandoa mediar,istoé,encobrirasdife-
rençase reconciliarosgostos.Os dispositivosda mediaçãode massa
acham-seassimligadosestruturalmenteaosmovimentosnoâmbitoda
legitimidadequearticulaa cultura:umasociabilidadeque realizaa
abstraçãoda formamercantilnamaterialidadetecnológicada fábrica
e do jornal, e umamediaçãoqueencobreo conflito entreasclasses
produzindosuaresoluçãono imaginário,assegurandoassimo consen-
timentoativodosdominados.Essamediaçãoeesseconsentimento,no
entanto,sóforamhistoricamentepossíveisnamedidaemqueacultura
de massafoi constituídaacionandoe deformandoao mesmotempo
sinaisdeidentidadedaantigaculturapopularc integrandoaomercado
asnovasdemandasdasmassas.
.L}e:t!lturad~_lllas.s.ª_._º.ªº.._ªpªrec:~de repente,como uma
rll12t,lJ!"ªq.u~".p.ermit<Ls.e.u...cQ.nfrontº_ç_9-lll_~_c:ÚLt,~!E~.-pop.ºr~r.º1rlassivo
·[QLgeraJo-lf:Hi),t-am@Fl,j;~·iHlTt.i.F--a&fQp.ulaL.s.Q.!11ll.enorll1.e~str:bi~mô
,."históric()~.E_rg._P.Qt,~m~.~lJlo..c.e.n.tcismQ-.dg.GlassGq~~~~~êg.ainQme~ãl.=:":.
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~ .•."-<.-.•."-.~~ .•__ •.,,--_., .•""--
. el1xergar.n<lc::ultllra.~e...mas~'L_s.enãO--llm-process0.devu.1garização.c_",.
de~;-dê;;'ci;da cuft~raculta.
MEMÓRIA NARRATIVA E
INDÚSTRIA CULTURAL
A incorporaçãodasclassespopularesà culturahegemônica
temumalongahistóriana quala indústriadenarrativasocupalugar
169
il
II!I
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
primordial. Em meadosdo séculoXIX, a demandapopular e o
desenvolvimentodastecnologiasdeimpressãovãofazerdasnarrativas
o espaçodedecolagemdaproduçãomassiva.O movimentoosmótico
nascenaimprensa,umaimprensaqueem1830iniciouo caminhoque
levado jornalismopolíticoà empresacomercial.Nasceentãoo filhe-
tim, primeiro tipo de textoescritono formatopopular de massa.
Fenômenoculturalmuitomaisqueliterário,o folhetimconformaum
espaçoprivilegiadoparaestudara emergêncianãosó de um meiode
comunicaçãodirigidoàsmassas,mastambémde um novo modode
comunicaçãoentreasclasses.Quasecompletamenteignoradoatéal-
gunsanosatrás,foi redescobertoemfinaisdosanos60por estudiosos
dos fenômenos"para"ou "sub" literários,que sobreeleprojetaram
duasposiçõesfortementedivergentes.Uma, abordando-oa partir da
literaturae da ideologia,encara-ocomo um fracassoliterárioe um
poderososucessoda ideologiamaisreacionária.Outra, seguindoa
propostade Gramsci,propõe-nocomo "um estudode história da
cultura e não de história literária",79esforçando-separa superaro
sociologismoda leituraideológica.
Proporo folhetimcomojàto culturalsignificadesaídarom-
per com o mito da escrituraparaabrir a históriaà pluralidadee à
heterogeneidadedasexperiênciasliterárias.E, emsegundolugar,des-
locara leiturado campoideológicoparaler nãosó adominantemas
tambémasdiferenteslógicasemconflito tantona produçãoquanto
no consumo.É bastanterevelador que tenhasido Roland Barthese
não um "sociólqgo"quem de maneiramais explícita propôs "a
explosãoda unidadeda escritura",situando-anosarredoresde 1850
e ligando-aa trêsgrandesfatoshistóricos:o retrocessodemográfico
europeu, o nascimentodo capitalismomoderno e a divisão da
sociedadeemclassesarruinandoas ilusõesliberais.80Porque é em
relaçãoao movimentodo social,e não a dogmasacadêmicosou
políticos, que o folhetim nos revela uma relaçãooutrapara coma
linguagemno campoda literaturaeapartir dele.A hegemoniaexigia
o seguinte:a inversãoqueimplicaumaliteratura"semescritura"ou
170
I"I,i
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
um "romancenão-literário".Quer dizer:é a entradano campoda
literaturade umajàla que faz explodiro círculo dasmaneirase dos
estilosliterários.Contudo, isto tambémimplicaqueessafala vai se
ver obstaculizada,desarticulada,desativadae funcionalizada.As
classespopularessó alcançama literaturamedianteuma operação
comercialque fendeo próprio ato de escrevere deslocaa figurado
escritornadireçãodafiguradojornalista.Mas o folhetim,dequalquer
modo,vai falarde umaexperiênciaculturalque inicia aí o caminho
de seureconhecimento.
o aparecirnentodo rneio
Antesdesignificarromancepopularpublicadoemepisódios
aolongodeumcertoperíodo,filhetimdesignavaumapartedojornal:
o "rodapé"da primeirapágina,onde iam pararas "variedades",as
críticasliterárias,asresenhasteatrais,junto com anúnciose receitas
culinárias,e nãorarocomnotíciasquemetiama políticaemdisfarce
de literatura.O quenãoeraadmitidono corpodo jornalpodia,sem
impedimentos,serencontradono folhetim,e essacondiçãooriginal,
assimcomoamixórdiadeliteraturaepolítica,deixoumarcasprofun-
dasnesseformato.Isto sedeuem 1836,quandoa transformaçãodo
jornal em empresa comercial8! levou os donos de dois jornais
parisienses- La Pressee Le Siecle- a introduzirmodificaçõesim-
portantescomo os anúnciospor palavrasc a publicaçãode narra-
tivasescritaspor novelistasda moda.Pouco tempodepoisessasnar-
rativaspassaramaocupartodoo espaçodo folhetim- daíaabsorção
do nome. Com isso, pretendeu-seredirecionaros jornais para o
"grandepúblico", barateandoos custosc aproveitandoaspossibili-
dadesabertaspela"revoluçãotecnológica"operadapelarotativa,que
aparecejustamentepor essesanos,permitindoum saltodas 1.100
páginasimpressaspor horapara18 mil.
A competiçãoentreos jornaisiria desempenharum papel
importantenaconfiguraçãodoromance-folhetim.Em agostode1836,
171
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
o Sieclecomeçaapublicar"empartes"o LazarillodeTormes.82APresse
resisteatéoutubro,quandopublicaumanarrativadeBalzac.Sóno ano
seguinte,em28 desetembro,eemoutrojornal,o Journal desDébats,
apareceráo primeiroverdadeirofolhetim:As memóriasdo diabo,de
FrédéricSoulié,escritoem episódiosparaserempublicadosperiodi-
camente,contendojá os ingredientesbásicosda fórmula que iria
garantirosprimeirosgrandessucessos:romancedeaçãomaisroman-
tismo social (ou socialismoromântico).Durante um certo tempo
subsistea misturadeproduçãoe reproduções.O Siecleseespecializa
na traduçãodefamososromancesinglesese espanhóis,mastambém
publica já em 1838uma narrativado Dumas dramaturgo.Outros
jornais,comoLe ConstitutionneleLe Commerce,tambémingressamna
competição.Os murosde Parisficamcheiosde cartazesdivulgando
os folhetins.A tiragemdos jornais sofre enormestransformações,
comoa do Constitutionnel,quecoma publicaçãode O judeu errante
passadecincomil paraoitomil exemplares.Surgemdebatessobreque
tipo de romance"cabe"no folhetim,defende-sea narrativahistórica
na linha de Walter Scott, masde modo que "os personagenscon-
centrememsi osinteresses,aspaixões,oscostumeseospreconceitos
de uma época".A observaçãoé de Soulié e a elase oporá Dumas,
alegandoqueahistórianãopodeserromanceada.Tais considerações
seprolongamde 1837até1842;já em 1843apareceOsmistériosde
Paris, de EugéneSue,e, em 1844, O condedeMontecristo,as duas
obras-primasdo gênero.
Diantedosquenãovêemno folhetimmaisqueum estrata-
gemaideológicoe comercialfaz-senecessáriodistinguirtrêsperíodos
de seudesenvolvimento.No primeiro,predominao romantismoso-
cial, fazendopassarpelo espaçofolhetinesco,junto à vidadasclasses
populares,um dualismode forçassociaisque semprese resolvede
modo mágico-reformista.É a épocadeSoulié,Suee Dumas,quevai
atéa Revoluçãode 1848.No segundoperíodo,a aventurae a intriga
substitueme dissolvemaspreocupaçõessociais,enquantoo folhetim
ajustaseusmecanismosnarrativosaosrequisitosindustriais;durante
172
~
J
I
f
ti~
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
essaetapa,quevai até1870,os maioressucessossãoobrade Pierre-
Alexis Ponson du Terrail e Paul Féval.Por último, nos anosque se
seguemà Comuna de Paris,o folhetimentraem claradecadênciae
ideologicamenteassumefrancaposiçãoreacionári<temautorescomo
Xavierde Montépin. O folhetimacompanhouassimemsuasevolu-
çõeso movimentodasociedade:daapresentaçãodeum quadrogeral
quemina aconfiançado povonasociedadeburguesaatéaproclama-
çãodeumaintegraçãoquetraduzo pânicodessasociedadediantedos
acontecimentosda Comuna.
Dispositivos de enunciação
Metodologicamentea possibilidadede situaro literáriono
espaçodaculturapassapor suainclusãono espaçodosprocessosedas
práticasde comunicação.Isto estásendodemonstradotanto pelos
estudossociológicosdo grupoorientadopor RobertEscarpit83quanto
pelostrabalhosdesemióticadeIuri M. LotmanedaEscoladeTartu.84
A perspectivadetrabalhopoderiasersintetizadadaseguintemaneira:
busca-seanalisar o processode escrituraenquanto processode
enuncíaçãono âmbitode um meiode comunicação,que não tem a
estruturafechadado livro, e sim a estruturaabertado jornal ou dos
fascículosde entregasemanal,quepor suavez implicaum modode
escrevermarcadopela dupla exterioridadeda periodicidadee da
pressãosalarial,e que remete(responde)a um modode leituraque
rompeo isolamentoeadistânciadoescritoreo situano espaçodeuma
interpelaçãopermanentepor partedos leitores.O estatutoda co-
municaçãoliteráriasofrecom o folhetimum duplo deslocamento:
do âmbitodo livro parao da imprensa- o queimplicaa mediação
dastécnicasda escriturajornalísticae da técnicado aparatotecno-
lógicona composiçãoe na diagramaçãodeum formatoespecífico-
e do âmbitodo escritor-autor,que agorasó entracom a "matéria-
prima" e que por vezes,maisdo que escrever,reescreve,parao do
editor-produtor,que é quemmuitasvezes"temo projeto"e dirige
suarealização.
173
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
A reaçãodos estudiososda literaturafrentea estetipo de
propostametodológicaé muito semelhantetantoà direitaquantoà
esquerda:estamosnapresençadadestruiçãodo literárioemmãosda
organizaçãoindustriale do comércioimundo;a verdadeiraliteratura
serásempreoutracoisa.Tal foi areaçãodacríticaburguesaàaparição
do folhetim,e permanecefreqüenteatéhoje. Mesmo assim,como
admiteBarthes,todaa literaturafoi afetadapelastransformaçõesda
comunicaçãoliterária,dasquaiso folhetim não é maisdo que um
expoente.Daí queo relevantenãosejaqueBalzacou Dickensescre-
veram"também"folhetins- a fim de ganhara vida - e sim o
surgimentode um novo tipo de escrituraa meio caminhoentrea
informaçãoea ficção,rearticuladordeambas,e a emergênciade um
novoestatutosocialparao escritor,agoraprofissionalassalariado.Por
quesecretasesagradasrazõesaquiloquenãoimplicadesonraalguma
paraa escrituradojornalistadesvalorizadesdearaizaoutra,aescritura
do literato?Por acasoa aura expulsada obra de arte se refugiou
obstinadamentena profissão?
As condições de produção-edição
Não restamdúvidasdequeforamos empresáriosquepen-
saramafórmulado folhetim.Istonãosignificaqueelesa retiraramdo
nadaou dapuralógicacomercial.Assimcomoo produtordecinema
dosanos20,o editordefolhetinsnãofoi sóum comerciante.85E não
se trataunicamentede que houveeditoresque foramelesmesmos
escritoresde folhetime jornalistas,e sim dascondiçõesde produção
culturalqueaí seinauguram.Essascondiçõesestabelecemumanova
formaderelaçãoentreeditoreautor,queporsuavezmarcaráarelação
do escritorcom a escritura.
Há algumtempo a remuneraçãodo escritordisfarçaum
salário.86Agorao realmentenovoedecisivoéquearelaçãoassalariada
penetrao ritmo - seriamelhorescrever"contrao relógio"_ e o
modo de escrever- paraum meiode comunicaçãoqueimpõe um
174
I
IIII!MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
formato- expondoo escritor,revelandoseumodo detrabalhar,ao
erguerentreescritoretextoumamediaçãoinstitucionalcomo mercado
quereorienta,rearticulaaintencionalidade"artística"do escritor.Para
alguns,essamediaçãocorrompedemodoquaseontológicoaescritura,
o quejustificaqueestesserecusema consideraresseprodutocomo
literatura.Um gestotão "nobre",todavia,impedequeatinjamosas
pulsaçõesdo socialquesemanifestampelalógicadomercadomasque
de modo algumnelase esgotam,alémda significaçãoculturaldos
dispositivoscomquesematerializa.Assim,porexemplo,oescandaloso
usoqueDumaseoutrosfizeramde"negros"ouajudantesparaescrever
algunsdeseusfolhetins:traçadoo sentidodo episódio- seulugarna
tramae os personagensenvolvidos- o folhetinistaencarregavaum
ajudanteda redaçãoou do desenvolvimento,o que lhe permitia
escreverdois ou atémaisfolhetinsaomesmotempo:onderesidede
fato o escândalo?No acréscimode "produtividade"ou rentabilidade
proporcionadopelomecanismo?Ou naqueladegradaçãodaescritura
que implica a dissoluçãoda "unidadedo aUtor", identidadeque
respondeaalgunspressupostosculturaisquepoucoou nadatêmaver
com o funcionamentopopular das narrativase com sua difusão
massiva?Paraamaiorpartedo públicodo folhetim,o autorimportava
tão pouco que "aspessoasachavamque eramos entregadoresque
escreviamos romances".87E oseditores,aoanunciaremseufundo de
obras,prescindiamquasesempredo nomedosautores:nãoestaráaí
a origemdo escândalo,nessaimperdoávelperda,a omissãodo nome
do autor?Em muitoscasos,o autor dita paraseuajudante,e esse
dispositivodo ditadoadquireumasignificaçãopreciosa:paraalémdos
interessespecuniáriosdo "autor",o ditadorevelatudooqueofolhetim
temdeoral,suaproximidadedefundocomumaliteraturanaqual "o
autorfalamaisdo queescrevee o leitorescutamaisdo quelê".88
Algo parecidoacontececomos dispositivosqueorganizam
arelaçãocomo público.Vistosemsuapurafuncionalidadecomercial
não seriammaisdo que estratagemasde uma operaçãopioneirade
175
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
marketing.Mas há algomais:nos modosde aquisiçãoe no tipo de
publicidadeimplementada,encontramosa incorporaçãoà moder-
nidadedepráticaseexperiênciasquesóaí recebemlegitimaçãosocial.
