Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO RONALD LIMA DA SILVA NOVOS PANORAMAS PARA O ENSINO RELIGIOSO: Uma análise do modelo das Ciências da Religião para o Ensino Religioso nas escolas públicas, tendo em vista os aspectos da transdisciplinaridade, transreligiosidade e pluralismo religioso São Bernardo do Campo 2017 UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO RONALD LIMA DA SILVA NOVOS PANORAMAS PARA O ENSINO RELIGIOSO: Uma análise do modelo das Ciências da Religião para o Ensino Religioso nas escolas públicas, tendo em vista os aspectos da transdisciplinaridade, transreligiosidade e pluralismo religioso Orientador: Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião, da Universidade Metodista de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. São Bernardo do Campo — 2017 A dissertação de mestrado intitulada “NOVOS PANORAMAS PARA O ENSINO RELIGIOSO: Uma análise do modelo das Ciências da Religião para o Ensino Religioso nas escolas públicas, tendo em vista aspectos da transdisciplinaridade, transreligiosidade e pluralismo religioso”, elaborada por RONALD LIMA DA SILVA foi apresentada e aprovada em 09 de março de 2017, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Cláudio de Oliveira Ribeiro (UMESP), Prof. Dr. Luiz Jean Lauand (UMESP) e Prof. Dr. João Décio Passos (PUC/SP). ______________________________________________ Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro Orientador e Presidente da Banca Examinadora ______________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders Coordenador do PPGCR – UMESP Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Linguagens da Religião Linha de pesquisa: Teologias das Religiões e Cultura Ao meu pai, Job Gilson (in memoriam), que faleceu durante este curso de mestrado, com todo meu amor e gratidão, por tudo que fez por mim ao longo de minha vida. Desejo poder ter sido merecedor do esforço dedicado por ele em todos os aspectos, especialmente quanto à minha formação. Ao meu jovem sobrinho, Matheus Marques, que está lutando fortemente contra duas agressivas leucemias. Você tem sido uma inspiração para eu continuar fazendo e lutando pelo que eu amo. AGRADECIMENTOS Esta é uma página que poucos leem, mas que o autor não se pode furtar a escrever: nela apresento minha gratidão a quem se tornou cúmplice da dissertação que acabei escrevendo: Deus: por Sua presença constante e por todo bem a mim concedido; Daniele, minha esposa: pela saudade contida, apoio, paciência e carinho; Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro: pelas orientações, constante incentivo e compreensão nos momentos mais difíceis; Rev. Flávio dos Santos: pelos conselhos e incentivos que me conduziram até aqui; CNPq: pelo patrocínio integral; Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião: pelo apoio, confiança e acolhida; SILVA, Ronald Lima da. NOVOS PANORAMAS PARA O ENSINO RELIGIOSO: Uma análise do modelo das Ciências da Religião para o Ensino Religioso nas escolas públicas, tendo em vista os aspectos da transdisciplinaridade, transreligiosidade e pluralismo religioso. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2017. 149 p. RESUMO O escopo desta pesquisa objetiva evidenciar a contribuição que o Ensino Religioso (ER) nas escolas públicas é capaz de proporcionar para o desenvolvimento de uma cultura de paz, de tolerância, de respeito e de convivência harmoniosa em sociedade, em meio a aguçados conflitos. Dentro de um contorno pedagógico, o ER, em conformidade com os Parâmetros Curriculares Nacionais e a legislação educacional brasileira, abriga, não obstante seus limites e ambiguidades, a diversidade de crenças e o pluralismo religioso. Assim, esta pesquisa visa discutir e realçar o modelo das Ciências da Religião para o ER na escola pública, tendo em vista a sua fundamentação transdisciplinar e transreligiosa, perpassada pela Teologia do Pluralismo Religioso. Tal visão procura utilizar a força ética das religiões como proposta para uma ética civil global, cujo desafio constitui-se num campo inovador a ser explorado no currículo escolar brasileiro. Como elemento da formação e do desenvolvimento para a cidadania, essa matéria escolar pode incentivar, favorecer e/ou promover o respeito entre grupos