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1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA (UNEB) DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO (DEDC) COLEGIADO DE LETRAS IDENTIDADES LÉSBICAS AFRO-BRASILEIRAS NAS NARRATIVAS DE MIRIAM ALVES E ZULA GIBI Camila Sodré de Oliveira Dias Alagoinhas 2014 2 Camila Sodré de Oliveira Dias IDENTIDADES LÉSBICAS AFRO-BRASILEIRAS NAS NARRATIVAS DE MIRIAM ALVES E ZULA GIBI Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Educação (DEDC) do Campus II da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) como requisito obrigatório para obtenção do título de Licenciada em Letras Vernáculas, sob orientação da Profª Doutor Paulo César García. Alagoinhas 2014 3 FICHA CATALOGRÁFICA Bibliotecária: Rosana Cristina de Souza Barretto- CRB: 5/902 D541i Dias, Camila Sodré de Oliveira Identidades Lésbicas Afro – brasileiras nas narrativas de Miriam Alves e Zula Gibi. / Camila Sodré de Oliveira Dias. - Alagoinhas: 2014. 153f. il. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação. Colegiado de Letras. Campus II. Orientador: Prof. Dr. Paulo César García. 1. Lesbianismo na literatura. 2. Escritas de lésbicas brasileiras – História e Crítica. 3. Escritoras lésbicas - Brasil I.Garcia, Paulo César. II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação, Colegiado de Letras. Campus II. III. Título CDD: B86909 CDU: 4 Camila Sodré de Oliveira Dias IDENTIDADES LÉSBICAS AFRO-BRASILEIRAS NAS NARRATIVAS DE MIRIAM ALVES E ZULA GIBI Texto monográfico apresentado e aprovado como requisito parcial obrigatório para obtenção do título de Licenciatura em Letras Vernáculas. Alagoinhas-BA, 24 de Dezembro de 2014 Professor Marcos Bispo dos Santos Coordenador do Colegiado de Letras BANCA EXAMINADORA Profª Doutor Paulo César García Orientador UNEB – CAMPUS II Profª Doutor Arivaldo de Lima Alves UNEB – CAMPUS II Profª Doutora Carla Patrícia Bispo de Santana UNEB – CAMPUS II 5 Dedico este trabalho primeiramente as Geledés; e também, a Carol, a Ruth, a Marlene, a Clô, a Nadir e todas as outras mulheres negras que resistem diariamente ao racismo e a lesbofobia. Axé! 6 Agradeço primeiramente a Deus, por ter me ajudado chegar até aqui, por ter me dado luz e força para caminhar ao longo desta árdua graduação. Aos meus pais Valdir e Iêda pelo apoio e o amor dedicado durante estes anos, longe de casa, com suas orações que nos aproximavam mesmo a quilômetros de distância. Amo vocês, meu herói e minha heroína! A minha querida irmã Cássia por ter tolerado todos os meus estresses durante o curso, até a feitura do TCC. Sua ajuda foi de fundamental importância para eu chegar até aqui, afinal boa parte do trabalho escrevi no seu notebook. Aos meus outros familiares pelo carinho, cuidado, orações e ligações. Ao meu querido orientador, Prof.Dr. Paulo César García pelas orientações, pela paciência, pela dedicação e pelo seu compromisso para com a construção deste trabalho. Muito obrigada, Professor! A minha queridíssima amiga, Juliana Miranda, uma grande companheira na luta das causas feministas. Gratidão pela paciência, pelo amor, pelas orientações, pelas broncas, pelos abraços e beijos. Te levarei para sempre na bagagem da minha existência. Aos meus outros amigos da graduação, não menos importantes, Thais Macedo e Davi Soares, pela sincera amizade durante estes anos de formação universitária. Gratidão ao universo por ter colocado vocês em minha vida! A minha Vó Antônia (Vó Nega) por ter me hospedado um tempo em sua casa para construir este trabalho. Obrigada por todos os seus cuidados, principalmente pelo café que me deixou de pé em vários momentos. 7 No silêncio, cada uma de nós desvia o olhar de seus próprios medos – medo do desprezo, da censura, do julgamento ou do reconhecimento, do desafio, do aniquilamento. Mas antes de mais nada acredito que tememos a visibilidade, sem a qual não podemos viver, não podemos viver verdadeiramente. (Audre Lorde,1984) 8 RESUMO Este trabalho é resultado de uma pesquisa financiada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq), com objetivo de dar visibilidade às narrativas lesboafetivas das escritoras Miriam Alves e seu pseudônimo, Zula Gibi, na coletânea dos Cadernos negros: Contos afro-brasileiros. Para tanto, fizemos a seleção de seis contos, dois de Alves: Abajur (1997) e Amigas (2003); e quatro de Gibi: Caindo na Real (1999), New York (2001), O ônibus (2003) e Noites Cariocas (2007). Com base nestes contos, analisaremos como são retratadas as problematizações que giram em torno dos modos de vida das mulheres marcadas pelo universo cultural e ficcional lésbico. A metodologia aplicada para analisar as narrativas terá a abordagem da Análise Crítica do Discurso (ACD), ao investigar a maneira como os discursos hegemônicos se perpetuam na linguagem. Deste modo, utilizaremos alguns teóricos, dentre eles: Michel Foucault (2010) ao discorrer sobre o discurso e suas instâncias de poder e regulação da sexualidade; Audre Lorde (2009) ao tratar do silenciamento e o empoderamento das mulheres afrolésbicas; Judith Butler (2000) ao questionar a forma como pensamos o sexo, a sexualidade e o gênero. Assim sendo, inicialmente, discutiremos o Cânon e o contra-discurso da Literatura Negra, a (in)visibilidade da lésbica no contexto social – com Adrienne Rich (1993) – repercutindo no âmbito literário. Por conseguinte, no terceiro e quarto capítulo analisaremos as tessituras literárias visando compreender o silêncio das personagens, a afirmação identitária de ser negra e lésbica, dentre outros aspectos que perpassam a subjetividade das mulheres que se amam. Palavras-chave: Narrativas lesboafetivas. Cadernos Negros. Silenciamento. Empoderamento. 9 ABSTRACT This work is a result of a research financed by the Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica,(PIBIC/CNPq)(Institucional Program of Scientific Initiation Schorlaship),with the purpose to promote the lesbian-affective narratives from the writers Miriam Alves, and her pseudonym Zula Gibi, in the collection Cadernos Negros: Contos Afro Brasileiros. This has been done by selecting six short stories, which two of them from Alves: Abajur (1997) e Amigas (2003); and four from Gibi: Caindo na Real (1999), New York (2001), O Ônibus (2003) and Noites Cariocas (2007). Based in this stories, is discussed how are portraited the problematics liked to the lifestyle of the woman represented in this cultural and fictional lesbian universe.The applied method for this analysis is according the Critical Analyse of the Discourse (ACD), exploring the way the hegemonic speech are perpetuated in the writing. For this reason, some theorist were consulted, which were: Michel Foucault (2010), discussing about the discourse and its powers instances and regulation of sexuality; Audre Lorde (2009), when treating about the silencing and empowerment of lesbian black women and Judith Butler (2000), by questioning the way the sex, sexuality and genre are thought. Therefore, initially, are discussed the Canon and the counter-discourse of the Black Literature, the lesbian (in)visibility in the social context – with Adrienne Rich (1993) – reflecting in the literary scope. Consequently, in the third and fourth chapter, is analyzed the literary tessitura aiming the comprehension of the characters' silence, the statement of being black and lesbian, and other issues that permeates the subjectivity of women that love other women. Keywords: Lesbian-affective narratives. Cadernos Negros. Gene Silencing. Empowerment 10 SUMARIO 1 INTRODUÇÃO, 11 2 ALÉM DA ÚNICA HISTÓRIA: DA INVISIBILIDADE À AUTOREPRESENTAÇÃO DA AFROLÉSBICA NA LITERATURA NEGRA, 21 2.1 ALGUMAS ABORGAGENS: CÂNON E SEUS DISPOSITIVOS DE PODER, 21 2.1.2. A Representatividade da Mulher Negra no Discurso Hegemônico, 24 2.2 UMA NOVA VERTENTE: LITERATURA NEGRA, 28 2.2.1 A Produção Textual Afro-feminina, 30 2.2.2. Da Invisibilidade a visibilidade: personagens afrolésbicas na literatura, 32 3 . ESCRITOS HOMOERÓTICOS DE MIRIAM ALVES E ZULA GIBI: ENTRE O SILÊNCIO E A DENÚNCIA DA LESBOFOBIA, 39 3.1 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES, 39 3.1.1. O segredo: Corpos entrelaçados na luminosidade do abajur, 40 3.1.2. Caindo na Real: Jogo de sentimentos entre amigas íntimas, 47 3.1.3. Entre elas: o desejo e o silêncio lésbico desperto em New York, 52 4. AFROLÉSBICAS OUTRAS HISTÓRIAS: MISTICISMO, PODER FEMININO, MILITÂNCIA E ESCOLHAS DE VIDA, 59 4.1 TECENDO OUTRAS LEITURAS,59 4.1.1. Um clã distinto: um encontro de energias, algumas hipóteses, 59 4.1.2. O ônibus: uma passagem para descoberta de outros desejos, 65 4.1.3. Noites Cariocas: I’m lesbian, 71 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 78 REFERÊNCIAS, 81 APÊNDICE, 86 ANEXOS, 88 11 1. INTRODUÇÃO O objeto de estudo deste Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) nasceu de um Projeto de Pesquisa financiado pela CNPq/PIBIC no Ano de 2012-2013, intitulado: Entre