Legitimaçãoqueconduzsuafuncionalizaçãoa interessesexterioresà
lógicada qualcertamenteprovêm,masisto apenasnos mostramais
umavezo modopeloqualahegemoniaopera.E uma"crítica",uma
investigaçãosobretaisdispositivosquenãopartadesuainscriçãona
relaçãohegemônica,ou é puro culturalismo,ou pensamentoem
negativodeumasociedadequenãoéasociedadehistórica.Estudando
a outraformapelaqualo folhetimsedifundiu na Espanha,ou seja,
o romancepor entrega,Jean-FrançoisBotrel e Leonardo Romero
T obar89manifestamsua relaçãocom a publicidadee os modos de
distribuiçãoda literaturade cordel.Que junto com a introduçãode
sorteiose presentespara estimularas assinaturastorna explícitaa
continuidadeculturalentreessaliteraturae a vida do povo, isto é, a
não-separaçãodo"cultural"navidadasclassespopulares.Publicadono
jornal ou em folhetosde entregasemanal,o folhetimnuncachegará
atero estatutoculturaldolivro;umavezquenãoficadepé,nãodispõe
de umabelaencadernação,suamaterialidadenãopoderáserexibida
como expoentecultural;pelo contrário,uma vez lido, o folhetim
passaráa sermeropapeldisponívelparaoutrosmisteresda vida. Só
as"figuras"queo ilustramganharãoumsentidodecorativoepoderão,
quemsabe,enfeitarasparedesdacozinha.E igualmentesignificativo
é que seusmodos de aquisiçãose dêempor fora do circuito das
livrarias.Vendido pelasruasou distribuídode casaem casapelos
entregadores,o folhetimseinscrevenesseoutro modo de circulação
quepassado popularaomassivosempassarpelo"culto",ou melhor,
peloslugares"deculto" da cultura.E a essamesmalógicapertencea
estruturatipográfica,acomposiçãoeafragmentaçãodanarrativa,que
examinaremosdepois,e inclusiveo ritmodaentregasemanaldosando
aquantidadedeleituraeatéaformadepagamento,numconjuntode
dispositivosque medeiamentreexigênciasde mercadoe formasde
cultura,entredemandaculturale fórmulacomercial.
176
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
Dialética escritura/leitura
"Emboraescritodaperspectivadeum dândiparacontarao
públicoasexcitantesexperiênciasdeumamisériapitoresca,o folhetim
Os mistériosdeParis foi lido pelo proletariadocomo umadescrição
clarae honestadesuaopressão.Quandopercebeuisto,o autorcon-
tinuouaescrevê-Iovoltadoparaessemesmoproletariado.(...) O livro
realizauma misteriosaviagempelo ânimo de algunsleitoresque
voltaremosaencontrarnasbarricadasde 1848,empenhadosemfazer
a Revoluçãoporque,entreoutrascoisas,tinhamlido Osmistériosde
Paris."90Essapassagemde Umberto Eco resumeo movimentodo
qual pretendemosdar conta. Porque o casoSue ilustra como ne-
nhum outro a tramade encontrose desencontrosde queestáfeitaa
dialéticaentreescriturae leitura,e o modo como essatramasus-
tenta"infra-estruturalmente"aquelaoutra,narradapelo folhetim.
Paracomeçar,analisaremosa "viagem"emsuasetapas.Um
jovemdândi- oriundodeboafamília(demédicoscirurgiões)eque
tinhadedicadograndepartedesuavidaaviajareaescreverromances
de aventurasno estilode FenimoreCooper- um belodia seatira,
forçadopelafaltade dinheiro,no campodo folhetim,propondoao
diretordo Journal desDébatsapublicaçãodeum romancedeaçãode
novoestilo,cujotítulotranspõejáodeumdosmaisfamososromances
de terror: Os mistériosde Udolffà,de Anne Radcliff. No começo,o
folhetimrecolheavisãodeumturistaquenoscontasuasandançaspor
um país exótico,só que essepaís exóticosãoos bairrospobresda
própria cidade.Por essesmesmosmeseserarepresentadoem Paris,
comenormesucesso,ummelodramadeF. Piat,Lesdeuxserruriers,que
respondiaa uma"perspectiva"bemsemelhanteà do folhetimdeSue:
entresurpreendida,assustadaedecertomodofascinada.Logo,entre-
tanto,asreaçõesprovocadasentreosleitoresvãosomar-seà surpresa.
Começama chegarà redaçãodo Journal dois tipos de cartas:umas
contêmarepreensãodaquelesquenãoentendemcomoumjornal tão
"respeitável",tão legitimistae conservador,pode publicaralgo tão
socialista(!), e outras,cadavezmaisfreqüentes,deleitorespopulares
177
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
quealentamapublicaçãocomseuentusiasmo.Suetratadeseexplicar,
pededesculpaspor descreversituaçõestãofortes,e tratasobretudode
justificar-sedopontodevistaliterário,dizendoqueo queestácontan-
do "éavidadeoutrosbárbaros,tãoforadacivilizaçãoquantoospovos
selvagenspintadospor Cooper". Entretanto,o interessedespertado
pelofolhetimaumentaacadadiaeobrigaseuautorainformar-semais
deperto,vestindo-sedeoperárioepercorrendoosbairrospopulares.
O entusiasmopopularcresce,ecentenasdecartas(quepodemserlidas
na BibliotecaNacionalde Paris)transmitemao escritora emoçãodo
povo,sugeremsaídasparaassituaçõesdramáticas,solicitamconselhos
paraenfrentarsituaçõesparecidas...pedematéo endereçodo Príncipe
deGeroldstein,oprotagonista,paraquepudessemrecorrerdiretamen-
teaele!A fusãoderealidadeefantasiaefetuadanofolhetimescapadele,
confundindoa realidadedosleitorescomasfantasiasdo folhetim.As
pessoasdo povo têm a sensaçãode estarlendo a narrativade suas
própriasvidas.Era talo efeitoqueos fourieristasdo jornal Phalange
assinamo Journal apoiandoacoragemdosMistérios... dedenunciara
miséria.E umjornalproletário,Ia RucheOuvriere,exaltasuaprofunda
concepçãosocialdo folhetim.
É entãoqueSuedecidemudarseuprópriocódigode escri-
tuta,pressionadopor estaleituraqueusaumachavecompletamente
diferenteda do autor- queconverteo queesteescreviapor curio-
sidade em testemunhoe protesto.De um discursoexterior,que
encaravaaspessoasdosbairrosoperárioscomobárbarose perigosos,
como objetoexótico,o autorpassaa praticarum outro queprocura
tomaros operárioscomosujeito.91A partir de entãoa narrativados
Mistérios... passaráa serpovoadadereflexõesmoraisepolíticas,além
depropostasdereformas:mudançasno sistemajudiciário,naorgani-
zaçãodo trabalho,naadministraçãodasprisões,dosasiloseassimpor
diante.Mudançasque não sãoapenasreformistas,estandotambém
carregadasdemistificaçõesmoraistãoestranhascomotrocarapenademortepelacegueirado condenado,oupolíticas,comoacriaçãodeum
178
,
Íc
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I
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
"bancodos pobres".No ambientequeprecedeu1848,porém, tais
propostasforamlidaspelaclassepopularcomoumconviteàmudança
e umajustificativaparao levantamento.A Osmistérios... seguiu-sea
publicaçãode O judeu errante,e a eleiçãode Sue como deputado
"vermelho"em1849,antecedendosuaexpulsãodaFrança,acusadode
instigaro levantamentode 1849,bemcomoadecretaçãodeum novo
imposto,em 1850,taxandoos jornaisquepublicassemfolhetins.
Da "narrativa"passemosà análise.A cilada de que não
puderamescaparnema críticaliterárianema análiseideológica,por
maisqueseesforçassemparasuperaroslimitesdo semioticismo,é ir
dasestruturasdo textosàsdasociedadeou vice-versa,sempassarpela
mediaçãoconstituidorada leitura.Da leituraviva,isto é, daquelaque
aspessoasfazemapartirdesuavidaedosmovimentossociaisemque
avidasevêenredada.Essaausênciadaleiturana análisedo folhetim
exprime,àdireitaeàesquerda,a não-valorizaçãodoleitorpopular,um
procedimentoquenão o levaem contacomosujeitoda leitura.No
casodo estudodeVittorio Brunoria desvalorizaçãodacapacidadede
leituradasclassespopularesé explícita;o público popularé só "um
público dispostoa deixar-seenganar","quesó sonhaemesquecer-se
do monótonotrânsitodo cotidiano".92
Emborarecorrendoa efeitosdiferentesdosencontradosem
OsmistériosdeParis,a dialéticaentreescriturae leituraé um dispo-
sitivochaveparao funcionamentodequalquerfolhetim.De modoque
é a partir dela que melhor se pode compreendero novo gênero.
Dialéticaquefazpartedosmecanismoscomquesepodeenganarum
determinadopúblico,masqueemsuaefetivaçãonosmostracomo o
mundodo leitoré incorporadoaoprocessodeescriturae nelapenetra
deixandoseustraçosno texto.Quandoo público leitor incorporado
- enãosóincorporado- é "amassadopovo",torna-seduplamente
importantedecifraressestraços.
O primeironível no qual é possívelencontrarmarcasque
remetemaouniversoculturaldo popularéo daorganizaçãomaterial
179
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
do texto:os dispositivosde composiçãotipográfica.A esserespeito,a
primeira tipologia que encontramosé a de letra grande,clara e
espacejada,isto é, aquelaquecorrespondea "leitoresparaos quaisa
leiturasupõeumesforço,umatensãomaiordoqueparaoutrosleitores
maisexperientes,equeencontramnosbrancosdotextoalgumdescan-
so, momentâneomasconfortávelparaavista(...), sendoleitoresque
nãodesfrutavamdecondiçõesdeiluminaçãoadequadas(dediaou de
noite),enestescasosumatipologiadecorpogenerosoajudamuito".93
Onde umaanáliseestreitaemecanicistanãoenxergamaisdo queuma
estratégiaparavendermaispáginasc assimfaturarmais,umaaproxi-
maçãoapartirdascondiçõesdeleituranospcrmiteencontraralgoque
temnão só maiorsignificaçãocultural,mastambémmais"verdade"
histórica.A escolhada tipologia,do espaçamcntoentreaslinhas,da
larguradasmargense do formatofalam,muito maisquedo comer-
ciante,do públicoaoqualo textosedirige:um leitoraindaimersono
universoda culturaoral, paraquem,segundoMichelet, "não basta
ensinara ler, éprecisofazê-Iodesejarler".91Os mecanismosda tipo-
grafiae dacomposiçãomaterialdesempenharãopapelimportantena
constituiçãodessedesejo.
Num segundonível se achao sistemados dispositivosde
jragmentação da leitura. A primeirae primordial fi"agmentaçãoé a
narrativaemepisódios,de quefalaremosadiantc;cntretanto,susten-
tando-ae reforçandoseuefeito,ameiocaminhoentreosmecanismos
tipográficose asregrasdo gênero,apareceum conjuntode fragmen-
taçõesquevãodesdeo tamanhodafrasee do parágrafoatéa divisão
do episódioempartes,capítulose subcapÍtulos.Estesúltimos,enca-
beçadospor títulos,sãoasverdadeirasunidadesdeleitura.Porqueessas
unidades,enquantoarticulamo discursonarrativo,permitemdividir
a leiturado episódioem umasériede leiturassucessivas,semquese
percao sentidoglobaldanarrativa.Isto nos remetenovamentea um
modo peculiarde leitura,à quantidadede leituracontínuade queé
capazum públicocujoshábitosdeleiturasãomínimos.Semdúvida,
180
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
boapartedo sucesso"massivo"do folhetimresidiaaí:numafragmen-
taçãodo textoescritoqueincorporavaoscortes"produzidos"por uma
leituranão-especializadacomoé a leiturapopular.Talvezpor isto o
folhetimacabouselibertandodo jornalcomoveículodetransmissão,
desenvolvendo-secomo "romancepor entrega",que em suaperio-
dicidade semanalse ajustavapor completo à fragmentaçãoda
temporalidadenasclassespopulares:a quantidadee a organizaçãodo
textocom relaçãoaoshábitosde consumoe àsnecessidadese possi-
bilidadesde leitura,semanalcomo o tempode descansoe o rece-
bimentodo salário.A operaçãocomercialqueserviuà massificação
da leiturae delatambémseserviuacabouvencendode caboa rabo.
Não sónaFrança,mastambémnaEspanha- comdoiscadernosde
oito páginascada- o folhetim tornou-seacessível:custavamenos
queo pãodeumalibra,ouo equivalenteatrêsovos.Claroquemesmo
assimos editoresmultiplicavamseu negócio:o investimentototal
num folhetimmédiogiravaem torno do equivalentea trêsdias de
trabalhode um pedreiroou deum carpinteiro,como quesepoderia
comprarnãoum romancein-quartode650páginas,mascincolivros
in-oitavode 300 páginascada.95
Num terceironível situam-seaquelesquepoderíamoscha-
mardedispositivosdesedução:aorganizaçãoporepisódioseaestrutura
"aberta".A organizaçãodanarrativaem episódiosoperacomos regis-
trosda duraçãoe do suspense.Foi o sentimentode duração- como
na vida!- o quepermitiuao leitorpopularpassardo contoparao
formato-romance,istoé, ter tempoparaidentificar-secomo novotipo
de personagense atravessara quantidadee a variedadede peripécias
e avataresda açãosemseperder. É atravésdaduraçãoqueo folhetim
consegue"confundir-secom avida",predispondoo leitora penetrar
a narração,a elaseincorporandomedianteo enviode cartasindivi-
duaisou coletivase assiminterferindonosacontecimentosnarrados.
A estruturaaberta,o fatodeescreverdiaapósdiaconformeum plano
que, entretanto,é flexíveldianteda reaçãodos leitorestambémse
181
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
inscrevenaconfusãodanarrativacomavida,permitidapeladuração.
Estruturaquedotaa narrativadeumapermeabilidadeà "atualidade"
queatéhoje,natelenovelalatino-americana,constituiumadaschaves
desuaconfiguraçãocomogêneroetambémdeseusucesso.Sabe-seque
o feed-back,aocriarasensaçãodeparticipação,aumentao númerode
leitores,e portantoo negócio;masalgode outraordem,e de outro
calibre,intervémaqui:é o mododesviado,aberrante,da relaçãoque
asclassespopularesestabelecemcomo formato-narrativaqueconfigu-
ra a burguesiacomo "narrador", isto é, o romance.
A outrafacedaorganizaçãopor episódiosé o suspense,bus-
cadoa fim dequecadaepisódiocontenhasuficienteinformaçãopara
constituirumaunidadecapazdesatisfazerminimamenteo interessee
a curiosidadedo leitor, masde modo que a informaçãofornecida
levante,porsuavez,tamanhaquantidadedeinterrogaçõesquedispare
o desejoqueexigea leiturado próximoepisódio.Estamosdiantede
uma redundânciacalculadae de um contínuo apeloà memóriado
leitor.Cadaepisódiodevepodercaptaraatençãodo leitorque,através
dele,temseuprimeirocontatocomanarrativaedeveaomesmotempo
sustentaro interessedosquejá o vêmacompanhandohá meses:deve
surpreendercontinuamente,massemconfundiro leitor.Cadaentrega
contémmomentosqueprendemarespiração,masdentrodeum clima
defamiliaridadecomospersonagens.O suspenseintroduzassimoutro
elementoderupturacomo formato-romance,jáquenãoteráum eixo,
e sim vários, que o mantêmcomo narrativainstável,indefinível,
interminável.Tem razãoJ. Tortel ao acusartaisprocedimentos,que
tornamanarrativafascinante,de"precipitaraescrituraemseupróprio
vazio",96porqueo suspenseé justamenteum efeitonãoda escritura,
e sim da narração, isto é, de umalinguagemvoltadaparafora de si
própria- parasuacapacidadede comunicar,o queé precisamente
o contráriodeumaescrituraquesevoltaparao texto.Como assina-
lamos acima,no folhetim apareceuma relaçãooutra para com a
linguagem:aquelaque, quebrandoas leis da textualidade,faz da
182
MATRIZESHISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
própriaescriturao espaçodedecolagemdeumanarraçãopopular,de
um contar a. E a narraçãopopularvivetantoda surpresaquantoda
repetição.Situadaentreo tempodo ciclo e o tempodo progresso
linear,aperiodicidadedo episódioesuaestruturamedeiam,levantam
uma ponte que permitealcançaro último sem deixarde todo o
primeiro;o folhetiméumanarraçãoquejá nãoé um conto,masque
tampoucochegaaserumromance.E umaescrituraquenãoéliterária
nem jornalística,e sim a "confusão"dasduas:a atualidadecom a
ficção.Entre a linguagemdanotíciae ado folhetimhá maisde uma
correntesubterrâneaque virá à tona ao se configuraraquelaoutra
imprensaque,paraserdiferenciadada "séria",chama-sesensaciona-
listaou popular.