religiosos e também com setores não religiosos em vista da construção de uma ética global. É fato que, na vida em sociedade, estão presentes as religiões, e mesmo os não crentes necessitam entender, tolerar, respeitar e conviver com os crentes e vice-versa. Sendo assim, a disciplina de ER, se vista nesta perspectiva, pode promover uma educação para a tolerância, o respeito, o convívio pacífico entre as pessoas de convicções religiosas diferentes, e entre religiosas e não religiosas. Visando contribuir com esta visão, sistematizamos algumas bases teóricas sobre a temática. Palavras-chaves: Ensino Religioso; Transdisciplinaridade; Transreligiosidade; Ethos; Pluralismo Religioso. SILVA, Ronald Lima da. NEW SCENARIOS FOR RELIGIOUS EDUCATION: An analysis of the model of the Religious Sciences for Religious Education in public schools, in view of transdisciplinarity, transreligiosity and religious pluralism. Dissertation in Science of Religion. São Paulo Methodist University: São Bernardo do Campo, 2017. 149 p. ABSTRACT The scope of this research aims to highlight the contributions from the Religious Education (RE) to the public schools, and its capacity to contribute to development of the peace culture, tolerance, respect and harmonious coexistence in society, in the face of the scathing conflits. In the pedagogical profile, the RE, in conformed to the National Curricular Parameters and the Brazilian educational legislation, despite of its limits and ambiguities, holds the diversity of believes and the religious pluralism. This way, considering the transdisciplinary and transreligious basis of Sciences of Religion, which is permeated by the Theology of the Religious Pluralism, this research purposes to discuss and point out the Sciences of Religion model to the RE in public school. Such a view intends to utilize the religions ethical power as a proposal for a global civilly ethical, whose challenge is constituted in a innovate field to be explore in the Brazilian scholar curriculum. As an element of training and development for the citizenship, this school subject can incentive, benefit, and/ or can further the respect between religious groups and nonreligious sectors as well, in order to build a global ethical. Accordingly, it’s fact that religions are present in the life in society, and even people non-believers need to understand, tolerate, respect and coexistent with the believers and vice versa. Therefore, the RE subject can promote an education for the tolerance, respect, and peaceful coexistence between people with different religious convictions, believers or non-believers as well. Keywords: Religious Education; Transdisciplinary;Transreligiosity; Ethos; Religious. SUMÁRIO Introdução ______________________________________________________________ 11 Capítulo 1: Os Modelos de Ensino Religioso no Brasil e os desdobramentos de um novo conceito de ensino religioso ________________________________________________ 16 Introdução ____________________________________________________________ 16 1) Os Modelos de Ensino Religioso ________________________________________ 17 1.1) O Modelo Catequético ___________________________________________________ 21 1.2) O Modelo Teológico _____________________________________________________ 23 1.3) O Modelo das Ciências da Religião _________________________________________ 25 2) Um novo conceito de Ensino Religioso ___________________________________ 28 3) Educação religiosa e Ciências da Religião _________________________________ 37 3.1) A área das Ciências da Religião ____________________________________________ 37 3.2) Ciências da Religião e Fenomenologia da Religião _____________________________ 39 3.3) Contribuições das Ciências da Religião para o Ensino Religioso ___________________ 45 3.4) Formação de docentes para Ensino Religioso __________________________________ 49 3.4.1) O papel das licenciaturas em Ciências da Religião __________________________ 49 3.4.2) Proposta de diretrizes curriculares nacionais para a formação do docente de Ensino Religioso__________________________________________________________________ 52 Considerações Finais ____________________________________________________ 58 Capítulo 2: Bases teóricas de um novo fundamento