corpos negros e o amor lésbico nos contos de Miriam Alves e Zula Gibi, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo César García. Para iniciarmos a discussão, é necessário refletirmos sobre a relevância de pesquisarmos e escrevermos sobre determinado tema no projeto de TCC. Partindo de constructos lesboafetivos1, o objetivo é manifestar a cultura de gênero e da diversidade sexual que envolve os tabus com relação à lesbianidade, os preconceitos, sobressaindo uma postura marcante do sujeito do desejo, ao tratar da mulher negra e sua sexualidade representada nos contos de Miriam Alves/Zula Gibi. Em primeira instância é importante entendermos que, na literatura canônica o corpo2 negro feminino é escrito de um modo hiperssexualizado3, formando um estereótipo4 que refletiu, durante muito tempo, na Literatura Brasileira, ao reforçar discursos preconceituosos. Este corpo era visto como um objeto de prazer, somente, do homem, atribuído as afrodescendentes um valor sexual pautado na heterossexualidade. Quando retratarmos a negritude, abordaremos a mulher negra e a forma essencializada5 no qual se 1Utilizaremos o termo lesboafetivo/lesboafetividade/ lesboerotismo para as relações amorosas entre mulheres. Assim como ao invés do uso do termo homofobia, utilizaremos lesbofobia para referir à discriminação sexual de mulheres lésbicas e conceder suas particularidades. Esta terminologia foi retirada do Trabalho de conclusão de curso de Luana Gaudad (2013) intitulado: A heteronormatividade em dispositivos visuais: Análise de campanhas governamentais de sexualidade para mulheres lésbicas. 2Entendemos o “corpo” partindo das concepções de Simone de Beauvior: “O corpo é também a circunstância de termos de assumir e interpretar esse conjunto de interpretações que nos foram transmitidas. (...) Existir o próprio corpo se torna uma forma pessoal de lidar com a circunstância de termos de assumir e interpretar esse conjunto de normas de gênero que nos foram transmitidas”. (BEAUVIOR, 1980, p.45) 3Utilizamos este termo para designar hipersexualização da mulher negra vista como um corpo disponível, exótico, “cheio de fogo”, “apimentado”, sempre algoz aos discursos racistas. Disponível em:. Acesso em: 14 de out.2014. 4Um estereótipo é uma imagem ou uma ideia aceita comumente por um grupo ou uma sociedade, que apresenta um carácter imutável. Atualmente, o conceito de estereótipo tende mais a referir-se à imagem mental simplificada e com poucos detalhes acerca de um grupo de pessoas que partilham certas qualidades. Costuma ser usado com um sentido negativo ou pejorativo. Os estereótipos mais usuais incluem várias asseverações sobre os grupos raciais e predições de comportamento baseadas no estatuto social ou na riqueza. Na arte e na literatura, os estereótipos aparecem sob a forma de personagens ou situações previsíveis, refletindo os discursos racistas e sexistas que repercutem na sociedade contemporânea. Disponível em:. Acesso em: 14 de out.2014. 5Este termo se refere aos discursos hegemônicos que essencializam o corpo negro considerando apenas as questões étnico-raciais, deixando de refletir sobre a multiplicidade do sujeito. Disponível em: http://porteiras.r.unipampa.edu.br/portais/sisbi/files/2013/07/Corpos-2011.pdf>. Acesso em: 13 de out.2013. 12 propaga esta figura nos discursos centralizadores, como se a mesma só tivesse uma única identidade, a racial. Entretanto, se há uma literatura que deturpa a imagem deste sujeito feminino, surge outra vertente literária que busca subverter estes discursos racistas, que é o caso dos Cadernos Negros, uma coletânea de textos escritos pela comunidade negra que retrata em suas narrativas o sofrimento, a memória, os desejos e a resistência não só de homens negros, mas de mulheres negras. Poucas são as pesquisas dirigidas para a literatura sobre a mulher negra que tratam da sexualidade feminina. Assim sendo, neste trabalho visamos dar visibilidade a lesbianidade das afrobrasileiras6 nos contos de Miriam Alves e Zula Gibi, escritoras integrantes do Quilombo hoje Literatura7, que tem publicado desde 1985 o amor, o medo, os desejos entre mulheres negras e a reação que esses relacionamentos lesboafetivos despertam na sociedade através da ficção literária. Miriam Aparecida Alves nasceu em São Paulo em 1952. É assistente social e professora. Começou aescrever aos onze anos, conforme relatou para a revista Callaloo1, mas só conseguiu publicar seus textos anos mais tarde, após conhecer os poetas do grupo Quilombhoje Literatura, do qual se tornou integrante durante o período entre 1980 e 1989. Autora dos livros: Momentos de Busca (1983), Estrelas do dedo (1984), Mulher Mat(r)iz: Prosas de Miriam Alves (2011), entre outros. Ao longo dos trinta anos de existência da série Cadernos Negros, participou de diversos números, seja de poesia ou de contos afro- brasileiros. Além disso, seus trabalhos estão presentes em diversas antologias e são objetos de teses e dissertações em universidades dentro e fora do Brasil. A escritora vem participando de debates e palestras vinculadas às questões da afrodescendência8, seja no campo literário ou social. A produção textual de Miriam Alves, Zula Gibi e outros escritores negros, consistem “em soltar a voz encarcerada, tocar em assuntos polêmicos e tabus “falar do não dito, pela perspectiva de quem nunca pôde dizer” (FIGUEIREIDO, 2009, p.43). Interessa-nos possibilitar o diálogo que reflita práticas de lesbianidade na narrativa de Miriam Alves, e seu pseudônimo Zula Gibi, dentro do suporte crítico da 6 O termo designa a fusão entre a descendência africana de mulheres negras com a identidade brasileira. Desse modo, neste trabalho representa a mulher negra brasileira 7O Quilombhoje Literatura é grupo paulistano de escritores, foi fundado em 1980, por Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e outros, com o objetivo de discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura. O grupo tem como proposta incentivar o hábito da leitura e promover a difusão de conhecimento e informações, bem como desenvolver e incentivar estudos, pesquisas e diagnósticos sobre literatura e cultura negra. Dados retirados da página do Quilombhoje Literatura, Disponível em: <www.quilombhoje.com.br>. 8Biografia retirada da página Literafro. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/107/dados1.pdf>. 13 análise do discurso. No primeiro momento da pesquisa, fizemos um levantamento de textos teóricos que abordassem a homossexualidade, a mulher negra e a literatura negra. Por conseguinte, entramos em contato com a Escritora Miriam Alves, por meio de redes sociais, para termos acesso aos contos publicados em cinco edições dos Cadernos Negros: Abajur (1997)9, Caindo na Real (1999)10, New York(2001)11, O ônibus (2003)12, Amigas (2003)13 e Noites Cariocas (2007)14. A maioria destas produções textuais não foram republicadas, apenas o conto Abajur foi publicado, novamente, no livro Mulher Mat(r)iz15. Sendo assim, os textos anexados são raríssimos e trazem histórias ficcionais de tirar o fôlego, pois nos envolve em uma trama de relações intensas entre mulheres. Desse modo, as narrativas enunciam a fala da afrolésbica16 no discurso literário, ao tecer em seu emaranhado discursivo uma nova vertente literária com a representação de personagens lésbicas que subvertem o padrão da heteronormatividade17. A dissidência política e sexual ilustra um quadro de relações movidas por lesboafetividade entre as protagonistas, o que pode render análises críticas importantes na instância atual da literatura brasileira, porque a partir dessas histórias ficcionais poderemos perceber as nuances que envolvem estes sujeito identitários. Isso equivale a refletir o estereótipo de marginalização tripla: ser mulher, negra e lésbica. Para tanto, proporemos leituras interpretativas que conduzam o trabalho a enunciar como esse grau de relacionamentos subjetivos na cultura ocidental se articula na literatura de Miriam Alves/ Zula Gibi ao representar as identidades sexuais. É importante salientar desde já que em defesa da sua integridade física, e como 9ALVES, Miriam. Abajur. In: : Cadernos Negros, 20: contos afro-brasileiros.Org. Quilombhoje. São Paulo: Quilombhoje, 1997. 10GIBI, Zula. Caindo na Real. In: Cadernos Negros,22: contos afro-brasileiros.Org. Quilombhoje. São Paulo: Quilombhoje, 1999. 11Idem. New York. In: : Cadernos Negros, 24: contos afro-brasileiros.Orgs. Esmeralda Ribeiro, Marcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 2001. 12GIBI, Zula. Ônibus. In: : Cadernos Negros, 26: contos afro-brasileiros.Org. Quilombhoje. São Paulo: Quilombhoje, 2003. 13ALVES, Miriam. Amigas. In: : Cadernos Negros, 26: contos afro-brasileiros.Org. Quilombhoje. São Paulo: Quilombhoje, 2003. 14GIBI, Zula. Noites Cariocas. In: : Cadernos Negros, 30: contos afro-brasileiros.Org. Quilombhoje. São Paulo: Quilombhoje, 2007. 15ALVES, Miriam. Mulher Mat(r)iz-Prosas de Miriam Alves. Belo Horizonte: Nandyala, 2011. 