Os dispositivosque permitemao folhetim incorporarele-
mentosda memórianarrativapopularaoimagináriourbano-massivo
nãopodemsercompreendidosnemcomomerosmecanismosliterários
nemcomodesprezíveisartimanhascomerciais.Estamosdiantedeum
novomododecomunicaçãoqueéanarrativadegênero.Não merefiro
aqui a um gênerode narrativa,massim à narrativade gêneropor
oposiçãoà narrativade autor, queé pensávelnãoatravésda categoria
literáriadegênero,massimapartirdeumconceitosituadono âmbito
daantropologiaedasociologiadacultura,como qualédesignadoum
certofuncionamentosocialdasnarrativas,um funcionamentodife-
renciale diferenciador,culturale socialmentediscriminatório,que
atravessatantoascondiçõesdeproduçãoquantoasdeconsumo.Falo
degênerocomoumlugarexteriorà "obra",apartirdeondeo sentido
danarrativaéproduzidoeconsumido,ou seja,lido ecompreendido,
e que,diferentementedo funcionamentoda "obra"na culturaculta,
constitui-sena "unidadede análiseda culturade massas".97Vejono
folhetimaprimeiranarrativadegênero,no sentidosociológicoapon-
tadopor P. Fabri, eno sentidoetnológicodeHoggartquandodefine
asconvençõescomoaquiloquepermitea relaçãoda experiênciacom
os arquétipos.
183
I'"
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Chegamosassima um quartonível,ondesesituamos dis-
positivosdereconhecimento.É claroqueos trêstiposde dispositivos
analisadosatéaqui funcionamparapossibilitaro reconhecimento,
querdizer:permitemqueo leitorpopulartenhaacessoà leiturae à
compreensãodo folhetim.No entanto,queroreferir-meagoraàquele
outro tipo dedispositivoqueproduza identificaçãodo mundo nar-
rado com o mundo do leitor popular.E que se achano lugar da
passagemparao conteúdo,parao enunciado,mascujosefeitosreme-
temaoprocessodeenunciação,emqueo reconhecimentoserevelanão
só comoproblema"narrativo"- identificaçãodepersonagens- e
simcomoproblemadecomunicação,de identificaçãodo leitor comos
personagens.UmbertoEco pensaqueno folhetimessesegundosen-
tido do reconhecimentoé efetuadocom basenuma degradaçãodo
primeiro,degradaçãoestaquetransformaa forçadramáticadanarra-
tiva em capacidadede consolação:o leitor é postoa todo momento
frentea umarealidadedadaqueelepodeaceitarou modificarsuper-
ficialmente,masquenãopoderecusar.98Ao mesmotempo,o folhetim
sedirige;IS mesmaspessoassobreasquaisdiscorre.Istoocorredemodo
maisclaroemseusprimeirostempos,masnãodeixadeocorrerdepois.
E o fazantesde maisnadamediantea intervençãode um novo tipo
de herói quej;í nãosemoveno espaçodo sobrenatural,massim no
espaçodo real-possível.Um heróiqueémediaçãotambémentreo do
mito eo do romance.')')Situadonummundoondea fé foi substituída
pelosentimento,o cavaleiroquevemcombaterasnovasmazelasnão
padecede"crise";seudesajustecomarealidadeéacimadetudomoral.
Como nos contos,o desenrolarda narrativaacompanhaba-
sicamenteo percursodasaventurasdo herói,mas,comono romance,
a açãosedispersa,complexificae enredana malhadasrelaçõesque
sustentameatravessamaação.Umaduplanarrativaoperano folhetim:
uma,progressiva,quenoscontao avançodaobrajusticeirado herói,
e outra,regressiva,quevai reconstruindoa históriadospersonagens
queapareceramaolongodetodaanarrativa.100Duplo movimentoque
tem,contudo,umasódireção,a mesmaquedinamizao melodrama:
dom::4entoemqueo, mau,ddwtam dewa boavidaeapatentam i
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
honestidade,enquantoosbonssofremepassampormauspedaços,até
a inversãodasituação,com a descobertadeseureverso.Com a dife-
rençadequeo reverso- o desvendamentodosverdadeirosvilões-
nãoacontecenuminstante,deumasóvez,comono melodrama,esim
progressivaesucessivamente,numlongopercursoquevoltaanarrativa
paratrás,remontandotudoatéa "cenaprimitiva"na qualseesconde
o segredoda maldade:a hipocrisiasocialou o vergonhosocrime
familiar.De modoque,comoafirmaPeterBrooks,existeumaarticu-
laçãofundamentale precisaentreconflitoe dramaturgia,entreação
e linguagemnarrativa,porqueas aventuras,as mil peripéciase os
golpesteatraisnãosãoexterioresaosatosmorais:"osefeitosdramáticos
sãoexpressãodeumaexigênciamoral".101Uma estéticaemcontinui-
dadecomaética,o queéumtraçocrucialdaestéticapopular.E ponto
a partir do qual o reconhecimentoentrenarrativae vida deslancha,
conectandoo leitorcomatramaatéalimentá-Iacomsuaprópriavida.
O outro mecanismoidentificatóriodo folhetimé tomado
de empréstimoao romancede ação.J02A voltaatrásda narrativa,na
verdade,é umavoltapara baixo,para osbaixos,para osbaixosfundos
da sociedade,ondeseencontram"caraa cara"pobrese ricos,asduas
monstruosidadesmodernas:amisériadamaioriaeamaldadehipócrita
da minoria. Nos porõesdo castelogótico o folhetim encontrao
corredorque conduzaossubúrbiosda cidademoderna.Ali o leitor
popularsereencontracom um sentimentofundamental:o medo,ao
mesmotempocomoexperiênciadaviolênciaqueameaçapermanente-
mentea vítima- queo leitorpopularconhecetãobem- e como
esperançaderevanche,comoressentimentoesededevingança.103 Che-
gando aqui, já atingimoso territórioonde a enunciaçãose torna
enunciadoe a narrativasetornasensaçãodo leitor.
Dimensões do enunciado
Nossaindagaçãosobreo queo folhetimafirmase destina
em primeirolugara compreenderaquilodequeelefala; depoisnos
voltaremosparaos resultadosobtidospela leituraideológica.
185
.il
I~
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
o testemunho
Como eludira compulsivatentaçãoda análisee deixarque
anarrativafale?Mesmoassim,sóentãopoderíamosnosencontrarcom
tudoaquiloque,ausenteou reprimidonosdiscursosoficiaisdacultura
edapolítica,ganhouvozno folhetim.Uma vozafetada,sentimental,
moralistaemuitasvezesreacionária,mas,por fim, umavozpor meio
da qual seexpressao roucosubmundoque.oemà direitacultanem
à esquerdapolíticapareceuinteressar.Parauns,por serescuro,peri-
goso e culturalmente aberrante;para outros, por ser confuso,
mistificadoepoliticamentenãoutilizável.Refiro-meaosubmundodo
terror urbano,104da violênciabrutalque povoaa cidadee é não só
controlepolicialnasruasou exercícioda disciplinanasfábricas,mas
tambémagressãomasculinacontraas mulheres,especialmenteno
bairropopular,edasmulherescontraascrianças,edamisériacontra
todos em cadalar. Um misto de medo, ressentimentoe vício que
respondea uma cotidianidadeinsuportável:aquelaque permiteao
escritorlevantarquestionamentosatéo limitedo proibido,aomesmo
tempoem queestimulao interessedo leitor. Fazendoem pedaçosa
imagemdo popularromântico-folclórico,o folhetimfalado popular-
urbano:sujo e violento,o que geograficamentese estendedesdeo
subúrbioatéa penitenciária,passandopeloshospíciose as casasde
prostituição.
ForamVictor Hugo eEugeneSueosprimeirosa trazeremà
luz ascondiçõesdesumanasdaspenitencidriasquedepoisseconverte-
ramnumchavãodo romancepopular.Assimcomoo horrordosasilos,
ondevãopararosloucosou aquelesqueestorvamaambiçãofamiliar,
e onde a crueldadeda sociedadecom suas"vítimas"adquire um
refinamentoespecial.Sentimental,sem dúvida, mas nem por isto
inválido,o folhetimapresentaumtestemunhodosserviçosinfamantes
a quesãosubmetidasas mulherese ascrianças,obrigadosa realizaros
trabalhosmaispesados,abandonados,seqüestrados.O folhetimesta-
beleceumarelaçãoentreprostituiçãoe misériaoperária,eos precon-
ceitosdecastaquecondenamtantasmulheresaumcasamentoquenão
186
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
passade escravidãoedesgraça.Existeno folhetim uma pintura da
condição femininal05 que apresentaum quadro bem diferentedo
bovarismo.Além dedivórcioseadultérios,háincestoseabortos,mães
solteirase operáriasseduzidaspor patrões,dosquaissevingamcruel
efatalmente.Existemoralismo,mastambémligaçãoentrea repressão
sexuale as condiçõessociaisde vida. O universooperárioque aí
apareceé o de um proletariadosemconsciênciade classe10G- mas
quantosromancestinham,antes,tematizadoesseuniversodamiséria,
do medoe da lutapelasobrevivência?
A compensação
A maioriadosestudiososdofolhetimcoincidemnadenúncia
de "ciladapopulista".O quetornariamaisreacionárioo folhetimé a
imagemque eleconstróido povo: "todo aquelequeaindatemalgo
mesmosemnadapossuir,do queselivra por não serrico", com a
respectivamoraldahistória:hácoisasmaisimportantesnavidadoque
o dinheiro,demodoqueo melhoré cadaum ficarno seulugar.107A
ciladanão é, contudo,tão óbvia,e suaeficáciaideológicatalveznão
sejatãofundamentalcomosupõealgumacríticaatual,amparadanum
anacronismoquea levaa desconhecerascontradiçõesdo momento
histórico em que o folhetim surge,bem como a marcaque tais
contradiçõesdeixamnasuaprópriaestrutura.108 Isto,contudo,requer
umaleituranão-conteudísticaatémesmodosconteúdos.É aproposta
deGramsci,aosedistanciardaleiturarealizadapor Marx na Sagrada
Família. O queMarx lênosMistériosdeParis éahipocrisiadeRodolfo,
a alienaçãoreligiosade Fleur de Marie, o moralismodas reformas
sobreas colôniaspenitenciáriasetc.,e daí ele conclui evocandoos
intransponíveislimitesda consciênciapequeno-burguesado autor.
Gramscitomaoutradireção:emvezde ir do textoao autor,refazo
caminhodasituaçãodo povo,dasclassessubalternas,aotexto.E isto
nãocom baseem temas,e sim emperguntas:o queexplicao sucesso
populardessaliteratura?que tipo de ilusãoparticularelaofereceao
público?quaisfantasmaspopularessãopor elaexcitados?Seguindo
187
.1,
il,
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
essecaminho,Gramsciacabapor reconhecerno folhetimumaforma
de encontrodo intelectualcom o povo, um embriãodo "nacional
popular"queestáausentena ltália109Gramsciestátãointeressadono
fenômenoculturaldo folhetimquechegaa traçaro projetode uma
investigaçãosobretipos de heróise subgêneros,bemcomo sobrea
leiturapopular.
Muito próximada reflexãode Gramsci,a de Umberto Eco
se concentraem verificaros mecanismosque articulamideologiae
entedo,reconhecimentoe indústria.Já queé o ajusteentreescritura
e leitura, e entreestruturanarrativae mercado,o que converteo
romancepopularem "umacadeiademontagemdegratificaçõescon-
tínuas",ondeosfatosacabamporadequar-seaogostodosleitores,isto
é, à convencionalidadede princípiosmoraispermanentementereite-
rados.UmbertoEco soubedesmontaraquiloqueo reconhecimento
oculta,assimcomoo papelaí exercidopela verossimilhançada narra-
tivaenquantoacordocomo sistemadeexpectativasdo públicoleitor,
um acordoquemascaraa distânciaentreo verídicodassituações,a
realidadedos problemase o fantásticodassoluçõesdadasaos con-
flitos. Sema menordescontinuidade,o surpreendentee inesperado
invadeo campodassoluções,naturalizandoassimasfantasiase pro-
duzindo uma sensaçãode movimentoque encobrea ausênciade
verdadeirasmudanças."O equilíbrioeaordemtranstornadospelavio-
lênciainformativado golpedecenaserestabelecemsobreasmesmas
basesemotivasdeantes.Os personagensnãomudam.Quem secon-
verte,antesjá erabom;quemeramau,morreimpenitente.(...) O lei-
tor seconsolasejaporqueocorremcentenasdecoisasextraordinárias,
sejaporqueessascoisasnão alteramo movimentoondulanteda rea-
lidade".110Aí, nessajunçãointeriordeintrigaemoralconvencional-
e não nasposiçõesreacionáriasou reformistasdospersonagens- é
ondeoperaa ideologiaea consolaçãoéproduzida.Tais soluções,que
o leitor saboreiacomoinovadoras,masquesãoem última instância
tranqüilizadoras,sãoasqueeleesperava.Paraesseponto convergem
a originalidadenarrativado folhetime o efeitomaissecretoda ideo-
188
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
logia:na dinâmicade provocação-pacificação.O folhetimapontae
denunciacontradiçõesatrozesnasociedade,masno mesmomovimen-
to trataderesolvê-Ias"semmexerno leitor";a soluçãocorresponderá
àquilo que eleesperae assimhá de lhe devolvera paz.Enquantoo
romancesemadjetivosproblematizao leitoreo põeemguerraconsigo
próprio, "o romancepopulartendeà paz".lll
Formato e símbolo
Subjacenteao longo de todo o percurso,há umapergunta
comquevoltamosanosdeparar:emquesentidoo folhetimépopular,
sejá é de massa?Numa aproximaçãopelanegativa,diríamosqueele
o épelomenosnamedidaemqueconfiguraumaexperiêncialiterária
acessívelàspessoasquetêmum mínimo deexperiênciaverbalprévia
enquantoleitoras,o quedemodoalgumequivaleaconfundiro popu-
lar com "o que agradaàs pessoasignorantese ttuculentas".Há no
elitismouma secretatendênciaa identificaro bom com o sérioe o
literariamentevaliosocomo emocionalmentefrio. De maneiraque"o
outro", o queagradaàspessoascomuns,poderáserem sumaalgum
tipo de entretenimento,mas não literatura.Essa reaçãodas elites
"guardiãsdo gosto"contraa literaturapopularnãoestámuito longe
daquelaoutra, com que uma classereceavaque os prazeressexuais
estivessemà disposiçãoda gentedo povo,já queeram"bonsdemais
paraela".
Agorapelaafirmativa,popularpoderiasignificara presença
de uma matrizculturalatravés,nestecaso,da "narraçãoprimitiva".