epistemológico para o Ensino Religioso _______________________________________________________________________ 59 Introdução ____________________________________________________________ 59 1) Considerações Preliminares: Críticas à existência de Ensino Religioso nas escolas públicas ______________________________________________________________ 60 2) A nova epistemologia para o Ensino Religioso: Inteligência Geral _____________ 66 3) O que é transdisciplinaridade? __________________________________________ 69 4) O que é transreligiosidade? ____________________________________________ 72 5) Metodologia Transdisciplinar e Ensino Religioso na Escola Pública ____________ 74 5.1) Complexidade: Ensino Religioso e Incerteza __________________________________ 77 5.2) Complexidade: Ensino Religioso e Laicidade _________________________________ 82 5.3) Níveis de realidade: Ciência e Tradição, a complementariedade dos opostos _________ 83 5.4) Lógica do Terceiro incluído: justiça religiosa __________________________________ 87 6) Ensino Religioso e a Legislação da Educação no Brasil: Desafios e Perspectivas __ 92 Considerações Finais ____________________________________________________ 97 Capítulo 3: O Ensino Religioso diante do Pluralismo Religioso e da Ética Mundial _____ 98 Introdução ____________________________________________________________ 98 1) Pluralismo Religioso e Teologia ________________________________________ 99 1.1) Globalização e pluralidade religiosa _______________________________________ 100 1.2) Teologia do Pluralismo Religioso _________________________________________ 103 2) Ensino Religioso e Ética Mundial: a formação para a paz ___________________ 109 2.1) Fundamentos da ética e alteridade _________________________________________ 109 2.2) Ethos e direitos humanos: um legado da diversidade cultural ____________________ 114 2.2.1) O Ethos: Lugar onde se habita: _______________________________________ 115 2.2.2) Ethos: Liberdade e Diversidade: ______________________________________ 117 2.2.3) Ethos, Diversidade Religiosa e Direitos Humanos ________________________ 121 2.3) A Educação na perspectiva do Ethos _______________________________________ 126 Considerações Finais ___________________________________________________ 131 Conclusão _____________________________________________________________ 132 Referências Bibliográficas ________________________________________________ 135 INTRODUÇÃO Uma característica expressiva da vivência em sociedade é o fenômeno religioso. E como está presente na vida social, o fenômeno religioso também incidi na ambiência escolar. Na sala de aula deparamos com crenças, práticas, ideais, posturas, comportamentos e atitudes fundamentadas em convicções religiosas. A vivência escolar também agrega crenças diferentes. A formação do individuo desenvolvida na escola deve proporcionar a convivência, a tolerância e a paz entre os cidadãos que compartilham crenças religiosas divergentes, pois a convivência não obriga a pessoa a aceitar valores ou ideais com as quais não se identifica, mas o obriga a respeitá-los. As divergências de crenças religiosas não justificam a não convivência pacífica e harmoniosa entre os seres humanos em sociedade. É fato que, na vida em sociedade, estão presentes as religiões, e mesmo os não crentes necessitam entender, tolerar, respeitar e conviver com os crentes e vice-versa. Sendo assim, a disciplina de ER, se vista nesta perspectiva, pode promover uma educação para a tolerância, o respeito, o convívio pacífico entre as pessoas de convicções religiosas diferentes, e entre religiosas e não religiosas. A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo. [...] é a harmonia na diferença; é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz; não é concessão, condescendência, indulgência; é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro (DECLARAÇÃO, 1995, n.p.). 