16 Termo utilizado para designar a mulher negra (afro) que tem a orientação sexual lésbica. 17O termo “heteronormatividade” foi utilizado primeiramente por Michael Warner (1991), em uma obra de discussão da Teoria Queer. Posteriormente, a feminista Adrienne Rich (1993) publicou um artigo em que fazia referência a esse conceito, tratando por heterossexualidade compulsória. Que evidencia que o “normal” é a relação afetiva entre um homem e uma mulher, repudiando as práticas homossexuais e lésbicas. 14 forma de combater a lesbofobia, Miriam Alves criou pseudônimo Zula Gibi para publicar alguns de seus contos com a temática do amor entre mulheres. Ao abordarmos as narrativas destas escritoras veremos nos capítulos seguintes que cada uma delas tem suas particularidades, mesmo se tratando da mesma pessoa. Assim, compreenderemos questões centradas nas identidades sexuais, modos de vida e histórias de mulheres marcadas pelo universo cultural e ficcional. Partindo da seleção dos contos, analisaremos as representações das personagens utilizando como fundamentação teórica o procedimento da Análise Crítica do Discurso (ACD). Este procedimento é uma corrente social desenvolvida por Fairclough (2003, 2008), que investiga a maneira como os discursos hegemônicos se perpetuam na linguagem, reconhecendo, ao mesmo tempo, este âmbito discursivo como um locus onde as mudanças sociais podem ocorrer. A hegemonia e a ideologia presentes no discurso expressam bases fundamentais para a sustentação do poder. No entanto, como a hegemonia é um ponto instável e, portanto, a qualquer momento a dominação pode ser rompida, visto que a relação de opressão é um espaço de luta entre aqueles/as que exercem o domínio e aqueles/as que são dominados/as no ideal de “adestramento das camadas”, a relação de dominação é exercida, principalmente, no campo ideológico, onde o sujeito constrói sua realidade e seus significados. Segundo Normam Fairclough (1998), a origem da produção e interpretação textual dependem de fatores socio-culturais, ou seja, valores e paradigmas sociais, que deixam “vestígios” tanto na elaboração de um texto, quanto na interpretação do mesmo. Partindo destes pressupostos, analisaremos os contos entendendo o discurso literário como prática social capaz de reproduzir mecanismos de controle sobre os corpos, mas também através do discurso podemos transformar a realidade dominante, ou ao menos questioná-las. Dentro desta discussão, não tem como falarmos de discurso sem falar do poder embutido nesta prática que está relacionada com a produção, distribuição e consumo do texto. Ao pensarmos em nosso objeto de estudo, as narrativas literárias que tematizam afrolésbica, notamos a ausência, a invisibilidade, a exclusão destes discursos no espaço literário. Portanto para pensarmos sobre determinado aspecto, Michel Foucault (2006) diz que a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada e redistribuídapor certo número de procedimentos, entre eles, de exclusão e interdição, que têm como função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. Por mais que aparentemente o discurso seja visto como pouca 15 coisa, as interdições que o atingem revelam logo rapidamente sua ligação com o desejo e com o poder. Ao tratar da literatura, Michel Foucault (2006) afirma que toda sociedade possui narrativas contadas, variadas e perdidas. Alguns destes textos se conservam porque há uma espécie de julgamento sobre sua riqueza e relevância para a sociedade. De acordo com a inferência de Michel Foucault, podemos perceber a importância do texto literário e como estas narrativas estão relacionadas com a hegemonia dominante, ao exercer dispositivos de controle do que pode e o que não pode ser dito ou narrado. Haja vista que o discurso literário tem um caráter coercivo ao formular determinados tipos de enunciados, definindo gestos, comportamentos, as circunstâncias e todo um conjunto de signos que devem acompanhar o discurso. Com base nessas concepções, Michel Foucault (2006) dialoga com o discurso social, evidenciando que as “sociedades de discurso” têm a função de conservar ou produzir discursos, fazendo-os circular em um espaço fechado, ao distribuí-los segundo regras restritas. Com a construção literária do Brasil não foi diferente. Explicitamos este debate foucaultiano para entendermos os diversos discursos que perpassam a identidade da protagonista negra nas narrativas nacionais e como é importante desconstruir e ressignificar essa ordem discursiva. O que veremos, no primeiro capítulo, com os clássicos literários18 O cortiço19 e Vítimas Algozes20que representam o corpo da mulher negra de maneira objetificada sexualmente e de mentalidade pervertida. Ao mesmo tempo em que Miriam Alves e Zula Gibi subvertem em suas escritas estas características depreciativas do sujeito negro, ao escrever um novo corpo e novo sentir afro-feminino21. Entretanto, por muito tempo a escrita era uma forma de dominação social, poucas pessoas tinham acesso à linguagem escrita, principalmente as mulheres. Partindo deste pensamento, a linguagem também é um dos mecanismos que hierarquiza o poder, se encarregando de representar uma sociedade de acordo com as significações criadas em 18 Os clássicos O cortiço e Vítimas Algozes foram escolhidos pensando na forma como a mulher negra é representada nestas obras. Há na Literatura Brasileira uma vastidão de textos literários canônicos que representam a afro-brasileira, entretanto, estes foram escolhidos por conta de um Trabalho desenvolvido na graduação na disciplina Cânones e Contextos na Literatura Portuguesa, relacionando os clássicos literários com as produções de escritoras negras. 19Obra do escritor Aluísio de Azevedo considerado o pioneiro do Naturalismo no Brasil, O cortiço foi sua produção mais relevante para os críticos literários. 20Um romance “abolicionista” do escritor Joaquim Manoel de Macedo foi escrito na segunda metade do século XIX, em 1869, 19 anos antes da Abolição da Escravidão. O romance antiescravista de Macedo tem como objetivo convencer os seus leitores de que é preciso libertar os escravos não por razões humanitárias, mas porque os cativos, sempre imiscuídos nas casas-grandes e sobrados, introduzem a corrupção física e moral no seio das famílias brancas. Por isto trago entre aspas o abolicionista. 21Afro-feminina ( mulher negra) neste trabalho o termo será utilizado para designar a negritude(afro) e o gênero (feminino), ao pensarmos nas representações das mulheres negras nos contos e também na produção literária negra feita por escritoras em uma Literatura Afro-feminina. 16 torno de uma determinada cultura. Surge-nos a pergunta: como é contada essa narrativa cultural? Um dos dispositivos é a literatura, e quando falamos em literatura nos referimos à publicação escrita, para deixar bem evidente. Para Roberto Reis, em seu texto intitulado Cânon: “O espaço da leitura é cultura, entendida esta como conjunto de textos – contexto – de diversa natureza, como dimensão simbólica que superpomos à realidade e que funciona como mediação do real (REIS, 1992, p.69)”. Assim sendo, o saber e a interpretação são constituídos ou foram constituídos a partir das condições históricas e ideológicas de determinado momento, posição social, de classe e da instituição. Dessa maneira, é quase impossível pensarmos nos sujeitos identitários – afrolésbicos – desvinculados dos discursos de poder e dominação. É evidente o lugar destinado à personagem afrobrasileira, estando fadada uma representação estereotipada fundida entre a sexualidade, a perversão, a imoralidade herdada de suas irmãs de cor. Nessa tríade de gênero, sexualidade e raça, as mulheres negras foram estigmatizadas na maioria das obras canônicas, na literatura brasileira. Sobre a questão de estereótipo, no livro O que é negritude, Zilá Bernd (1988) afirma que o estereótipo é uma representação generalizada de algo ou alguém, imprimindo uma “verdade” que é considerada universal, partindo da análise de uma só situação observada em apenas um indivíduo; complementa que pelo fato de grande parte da população não obter o conhecimento científíco acaba reproduzindo as ideologias racistas e preconceitos em torno do sujeito negro. Isto posto, as narrativas literárias do século XIX, em sua grande maioria, estereotipou a personagem afro-feminina, sendo que quem lhe atribuí a voz na narrativa é um homem branco, que segue o sistema patriarcalista, racista, heterossexista22 e eurocêntrico. De acordo com bell hocks (1995), o sexismo e o racismo, sofridos no séc. XIX pelos nossos ancestrais repercutiram durante muito tempo na representação da mulher negra, imprimindo uma consciência cultural coletiva, partido da ideia de que a negra está no mundo somente para servir. Portanto, questionaremos estas “verdades”, visando restituir ao discurso seu caráter de acontecimento e suspender a soberania do significante nos textos literários pautados pela estereotipização. Pretendemos revelar as vozes que foram silenciadas em um processo violento de invisibilização nos clássicos literários. Em Arqueologia do Saber, Michel Foucault (2005) traz a possibilidade de resistir aos procedimentos de controle do 22A crença na superioridade inerente de um modelo de amor sobre todos os outros e então seu direito ao domínio. 