Assim denominaFrye àquelanarraçãoem que asformasnarrativas
aparecemfortementecodificadas,produzindo-seuma ritualizaçãoda
ação.1l2 É a narraçãoque é construídasobreo "e aí", por oposição
àquelaquesebaseiano "e portanto"e suacontinuidadepuramente
lógica.Narraçãodeperspectivavertical,queseparataxativamenteos
heróisdosvilõesabolindoa ambigüidadee exigindoumatomadade
posiçãopor partedo leitor.Tal separaçãoentreheróisevilões,entre-
189
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
tanto, simbolizauma topografiada experiênciaretiradado contraste
entredoismundos:o queseencontraemcimadaexperiênciacotidiana
davida- mundoda felicidadeeda luz, da segurançae dapaz- e
o queseachaembaixo,queé o mundodo demoníacoe do obscuro,
do terroredasforçasdomal.A ritualizaçãodaaçãoencontra-se,assim,
ligadanãosóacertas"técnicas",mastambémacertosarquétiposque,
comoassinalaRománGubern,remetem"aoconjuntodenossasexpe-
riênciascotidianas"e quenascem"nãono céu,massim a partir dos
sofrimentosedeleitescotidianos".113Por outro lado,a ritualizaçãoda
açãoapontaparao vínculoda "narraçãoprimitiva"comumafamília
dehistórias,quea situanumalógicatotalmentediversada lógicada
obraesuaoriginalidade,o queapropósitodo folhetimdenominamos
estruturadegênero.
A partirdestaperspectiva,osrecursostécnicosnãoremetem
apenasa certosformatosindustriaise a certasestratégiascomerciais,
mastambéma um modo outrode narrar.Não setratade ignorara
pressãodos formatosou a habilidadedos comerciantes,massim de
recusar-sea atribuir-lhesumaeficáciasimbólicaquede maneirane-
nhumapodemexplicar.Assim,avelocidadedoenredo- aquantidade
desmedidadeaventuras- acha-serelacionadaaointeressedo produ-
toredo leitorfavoravelmenteaoprolongamentodanarrativa,masnão
podeserexplicadasemserrelacionadaàlógicado "caí"eàprioridade,
manifestano folhetim,daaçãosobreapsicologia.Tal comoa redun-
dânciaquemarcaa passagemde um episódioa outro nos remeteà
repetiçãoe à temporalidadequeinstaura,ou o esquematismoem sua
relaçãocom os processosde identificaçãoe reconhecimento.
Já Morin assinaloua funçãodeosmosedesempenhadapelo
folhetimentrea correnteburguesaeo imagináriopopular.Junto aos
mistériosdo nascimento,dasubstituiçãodosfilhos,dasfalsasidenti-
dades,o folhetimintroduza buscapelo sucessosociale os conflitos
sentimentais.Os personagensdo mundocotidiano,por suavez,aca-
barãopor ver-searrastadosem aventurasrocambolescase a vida da
190
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
cidadese veráatravessadapela irrupçãodo mistério:"As correntes
subterrâneasdo sonhoirrigandoascidadesprosaicas".!!4
CONTINUIDADE E RUPTURAS
NA ERA DOS MEIOS
Dizer "culturademassa",emgeral,equivaleanomearaquiloqueé entendidocomoum conjuntodemeiosmassivosdecomunica-
ção.A perspectivahistóricaqueestamosesboçandoaqui rompecom
essaconcepçãoemostraqueo quesepassanaculturaquandoasmassas
emergemnão é pensávela não ser em sua articulaçãocom as
readaptaçõesdahegemonia,que,desdeo séculoXIX, fazemdacultura
um espaçoestratégicoparaa reconciliaçãodasclassese a reabsorção
dasdiferençassociais.As invençõestecnológicasno campoda comu-
nicaçãoachamaí suafOrma:o sentidoquevai tomarsuamediação,a
mutaçãoda materialidadetécnicaempotencialidadesocialmenteco-
municativa.Ligar osmeiosdecomunicaçãoa esseprocesso- como
foi vistona primeiraparte- nãoimplicanegaraquiloqueconstitui
sua especificidade.Não estamossubsumindoas peculiaridades,as
modalidadesde comunicaçãoqueosmeiosinauguram,no fatalismo
da "lógicamercantil"ou produzindoseuesvaziamentono magmada
"ideologiadominante".Estamosafirmandoque as modalidadesde
comunicaçãoque nelese com elesaparecemsó forampossíveisna
medidaem quea tecnologiamaterializoumudançasque,a partir da
vida social,davamsentidoa novasrelaçõese novosusos.Estamos
situandoos meiosno âmbitodasmediações,isto é, num processode
transformaçãoculturalquenãoseinicianemsurgeatravésdeles,mas
no qualelespassarãoa desempenharumpapelimportanteapartirde
um certo momento- os anosvinte. E é evidentehoje que essa
importânciase encontratambémhistoricamentedeterminadapelo
poderqueosEstadosUnidos adquiremno cenáriomundial,por esta
época.É justamenteo país onde os meiosvão conhecerseumaior
desenvolvimento.De modo que não podemosfalar de cultura de
191
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
massaanãoserquandosuaproduçãotomaaforma,pelomenoscomo
tendência,do mercadomundial,e istosó setornapossívelquandoa
economianorte-americana,articulandoa liberdadedeinformaçãoea
liberdadede empresae comércio,deu-sea si própria uma vocação
imperial.ll5 Só entãoo "estilodevidanorte-americano"pôdeerigir-
secomoparadigmade umaculturaqueapareciacomosinônimo de
progressoe modernidade.Antes,portanto,de assinalarastendências
quea culturatomaaopassara sermoldadapelosmeios,é necessário
caracterizarminimamentea sociedadequea elaimprimiu seuestilo.
"A sociedade,à qual faltavaminstituiçõesnacionaisbem
definidase uma classedirigenteconscientede o ser,se amalgamou
atravésdosmeiosde comunicaçãode massas",afirmaDaniel Bel1.11G
Emborasemotimismo,a afirmaçãoé perfeitamentecondizentecom
acaracterizaçãoqueTocquevilletraçoudasociedadenorte-americana:
uma sociedadeem que a ausênciade uma aristocraciapropiciou a
primaziada atividadeindustrial,e a ausênciade tradição,o gostoe o
empenhopelaexperimentaçãoe as inovações.Com maisapegoaos
costumesdo queàsleiseumaforteadesãoàfamíliacomocélulaebase
dareligiãoedariqueza,daorganizaçãodotrabalhoedaprodutividade,
a formaçãosocialnorte-americanaéaqueconsegueaomesmotempo
ascondiçõesdevidamaisigualitáriaseo sistemapolíticomaisdescen-
tralizado.Claro queo "isolamentoemfamília"gerouumasociedade
profundamenteindividualista,assimcomoo nivclamentodascondi-
ções produziu uma uniformizaçãodas maneirasde viver. Claro
tambémqueo ppderdebilitadoemsua"centralidade"prolongasua
influênciaatétocaraszonasmaisinternasda vida.ll7 A Américado
Norte do séculoXIX lançava,por assimdizer,asbasesdo "estilode
vida" queno séculoXX proporcionariaa matéria-primaparao ima-
ginário dosmeios.
Ao final da PrimeiraGuerraMundial, os EstadosUnidos
entramnumaerade extraordináriaprosperidadeeconômica,os "ale-
gresanos20".A combinaçãodeprogressotecnológicocomabundância
decréditospossibilitouaproduçãomassivadeumaboaquantidadede
192
II
I
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I
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i
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I,
ii
II
I
I1
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
utensílios,barateandoseucustoeabrindoàsmassasascomportasdo
consumo,inaugurandoo "consumodemassa".O consumorequerido
pelanovaestruturadeprodução,contudo,nãoeraum hábitosocial;
pelocontrário:enfrentava-seentãoamentalidadedemassassórecen-
tementeurbanizadas,para as quais a tendênciainicial era para a
poupança.Parao "sistema",eraindispensáveleducarasmassasparao
consumo.Em 1919,diziaum magnatade Boston:"A produçãoem
massaexigea educaçãodas massas;as massasdevemaprendera
comportar-secomo sereshumanosnum mundo de produçãoem
massa.Devemadquirirnãoapenasasimplesalfabetização,esimuma
certacultura".118MesmotendoeclodidoPOUCQS anosdepoisacrisede
1929emaistardeaSegundaGuerraMundial, tornando-seo consumo
umapráticageneralizadasóapartirdosanos50,eleseriadesdeentão
um ingrediente-chavedo estilodevidae da culturade massanorte-
amencanos.
A melhor expressãodo modo como o consumose con-
verteuemelementodeculturaacha-senamudançaradicalsofridapela
publicidade,por essaépoca,quandopassoua invadirtudo, transfor-
mandoa comunicaçãointeiraem persuasão.Deixandode informar
sobreo produto,a publicidadesededicaa divulgarosobjetosdando
forma à demanda,cuja matéria-primavai deixandode ser formada
pelasnecessidadese passaa serconstituídapor desejos,ambiçõese
frustraçõesdos sujeitos.119Só agorao processode secularizaçãoini-
ciado séculosanteschegade verdadeàsmassas:quandoo ideal de
salvaçãofor "convertido"no de bem-estar,essafigura objetivada
felicidade,já queéaúnicacomprovávelemensurávelemobjetos.Ideal
seculare democráticoque estavana própriadeclaraçãode indepen-
dência:"Todos oshomenstêmdireitoàfelicidade".Paraaculturade
massaa publicidadenão serásomentea fonte mais vastade seu
financiamento;120é tambémaforçaqueproduzseuencantamento.12l
Seosmeiosviabilizarama coesãodasociedadenorte-ameri-
cana,aculturaqueelesajudaramaforjarserásuaimagem.E hánessa
imagemalgunstraçosparticularmentecaracterizadores.Por exemplo,
193
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"!II
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I:II!
~.i
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
o pesoe a presençadasclassesmédiasmoldandoo individualismo
numa buscaincessantede recompensase a tendênciaa converteras
relaçõessociaisem valorespsicológicos,a reduzir a psicologiados
bl .. "J" I "fi S "pro emasSOCIaIS.ae ugar-comum,a Irma ennett, queosnorte-
americanostendemaumavisãopsicomórficadasociedade,naqualas
questõesdeclasse,raçaehistóriaficamabolidasemproldeexplicações
queconectamo carátereamotivaçãodosintegrantesdasociedade."122
Que isto é maisque um lugar-comum,contudo,é algojá bastante
comprovadopelaimagemdessaculturaqueéproduzidaereproduzida
incessantementepelosmeios.O objetode quefalaessaimagemé a
dessocializaçãoemqueresultaavalorizaçãoextremaquenessacultura
seatribuià experiênciaindividual.Os heróisdanovamitologia,mais
do que representara comunidadeque encarnam,representamsua
própriatrajetória,seu esforçoparasejazer. Nas publicaçõesde massa
dosanos20,ograndeheróideficçãoéohomemdenegócios,eameta,
o idealde recompensa,é a ascensãosocial.123
A relaçãoentreculturaemeiosdecomunicaçãonaAmérica
do Norte a que nos referimosaqui deveser abordadaatravésda
articulaçãodedoisplanos:o daquiloqueosmeiosreproduzem- um
estilodevidapeculiar- eo daquiloqueproduzem- umagramática
de produçãocom que os meios universalizamum modo de viver.
Ocidentalizadauniversalidadequeno fundo é potencialeconômico,
invasãoe controledos demaismercados,mas tambémalgo mais:
deslocamentodo eixogeopolíticodahegemoniade umaEuropa en-
redadanaimposturafascistaparaumaAméricadoNortecomoespaço
deum vigorosodesenvolvimentodemocrático.A culturademediação
demassaéforjadanatensãoentreessasduasdinâmicas:adosinteresses
econômicosde um capitalismomais e mais monopolista,que se
aproveitada presençadébil e funcionaldo Estado,124e a de uma
poderosasociedadecivil quedefendeeampliaoslimitesdaliberdade.
Emboraos progressostécnicose a organizaçãoempresarial
tenhamaumentadoemlargamedidao públicodaimprensana Euro-
pa,foi nosEstadosUnidos quea imprensaverdadeiramentealcançou
194
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MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
umaaudiênciamassiva.Paraisto,contribuírama faltadeumaautên-
ticacentralizaçãoestatal,aaboliçãodospesadosimpostosqueincidiam
sobrea imprensaeuropéia,o papeldesempenhadopelacomunicação
emtodososníveisnoprocessodeconstruçãodanacionalidadeeuma
concorrênciacomercialqueestimulouarupturadasregrastradicionais
de organizaçãoe elaboraçãodo jornal. Desenvolveu-seentão"uma
metalinguagemcomunicacionalpara além das palavras,codificada
pelastipologiasusadas,o corpodasmanchetes,adisposiçãodainfor-
maçãodentrodoterritóriodapáginaeumapaginaçãohierárquicaque,
por suavez,criavaumahierarquizaçãoda notícia".125Formatonovo
para uma nova concepçãoda informação,consagrandoo valor de
intercâmbioda notícia,ao mesmotempomercadoriae comunicação
civil, horizontalfrentea qualquerautoritarismo.Convertidaempro-
duto, a notícia adquireo direito de penetrarem qualqueresfera,
"ampliandoprogressivamentea definiçãodo público, absorvendoe
atenuandoas diferençase contradiçõesde classe,e detendo-setão
somenteno limiteextremodatolerânciamédiadopúblicomaisamplo
possível".126
A superaçãodos "entraves"políticosremeteo desenvolvi-
mento da imprensa norte-americanaunicamenteao terreno da
concorrênciaeconômica,o quejá emfinaisdo séculoXIX conduzao
nascimentoda imprensamarrom.A lutaentredois grandesimpérios,
odePulitzereo deHearst,levaacomercializaçãodaimprensaabuscar
os maiscínicosexpedientesna "caçaao leitor". Foi sobreessaabjeta
submissãoaocapitaf127queseconcentrouquasesemprea atençãodos
estudossobrea imprensamarrom,negligenciandoou condenando
comopura manipulaçãotudo o quenessetipo de imprensadiz res-
peitoaoscódigosdo popular.Refiro-me,por um lado,a tudo o que
essaforma de jornalismorepresentaenquantocontinuidadecom o
sensacionalismoda literaturado acontecimentoe de terror- nar-
raçãogóticana Inglaterra,pliegosde cordelna Espanha,canardsna
França- atravésdascrônicasescritaspor repórteresque se fazem
passarpor detentosem penitenciáriasou loucos internadosem
195
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
hospícios,equeseachampresentesno lugardo crimeou do acidente
parapoderem"comunicaraovivo"a realidadeeasemoçõesdo acon-
tecimento.128Por outro lado,tambémmerefiroaosignificado,nessa
imprensa,da primaziada imagem:desdea "visualização"dos títulos
e a redefiniçãodo pesoe do papelda fotografia,atéo impulso ao
desenvolvimentodesseiconografiapopular por excelênciaque será
a históriaemquadrinhos,a narrativamodernaem imagens.