12 Tolerância em nosso trabalho, portanto, preconiza o reconhecimento do outro como um ser de direito. De modo que, seja qual for a atitude que se apresente como algo que force alguém a adotar uma decisão contrária as suas convicções religiosas, é capaz de lesar o direito às liberdades fundamentais do outro. Nota-se, em nosso país, o desrespeito entre grupos religiosos. Obviamente que esse tipo de atitude é resultado de uma construção histórica, ou seja, o desrespeito e a intolerância entre pessoas que possuem convicções religiosas divergentes não é um fenômeno que teve origem nos dias atuais. No entanto, é importante lembrar que a liberdade religiosa é um direito humano internacionalmente reconhecido, ao passo que a intolerância transgride os direitos humanos, põe em risco à democracia e a paz. A inexistência de uma ação de respeito e tolerância para com a diversidade religiosa presente na escola pode acarretar na propagação de preconceitos e discriminações. Levando em conta que a escola precisa por em execução a formação política e social dos alunos como cidadãos, é essencial que ela propague valores éticos fundamentados na convivência harmoniosa entre as pessoas, a despeito das diversidades, até mesmo de natureza religiosa. A força ética das religiões pode fornecer o substrato para uma ética civil global, podendo ser capaz de colaborar para a formação de uma cultura de paz e tolerância entre os seres humanos. Visto nesta perspectiva, o ER enquanto disciplina escolar, possibilita contribuir para promover a tolerância e o respeito entre as pessoas, estimulando o convívio pacífico entre pessoas que têm convicções religiosas distintas. Mesmo aqueles que não são religiosos, necessitam aprender a coexistir com outros que possuem suas crenças religiosas. Isso pode ajudar a diminuir a intolerância religiosa presente na sociedade. A compreensão de ER presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN´s (BRASIL, 1998) conjecturanovos panoramas para a sua prática pedagógica. Podemos considerar inovadoras suas perspectivas, que servem de fundamentos à ação docente. Os apontamentos de caráter normativo (os quais veremos mais detalhadamente no primeiro capítulo) presentes nos PCN´s apresentam uma mudança emblemática no ER. Neste palco de transmudação, esta dissertação consiste em apresentar o trabalho que os Parâmetros Curriculares Nacionais (permeado no viés das Ciências da Religião e aliado 13 aos aspectos da transdisciplinaridade, transreligiosidade e pluralismo religioso) desempenham para a evolução da pedagogia do ER. Diante das condições impostas pelo vigente contexto sociocultural complexo e pluralmente religioso, é de extrema necessidade harmonizá-lo as propostas atuais dos Parâmetros Curriculares Nacionais ― cujas proposituras discorremos nesta pesquisa. Ou seja, procuramos incluir o ER numa proposta pedagógica que se lance numa nova cosmovisão, respondendo aos anseios por uma educação religiosa democrática, que possibilite levar em consideração a diversidade das expressões religiosas. Temos a intenção de progredir no processo que caracterize o ER dentro de um perfil pedagógico. Ao longo desta dissertação buscamos detectar como essa disciplina escolar pode contribuir para a educação destinada a paz e ao convívio harmonioso entre as pessoas com crenças religiosas diferenciadas, mesmo reconhecendo o quadro religioso conflitivo da sociedade atual. Para isso, vamos identificar algumas tendências significativas e descrevê- las. Dentro da realidade social negada pelas variadas formas opressivas de vida da cultura dominante com seus desdobramentos sociais injustos (incluindo a supressão da religião e crenças do outro dominado), é que nascem as lutas contra aos mais variados exemplos de dominação e discriminação do outro. Surgem igualmente dimensões afirmativas da pluralidade de caminhos para o reconhecimento humano. O conhecimento religioso, como sistematização de uma das dimensões da relação do ser humano é um instrumento que auxilia na superação das ambiguidades e das contradições de respostas isoladas de cada cultura e grupo. Os Parâmetros Curriculares Nacionais visam renovar o ER num contexto de rápidas mudanças que questionam as muitas formas de existir e de agir das comunidades culturais de cada indivíduo. O ER sempre fez parte do quadro da Educação no Brasil, mas se vê hoje desafiado a sanear as ambiguidades e distorções históricas para manter-se nos sistemas escolares. Durante o período Colonial foi entendido como catequese eclesial, o que era bastante conveniente aos interesses do Padroado. Com a República e a consequente