17 discurso em que os sujeitos podem construir mecanismos capazes de “burlar” o sistema que regula a ordem do discurso e que impede sua inserção e proliferação discursiva. Assim, esse movimento de transgressão configura um discurso outro, o contra-discurso. Retomando o que falamos anteriormente, nosso objeto de estudo é marcado por uma tripla opressão identitária (ser mulher, negra e lésbica), pensando nisto, não dá para separar essas identidades já que essa tríade forma o sujeito que será aqui estudado. Ao tratar deste assunto, utilizaremos como embasamento téorico a concepção de identidade fragmentada. Segundo Stuart Hall (2006), o sujeito não é composto de uma única identidade, mas de várias identidades, às vezes até contraditórias ou não resolvidas e, complementa que as “identidades não são unificadas ao redor de um eu coerente.” (p.13). Baseando-se na perspectiva de Stuart Hall, entendemos que a mulher negra não pode ser vista de modo essencialista, abrangendo apenas as questões raciais, mas compreendendo suas pluralidades identitárias. E não há como lutar por uma identidade estritamente racial e esquecer-sedas outras identidades que constituí o “eu”. Pois não há hierarquização de opressões, como afirma a ativista negra e lésbica Audre Lorde (2009) dentro da comunidade lésbica eu sou negra, e dentro da comunidade negra eu sou lésbica, “(...)Não há hierarquias de opressão.[...] Eu não tenho como acreditar que liberdade de intolerância é direito de apenas um grupo particular.” (LORDE, 2009, p.2). Vislumbrando todas as identidades que podem formar a mulher negra, faremos um recorte centrado no sujeito lésbico, não deixando de lado a questão racial, por tratarmos, como já falamos de uma tríade opressiva. Se para a mulher branca é desafiador romper o silêncio e assumir a lesbianidade, para a mulher negra é mais problemático, pois entra em foco também a raça e as vezes até classe econômica. Para bell hooks23 (1995), a imagem das mulheres negras, mais que as brancas, foram historicamente construídas numa expressão altamente heteronormativa. Combatendo o discurso sexista na Literatura Nacional por escrever a personagem negra de forma estigmatizada, a Literatura Negra24 23bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norteamericana, utiliza desta nomenclatura para assinar suas obras em homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó. O nome é grafado em letras minúsculas. 24A Literatura Negra é assim autonomeada por parte de seus produtores na década de 1970 e, posteriormente, denominada de Literatura Afrodescendente por críticos, estudiosos, acadêmicos e escritores negros. É uma manifestação literário-cultural que foi adquirindo fortes feições de movimento literário. Em meados dos anos 1980, passou a ter maior visibilidade nos discursos, teses e livros acadêmicos.(...) A expressão “Literatura Negra” só passou a ser usada no Brasil com regularidade a partir da década de 1970. Antes disto, já era utilizada em publicações de antologias “em vários países (e), está ligada a discussões no interior de movimentos que surgiram nos Estados Unidos e no Caribe, espalharam-se por outros espaços e incentivaram um tipo de literatura que assumia as questões relativas a identidade e as culturas dos povos africanos e 18 vem subverter o sistema literário ao possibilitar outras narrativas como o contradiscurso de resistência ao patriarcado, ao racismo, ao sexismo, dentre outras formas de opressão. Por isso, escolhemos a escritora Miriam Alves que verbaliza e compartilha outras histórias e vivências das mulheres negras. Para discorremos sobre a homossexualidade feminina, nosso embasamento teórico estará sustentado na História da Sexualidade: o uso dos prazeres, do Michel Foucault (2012). Pois, segundo seus estudos, há três eixos que se correlacionam constituído a sexualidade, são eles: “a formação dos saberes a que ela se refere, o sistema de poder que regulam sua prática e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade” (FOUCAULT, 2012, p.10-11). Isto posto, analisaremos as identidades das personagens vinculadas com as ideias foucaultinas sobre a sexualidade, ao pensarmos na disciplinarização e “docialização” dos corpos, nas regras de conduta e moralidade dos comportamentos, sustentada por discursos de poder e dominação da liberdade sexual dos indivíduos e seus modos de sujeição. Visando estas problematizações, utilizaremos O corpo educado: pedagogias da sexualidade, composto de seis artigos de diversos teóricos da sexualidade, organizado por Guacira Lopes Louro (2000) refletindo sobre as morais de conduta ao tratar das sexualidades “desviantes” e os dispositivos de “verdade” com relação à prática sexual. Também, neste mesmo livro de Louro composto de textos teóricos, Jeffrey Weeks, em O corpo e a sexualidade, afirma que a sexualidade não é um fenômeno biológico somente (o corpo imperando como instinto), ela é social e histórica. Assim, “nossas definições, convenções, crenças, identidade e comportamentos sexuais não são resultados de uma simples evolução: eles têm sido modelados no interior de relações definidas de poder” (WEEKS, 2000, p.28), ou seja, sempre ditando as formas apropriadas para regular nossas atividades sexuais. Judith Butler (2000) no último artigo, da coletânea, intitulado Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do sexo, inicia com a seguinte indagação: “Por que nossos corpos deveriam terminar na pele?” (BUTLER, 2000, p.110). Assim, a autora questiona as formas de poder e a materialização imposta ao corpo, envolta de um afrodescendentes”(Lima, 2006, p.11). Ao ser assumida pelos escritores negros brasileiros, somou-se também, à denúncia da hipocrisia da “democracia racial” e seus mecanismos, nada sutis, de discriminação racial em todos os níveis de ações sociais. Inclusive, a seleção excludente envolvendo quais os autores devem ser lidos, quais os conteúdos de textos devem fazer parte dos programas escolares e a indicação de leituras nos veículos especializados, nos quais quase nunca figuram autores afrodescendentes com conteúdos que questionam a propalada harmonia entre as raças no Brasil (ALVES, 2010, p.7-8). Assim sendo, promove e defende o discurso, a Literatura Negra humaniza o personagem negro e a personagem negra. 19 simbólico heterossexual (melhor dizendo, heteronormativo), o que acaba produzindo um domínio de corpos/objetos, um campo de deformação, deixando de lado o sentido plenamente humano. Assim sendo, a fundamentação da pesquisa sobre a homossexualidade feminina ganha uma dimensão significativa nos textos de Miriam Alves e Zula Gibi, ao perceber as fronteiras desse conhecimento que se abrem, em se tratando do universo plural, provocativo e nutrido pela diversidade cultural. A partir dos textos teóricos vistos até o momento, nossa finalidade é estudar a literatura pelo aspecto crítico e menos centralizador. Promover as análises sobre esta temática é desafiador, porque no corpus textual destas autoras, Miriam Alves e Zula Gibi, estaremos diante de narrativas que mostram os desafios do sujeito lésbico, começando pela descoberta da sexualidade lésbica, depois o silenciamento destas identidades sexuais, até o erotismo nas relações entre mulheres. Não é um assunto fácil de desenvolver, pois este tema ainda é tabu na sociedade e também na literatura brasileira. Traçaremos um plano de análise metodológica, tendo como ponto de partida, a experiência do sujeito lésbico, das personagens, nas prosas de ficção de Miriam Alves e Zula Gibi, discutindo os seguintes pontos: como a afrolésbica ocupa outro lugar de fala ao fugir dos modelos ditos femininos (exemplos: casar, ser mãe) e não reproduzir os moldes da família patriarcal? Como essas histórias são construídas e de que maneira subverte os paradigmas sociais contemporâneos? Levaremos em consideração: o despertar do desejo homoerótico, a dominação masculina (a repressão das identidades lésbicas na figura do marido), a conservação da família monogâmica, o racismo, a subjetividade da lésbica no texto literário, como os contos retratam as tensões e tesões das relações lesboafetivas; por que as identidades lésbicas são tratadas como segredo nos enredos, questionando e resistindo ao status quo socialmente padronizado. Ao tratarmos da invisibilidade e do silenciamento da lésbica negra, traremos uma discussão tecida por Audre Lorde (2006) e Jurema Werneck (2007). Nestes contos serão revelados aspectos tocantes da lesboafetividade, todos os pontos citados estão presentes nas personagens fictícias. Portanto é importante questionarmos