Na história em quadrinhosnorte-americanadessaépoca,
podemosveremação,com todaa nitidez,tantoa rupturaquantoa
continuidade. A ruptura, na "marca registrada"firmada pelos
syndicates,quemediatizamo trabalhodosautoresatéestereotiparem
último grauos personagens,simplificarao máximoos argumentose
baratearo traço do desenho:a narraçãoé assim empobrecida,
desativada.No entanto,há continuidadena produçãode um fOlclore
que buscano antigo o anonimato,a repetiçãoe a interpelaçãoao
inconscientecoletivoque"vive"na figuradosheróise na linguagem
deadágioseprovérbios,nasfacilidadesdememorizaçãoenatranspo-
siçãoda narrativaparaa cotidianidadeem quesevive.129
Mais aindado quenaimprensa,encontraremosno cinemaa
ostensiva"universalidade"da gramáticade produção de cultura
massivaelaboradapelos norte-americanos.Justamenteno cinema,
"artenômadeeplebéia",cujolocaldenascimentoéa barracadefeira
eo music-hall.Esteúltimobemquemereceriaumestudoàparte,dado
o lugarqueocupano trajetoque,do melodramade 1800e do circo,
conduzaocinema.Um aspectoemparticularnessatrajetóriadeveser
aqui pelo menosindicado,parasituarminimamenteo cinemano
processode modernizaçãoe urbanizaçãodo espetáculopopular: as
rupturasqueo music-hallintroduzemrelaçãoaocirco,especialmente
o norte-americano.13oO music-hallvai buscarmuitacoisano velho
circo,masenquantoo mundodesteéfiehado- osartistasnascemno
circo, e dentrodeleos segredosprofissionaissãotransmitidosde pai
parafilho -, o mundo daqueleé aberto:os artistascontinuamente
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MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
ingressamnele(edelepartem)semdinastianemherança,estandoa
"família" aí substituídapelaempresa.Ao espaçodo circo, com seu
picadeirocentralrodeadoe acuadopelo público, como nos velhos
teatrosdearena,ondeos atoressemisturamcoma platéia,sucede-se
um espaçorecortado,no qualo "picadeiro"épostoadiante,separado
do público.A misturadeprodígiosanimaise humanose avariedade
de atraçõese diversõesque aconteciamno circo sofremuma forte
redução,nãotantopelotamanhodasala- emLondres,no final do
séculoXIX, haviasalasde atémil assentos- e sim pelo formato
engendradopelo novo gosto,que deixalugar apenasa ilusionistas,
mímicos, dançarinose cantores.Finalmente,frenteà ausênciade
vedetese à indistinçãodasprofissões- no circoos artistastambém
eramos trabalhadoresque montavame desmontavama lona - e
frenteao desenraizamentocausadopelapermanenteerrânciade um
lugarparaoutro,o musie-hallorganizao espetáculoaoredorde uma
ouduasvedetes,contrataosartistassomenteenquantotaiseseintegra
imediatamenteaoscircuitoscomerciais.Essasdiferençasnão surgem
todasde umavez,masao longodeumaevoluçãoquechegaatéhoje
equetambémpenetrouaquiloqueaindachamamosdecirco,masno
início do séculoelasjá demarcavamumpontoimportantenahistória
da transmutaçãodo popularem massivo.
Inicia-secom a PrimeiraGuerraMundial a decadênciado
cinemaeuropeue o estabelecimentodasupremacianorte-americana.
"Os filmesestrangeirosforameliminadosda programaçãodasvinte
mil salasde projeçãodos EstadosUnidos. No restodo mundo, os
filmesnorte-americanosocupamde 60% a 90% dosprogramas,e a
cadaano US$ 200 milhõeseramdestinadosa uma produçãoque
ultrapassavaamarcade800filmes.O investimentodeUS$ 1,5bilhão
anuaistinha transformadoo cinemanumaempresacomparável,em
termosdecapital,àsmaioresindústriasnorte-americanas:automóveis,
conservas,petróleo,cigarros."131 Não queatéessemomentoo cinema
não tivesserepresentadoum negócio:desdeseusprimórdiosos pro-
197
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
dutores buscarama rentabilidade,como demonstramas empresas
pioneirasformadaspor Pathée Gaumont. É nos EstadosUnidos,
porém,queo cinemadeixade arruinarempresáriose sedestacado
espaçoteatralparadesenvolversuapróprialinguagem.Passaráentão
a disporde um maquináriomuitobemazeitadopara"comunicat"o
produtorcomopúblico,porintermédiodedistribuidoreseexibidores.
As decisõesdeproduçãoapontarão,assim,paraum fortesistemade
intervenções,numatramade interessescoligados."Os artistasforam
controladospor aquilo em que os produturesacreditavam,os dis-
tribuidores foram controladospor aquilo em que os exibidores
acreditavam,eestespor aquiloqueo públicodesejava."132Setalcredo
defatofuncionou economicamente,isto sedeugraçasaosajustesque
o sistemapassoua empreendersobreo público, adaptando-oparao
novoespetáculo.Nesseajuste,o starsystemea criaçãodegênerosforam
pontos decisivos:ambosmontavamo dispositivocomercialsobre
mecanismosdepercepçãoe reconhecimentopopular.
O públicomajoritáriodo cinemaprovinhadasclassespopu-
lares,enosEstadosUnidos dessaépoca,dasmaispopularesdetodas,
que eramasdesenraizadasmassasde imigrantes.A paixãoque essas
massassentirampelo cinematevesuaancoragemmaisprofundana
secretairrigaçãode identidadeque se processavaali. "Quando o
espectadorgritava'bravo!'ou vaiava,nãoeraparaexpressarseujuízo
sobreumadeterminadarepresentação,massim parademonstrarsua
identificaçãocom o destinodosheróisque eramvistosna tela (...);
semfazerjulgamentos,o públicoseapropriavadasperipéciasdosper-
sonagensqueeramdotadosde um tipo de realidadequetranscendia
a idéia de representação."133A magiada salaescuralevavaassimà
"plenitude"o mododeverquedesdeo melodramade 1800tendiaao
deslocamentodarepresentaçãoe à fusãodo personagemcom o ator.
Foi essacumplicidadesecretaentreo cinemae seupúblico - toda
a adesãoqueo cinemasuscitavanasclassespopulareseramotivo de
desprezoe rechaçopor partedaselites- o queo star systempassou
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MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
a estimulare "explorar".A indistinçãoentre ator e personagem
produziaum novo tipo de mediaçãoentreo espectadore o mito.
Mediaçãoque tinha no espaçoda telaum dispositivoespecífico:o
primeiroplano, comsuacapacidadedeaproximaçãoefascinação,mas
tambémde difusãoepopularizaçãodo rostodosatores;forada tela,
essamediaçãocontavacom a imprensaenquantodispositivomuito
eficazde referenciaçãoe traduçãodo mito em valorese pautasde
comportamentocotidianos.134A ideologiaconvertia-seem economia:
eraa identificaçãosentidae o desejomobilizadopela"estrela"o que
permitiaarentabilidadedosfilmes.Nessemovimento,quereconciliava
aartecomo sensoriumdasmassas,estaseramincorporadasaumanova
experiênciadesubjetividade:"O desejodeviversuavida,querdizer,
de viver seussonhose sonharsuavida (...). O aburguesamentodo
imagináriocinematográficocorrespondea um aburguesamentoda
psicologiapopular".135A hegemoniasefiavanesseacessodasmassas
ao funcionamentoafetivoda subjetividadeburguesa.A identificação
coma "estrela"foi o lugardesseafiançamento,pois ali seproduziaa
transposiçãodafascinaçãoonírica,nasaladecinema,paraaidealização
devalorese comportamentosforada sala,na vida cotidiana.
Outro grandemotor e ponto de ancoragemda indústria
cinematográficano "aparato"perceptivodasmassasforamosgêneros.
Mais uma vez, não é que a produçãoeuropéiadesconhecesseos
gêneros,e sim quefoi emHollywood quealgunsdelesforaminven-
tadose outrosrecriados,rompendo-secoma meratransposiçãopara
o cinemade gênerosteatraisou novelescos.Se, comopropusemosa
propósitodo folhetim,o gêneronãoésomentequalidadedanarrativa,
e sim o mecanismoa partir do qualseobtémo reconhecimento-
enquantochavede leitura, de decifraçãodo sentido,e enquanto
reencontrocom um "mundo"- isto seráverdadeiro,e muito mais
verdadeiroainda,comosgêneroscinematográficos.Neles,as"condi-
çõesdeleitura"serãotomadase trabalhadassistematicamenteapartir
do espaçoda produção.Assim, um gêneroseránão só um registro
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
temático,umrepertórioiconográfico,um códigodeaçãoeum campo
deverossimilhança,mastambémum registroda concorrênciacinema-
togrdfica,e mesmoumaoportunidadede especializaçãoparaascasas
produtoras.136Na épocade esplendorde Hollywood, a Warner Bros
seespecializouem cinemade gângsterse de guerra,a Universal,em
terrore a Metro, em dramaspsicológicose hagiografias.
Doisgêneros- atécertopontocomplementares- serviram
comobaseparaauniversalidadedo cinemanorte-americano:a inven-
çãodo westernearecriaçãodo melodrama.Com o western,osEstados
Unidos seconcediamumahistóriae umamitologia,a luta dospio-
neiros configuravauma "epopéiavisual".Cinema de pura ação,o
westernsetornou ao mesmotempoo gênerocom maisalto graude
convencionalismo,o de maior rigor em sua codificação,e aquele
em que Hollywood produziualgumasde suasobrasmaisoriginais.
Assim, desdeO grandeassaltoao trematé No tempodasdiligências
não seengendrasomenteum sistemadeprodução,mastambémum
modo de narrar.
Por meiodo folhetimo cinemarecebepor herançao melo-
drama,e o reinventa,ou seja:transforma-onovamenteno grande
espetáculopopular que mobilizaas grandesmassas,estimulandoa
maisforteparticipaçãodo espectador.Existeumaconvergênciapro-
fundaentreo cinemae o melodrama:no funcionamentonarrativoe
cenográfico,nasexigênciasmoraisenosarquétiposmíticos,naeficácia
ideológica.Maisdoqueumgênero,durantemuitosanoso melodrama
foi aprópriaessêhciado cinema,seuhorizonteestéticoepolítico.DaÍ,
emboaparte,tantoo seusucessopopular,quantoo desprezoquepor
muito tempomereceupor partedaselites,queconsagrarama propó-
sito do cinema o sentido pejorativo e vergonhoso da palavra
melodrama,emaisaindao do adjetivo"melodramático",comrelação
a tudo o queparaa culturacultacaracterizaavulgaridadeda estética
popular.Se o westernrepresentoua descobertade uma linguagem
diretae uma estéticaelementar,maseficaz,a narraçãoparalelae o
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MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
planogeral,o melodramacinematográficotrazo tratamentoexpres-
sivodamontageme o usodramáticodo primeiroplano.Foramesses
os elementosda gramáticacom queHollywood fezdo cinemauma
linguagem"universal"e o primeiro meio massivode uma cultura
transnacional.
201
NOTAS
P.Villar,"Reflexionssurlesfondementsdesstructuresnationales",emLa
Pensée,n. 217-218,1981.
R. Muchembled,Culturepopulaireetculturedesélites,pp.255ss.
Ibidem,p. 258.
G. Mairet,emHistoria deIasideologías,voI.I1I,pp.48e51.
M. deCerteau,La Cultureaupluriel, p. 55.
Referimo-nosem particularaosmecanismosestudadosem Vigilar y
castigar,CidadedoMéxico,1976.
F. Zonabend,La Mémoire longue,pp. 99 a 213; E. P. Thompson,
"Tiempo,disciplinadetrabajoy capitalismoindustrial",em Tradición,
revueltay concienciadeclase,pp.239a294.
J. Le Goff, Tiempo,trabajoy culturaenel Occidentemedieval,p. 73.
G. Debord,La Societédu spectacle,p. 95.
M. Foucault,op.cit.,p. 161.
A. Ure,Philosophyo/ manuftctures,1835,citadoporThompson.
Duasobrasqueinvestigamaespecificidadedesse"mundo":R. Mandrou,
MagistratsetsorcieresenFranceauXVI sieele,Paris,1968;J. CaroBaroja,
Las brujasy su mundo,Madri, 1968.
13 A. Michelet,La Sorciere,Paris,1966.
14 M. Foucault,op.cit.,p. 163.
15 Muniz Sodré,A Verdadeseduzida,p. 32.
16 UmaanálisedaformaçãodesseimaginárioemC. Castoriadis,Ainstituição
imagindriada sociedade,Rio de]aneiro,1982.
17 E. J. Hobsbawm,"Lasclasesobrerasinglesasy Iacultura",emNivelesde
culturay grupossociales,pp. 197a207.
18 G. Rudé,Protestapopulary revoluciónenelsigloXVIII, p. 17.
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f"
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
19 E. J. Hobsbawm,Rebeldesprimitivos,Barcelona,1974;edomesmoautor,
Trabajadores.EstudiossobreIa historiadel movimientoobrero,Barcelona,
1979.
A. Soboul,LesSans-culottes.Mouvementpopulaireetgovernementrevolu-
tionaire,Paris,1968.
E. P. Thompson,La firmación históricadeIa claseobrera,voI.11,p. 31.
A. Soboul,op.cit.,p. 15.
E. P. Thompson,op.cit.,p. 39.
M. deCerteau,L lnvention du quotidien.Arts deftire, pp.86e87.
Sãoastesesde Díez del Moral, Historia de Ias agitacionescampesinas
andaluzas,Madri,1929,edeG. Brenan,Ellaberinto espanol,Paris,1962.
VernaPrimeiraParteocapítulodedicadoaomodocomoosmovimentos
anarquistasassumemaculturapopular.
T. Kaplan,Orígenessocialesdeianarquismoandaluz,p. 232.
R. Hoggart,op.cit.,p. 330.
M. C. GarcíadeEntertía,SociedadypoesíadecordelenelBarroco,p. 180.
"No sécomoseconsiente/ quemil inventadascosas/ por ignorantesse
vendan/porlosciegosqueIastoman./Allí secuentanmilagros,/ martírios,
muertes,deshonras/ quenohanpasadoenelmundo/ y aIfinsevendey
secompra."
MemorialrecolhidonolivrodeGarcíadeEnterríajácitado,pp.86a89.
Pliegosdecordel:pequenoscadernosfeitosapartirdeumaouváriasfolhas
dobradas.[N. dosT.]
EssaevoluçãoéestudadaporJ. Marco,Literaturapopular enEspanaenlos
siglosXVIllyXIX 2vols.,Madri,1977.Vertambémdomesmoautor:"El
pliegosuelto",emRevistade Occidente,n. 101-102,Madri, 1971.
34 SeguimosaquiR. Mandrou,De Ia culturepopulaireauxXVII e.etXVIII e.
sieeles.LaBibliothequeBleude Troyes,Paris,1964;tambémG. Bolleme,Les
Almanachspopulairesau XVII etXVIII siecles,Paris,1969,e damesma
autora,La BibliothequeBleu: Ia littératurepopulaireenFrancedu XVI ao
XVII sieeles,Paris,1971.
35 J. Louisse,"La revoluciónsilenciosa.La comunicacióndelpobre",em
Diógenes,n. 113-114,CidadedoMéxico,1981,p. 78.
203
36
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Algunstextosqueafirmamaexistênciaeespecificidadedaleituracoletiva:
M. Soriano,Los cuentosdePerrault.Erudicióny tradicionespopulares,pp.
481 sS.;A.Soboul,emNivelesdeculturaygrupossociales,p.211;N. Robine,
"La lectura",emHacia unasociologíadeihecholiterario,pp.219ss.
CitadoemJ. CaroBaroja,EnsayosobreIa literaturadecordel,p. 19.
J. M. Roddguez,Ensayosobreel machismoespanol,p. 57.
Ibidem,p. 67.
EmJ. CaroBaroja,op.cit.,p. 55.
r. M. Zavala,Clandestinidady libertinajeeruditoen losalboresdei siglo
XVIII, p. 209.
R. Escarpit,Hacia una sociologíadeihecholiterario,p.253.
No sentidoqueoscódigossecunddriostêmparaE. Panofsky,Estudiossobre
iconología,p. 16.
Sobreaapariçãoedesenvolvimentodagravura:W. M. Ivens,Imagenim-presae conocimiento,Barcelona,1975;esobrea importânciaculturalda
gravuranatransformaçãodaexperiênciaartística:W. Benjamin,"Laobra
dearteenIaépocadesureproductibilidadtécnica",emDiscursosinter-
rumpidos,vol.r.
Baseamo-nosnainformaçãorecolhidanosestudosdeJ. Mistler,F. B1adez
e]' Jacquemin,Épinal etI'imageriepopulaire,Paris,1961.
]. A. RamÍrez,Medios demasasehistoriadeiarte,p. 31.