separação entre Igreja e Estado em 1889, surgiram os primeiros questionamentos a um modelo de ER 14 confessional, uma vez que violava o princípio de laicidade do Estado (JUNQUEIRA, 2002; FIGUEIREDO, 1995). Mas é somente durante o século XX que surge a necessidade de uma nova consciência, uma ética global decorrente do pluralismo cultural e religioso presente no Brasil e no mundo. Por isto, a nova LDBN nº. 9.394, alterada em seu artigo 33, de 25 de julho de 1997, contempla a diversidade religiosa e veta o uso do proselitismo. Assim, o modelo de ER confessional avança para a modalidade Teológica e das Ciências da Religião (PASSOS, 2007; SOARES, 2010). Porém, pensamos que ainda é preciso construir uma proposta de ER mais amplo e que responda melhor a necessidade da formação integral dos estudantes e aos desafios de uma sociedade complexa e globalizada. De fato, com a legislação da LDB/97 houve uma mudança de paradigma na concepção de ER que passou a ser compreendido como parte integrante da formação básica do cidadão e área de conhecimento. Tal feito nos coloca diante de um novo desafio: fundamentar mais substancialmente o ER no contexto da escola pública. Dessa forma, esta pesquisa tem como objetivo geral analisar como a metodologia transdisciplinar e transreligiosa na disposição das Ciências da Religião, em diálogo com as concepções do pluralismo religioso, pode abalizar o ER escolar no contexto de uma sociedade laica. Como recursos metodológicos, optamos por utilizar a pesquisa bibliográfica através de autores que trabalham a temática do ER, das Ciências da Religião, da transdisciplinaridade, da transreligiosidade, do pluralismo religioso e do ethos, dentre os quais: João Décio Passos, Sérgio Rogério Azevedo Junqueira, Anísia de Paulo Figueiredo, Afonso M. L. Soares, Gilbraz Aragão, Ana Maria Tepedino, Edgar Morin, e Basarab Nicolescu. Nossa pesquisa, portanto, será estritamente bibliográfica, ou seja, partirá basicamente de uma leitura crítica e reflexiva de autores e autoras que trabalharam os referidos temas. Assim, defenderemos a necessidade de um modelo mais integral para o estudo do fenômeno religioso pela abordagem transdisciplinar associada aos conceitos de complexidade (MORIN, 2000; 2002; 2010a; 2010), níveis de realidade e terceiro incluído (NICOLESCU, 1999; 2002), transreligiosidade (ARAGÃO, 2010; 2015), com o ideal de fomentar a formação dos estudantes numa perspectiva de integralidade e da cidadania (PASSOS, 2007; SOARES, 2010), conforme expresso no artigo 33 da LDB nº 9.394/96, com a nova redação do Artigo 33. Esta, propõe um novo paradigma para o ER; discorrendo 15 a necessidade da escola pública e laica se tornar um lugar, um ethos, de conhecimento de saberes teóricos e práticos, de convivências prazerosas, de interações, de reconhecimento dos diferentes em suas diferenças, da cumplicidade e da sabedoria em exercícios de alteridade, da construção de identidades dialógicas, da percepção da cultura como espaço da construção de valores sociais, epistêmicos e étnicos, do reconhecimento de que somos seres humanos com direitos e deveres. Será apresentada a relevância da reflexão teológica sobre o pluralismo religioso no Brasil e sua contribuição para o ER em escolas públicas num Estado laico, possibilitando pistas para a superação da intolerância e do exclusivismo pela abertura ao diálogo inter-religioso (BOFF 1983; 1999; 2002; 2004; TEIXEIRA 1993; 1995; 2001; 20114; 2007; 2012; QUEIRUGA, 1997; 1998; 1999; 2001; QUADROS 2004; CROATTO 1984; 2002; 2010). Defenderemos a importância da escola pública quanto a se tornar um tempo/espaço/lugar do ethos da solidariedade e da responsabilidade para o livre e pleno desenvolvimento de todos os educandos, contemplando todas as etnias, culturas e expressões religiosas e não religiosas; como conhecer, respeitar e conviver com os diferentes ethos religiosos e não religiosos sem ferir e violar os direitos e deveres de estudantes e educadores (KÜNG 1998; 1998; VAZ, 1995; DUSSEL, 1997; AGOSTINI, 1993). 