estas problemáticascomo um ato político literário. No próximo capítulo, abordaremos o cânon e seus dispositivos de poder, discorrendo sobre a forma estereotipada que a mulher negra é representada nestes discursos literários canonizados;evidenciando uma nova vertente literária (Literatura Negra), onde o homem e a mulher negra ganham voz e rebatem os discursos racistas tecidos sobre suas 20 identidades. Faremos uma abordagem sobre a autoria feminina negra e a presença da afrolésbica no âmbito social e literário. Por conseguinte, no terceiro capítulo, realizamos a análise de três contos que tematizam o amor entre mulheres: Abajur, Caindo na Real e New York. Ao revelar as práticas discursivas do homotexto, refletindo e questionando o silenciamento das identidades lésbicas na trama, estabelecendo uma análise crítica do discurso ao perceber as problematizações que giram em torno da homossexualidade feminina da ficção à realidade, desde a repressão sexual a transgressão dos modelos heteronormativos. No quarto capítulo, trabalhamos com mais três contos de duas edições dos Cadernos Negros: O ônibus, Amigas e Noites Cariocas. Nestas narrativas, demos visibilidade à relação entre iguais, problematizando a descoberta da sexualidade das personagens, refletindo sobre o “corpo estrangeiro” (na prosa: Noites Cariocas, onde as mulheres assumem sua orientação sexual em outro país) e também questões da desigualdade salarial entre homens e mulheres. Teremos espaço também para outras especificidades, entre elas; a militância negra (no conto: O ônibus) e a subjetividade da protagonista-narradora. Analisando como essas mulheres que se amam(afrolésbicas) são vistas nos contextos sociais, e até que ponto os discursos de poder e regulação das sexualidades, presentes na sociedade, estão nas tessituras literárias das escritoras. Por último, a conclusão, o apêndice com uma parte da conversa com a escritora Miriam Alves e, o anexo com os contos que serão analisados neste trabalho. 21 2. ALÉM DA ÚNICA HISTÓRIA: ALÉM DA ÚNICA HISTÓRIA: DA INVISIBILIDADE À AUTOREPRESENTAÇÃO DA AFROLÉSBICA NA LITERATURA NEGRA Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, reconquistamos um tipo de paraíso. -Chimamanda Adiche 2.1 ALGUMAS ABORGAGENS: CÂNON E SEUS DISPOSITIVOS DE PODER Para Roberto Reis (1992), o conceito de cânon implica um processo de seleção (exclusão), e desta forma não pode se desvincular da questão de poder. Os encarregados de selecionar determinados textos tem a autoridade para fazer de acordo com seus interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc.). Encontramos no cânone literário os pilares básicos que sustentam o edifício dos saberes ocidentais, tais como o patriarcalismo, o arianismo e a moral cristã. No que diz respeito as obras canonizadas na Literatura Brasileira, em sua grande maioria, estamos diante de uma segregação, ou seja, de uma escassez de outros seguimentos da pirâmide social, entre eles: mulheres, negros e homossexuais. Não restando dúvidas que existe um processo de escolha e exclusão atuando na canonização de escritores e obras, ao estabelecer hierarquias rígidas no âmbito social. Funcionando assim como ferramenta de dominação ao recalcar os escritos e segmentos culturalmente marginalizados e politicamente reprimidos. Segundo Roberto Reis: Uma indagação do cânon tampouco deve ser apartada de toda uma tendência, nesta época dita como pós-moderna, de colocar entre parênteses alguns dos alicerces da cultura ocidental: a metafísica, o racionalismo, o humanismo, o logocentrismo, o falocentrismo, o patriarcalismo, o etnocentrismo, o capitalismo, o colonialismo, o imperialismo, a hegemonia burguesa, o arianismo, o racismo, a homofobia, os mitos do Estado, da objetividade, da ciência, do progresso, da tecnologia, a moral judaíco-cristã. Todos estes saberes serviram para assegurar a dominação do Ocidente,do branco, do homem, das classes privilegiadas sobre outras culturas, etnias, grupos sociais, sexualidades (REIS, 1992, p. 74-75) 22 Podemos perceber, a partir das citações acima, que o processo de canonização não acontece de forma isolada, pois leva em consideração a sistematização e organização dos grupos responsáveis por sua formação, refletindo os interesses e valores de classes dominantes. Aqui, não propomos desvalorizar o cânone literário e sim tornar visíveis os textos que foram invisibilizados pelo cânon, ao longo do processo de construção da Literatura Brasileira. O crítico literário Afrânio Coutinho (1976) sustenta que através das obras literárias tomamos contato com a vida nas suas verdades eternas comuns a todos os homens e lugares, porque são verdades da mesma condição humana. Em contraponto, Jaime Ginzburg (2008), em seu artigo O valor estético: entre a universalidade e a exclusão, faz uma crítica ao pensamento de Afrânio Coutinho ao declarar que essas verdades eternas podem coincidir, propositalmente, com o reforço de recalque da violência histórica contribuindo para as condições de desigualdade e exclusão ao silenciar outras vozes de diversificados segmentos sociais que historicamente não tiveram direito à manifestação no campo das letras. Assim sendo, o cânone literário é composto de obras valorizadas, “o valor é uma atribuição historicamente construída” (GINZBURG, 2008, p.103). Pautando estas problematizações, fica evidente que a hierarquia literária existente no Brasil era também uma hierarquia social que ao longo de sua formação, na primeira metade do séc. XIX, excluiu muitos movimentos sociais dando espaço apenas às camadas burguesas da sociedade, apagando e silenciando muitas vozes em um processo contínuo e violento. Chimmanda Adiche25, no artigo O perigo da única história, retrata como é perigoso conhecermos somente um lado da história, pois em cada fato narrado perpassam discursos de poder e portanto de dominação. Segundo a autora: Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com "em segundo lugar". Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com achegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e 25 Chimamanda Adichie é uma das principais escritoras nigerianas da atualidade. É autora de poemas, contos e romances. Seu último livro, “Americanah”, foi apontado pelo jornal New York Times como um das dez melhores obras de 2013. 23 você tem uma história totalmente diferente.26 Podemos correlacionar “as verdades eternas” com “a história definitiva” e perceber o perigo de “uma única história” contada e como estes discursos literários resultaram em repressões sociais, desigualdades, vinculada à uma estática literária de conflitos históricos de exclusão. Para Roger Chartier: Todo o dispositivo que visa criar controle e condicionamento segregar tácticas que o domesticam ou o subvertem; contrariamente, não há produção cultural que não empregue materiais impostos pela tradição, pela autoridade ou pelo mercado e que não esteja submetida às vigilâncias e às censuras dequem tem poder sobre as palavras ou os gestos. (CHARTIER, 2002, p.137). A citação de Roger Chartier reforça o que falamos, um desses dispositivos de controle é a literatura. Nas obras produzidas no Séc. XIX o que vemos é um homem branco falando pela mulher branca, o homem branco falando pela mulher negra (escrava), o homem branco dando voz aos indígenas, e assim sucessivamente. Os escritores canônicos construíram, por muito tempo, discursos homogeneizantes com relação ao nosso objeto de estudo, a mulher negra e lésbica, ao domesticar seus corpos utilizando em suas produções literárias a violência histórica sofrida no período da escravidão e pós-escravidão. Dessa forma, de acordo com estudos realizados, a figura feminina negra na literatura canônica27 é vista de maneira sexualizada e animalizada, formando estereótipos que reforçaram discursos preconceituosos. O corpo da mulher negra era visto como objeto de prazer do masculino e, também, era atribuído a estas mulheres apenas o desejo 26 Palestra “O perigo da história única” concedida a TED (Technology, Entertainment, Design). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc>. 27 Segundo Eduardo Assis Duarte (2009) Sobre o cânone literário, reportam-se às imagens da personagem oriunda da diáspora africana em certos aspectos animalizadas. Tomando a imagem da mulher negra, sobressaem dados estereotipados que se presentificam muitas vezes na literatura brasileira quando refletem a posição da afro-feminina como apenas interligada a objetificação do corpo. Ou seja, a mulher negra introduz no imaginário masculino o paradigma de sensualidade e desejo sexual. Recomendamos, para adentrar mais profundamente ao assunto, o artigo “Mulher marcadas: literatura, gênero, etnicidade” de Eduardo Assis Duarte. Disponível em: . Data de acesso: 20/05/2012. Como aborda Stuart Hall no livro “Das Diásporas: Identidades e Mediações Culturais” que enquanto os traços brancos, europeus, ocidentais e colonizadores ganhavam ascendência no processo histórico-cultural, o negro “africanos, escravizados e colonizados, dos quais havia muitos, sempre foram não-ditos, subterrâneos e subversivos, governados por uma "lógica" diferente, sempre posicionados em termos de subordinação e marginalização. As identidades formadas no interior da matriz dos significados coloniais foram construídas de tal forma a barrar e rejeitar o engajamento com as histórias reais de nossa sociedade ou de suas "rotas" culturais” (HALL, 2003, p. 41-42). 