A. Hauser,Historia socialdeIa literaturay elarte,vaI.I, p. 516.
Sobreo processoculturalda "contra-reforma"católica,ver P. Burke,
op. cit.,pp.233ss.
R. Muchemblednaobrajá citada,pp.348SS., flZ umacaracterizaçãoda
função"cívica1'quecumpreaiconografiapopularnessesséculos.
R, Muchembled,op.cit.,p. 352.
F. Blandez,"L'HistoiredeI'imageried'Épinal",emop.cit.,pp.69a 138.
Sobreaevoluçãodagravuranospliegosdecordel:J oanAmades,Comentaris
sobreromanços,Girona,1948;J.CaroBaroja,"Figurayrelato",emop.cit.,
pp.440a430.
J. Habermas,Historiay críticadeIa opiniónpública, p. 76;R. Sennett,EI
declivedeihombrepúblico,p. 100.
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Assimo atestamT. Remy,"Lemime:origines",emHistoiredesspectacles,
p. 1499;].Follain,"LeMelodrame",emEntretienssur Iaparalittérature,
p.36.
P. Reboul,"PeupleEnfant,PeupleRoy,ouNodier,MelodramaetRévo-
lution",emRevuedesSciencesHumaines,n. 162,Lille, 1976.
Ch. Nodier,RevuedeParis, 1835,citadoporReboul.
R. Sennett,EI declivedeihombrepúblico,p. 38.
T. Remy,op.cit.,p. 1497.
"EstesespetáculosmÍmicosforamincorporandopaulatinamentetextos
explicativosediálogos,necessáriosparasuprirasinsuficiênciasdapanto-
mimano desenvolvimentodeintrigascomplexas",R. Gubern,Mensajes
icónicosenIa culturademasas,p. 270.
Sobreessa"cumplicidade":J. Goimard,"Le Melodrame:le mot et Ia
chose",emCahiersdela Cinémathéque,n. 28,Perpignan,1980.
Akakia-Viala,"LeMelodrame",emHistoiredesspectacles,p. 910.
A. Billaz,"Melodrameetlittérature:LecasdePixerecourt",emRevuedes
SciencesHumaines,n. 162,pp.239ss.
AssimaparecenoestudoqueM. H. Winterdedicaaosespetáculosdefeira
emHistoiredesspectacles,p. 1458;vertambémoqueaessepropósitodisse
G. SadoulemsuaHistoria deicinemundial,pp.26ss.
EstudadaporGuberncomoumachavedaiconografiademassa,emsua
op. cit.,pp.234ss.
R. Sennett,EI declivedeihombrepúblico,p. 100.
G. M. deJovellanos,Espectdculosy diversionespúblicasenEspana,pp. 121
e 122.
Além dostextoscitadosexpressamente,sãoimportantesparaa com-
preensãodaestruturadramáticadomelodrama:"Teodadeimelodrama",
deGubernemsuaop.cit.,e"LeRomandeIaviolenceetsonesthétique",
deF. BussiereemEurope,n. 542,Paris,1974.
R. Hoggart,op.cit.,p. 212.
]. Goimard,op.cit.,p. 22.
N. Frye,La escrituraprofana,pp. 159ss.
Ibidem,p. 104.
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72 J. Goimard, op.cit.,p. 22.
73 J. Follain, op.cit.,p. 43.
74 P. Brooks, "Une esthétiquedel'étonnement:lemelodrame",emPoétique,
n. 19, 1974,p. 356.
75 Ibidem, p. 343.
76 J. Habermas,Historiay críticadela opiniónpública, p. 173.
77 Ibidem, p. 205.
78 A. Swingewood,EI mitodeIa culturademasa,p. 114.
79 A. Gramsci, Culturay literatura,p. 208.
80 R. Barthes.Le degrézérodel'écriture,p. 53.
81 Paraosdadoshistóricossobretransformaçãodaimprensaeo folhetim, ver
o número monográfico da revistaEurope "Le Romanfeuilleton", Paris,
1974;M. Angenot, Le romanpopulaire,Montreal, 1975.
82 A primeira novelapicaresca.[N. dosT.]
83 R. Escarpit,SociologíadeIaliteratura,BuenosAires, 1972;La revolucióndeI
libro, Madri, 1968,e o já citado Hacia una sociologíadeIhecholiterario.
84 L M. Lotman eaescoladeTartu, SemióticadeIa cultura,Madri, 1979;Los
sistemasdelossignos,Madri, 1972.
85 Um documentadoestudosobreaorganizaçãoempresarial:J. L Ferreras,La
novelapor entregas,em especialo capítulodedicadoaoseditores,pp. 37 a
75.Também nosparecemmuito pertinentesasanotaçõesematizaçõesque
a esterespeitopropõe L. Romero Tobar, La novelapopular espanola,
Barcelona, 1976.
86 Afirma Escarpit: "No curso dos últimos séculos,à medida que a lite-
raturatomavaconsciênciade si própria, o dinheiro que o editor pagaao
autor mudou de naturezaesignificação(...). Entre a comprae o aluguel,
todas as metáforassão possíveis:a ediçãopor conta do autor pode ser
assimiladaaum contratodeassociação,epelojogo dedepósitoseadianta-
mentos,a remuneraçãodo escritorpodetransformar-seemsaláriodisfar-
çado", em Hacia una sociologíadeIhecholiterario,p. 141.
87 ].-F. Botrel, "La novelapor entregas:unidad de creacióny consumo" em
Creaciónypúblico enIa literaturaespanola,p.125.
88 J. Goimard, "Quelques structuresformelles du roman populaire", em
Europe: "LeRomanfeuilleton",p. 21.
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MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
89 J.-F. Borrei, "La publicidad reveladoradei público", em op.cit.,pp. 113
ss.;L. Romero Tobar, "Los mediosdedifusión deIa novelapopular", em
op.cit.,pp.90ss.
90 U. Eco, Lectorinjàbula, p. 83.
91 M. Meyer, "Folhetim paraalmanaqueou Rocambole,a Ilíada derealejo",
em CadernosdeLiteratura eEnsaio,n. 14, p. 17.
92 V. Brunori, Suenosy mitosdeIa literaturade masas,pp. 22 e 28.
93 ].-F. Brotei, op.cit.,p. 119.
94 Cito em M. Ragon, Histoire deIa littératureprolétarienne,p. 114.
95 J.F. Brotei, op.cit.,p. 116.
96 J. Tortel, Entretienssur Iaparalittérature,p. 24.
97 P. Fabri, "Le comunicazioni di massain Italia: sguardo semiotico e
malocchio deIa sociologia",em Versus,n. 5, p. 77.
98 U. Eco, 11superuomodi massa,pp. 27 ss.
99 U. Eco, "EI mito deiSuperman",enApocalíptic!JseintegradosanteIacultura
demasas,pp.260ss.;vertambémR. Gubern, "Superhéroesmodernos",em
op. cit.,pp.220 ss.
100 Sobreo duplo movimento"armado"pelanarrativado folhetimesobresua
significaçãoideológica,ver M. Angenot, op. cit., pp. 54 e 55.
101 P. Brooks, op.cit.,p. 341.
102 Um estudodecisivosobreessarelação:G. Zaccaria,II romanzod'appendice,
pp. 10 ss.
103 Afirma Gramsci: "Pode-se dizer que no povo a fantasia depente do
'complexode inferioridade'socialquedeterminalongasfantasiassobrea
idéia de vingança,de castigodos culpados,dos malessofridos etc.", em
Culturay literatura,p. 174.E sobrea vingançacomo motor narrativona
literatura romântica:M. Meyer e os textosde A. Candido a que ela se
refereno artigocitado acima.
104 Um dospoucosestudosquetematizamapresençadessemundo no folhe-
tim: F. Bussiere,"Le Roman de Ia violenceet son esthétique",na revista
Europe: "LeRomanfeuilletton': pp.31a 51.
105 L Olivier-Martin, "Sociologiedu roman populaire", em Entretienssur Ia
paralittérature,pp. 177a 194;"La peinturedeIacondition feminine", em
Europe: "LeRomanfeuilletton",pp.86a 94.
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
L.RomeroTobarfazumaanálisedetalhadadouniversosocialeocupacional
no folhetimespanhol,op.cit.,pp. 133ss.
V. Brunori,op.cit.,p. 58.
Doistrabalhosquetematizamessascontradições:osjácitadosdeM. Meyer
eM. Angenot.
A Gramsci,Culturay literatura,pp.201ss.
U. Eco,Socialismoy consolación,p. 36.
U. Eco,fi superuomodi massa,p. 19.
N. Frye,op.cit.,pp.71ss.
R. Gubern,op. cit., p. 214;vertambéma esserespeito:A-J. Greimas,
"Pourunesociosémiotiquediscursive",emSémiotiqueetsciencessociales,
pp.56ss.
E. Morin, L Esprit du temps,p. 78.
H. L Schiller,Comunicacióndemasase imperialismoyanqui, p. 17.
D. Bell,fndustriaculturaly sociedaddemasas,p. 14.
Veremparticularocapítulo"Delindividualismoenlospaísesdemocráti-
cos",emseuvolumen.
CitadoemD. Buxton,"Lamúsicaderock,susestrellasy consumo",em
Comunicacióny cultura,n. 9,p. 179. .
]. Berger,Modosdever,p. 143ss.
Em 1922jáapareceumaemissoraderádiofinanciadapelapublicidade,e
apeculiarlegislaçãoamericanaserádesdeoiníciofavorávelàrelaçãomeios!
publicidade;veraesterespeito:P.AlberteA J. T udesq,Historia deIa radio
y Ia televisión,México,1982.121 M. M. McLuhan,La comprensióndelosmedios,p. 204.
122 R. Sennett,Narcisismoy culturamoderna,p. 51.
123 P. Johns-HeineeH. Gerth,"Valoresnaficçãodaspublicaçõesperiódicas
demassa.1921-1940",emCultura demassa,pp.266a275.
124 Sobrea"liberalidade"doEstadocomosmeiosnosEstadosUnidos,ver:D.
DoglioG. Richeri,"Il modeloamericano",em La radio: origini, storia,
modelli,Milão, 1980.
125 M. VásquezMontalbán,Historiay comunicaciónsocial,p. 174.
126 F. Colombo,Televisión:Ia realidadcomoespectáculo,p. 54.
208
MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA
127 Não só sobrea imprensamarrom,masem geralsobreos estudosde
sociologiadaimprensa,ver,porexemplo,N. Will, Essaisur Iapresseetle
capital,Paris,1976.
128 A continuidade"literária"comtaisnarraçõeséfeitanaimprensanorte-
americanaatravésdo "romancecurto"esobretudoatravésdanarrativa
breve,ou story;ver,aesserespeito,J. Coma,La novelanegra,pp.20 ss.
129 Sobrearelaçãoentreahistóriaemquadrinhoseo folclore:].-c.Renard,
SociologiedeIa bandedessinée,Paris,1978;"Labandedessinéecommefol-
klore",emEsprit,abrilde1980.Sobrea"marca"dossyndicates:R.Gubern,
Ellenguajedeloscomics,Barcelona,1972,e"Elcomic",emfmageny lengua-
jes,Barcelona,1981.TambémJ. Coma,DeigatoFélixaigatoFritz: Historia
deloscomics,Barcelona,1978.
130 EssarelaçãoéestudadaporH. Hotier,Le vocabulaireducirqueetdu music-
hall, UniversitédeLille, 1972;do mesmoautor:"LesClowns.Analyse
sémiotique",emDegrés,n.32,Bruxelas,1982.Vertambém]'Damase,"Le
music-hall",emHistoiredesspectacles,pp. 1543a 1578.
131 G. Sadoul,Historia dei cinemundial,p. 189.
132 L C. Jarvie,Sociologiadei cine,p.74.
133 E. GarcÍaRiera,El ciney supúblico,p. 16.
134 F. Rositi,Historiay teoríadeIa culturademasas,p. 120.
135 E. Morin, Las estrellasdecine,p. 23.
136 Acha-seem]' ColletetaL, Lecturesdufilm, Paris,1977,umaabordagem
sócio-semióticadofuncionamentodosgênerosnocinema.
209
:!III
TERCEIRA PARTE
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE
MASSA NA AMÉRICA LATINA
A crisede1930claramenteunificouo desrinodaAméricaLatina.
Começavaentãoumaeradeescassez.A escassezpodiasera fomeea
morte,masfoitambémo motorquedesencadeoumudançasintensase
variadas.(...) De imediato,pareciahavermuitomaisgente,equeessa
gentesemovimentavamais,gritavamais.Eramascidadesquecomeça-
vamamassificar-se.
J L. Romero
opaísprecisavadebasescomuns,laçoscoletivos.O cinemaeorádio
seligamcomofatoresinsubstituÍveisdaunidadenacional.Ao compar-
tilharentusiasmosecatarse,umpúblicosesurpreendeintegradoauma
nação.
C. Monsivdis
Depois de percorrermosos marcosque balizamo debate
culturale adentrarmoso processode constituiçãohistóricada medi-
açãode massa,esteterceiromomentoprocuraintegrara reflexão:a
AméricaLatinacomoespaçoaomesmotempode debatee combate.
Só que agorao traçadoseráinvertidoe partiremosda análisedos
processossociaisem que se constituio massivopara,a partir daí,
observaro horizontedastransformaçõese osdeslocamentosproduzi-
dos no debateteóricoe metodológico.Explicitamos,assim,o atual
reencontrodo métodocom a situaçãolatino-americanana dupla
dimensãode suadiferença:a queproduziua domina~ão,historica-
mente,eaque,socialmente,constrói-senamestiçagemdasraças,dos
tempose dasculturas.Na articulaçãodessadupladimensãotorna-se
socialmentevisívelo sentidocontraditórioda modernidadenaAmé-
ricaLatina:tempodedesenvolvimentoatravessadopelodescompasso
da diferençae da descontinuidadecultural.
212
CAPíTULO 1
OS PROCESSOS: DOS
NACIONALISMOS ÀS TRANSNACIONAIS
UMA DIFERENÇA QUE NÃO
SE RESTRINGE AO ATRASO
A possibilidadede que falarem AméricaLatina não seja
sdmenteumainvocaçãodaunidadeoriginadanadominaçãopor con-
quista,edequeistofaçasentidoaosediscorrersobreascontradições
do presente,residee seapóiasobreaquelaoutra"unificaçãovisível"
de que falaJ. L. Romeroao estudaro processode incorporaçãodos
paísesda regiãoà modernidadeindustrializadae aomercadointerna-
cional.Das lutaspelaindependênciaatéa reorganizaçãodo imperia-
lismono começodoséculoXX, adinâmicabásicafoi defragmentação
edispersão:o rompimentoquasepermanentedasprecáriasformações
nacionaisapartirdeconflitosinternosoudeestratégiasdedivisãopro-
movidaspelasnovasmetrópoles.Seéverdadequeasdiferentesforma-
çõesnacionaistomamrumoseritmosdiversos,tambémsepodedizer
queessadiversidadevaisofrerdesdeosanos30 umareadequaçãofun-
damentaledeconjunto.A possibilidadede"formarnações"nosentido
modernodo termopassarápelo estabelecimentode mercadosnacio-
nais,e estes,por suavez,serãopossíveisem funçãode seuajusteàs
necessidadeseexigênciasdomercadointernacional.Essemododepen-
dentede acessoà modernidade,contudo,tornarávisívelnão só o
"desenvolvimentodesigual",a desigualdadeemqueseapóiao desen-
volvimentodo capitalismo,mastambéma "descontinuidadesimul-
tânea"lapartirdaqualaAméricaLatinaviveelevaacabosuamoder-
nização.Descontinuidadeemtrêsplanos:no descompassoentreEstado
c Nação- algunsestadossó seconvertememnaçõesmuito depois,
,
~II
:1)
fi!