16 CAPÍTULO 1: OS MODELOS DE ENSINO RELIGIOSO NO BRASIL E OS DESDOBRAMENTOS DE UM NOVO CONCEITO DE ENSINO RELIGIOSO “A Religião gera a separatividade; a Espiritualidade abraça a diversidade e promove união”. (Autor Desconhecido) Introdução A finalidade deste capítulo é apresentar as tipologias de ER no Brasil ao longo da história em suas respectivas cosmovisões: o Modelo Catequético, o Modelo Teológico e o Modelo das Ciências da Religião e avaliá-los no sentido de e realçar o modelo das Ciências da Religião como um novo conceito de ER, cujo método, suas contribuições para o ER e para a formação de docentes nas escolas públicas brasileiras consideramos mais adequados e relevantes. 17 A análise desses modelos será a base para críticas e apontamentos posteriores que faremos no segundo e terceiro capítulo desta dissertação. Portanto, este capítulo, por ser descritivo,é um item importante para nossa pesquisa e para a apresentação de novos panoramas para o ER nas escolas públicas, especialmente tendo em vista os aspectos da transdisciplinaridade, transreligiosidade e pluralismo religioso, que veremos adiante. Três passos serão dados em nossa descrição. O primeiro fará uma descrição dos três modelos de ER existentes na história do ER no Brasil. Será exposto cada modelo de ER em seus respectivos períodos na história do Brasil e suas características. O segundo passo consiste em descrever um novo conceito de ER, sua aplicação pedagógica, sua metodologia e sua utilidade para a formação cidadã. E o terceiro passo exporá a educação religiosa vista sob a perspectiva das Ciências da Religião. Será apresentada detalhadamente as contribuições das Ciências da Religião para o ER e as propostas da formação de docentes para o ER. 1) Os Modelos de Ensino Religioso Dentro de um panorama histórico, podemos identificar a composição de três modelos bases do ER no Brasil: o Catequético, o Teológico e o das Ciências da Religião ― ou Modelo Fenomenológico (PASSOS, 2006, p.21-45). Nos diferentes períodos de nossa história encontramos a predominância de algum deles. Atualmente, frente à complexidade do fenômeno religioso podemos confirmar que ainda os três modelos prevalecem no exercício pedagógico dos professores do ER. Mesmo perante os progressos na configuração do estatuto epistemológico da disciplina, e da legislação atual que adota o modelo oferecido pelas Ciências da Religião, ainda há uma intensa presença dos modelos anteriores. Uma simples observação ao campo com professores do ER seria capaz de identificar isso. Acreditamos que a deficiência está na formação dos professores e na dificuldade da implementação de cursos de licenciatura em Ciências da Religião. O ER adquire traços diferenciados de acordo com o ambiente escolar. Se a disciplina é proporcionada em uma escola pública ela necessita se orientar precisamente pela legislação 18 civil, no caso a lei 9.475 de 1997 (BRASIL, 1997). Já no caso das escolas confessionais encontramos outro rumo para a disciplina. Não que elas não estejam obrigadas a cumprir a lei, elas devem cumpri-la, todavia, a confessionalidade da instituição conservar-se preservada de tal modo que o ER na escola confessional toca na fé religiosa professada pela escola. Esse fato é garantido pela legislação, nos variados Estados do Brasil. Em linhas gerais, como expusemos, sobressaem no Brasil três modelos referenciais de ER. O primeiro deles, de cosmovisão unireligiosa, é denominado Catequético. Este modelo prevaleceu na escola pública desde o período Colonial até as últimas décadas do século XX, e mesmo hoje ainda há resquícios de sua prática. Oficialmente foi corroborado pela LDBEN n° 4.024 de 1961. Com as mudanças no panorama social, político e cultural da sociedade brasileira nas décadas de 70 e 80, outro modelo foi adotado, de cunho plurireligioso e antropológico, intitulado Teológico, regulamentado pela legislação das LDBEN nº 5.692/71. Esta alternativa pareceu, a princípio, ser uma boa opção para a efetivação do ER na escola laica, pois tratada Religião enquanto dimensão essencial do ser humano, sem fechar-se a outras experiências de fé. Porém, como não há teologia aconfessional ou supraconfessional (SENA, 2007, p. 92), este modelo terminou por induzir a catequese dissimulada, gerando novas discussões e polêmicas. Mais recentemente, devido a outras reformas no campo da Educação nacional, a regulamentação da LDBEN nº 9.394/96, alterada em seu art. 33, estabeleceu nova modalidade de ER, agora sob o prisma de respeito à