24 heterossexual. O dispositivo literário manteve o controle, condicionando e docializando o corpo negro feminino com a intenção de colocá-los numa esfera de inferiorização diante da sociedade. A mulher negra estava condicionada a uma trajetória histórica com a inferioridade, entre estas: i.) uma suposta essência escrava; ii.) desonestidade e deliquência; iii.) moradia precária; iv.) deprovação moral; v.) falta de religiosidade; vi.) falta de urbanidade, falta de educação ou analfabetismo (BEZERRA, 2007, p.30)28 2.1.2 A Representatividade da Mulher Negra no Discurso Hegemônico O colonialismo, como modelo de dominação e exploração imposto, implicou no desenho de uma cartografia global do poder, na concentração mundial de recursos, no racismo e na hierarquização étnico-racial dos povos, na hierarquização das relações de gênero –a partir de uma lógica patriarcal – e na afirmação da heteronormatividade,no campo da sexualidade. Segundo Maria Giacomani (1988), em uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil, os discursos sobre este sujeito emergiram baseando-se na mulher escrava. Na época da escravidão essas mulheres eram violentadas por senhores de engenho, trabalhavam nas lavouras, nas cozinhas da casa grande durante o dia e à noite serviam aos seus patrões, obrigatoriamente, com seu sexo. Esta violência histórica tem marcado os corpos afro-femininos até os dias atuais, contribuindo para formação identitária destas mulheres. Como afirmam: Enquanto as sinhazinhas brancas tinham como imposição manter a virgindade como um dos pressupostos da pureza, as mulheres negras vivenciavam a violência sexual cometida pelo senhor de escravo e pelo capataz, tanto no espaço 28Apud GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. The misdeventures of nonracialism in Brazil, 2001, p.165- 166. 25 doméstico como no campo, ou seja, no local destinado à execução de tarefas na época em que reinava no Brasil o escravismo como forma de divisão de trabalho. (ALVES, 2010, p.62) (…) pois a negra é coisa, pau para toda obra, objeto de compra e venda em razão de sua condição de escrava. Mas é objeto sexual, ama de leite, saco de pancada das sinhazinhas, porque além de escrava é mulher. Evidentemente essa maneira de viver a chamada ‘condição feminina’ não se dá fora da condição de classe (...) e mesmo de cor. (GIACOMINI, 1982) Os fragmentos acima expõem qual era a situação da mulher negra durante o período escravocrata, ao retratar as violências sexuais sofridas e como estes corpos eram vistos como disponíveis para qualquer um, porque a negra é vista como mercadoria social. Estas marcas históricas resultaram na representação estereotipada deste sujeito em diversificados âmbitos da arte ficcional, dentre eles na literatura, resultando também na hierarquização de gênero, raça e sexualidade presentes na sociedade ocidental. Quando trazemos a baila estes argumentos, não tem como desvinculá-los dos discursos de poder embutidos nas questões raciais, de gênero e sexualidade. Segundo Cuti (2010), estes discursos repercutiram nas personagens negras da literatura brasileira, porque os descendentes escravizados são utilizados como temática literária, predominantemente, pelo viés do preconceito e da comiseração. A escravidão havia coisificado os africanos e sua descendência. A literatura, como reflexo e reforço das relações tantos sociais quanto de poder, atuara no mesmo sentido ao caracterizar as personagens negras, negando-lhes complexidade e, portanto, humanidade. Como reitera bell hooks (1995), em seu artigo Intelectuais Negras, essas representações incutiram na cabeça de todos que as negras eram só corpo, sem mente. A aceitação cultural dessas representações continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos como “símbolo sexual”, os corpos femininos negros são postos numa categoria, em termos culturais, reconhecidas como distante da vida mental, ou seja, não vistas como intelectuais. Partindo destes pressupostos teóricos podemos pensar que a identidade da mulher negra passou a ser construída no período colonial, mantendo intactas as relações de gênero e sexualidade, pautada na negritude, que ainda se faz presente até hoje. A imagem que temos da afrodescendente na literatura canônica, em sua maioria, é da escrava, estéril, mãe preta, heterossexual e disposta a satisfazer o desejo de seus donos29. Esses constructos discursivos estabelecem um único sentido no que tange à 29Trecho retirado do caderno de anotações de uma fala da escritora Conceição Evaristo (2011) durante uma 26 representação da mulher negra, não evidenciando o lado dos seus desejos, amores, lutas e ancestralidade. Guacira Lopes Louro (2010) evidencia que muitas vezes tomamos o “negro” de um modo essencialista, como se só tivesse o atributo racial, entretanto “negro (a)” adquire diferentes sentidos políticos, culturais em contextos outros. No âmbito do cânon literário não foi diferente, o que notamos nasleituras vinculadas às escolas e às universidades é o apagamento da diversidade sexual, uma vez que a mulher negra é marcada por uma heterossexualidade compulsória30. Quando pensamos nesta personagem nas narrativas nacionais, lembramo-nos de: Tia Nástacia31, Lucinda, Escrava Bartoleza, das morenas ardentes e escravas dóceis e manipuláveis de José de Alencar, da mulata boa de cama de Gilberto Freyre, ao alegar que a miscigenação no nosso país ocorreu de modo amigável entre negras e portugueses, com relações sexuais consentidas de ambas as partes e não por meio da violência dos seus corpos (estupros), dentre outras poucas, que se fazem presentes nos clássicos literários. Nenhuma dessas mulheres assume uma identidade lésbica, pelo contrário, têm as características que condicionam e essencializam estes sujeitos. Vejamos: A filha da mãe-fera era uma vítima da opressão social, uma onda envenenada desse oceano de vícios obrigados, de perversão lógica, de imoralidade congênita, de influência corruptora e falaz desse monstro desumanizador de criaturas humanas, que se chama escravidão” (MACEDO, 1991, p.90). Este fragmento faz referência a Lucinda, a Mucama, em As Vítimas Algozes de Joaquim Manoel de Macedo. Encontramos nesta narrativa uma menina escrava de 12 anos que perverte a sua sinha-moça, ainda virgem e pura. Enquanto Lucinda, marcada pela escravidão, exerce o papel de imoral na novela, sendo capaz de influenciar negativamente palestra realizada na UNEB, CAMPUS II, no dia 11 de agosto de 2011. 30Surge a expressão heterossexualidade compulsória, transformando em única forma desejável a relação mulheres-homens:[...] via da heterossexualidade compulsória, por meio da qual a experiência lésbica é percebida através de uma escala que parte do desviante ao odioso ou a ser simplesmente apresentada como invisível. [...] Quando nós encaramos de modo mais crítico e claro a abrangência e a elaboração das medidas formuladas a fim de manter as mulheres dentro dos limites sexuais masculinos, quaisquer que sejam suas origens, torna-se uma questão inescapável que o problema que as feministas devem tratar não é simplesmente a “desigualdade de gênero”, nem a dominação da cultura por parte dos homens, nem qualquer “tabu contra a homossexualidade”, mas, sobretudo, o reforço da heterossexualidade para as mulheres como um meio de assegurar o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional a elas (RICH, 1980, p. 21,34). 31Personagem da obra de Monteiro Lobato, na obra Sítio do Pica-pau Amarelo. Podemos encontrar um estudo mais aprofundado da temática racista em Monteiro Lobato no artigo A figura do Negro em Monteiro Lobato. Disponível em: < http://www.unicamp.br/iel/monteirolobato/outros/lobatonegros.pdf>. 27 e desvirtuar a sua Dona, que é descrita na obra com características angelicais. Outro fragmento que evidencia este condicionamento da mulher negra, encontra-se na narrativa O cortiço, de Aluísio de Azevedo: E a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava ao fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos. Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira. João Romão subia e ela ficava cá em baixo, abandonada como uma cavalgadura. (AZEVEDO, 2004, p. 55 e 121). Com a criação da Escrava Bartoleza, no Naturalismo brasileiro, ficamos diante da animalização e a inferiorização da mulher negra enquanto escrava, ao notarmos a maneira depreciativa em que é construída a imagem da afrodescendente. Bartoleza era amante do Sr. João Romão, para ele aquela mulher servia apenas um objeto sexual a ser usado para satisfazer os seus prazeres carnais e depois é abandonada como animal de sela. Partindo desta perspectiva, Eduardo de Assis Duarte (2009), em Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade, identifica que as imagens da afro-brasileira na ficção e à poesia de inúmeros autores, expressam o exercício do poder da ‘dóxa patriarcal’ herdada dos tempos coloniais em diferentes épocas. Para Duarte, na Literatura Nacional, vemos “uma semântica erótica obcecada pelos corpos de pele morena, de pele mulata e negra, identificados como ‘desfrutáveis’, reduzidos a ‘esfera carnal’ ou como mão de obra servil (DUARTE, 2009, p.6-7). Quando falamos nestes discursos dominantes, não podemos esquecer-nos do contradiscurso e sua possibilidade de ressignificar e recontextualizar as representações. Embora os discursos sejam instâncias de poder, eles não são fechados ou determinados por completo. Segundo Foucault (2001), o poder e a resistência coexistem. Para tanto se há uma literatura que silencia as vozes das mulheres negras lésbicas, há uma literatura que rompe com o silêncio e pronúncia suas experiências identitárias. Ao tratar deste processo de ruptura, Antoine Compagnon (1999) evidencia que se a literatura pode contribuir para a ideologia dominante, pode-se, também, acentuar sua função subversiva. A literatura ao mesmo tempo em que confirma o consenso social pode, inversamente, produzir a dissensão, o novo, a ruptura. Se no cânon literário houve o silenciamento de vozes 28 marginalizadas socialmente, com o processo de romper com a única história institucionalizada, Conceição Evaristo vem falar da autorrepresentação: Se há uma literatura que nos invibiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de representação da mulher negra na literatura. Assenhoreando-se “da pena”, objeto representativo do poder falo-cêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de auto-representação. (EVARISTO, 2005, p. 54). 2.2. UMA NOVA VERTENTE: LITERATURA NEGRA O século XX, mais precisamente a partir da década de 70, abrigou a efervescência dos movimentos sociais no Brasil, além do movimento dos trabalhadores, o negro e o feminista ganharam força, influenciando a sociedade brasileira e consequentemente alcançado a Literatura. Entre essas lutas travadas contra o sistema hegemônico, a conquista mais significativa foi o direito a palavra escrita, já que esta é a maneira que temos para acessar o mundo e conhecer a história. No final da década de 70, escritores negros de vários estados do Brasil se organizaram com a finalidade de utilizar da escrita como uma ferramenta de resistência e luta do povo negro. Estes escritos foram autonomeados Literatura Negra, movimento literário que tem redesenhado as singularidades e subjetividades da individualidade à coletividade destes sujeitos. Em 1978, aconteceu um marco histórico na Literatura Nacional, reuniram-se escritores e publicaram uma coletânea nomeada Cadernos Negros. Qual a importância do surgimento desta antologia? Os Cadernos Negros surgiu, seguindo a tradição da população afrodescendente,para criar seus próprios meios de comunicação como ocorreu na década de 1930, com o aparecimento dos jornais da Imprensa Negra, rompendo a cadeia da exclusão educacional, ao adquirir o acesso à produção cultural. Para tanto, esta coletânea vem carregada de uma escrita engajada na política de subversão e resistência, que surge da emergência de criar uma literatura escrita pela comunidade negra. Nesse sentido, a Literatura Negra, para Zilá Bernd (2011),é um lugar onde o eu-enunciador reivindica uma identidade negra, manifestando sua existência no contexto literário que urge se reconstruir no Brasil. 29 A literatura negra ecoa por novos estilos do fazer poético, tendo em vista que o corpo do negro deixa de ser o corpo do “outro”, como um objeto a ser descrito, para se colocar como um sujeito que ganha identidade a partir de sua própria experiência, emergindo e se posicionando como cidadão negro em uma sociedade que ainda se nota racista e excludente. Este fazer literário se costura como um contra-discurso à autoridade da cultura hegemônica que dilacera o corpo individual e coletivo, daqueles que pretendem dominar. Assim sendo, A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra “negro” aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a englobaria como um todo a receber daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer. Por se tratar de participação na vida nacional, o realce a essa vertente literária deve estar referenciado à sua gênese social ativa. O que há de manifestações reivindicatórias apoia-se na palavra “negro”. (CUTI, 2010, p. 44) Antes do surgimento da Literatura Negra, já existiam negros que escreviam textos poéticos e ficcionais, mas vivenciavam a invisibilidade étnica, reforçando o mito da “democracia racial”. Como afirma Miriam Alves: Debatiam-se com a peja de “só-menor”, como no caso do escritor Lima Barreto, ou ainda os grandes expoentes da Literatura Brasileira Cruz e Souza e Machado de Assis, são alvos, até hoje, de exaustivos discursos críticos-teóricos que tentam comprovar que, pelo que escreverem desejam ser brancos. (ALVES, 2011, p. 184) Enquanto o homem negro sofreu um processo de embranquecimento na Literatura Canônica, como vimos na citação de Miriam Alves, depois de alguns estudos, estes autores citados (Lima Barreto, Machado de Assis e Cruz Sousa) foram reconhecidos como homens negros. A escrita feminina da mulher negra nunca existiu no cânon literário, mas nos Cadernos Negros encontramos muitas afrodescendentes que contam suas histórias, que saem dos quartos de despejo e assumem seu lugar de fala, dentre elas: Conceição Evaristo, Lia Ferreira, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães. Na concepção literária da escrita afro-feminina, Fernanda Figueiredo (2009) explicita que as mulheres negras se 30 posicionam e constituem uma resistência contra os preconceitos. O papel das escritoras é escrever e inscrever a memória do povo negro pelo olhar de dentro; um olhar que recusa omissões que a sociedade brasileira, sob a égide do mito da democracia social e racial impôs e ainda impõe à população afro-brasileira. 2.2.1 A Produção Textual Afro-feminina “Espera-se que a mulher negra seja capaz de desempenhar determinadas funções, como cozinhar muito bem, dançar, cantar, mas não escrever. Às vezes me perguntam: ‘você canta? ‘. E eu digo: ‘não canto nem danço”. (Conceição Evaristo) Na produção textual das mulheres negras encontramos temas recorrentes que englobam o universo afro-feminino: racismo, exclusão, sexismo, aborto, violência simbólica e moral, relacionamento amoroso, identidade, religiosidade, homoerotismo, família, beleza negra e outros. De acordo com os estudos sobre a Literatura Negra, evidenciam-se algumas especificidades, como: 1) a temática dominante é da negra na sociedade, o resgate de sua memória, resistência a diferentes formas de preconceito (de classe, gênero, raça e sexualidade; 2), o ponto de vista é da mulher negra que emerge na literatura como o eu enunciador, destacando a enunciação de si, assumindo as rédeas da sua própria história. Como afirma Conceição Evaristo: própria história. Como afirma Conceição Evaristo: Em síntese, se há uma literatura que aprisiona os sujeitos negros no espaço da estereotipia ou apaga como seres inexistentes na sociedade, há um outro discurso literário em que, vigorosamente, seus criadores, homens e mulheres, afirmam uma ancestralidade africana. Esses discursos incorporam saberes, visões de mundo vivenciados em outros espaços sociais e culturais, assim como muitas vezes além de revelar o pertencimento étnico, revelam também o gênero. (EVARISTO, 2011, p.51) Verificamos com Conceição Evaristo que este novo fazer literário ecoa por novos 31 estilos de vida, iniciando com o pertencimento étnico-racial “tornar-se negra” e repercutindo na afirmação identitária destas mulheres. Nestas produções textuais é perceptível a voz afro-feminina revelando seus espaços de convivência, que vão além do espaço “do lar” ao exercer o papel doméstico, seus medos, desejos, amores, desamores, tabus sociais, entre outros. As vozes das mulheres negras ressurgem quebrando paradigmas estético-ideológicos, pois o corpo feminino negro deixa de ser um objeto de desejo a ser descrito por terceiros e ganha forma a partir da fala-escrita da subjetividade experimentada. Como retrata Miriam Alves: Já a palavra de ordem para o corpo da mulher negra seria forçosamente outra tendo em vista o aviltamento do qual foi vítima esse corpo negro que passou pela coisificação, mutilação, primeiro pela força da escravidão, e depois seguido da automutilação, para aproximá-lo da estética branca (…) antes de tudo é um corpo vitimado que necessita de se desvencilhar das marcas de sexualização, racialização e punição nele inscritas para redefini-lo numa ação de afirmação e autoafirmação de identidade(...) Os versos e os textos realizam a desconstrução desse locus de confinamento onde ficamos excluídas da noção de estética nacional, para chegarem à construção, ou, pelo menos, ao apontar de outro lugar de brasilidade onde o BrasilAfro feminino possa existir com plenitude. (ALVES, 2010, p.71) Segundo Bourdieur, “delas (as mulheres) se espera que sejam ‘femininas’, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas” (1999, p. 82). Entretanto, na escrita afro-feminina, este corpo passa por um processo de ressignificação de estereótipos estigmatizados construídos historicamente, ao excluir determinados rótulos que lhe foram impostos comprometendo-se com a reconstrução social. Para Jurema Werneck (2009), é importante pensar a mulher negra como um indivíduo plural, dotada de diversas características que juntas formarão sua figura identitária, assim sendo, esta identidade se baseia em inúmeras possibilidades, em um enorme repertório, podendo caber a elas vários papéis. 