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
e algumasnaçõestardarãoa seconsolidarcomoestados- no modo
desviadocomqueasclassespopularesseincorporamaosistemapolí-
tico e ao processode formaçãodosestadosnacionais- maiscomo
fruto deumacrisegeraldo sistemaqueasconfrontacomo Estadodo
que pelo desenvolvimentoautônomode suasorganizações- e no
papelpolíticoenãosóideológicoqueosmeiosdecomunicaçãodesem-
penhamna nacionalizaçãodasmassaspopulares.
Antesdeabordaremseparadoaanálisedecadaumdessestrês
planos,é necessárioum esclarecimentosobreo sentidoda idéia de
descontinuidade,de modemidadenão-contemporânea,paralivrá-Iados
mal-entendidosquea cercame freqüentementea desfiguram.A não-
contemporaneidadedequefalamosdeveserclaramentedistinguidada
idéiade atrasoconstitutivo,ou seja,do atrasoconvertidoem chave
explicativadadiferençacultural.É umaidéiaquesemanifestaemduas
versões.Uma, pensandoquea originalidadedospaíseslatino-ameri-
canos,edaAméricaLatinacomoumtodo,foi constituídapor fatores
queescapamàlógicado desenvolvimentocapitalista.E outra,pensan-
do a modernizaçãocomorecuperaçãodo tempoperdido,e portanto
identificandoo desenvolvimentocomo definitivodeixardesero que
fomosparaafinalsermosmodernos.A descontinuidadequetentamos
pensaraquiestásituadaemoutrachave,quenospermiterompertanto
comum modeloa-históricoeculturalistaquantocomo paradigmada
racionalidadeacumulativaem suapretensãode unificare subsumir
num só tempo as diferentestemporalidadessócio-históricas.Para
poder compreendertanto o que o atrasorepresentouem termosde
diftrençahistórica,masnãonum tempodetido,e simrelativamentea
umatrasoquefOi historicamenteproduzido(criançasquemorremdia-
riamentepor desnutriçãoou desidratação,milhõesde analfabetos,
déficit de caloriasbásicasna alimentaçãodas maiorias,quedanas
expectativasdevidadapopulaçãoetc.),quantoo queapesardoatraso
existeem termosde diftrença, de heterogeneidadecultural, na
multiplicidadedetemporalidadesdo índio, do negro,do brancoedo
tempodecorrentede suamestiçagem.
214
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE MASSA ...
Sóapartirdestatensãoépensávelumamodernidadequenão
se reduzaa imitaçãoe uma diferençaque não se esgoteno atraso.
Residiaaí a difícil lutadeBolívarno sentidodeadequarasdoutrinas
políticasdesuaépocaà "gramáticadadiversidade"racial,geográfica,
climáticaeculturaldessespaíses,deadequaro liberalismoàsexigências
de uma sociedadeem formação,na qual,em nomeda igualdade,o
liberalismoacabavatornandoa liberdadeum princípio dos fortes.2
Bolívar propunhaum tipo de Nação que não se recortavasobreo
decalqueda Naçãoeuropéia,e um tipo de Estadoque,abatendoo
poderabsoluto,fosseentretantosuficientementeforteparadefender
osmaisfracoscontraasclassesricas.Linhadepensamentoelutaconti-
nuadaporMartí, colocandocomoobstáculofundamentalàconstrução
dessasnaçõesa incompreensãoquantoa "quaiselementosdesorde-
nadosforamutilizadosparaforjarasnovasnações,comtantapressa".3
E tambémdeMariátegui,insistindoimpetuosamenteemquea tarefa
dessespaísesnãoéalcançaraEuropa,redescobrindoovaloreosentido
do mito e proclamandoquenaAméricaLatinaseriapreciso"soltara
fantasia,libertaraficçãodetodasassuasvelhasamarrasparadescobrir
a realidade".4
o DESCOMPASSO ENTRE ESTADO E NAÇÃO
A partirdosanos20,amaioriadospaísesdaAméricaLatina
inicia um processode reorganizaçãodesuaseconomiase de reajuste
desuasestruturaspolíticas.A industrializaçãoélevadaacabocombase
na substituiçãode importações,no delineamentode um mercado
interno e no empregocrescentede mão-de-obra,num quadroque
tornadecisivaa intervençãodo Estado,cominvestimentosem obras
de infra-estruturaparatransportee comunicações.De maneiraque,
mesmoquandoo início dosprocessosdeindustrializaçãorespondea
condiçõesdefuncionamentodo mercadointernacional,hádiferenças
dealcancee ritmo quecorrespondemaograudedesenvolvimentodo
"projetonacional",diferençasquedesdea segundametadedo século
XIX forjamasburguesiasde cadapaís.
215
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Existeum amplodebateacercada própriapossibilidadede
sefalaremburguesiasnacionaisnaAméricaLatinadessaépocaedesua
relaçãocontraditóriacom a configuraçãodos estadosnacionais.No
entanto,comopôdehavereconomiaepolíticanacionais,pergunta-se
Malcolm Deas, sem a articulaçãode interessesde classeem nível
nacional?5É certoque existemdiferençasem termosde alcancee
capacidadedemanobrapor partedasburguesiasdepaísescomoBrasil
e Equador,maselasnãodiferemtantona concepçãodarwinista,que
orienta o processode modernizaçãoe desenvolvimentonacionais,
quantonotamanhodosefeitos,poistêmemcomumofatodaexplosão
urbanae a cisãoda sociedadetradicional.Uma explosãoprovocada
pelaconjunçãodecrescimentodemográficoemigraçãodo campopara
a cidade- queem paísescomoa Argentinaseráacrescidade uma
enormeimigraçãoprovenientedaEuropa- eaconfiguraçãodeuma
sociedadeque começaa ser "de massas"e entraem colisãocom a
sociedade"normalizada"emsuasegregaçãodeclassesegrupossociais.
Podendoou nãosefalarem "burguesianacional",o certoé o surgi-
mentode novasburguesias6quecontrolamaomesmotempoo mundo
dosnegócioseo dapolítica,promovendomudançasquesópodemser
postasempráticapor meiodaimbricaçãodeambos.O quepermitiu
tal imbricaçãonão foi apenasa conjunturaeconômica,mastambém
aascensão,por meiodasburguesiaslatino-americanas,danecessidade
inelutávelde incorporartaispaísesaosmodosde vida das "nações
modernas".Só umatransformaçãopoderiadefinitivamentetiraresses
paísesda estagnaçãoe do atraso.Claro que a transformaçãotinha
marcadoo rumodeantemão:caminharnadireçãodo "mundourbano
europeizado".Daí ter sido lícito - assimo declaravamfilósofose
homensdeciência- marginalizarou instrumentalizarossetoresiner-
tesetudoo queconstituísseimpedimentoouobstáculo.Do contrário,'
a própriaexistênciada naçãoestariaem perigo.
As novasburguesiaspassarãoassimavaler-sedovelhoprojeto
nacionafl concebidopelaclassecriolla.8Foi aoelaboraredesenvolver
esseprojetoqueaclassecriollaadquiriuatributosnacionaisesetornou
216
I]
II
'1';I
.lIiI
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE MASSA ...
ela própria "nacional"."Projeto nacionalé como se denominaesse
contínuo,essaprolongadaempresapelaqual a classecriollaconstitui
o EstadoeaNação".9A empresafalhanoséculoXIX, masnelaseapóia
o novoprojetodeconstruçãodaNaçãomoderna,já queesteéo modo
de sustentara estruturado poderinterno.
Surgeassimumnovonacionalismo,baseadonaidéiadeuma
culturanacional,queseriaa sínteseda particularidadeculturale da
generalidadepolítica,daqualasdiferentesculturasétnicasouregionais
seriamexpressões.A nação incorpora o povo, transformando"a
multiplicidadedosdesejosdasdiversasculturas(...) numúnicodesejo:
participardo sentimentonacional".1OSob estaforma,a diversidade
legitimaa insubstituívelunidadeda Nação.TrabalharpelaNação é
antesde maisnadatorná-launa,superarasfragmentaçõesqueorigi-
naramaslutasregionaisou federaisno séculoXIX, tornando-lhepos-
sívela comunicaçãoentreváriasregiões- rodovias,estradasdeferro,
telégrafos,telefonese rádio- masacimade tudo dasregiõescomo
centro,com a capital.
Compartilhandoessaconcepçãobásica,existiramduascor-
rentes.Uma identificao progressonacionalcom o da classeque o
orientaecomo esforçodeindustrialização.Outra,presentenospaíses
caracterizadossociale culturalmentepor aquilo que Darcy Ribeiro
chamade"povos-testemunho",11 pretendeconciliara novanacionali-
dadecomaquelaoutraNaçãoqueexistiaanteseque"vemdebaixo".
Parauns,o decisivoeraindustrializar-seeassimalcançarostatusdena-
çõescivilizadas;paraoutros,semprehouveumafortetensãoentrea
necessidadeimperiosade industrializaçãoe a consciênciadesuadife-
rençacomo Naçãoem particular.Essatensãodeu lugarno Peru de
finaisdosanos20aumdebatequeconfrontouo "problemanacional"
com o "problemaindígena",a partirde dois projetos:o de Haya de
la Torre e o deJosé CarlosMariátegui,abertamenteconflitantes.12
Na AméricaLatina em geral,a idéiade modernizaçãoque
orientouasmudançasfoi maisum movimentode adaptação,econô-
micae cultural,do quede aprofundamentoda independência.Refc-
217
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
rindo-seaonacionalismobrasileiro,afirmaE. Squeff:"Nossamoderni-
dadesó poderiaseralcançadaa partirda traduçãode nossamatéria
-primaemexpressãoquepudesseencontrarreconhecimentono exte-
rior".13A dinâmicadapolíticacultural,assim,plasmava-sesobrea da
economiapolítica.Esta,por suavez,resultoumenosnumprocessode
crescimentodo mercadointernodo quena interiorizaçãodo modelo
e dasexigênciasquevinhamdo exterior.Desejava-seserumaNação
a fim de obter-seuma identidade,mas tal obtençãoimplicavasua
traduçãoparao discursomodernizadordospaíseshegemônicos,por-
quesónos termosdessediscursoo esforçoe os êxitoseramavaliáveis
evalidadoscomotais.A lógicadodesenvolvimentismonãoseriaoutra;
suaschavesjá estavamemoperaçãonosnacionalismosmodernizadores
dos anos30, queforamsuaetapapréviae indispensável.
A estruturapolíticanecessáriaao projetomodernizadorfoi
configuradaapartirdoaugedocentralismoedopapeldeprotagonista
assumidopeloEstado.A unidadenãoé concebidasenãocomoforta-
lecimentodo "centro",isto é, organizandoa administraçãodo paísa
partir de um só lugarno qualseconcentramastomadasde decisão.
Em algunspaíses,o centralismoterácomoconteúdoejustificativao
estabelecimentodosmecanismosbásicosdeumaadministraçãoestatal
aindainexistente- contabilidadenacional,organizaçãodos impos-
tos,estabelecimentodo registrocivil etc.14Naquelesoutrosondetais
mecanismosjá existiam,o centralismonão teráapenasum sentido
unificador, mastambémuniformizador,homogeneizadordetempos,
gestosefalas.A h~terogeneidadedequeseformaamaioriadospaíses
daAméricaLatinasofreráumforteprocessodefuncionalização.Onde
a diferençacultural é grandee incontornável,a originalidadeé
deslocadae projetadasobreo conjuntoda Nação.Onde a diferença
nãoétão"grande"apontodeconstituir-secomopatrimônionacional,
ela será folclorizada,oferecidacomo curiosidadeaos estrangeiros.
Entretanto,nem a absorçãonacionalda diferençanem suafolclori-
zação foram apenasuma estratégiafuncionalizadorada política
centralista;durantealgumtempoforamtambém,como atesta,por
218
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE MASSA ...
exemplo,o romanceindianista,modosdemanifestaçãoda"consciên-
ciado paísnovo",15modosdeafirmaçãodeumaidentidadenacional
aindaem fasede formação.
O outro pivô do nacionalismonos anos30 é o papelde
protagonistaquecoubeaoEstado.Emboraesteassuntováserdiscu-
tido em maioresdetalhesmaisadiante,ao tratarmosdo populismo
comomodo de incorporaçãodasmassasà Nação,é precisochamara
atenção,já aqui,paraesseponto.Em algunspaíses,comoo México,
esseprotagonismofoi tão forte que converteuo Estadono "agente
hegemônicopor excelência".16Paraisto,no casodo México, contri-
buiuo permanente"vulcãoplebeu",o estadoseculardeguerrainterno
eexterno,eumaconstanteerosãodopoderdasclassessuperiores,tudo
isto exigindo do Estado um protagonismoque se traduziu na
antinomiadasuperpolitizaçãoedadessocialização.No casodo Chile,
oprotagonismodoEstadoacustadasociedadecivil,dofortalecimento
de suasinstituiçõese dasorganizaçõesdeclasse,conduziuà autono-
mizaçãodapolíticaeaumaconcepçãoinstrumentaldademocracia.17
Não poderiaserdeoutramaneira,já queaentradanaindustrialização
foi obrasobretudodo Estado:"O espíritode empresaquedefineuma
sériedetraçosdaburguesiaindustrialnospaísescapitalistasdesenvol-
vidosfoi, naAméricaLatina,umacaracterísticado Estado,sobretudo
nosperíodosdeimpulsodecisivo.O Estadoocupouo lugardeuma classe
socialcuja apariçãoa história reivindicavasemmuito sucesso:encarnou
a Naçãoe impôso acessopolítico e econômicodasmassasaosbene-
fícios da industrialização".18
Algo semelhanteaconteceuno planocultural.Continuando
nocasodoMéxico,porsertãoexplícito,veremosqueparaVasconcelos
a própriaRevolução,maisqueumairrupçãodasmassasna história,
é a possibilidadedo adventoda civilizaçãono seiodasmassaspelas
mãosdo Estado,queé um grandeeducador.Concepçãopresenteno
muralismo,"queexaltaos exércitoszapatistase o proletariadointer-
nacional,masnasparedesdo Governo".19Ao projetohumanistac
clIlturalistadeVasconcelos,osmuralistasacrescentamexércitoscam-
219
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
poneseseinternacionalismoproletário,mas"quemditaasnormasda
Nação é o Estado,elemonopolizao sentimentohistóricoe o patro-
cínio daarteedacultura".20Paradoxalmente,o crescimentodo Estado
no México é "conquistado povo",dasrevoluçõespopularescontraas
castascriollas,ascorporaçõesprivadaseasameaçasestrangeiras.Nesse
paradoxoresidiráa forçadaculturanacionalno México,daquiloque
elacontinuaráa significarmesmoquandoo Estadoabandonarparci-
almenteo patrocínioe o confiarà indústriacultural.Mesmo entãoo
nacionalnãoserásomenteo querecortaefazemergircomotalo Esta-
do, massim o modopeloqualasmassassentema legitimaçãosocial
desuasaspirações.SeemnenhumoutropaísdaAméricaLatinahouve
um nacionalismotão fervorosocomo o mexicano,a razãodeveser
buscadana ausênciada Revoluçãoquedotou o Estadomexicanode
uma representatividadepopularquenão eraapenasformal. Foi essa
ausênciao que,mesmoempaísesondeo Estadoeraforte,fezcomque
a culturanacionalestivessetão desconectadada culturareal,e quea
preocupaçãodoEstadocomaculturasoasse,econtinueasoaratéhoje,
tão retórica.
MASSIFICAÇÃO, MOVIMENTOS
SOCIAIS E POPULlSMO
Seosanos30 foramdecisivosparaaAméricaLatina,nãoo
foramsomentedevidoaosprocessosdeindustrializaçãoemoderniza-
ção das estruturaseconômicas,mas também,ou mesmomais, no
campopolítico,devidoà irrupçãodasmassasnacidade.No momento
emqueascidadesseenchemdeumamassadepessoasacumuladapelo
êxodorural,como crescimentodemográfico,umacrisedehegemonia
provocadapelainexistênciade umaclassequecomotal assumissea
direçãodasociedadelevarámuitosEstadosabuscarnasmassaspopu-
laressualegitimaçãonacionalA manutençãodo podereraimpossível
sematenderdealgummodoasreivindicaçõesdasmassasurbanas.O
populismoseráentãoa forma de um Estado que diz fundar sua
legitimidadenaascensãodasaspiraçõespopularese que,maisdo que
220
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE MASSA ...
umaestratégiaa partir do poder,resultacomo umaorganizaçãodo
poderquedá formaaocompromissoentremassase Estado.A ambi-
güidadedessecompromissovemtantodovaziodepoderquedeveser
preenchidopelo Estado- com o autoritarismopaternalistaassim
produzido - quanto do reformismopolítico representadopelas
massas.Paranãoatribuiraopopulismoumaeficáciaqueelenãoteve,
em vez de reduziras massasa umapassividademanipulada,o que
tampoucoé condizentecom o que ocorreu,devemosesclareceras
implicaçõesdapresençasocialdasmassasedamassificaçãoemqueela
sematerializa.
A migraçãoe asnovasfontese modosde trabalhotrazem
consigoa hibridizaçãodasclassespopulares,uma novaformade se
fazerempresentesna cidade."Houve uma espéciede explosãode
pessoas,na qualnãoerapossívelmedirexatamentequantoeramaior
o seunúmeronemquantoeramaioradecisãodemuitosparaconse-
guirquesecontassecomeleseparaquefossemouvidos."21A crisedos
anos30 desencadeiaumaofensivado camposobrea cidadee uma
recomposiçãodosgrupossociais.Modificaçãoquantitativae qualita-
tivadasclassespopularescom o surgimentodeuma massaquenãoé
definÍvela partirda estruturasocialtradicionale que"desarticulaas
formastradicionaisde participaçãoe representação".22A presença
dessamassavaiafetaro conjuntodasociedadeurbana,suasformasde
vida e pensamento,e logo tambéma própriafisionomiada cidade.
Com a formaçãodasmassasurbanassurgenãosó um cres-
cimentodasclassespopulares,mastambémo surgimentode umnovo
modode existênciadopopular."A desarticulaçãodo mundo popular
comoespaçodo Outro, dasforçasdenegaçãodo mododeprodução
capitalista".23Essainserçãodas classespopularesnas condiçõesde
existênciadeuma"sociedadedemassas"levaráo movimentopopular
a umanovaestratégiade alianças.Como sea novaexperiênciasocial
tendesseaformarumanovavisão,umaconcepçãomenosfrontalmente
questionadora:"A concepçãodeumasociedadequepodeserreforma-
da aospoucos,umasociedadequepodechegara sermaisjusta".21
221
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Duranteum certotempo,a massafoi marginal.Era o hete-
rogêneoe o mestiçofrenteàsociedadenormalizada.Ao complexode
perdasquesofremnãosomentemasparticularmenteaspessoasvindas
do campo- "foi necessárioaprendera tomarum ônibus,conhecer
as ruas,retirarum documentode identidade"- a velhasociedade
responderácom o desprezo,querecobremuito maisque o ascoe o
medo.A massaeramaisdo queum ataque:eraa impossibilidadede
continuarmantendoa rígidaorganizaçãode diferençase hierarquias
quemontavamasociedade.Por issoaagressividadedasmassasparecia
maisbranda,mastambémmaisperigosa:não setratavado levanta-
mentodeumaclasse,masdaliberaçãodeumaforçaincontrolável.Era
"um proletariadode formaçãoaluvional"25quenãoencontravaum
lugarpolíticonemnospartidosnemnasorganizaçõestradicionaisda
classetrabalhadora,mascujasexpressõesdeviolênciarevelavamaforça
de queeracapaz.
A presençadas massasna cidadefoi adquirindopouco a
poucotraçosmaisnítidos.A quantidadedepessoascomeçoua signi-
ficar um enormedéficitdehabitaçãoe transporte,alémde um novo
modo de morar na cidade,andar pelas ruas e comportar-se.Na
periferia,apareceramos bairrosde posseiros;no centro,a ruptura
ostensivadasformasde urbanidade.A cidadecomeçavaa perderseu
centro.À dispersãoimplicadapelasinvasõesdaperiferiapelospobres
- favela,vil/asmiseria,cal/ampas26- os ricosreagiamafastando-se
paraoutraperiferia.E a massacontinuoua invadirtudo. Em meioà
suaignorânciadasnormase aodesafioquesuamerapresençaintro-
duzia,seudesejomaissecretoeraalcançaros benefíciosquea cidade
representava.As massasqueriamtrabalho,saúde,educaçãoediversão.
Mas não podiamreivindicarseudireito a essesbenssemmassificar
tudo. Revoluçãodasexpectativas,a massificaçãorevelavaseuparado-
xo:eranaintegraçãoqueresidiaasubversão.A massificaçãoeradeuma
sóvez,comamesmaforça,aintegraçãodasclassespopularesà "socie-
dade"e a aceitaçãopor partedestado direitodasmassas,ou seja,de
todos,aosbenseserviçosqueatéentãotinhamsidoprivilégiodepou-
222
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE MASSA ...
cosoE istoa sociedadenãopodiaaceitarsemaomesmotempotrans-
formar-seprofundamente.Essatransformação,porém,não assumiu
nemostraçosnemadireçãoesperadapelosrevolucionários,eportanto
estespensaramquenão tinha ocorridotransformaçãoalguma.
A massificaçãoafetoua todos,masnemtodosaperceberam
e sentiramda mesmaforma.As classesaltasaprenderammuito cedo
a separara demandadasmassas- comsuacargade periculosidade
políticaetambémseupotencialdeestimulaçãoeconômica- daoferta
massivade bensmateriaise culturais"semestilo",pelosquaisnão
podiasentirsenãodesprezo.Paraasclassesmédias,pequeno-burgue-
sas,aquelasquepor maisquedesejassemnãopodiamdistanciar-se,a
massificaçãofoi especialmentedolorosa,"porqueatacavaaqueleanseio
de interioridadequecaracterizavaseusmembros,zelososdesuaindi-
vidualidadee de sua condiçãode pessoasdiferenciadas".27Para as
classespopulares,por outro lado, emborafossemasmais indefesas
diantedasnovascondiçõesesituações,amassificaçãotrouxemaisga-
nhosdo queperdas.Não só estavanelasuapossibilidadedesobrevi-
vênciafísica,comotambémsuapossibilidadedeacessoeascensãocul-tural.A novacultura,aculturademassa,começousendoumacultura
quenãoeraapenasdirigidaàsmassas,masna qualelasencontravam
retomadas,desdeamúsicaatéasnovelasderádioeaocinema,algumas
de suasformasdevero mundo, senti-Ioe expressá-Io.
Devemosa José Luis Romeronãosomentea denominação
maisoriginal em castelhanoda culturade massa- "folklorealuv-
ial" - como também a primeira caracterizaçãosociológica e
fenomenológicanão maniqueístadessaculturaa partir da América
Latina.28Como Benjamin,Romeroencaraessaculturamaisa partir
da experiênciaque nela ganhauma expressãodo que a partir da
perspectivadamanipulação.E o quenestesentidoparecemaissigni-
ficativoéalgodemuitopróximodo queinteressavatambémaArgue-
das,ao analisara culturada mestiçagem:a hibridizaçãoe a reelabo-
ração,adestruiçãoquerepresentaparao mito dapurezaculturaleda
ascensãosem manchas,a propósitodo empregode instrumentos
223
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
modernosna músicaautóctoneou suadifusãoradiofônica,da passa-
gemdo folcloreaopopular.29O massivoéhibridizaçãodo nacionale
do estrangeiro,do patetismopopularedapreocupaçãoburguesacom
a ascensão,e dedois tiposbásicos:os quesemseremricoschegama
aparentá-Io,"os que imitam as formaseternasque caracterizamos
ricos",e seuopostosimétrico,osdesgarradostiposdo subúrbioe da
malandragem.Uma cultura,enfim,essencialmenteurbana,que"cor-
rige" seumarcadomaterialismo- o queimporta,o que temvalor,
é o econômicoe o quesignificaa ascensãosocial- como transbor-
damentodo sentimentale do passional.
Do espaçoda políticaoficial - à direitae à esquerda-
tantoasmassasquantoo massivoserãoencaradoscomreceio.A direita
com umaposiçãodefensiva:asmassaspõememperigorígidosprivi-
légiossociais,e o massivodissolvesagradasdemarcaçõesculturais.A
esquerdavênasmassasumpesomorto,umproletariadosemconsciên-
cia declassenemvocaçãodeluta,eno massivoum fatoculturalque
não seenquadraem seuesquema,quedesafiae incomodasuarazão
ilustrada.Só paraos populistasa presençada massaurbanapareceu
implicarumfatopolíticonovo,apartirdo qual"conseguiramesboçar
os princípios de uma ideologianova para canalizaras tendências
eruptivasdamassadentrodenormasqueassegurassema conservação
do fundamentalda estrutura".30
De 1930a 1960,o populismoé a estratégiapolítica que
marcaa luta em quasetodasas sociedadeslatino-americanas,com
maior ou menor intensidade:"É a primeira estratégiaque busca
resolveracrisedoEstadoabertaem1930emgrandepartedaregião".31
Em primeiro lugar, surgeno Brasil Getúlio Vargas,conduzindoo
processoquelevada liquidaçãodo "Estadooligárquico"ao estabele-
cimento do "Estado Novo". A partir de 1930,as condiçõesdo
crescimentoindustrialno Brasil,a incapacidadeda oligarquiapara
dirigi-Io, asaspiraçõesliberal-democráticasdasclassesmédiasurbanas
e aspressõesvindas"de baixo",exercidaspor umamassificaçãoante-
224
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE MASSA ...
cipada,dãolugara um pactopolíticoentreasmassase o Estado,por
meiodo qual seoriginao populismo.32Trata-sede um Estadoque,
erigido em árbitro dos interessesantagônicosdas classes,arroga-se
entretantoa representaçãodasaspiraçõesdasmassaspopulares,em
cujonomeexerceráaditadura,ou seja,amanipulaçãodiretadasmas-
sase dos assuntoseconômicos.Só em 1945astendênciasdemocra-
tizadorasconseguemintroduzirintermediáriosentreEstadoemassas.
Em 1934,LázaroCárdenasassumeapresidênciado México
e propõeum programade governoque,retomandoos objetivosda
Revolução,devolvaàs massasseupapelde protagonistada política
nacional.Apoiadonasconquistasjá legalizadasdaRevolução,Cárde-
nasprocurapelaprimeiravez um desenvolvimentoeconômicopela
"terceiravia", no quala classecapitalistao responsabilizapelocresci-
mentodaprodutividadee asmassaspopulares,peloprogressosocial.
Na conciliaçãodessesdois interessesestariao papeldo Estado.Um
testemunhodoavançadopopulismodeCárdenaséo fatodetersempre
defendidoo direito de grevedos trabalhadores,tendo no entanto
negadoaospatrõeso direitodefecharasfábricas.33Ao mesmotempo,
contudo,enquantoo Estado,empenhadonumdispendiosoprograma
de obraspúblicas,se encarregavadasempresasde maisalto risco,
deixandoà empresaprivadaasatividadeseconômicasmaislucrativas.
Na Argentina,asmassastiramPeróndaprisãoem 1945eo
elegempresidenteem 1946,quandoeleinicia um governopopulista
por excelência,que suscitaráo debatemais polêmico.Como nos
primeirospopulismos,Perónpropõeantesdemaisnadaumapolítica
de desenvolvimentoeconômicodirigidapelo único estamentoque
podeconciliarosinteressesemconflito:o Estado.Em 1946,contudo,
os conflitos sociaistinham alcançadotal forçaque o compromisso
entremassase Estadodeveriaser"orgânico",e aí residiráo podere a
ambigüidadeadquirida pelos sindicatos.Além disso, existe no
populismoperonistaumaconcentraçãode cargasimbólicana figura
do caudilho - bem como em sua esposa,Evita - como nunca
225
1,1'
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
houverasobrequalqueroutro líderpopulistadaépoca.Tal carganão
incidiasomentesobreseus"gestos",mastambémsobresuacapacidade
de ressemantizaçãodos temasdispersosdo movimentosociale sua
traduçãoemlinguagempolíticaoficial.O. Landi estudouessaopera-
ção que é fundamentalem todo o populismolatino-americano:a
interpelaçãoàs massastrabalhadorascom a propostade "um novo
sistemadereconhecimentodosatributosdo trabalhador,nomeando-
o de outraforma".34
Depoisdeumtempoemqueaanálisesocialpareciaterdado
o debatepor encerradoe deum esquematismomarxistaqueidentifi-
cava"naprática"todopopulismocomfascismo,osanos80 trazemo
tema de volta à tona, com uma sériareproposiçãodos esquemas.
Chamamosaatençãoparatrêsexemplos.No textodeErnestoLaclau,35
o balançomaisaceitoda renovaçãodo marxismo,a reproposiçãodo
populismoocupaposiçãocentral.No semináriorealizadoem Lima
(OESCO, 1980)sobreo temaDemocraciae movimentopopular,com
algunsdos investigadoresemciênciassociaismaisrepresentativosda
região,o temase converteutambémem um dos eixosdo debate.36
Nessemesmoano,aSociedadeBrasileiradeEstudosInterdisciplinares
deComunicação(Intercom)dedicaseuseminárioanualdeestudosao
tema"Populismoe comunicação"YO queseevidencianesseressur-
gimentodaproblemáticado populismoéumaprofundamudançade
perspectivahistórica.Os processospolíticosdosanos30-60 seviram
enormementereduzidospor umateoriadadependênciaque,aopensar
o Estadocomo meracorreiatransmissorados interessesdos países
hegemônicosimpediaaconsideraçãodoproblemanacionalno quadro
dasrelaçõesdeclasse.Aí seevidencia,também,a "contaminação"da
teoriasocialpor uma atualidadeque hoje devolveaosmovimentos
popularesumavigorosavigência.A mudançadeperspectivahistórica
foi tematizadacomsingularidadepor J. C. Portantiero,paraquemo
que estáem jogo aí é a necessidadede assumir"o desviolatino-
americano":o modocomoasclassespopulareschegama constituir-se
226
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE MASSA ..•
ematoressociais,nãoconformeo rumoclássico,esimatravésdacrise
políticaqueacompanhaosprocessosdeindustrializaçãodosanos30,
criseestaquepõeasclassespopularesemrelaçãodiretacomo Estado,
levando-asa penetrarno jogo políticoantesde terem-seconstituído
emsujeitoscomoclasses.38Istotrazduasconseqüênciasaberrantespara
os "esquemas".Em primeiro lugar, dá-se a constituiçãode um
sindicalismopolítico,que define sua açãopela interlocuçãocom o
Estadomaisdo quecomasempresas,dadoquea políticaeconômica
éo quedetémadecisão;desvioquesetornaaindamaisclaroaosituar-
se a relaçãoentre"o social" e "o político" não entresindicatose
partidos,e sim entremovimentooperárioe movimentosnacionais.
Em segundolugar,surgecomo populismo"umaexperiênciadeclasse
quenacionalizouasgrandesmassase lhesoutorgoucidadania".39Isto
tema seguinteimplicação:seo populismopodeestarpoliticamente
superadoenquantoprojeto estatal,pode aindanão estarenquanto
"fasede constituiçãopolíticadossetorespopulares".Diz-seem geral
que a memóriahistóricaconfundeasanálises,mostrando-nosneste
casoquearelaçãoentreclassessubordinadasepovonãoétransparente,
queexisteum espaçode conflitosquenãocoincide,pelomenosnão
inteiramente,com