32 2.2.2. Da Invisibilidade a visibilidade: personagens afrolésbicas na literatura Segundo Adrienne Rich32 , em seu artigo intitulado Heterossexualidade compulsória e existência lésbica, evidencia que a existência lésbica sugere tanto o fato da presença histórica de lésbicas quanto à criação contínua do significado dessa mesma existência. Diferentemente da existência das histórias judaicas e católicas, a existência lésbica tem sido vivida sem acesso a qualquer conhecimento de tradição, de continuidade e amparo social. Isso se deu com a destruição de registros, memórias e cartas documentando as vivências lesboafetivas. Para Rich (1993), este procedimento de exclusão historiográfica é uma maneira de manter a heterossexualidade compulsória para as mulheres, já que as mesmas estão condicionadas a alegria, asensualidade, a coragem e a comunidade, bem como a culpa, a autonegação e a dor. Adrienne Rich, ainda, afirma que: As lésbicas têm sido historicamente destituídas de sua existência política através de sua “inclusão” como versão feminina da homossexualidade masculina. Equacionar a existência lésbica com a homossexualidade masculina, por serem as duas estigmatizadas, é o mesmo que apagar a realidade feminina mais uma vez. Parte da história da existência lésbica está, obviamente, a ser encontrada em contextos onde as próprias lésbicas, na ausência de uma comunidade feminina coerente, têm compartilhado um tipo de vida social e de causa comum com homens homossexuais. Mas há diferenças: a falta de privilégio econômico e cultural das mulheres, comparado aos homens; diferenças qualitativas nas relações masculinas e femininas – por exemplo, os padrões de sexo anônimo entre homossexuais masculinos e o pronunciado peso negativo da idade nos padrões de atração sexual entre homossexuais masculinos. Percebo a experiência lésbica a ser, tal como a maternidade, uma experiência profundamente feminina, com opressões, significados e potencialidades particulares, que não podemos compreender quando nós a agrupamos simplesmente com outras existências sexualmente estigmatizadas. (RICH, 1993, p.35-36) Com base neste fragmento, podemos notar as problemáticas existentes na identidade lésbica, que ao ser vinculada com a homossexualidade masculina, torna-se invisível socialmente deixando assim suas particularidades e vivências enquanto mulheres que se relacionam com outras mulheres. Entretanto, não podemos cometer o erro de associar essas duas identidades sexuais como se pertencessem a um mesmo padrão de sexualidade, pois tanto as lésbicas como os homossexuais têm experiências distintas com discriminações e opressões, e desta forma devem ser analisadas e pensadas separadamente. 32 Poeta, ensaísta e professora estadunidense, engajou-se nas lutas lésbico-feministas e de resistência ao racismo, ao militarismo e à homofobia 33 Na medicina, o personagem homossexual passou a existir na segunda metade do século XIX, vindo a ser definido por essas práticas. As sexualidades perversas passavam assim a ser objeto de responsabilidade da medicina que, por sua vez, reivindicava constantemente seu direito em se pronunciar sobre os anormais. Para além, foi na e pela medicina que o homossexual enquanto indivíduo de personalidade psíquica e somática desviante passou a existir na sociedade. A transição do personagem do sodomita ao homossexual reflete e diz respeito às diversas e complexas mudanças sociais, dentre as quais a emergência da medicina enquanto importante instituição de controle social é uma das mais evidentes33. A sodomia, até então vista como pecado ou crime, passa a ser compreendida como uma perversão. Para Foucault: O homossexual do século XIX torna-se um personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ele é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém como natureza singular. (FOUCAULT, 1988, p. 50). A relação homossexual masculina sempre foi muito presente nas discussões médicas, havendo assim uma ausência da lesbianidade, pois o modelo dominante de sexualidade é o masculino. O sexo entre mulheres era simplesmente ignorado, já que as mesmas assumiam o papel de passiva no ato sexual, considerado inimaginável para sociedade. A origem dessa invisibilidade pode estar localizada na vinculação entre o desejo e o símbolo que melhor o traduz, o falo. O artigo O corpo e a Sexualidade, Jeffrey Weeks (2000), evidencia que os homens são os agentes nas relações sexuais; as mulheres por causa de seus corpos altamente sexualizados (ou apesar disso) eram vistas como meramente reativas “despertadas para vida” pelos homens. Evidenciam-se as problematizações que perpassam a lesbianidade.Começa em manter sua feminilidade, o natural para a mulher exercer sua heterossexualidade, pois seus 33 MACHADO, Leonardo Diogo C. M. Patologização do desejo: o homossexualismo masculino nos manuais de medicina legal do brasil das décadas de 1940 e 1950. CURITIBA, 2010. Disponível em: . Acesso em: 25 mai.2013 34 corpos tinham donos, o homem, para o sistema patriarcal. Seu papel social seria gerar filhos, cuidar do marido e da casa. O que fugisse destas práticas era considerado como desviante patologicamente e descompensadas em termos emocionais e sexuais. No que diz respeito ao ato sexual, o corpo feminino estava condicionado a ser o objeto do homem. Então, quando falamos em sexo entre mulheres há um estranhamento e um apagamento, por causa da ausência do pênis. Como pensar em uma relação de lesboafetividade? Judith Butler (2012)34 , no artigo Falo lésbico e o imaginário Morfológico, afirma que o falo lésbico determina o desaparecimento do pênis, instaurando assim a diferença sexual e anatômica como o local daquilo que ela chama de “ressignificações proliferativas”. Estas ressignificações seria atribuir novos sentidosaos discursos que circulam e se proliferam no meio social sobre o sexo entre lésbicas, discurso este que apaga a experiência erótica entre mulheres. Ela menciona, também, “a performatividade do falo”, e ao tratar do falo lésbico fica claro que tanto o pênis quanto o falo são retroativamente construídos pelo discurso e no discurso, assim sendo, são performáticos. Tecendo um diálogo com o erotismo, o descobrir erótico feminino não está confinado ao pênis ou apenas ao corpo em si, mas, além disso, parte das ressignificações, criações performáticas e compartilhamentos não somente físicos, como emocionais. Desde sua gênese, o corpo feminino nunca foi interpretado totalmente como de direito das mulheres, pois sempre foram os homens – médicos, educadores, sociólogos, dentre outros – os responsáveis pela legitimação de uma gama de discursos que pretendiam educá-lo. Como relata Jeffrey Weeks “(...) a intervenção da medicina, da psicologia, do trabalho social, das escolas e outras instâncias, todas procurando nos dizer quais as formas apropriadas para regular nossas atividades corporais”(2000, p.42). Na década de 90, Século XX, no Brasil, mulheres começam a sentir necessidade de dizer seus amores, desejos reprimidos, embutidos no silêncio de uma sociedade machista, racista e heteronormativa. Influenciados pelas mudanças sociais conquistadas pelos movimentos de emancipação dos anos 60 – como Black Power e a segunda onda do movimento feminista – outros grupos de minorias marginalizadas também passaram a vislumbrar a possibilidade de resistência e de formar seus próprios movimentos de emancipação. Com essas novas vertentes sociais surgem políticas gay e lésbica, que ao longo da sua existência tem questionado as certezas das tradições sexuais, disponibilizando novas compreensões sobre os discursos de poder e dominação que modelam a vida sexual dos 34 Apud Sarah Salih no livro Judith Butler e a TeoriaQueer 35 sujeitos. Essas políticas subversivas ganharam espaço também no campo literário, mas a homossexualidade feminina ainda sofre invisibilidade, por causa dos
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