diversidade cultural e religiosa no Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. Esta nova legislação teve o mérito de homologar o modelo de ER Fenomenológico ou das Ciências da Religião (PCNER, 2009; PASSOS, 2007; SENA 2006; SOARES, 2010); o que mais adiante foi implementado pelas Resoluções do CEB/CNE nº 02/98 e CNE/ nº 07 de 14 de dezembro de 2010, que situaram o ER como área de conhecimento e componente curricular obrigatório no Ensino Fundamental, ficando aos Estados o papel de regulamentá-lo conforme as leis próprias. Porém, quando tudo parecia caminhar para um desfecho cobiçado pelos profissionais da área da educação que ansiavam a superação de modelos de ER que não mais respondiam adequadamente a conjuntura religiosa e cultural no Brasil, novas dificuldades surgiram, 19 sobretudo, em razão de não haver uma diretriz nacional comum que norteie a implementação do ER nos Estados, havendo grande disparidade na interpretação das leis. O Rio de Janeiro, por exemplo, chegou a estabelecer em seu sistema de ensino um modelo de ER Catequético (Lei nº 3.459/2000), embaraçando seu processo de efetivação conforme a LDBEN nº 9.394/96, alterada em seu art. 33. São Paulo também apresentou suas dificuldades. Conforme PASSOS (2007), a Igreja Católica neste Estado buscou oficializar um ER confessional, inclusive convocando suas forças para agilizar este processo junto às escolas de São Paulo: “A Pastoral Regional do Ensino Religioso realizará encontro anual de educador e agentes de pastoral educativos, visando à implantação e à dinamização de Ensino Religioso confessional católico nas escolas estaduais e municipais” (Publicado no Jornal O São Paulo, de 12 de abril de 2006). Ao lado destes acontecimentos, foi assinado em 2008, pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI, o Acordo Brasil – Santa Sé, que defende abertamente a confessionalidade do ER na escola pública, gerando grande polêmica em nível nacional. O fato é que, às vésperas de legitimar um ER com base científica na escola pública do Brasil, nos vimos, mais uma vez, envoltos em disputas entre Igreja e Estado (JUNQUEIRA, 2002). Até hoje esta disciplina não conseguiu desvencilhar-se do “campo de negociações das confissões religiosas e do Estado” (PASSOS, 2007, p. 67), desordenando seu processo de efetivação escolar. Hoje se aguarda pela decisão do Supremo Tribunal Federal, que valerá para todas as escolas públicas do país. Em contrapartida, toda esta tensão também teve efeitos positivos, pois muitas universidades, educadores, intelectuais e o FONAPER 1 engajaram na luta por um projeto de 1 O Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) é uma associação civil de direito privado, de âmbito nacional, sem vínculo político-partidário, confessional e sindical, sem fins econômicos, que congrega, conforme seu estatuto, pessoas jurídicas e pessoas naturais identificadas com o Ensino Religioso, sem discriminação de qualquer natureza. Foi criado em 1995 e, ao longo de sua existência, vem buscando acompanhar, organizar e subsidiar o esforço de professores, pesquisadores, sistemas de ensino e associações na efetivação do Ensino Religioso como componente curricular. O FONAPER é um espaço de discussão e ponto aglutinador de idéias, propostas e ideais na construção de propostas concretas para a operacionalização do Ensino Religioso na escola. Para conhecer melhor o FONAPER e seu trabalho, consulte seu site: http://www.fonaper.com.br/ 20 ER secular, independente dos sistemas religiosos e vedadas quaisquer formas de proselitismo. Nossa discussão acerca dos modelos de ER se coloca nesta perspectiva, de contribuir com este esforço de legitimar na escola pública do Brasil um modelo de ER que respeite a pluralidade religiosa enquanto direito do cidadão e projete uma Educação crítica e criativa para os alunos. Sendo assim, iremos analisar neste tópico a validade de cada um destes modelos,tendo em vista seus aspectos políticos, pedagógicos e epistemológicos. Acima, já mencionamos três modelos de ER relacionados no Brasil. Mas é importante observar que existem várias tentativas de construir tipologias para o ER no sentido de facilitar sua análise. Para GRUEN (1995), por exemplo, os três modelos de ER são designados como: Catequético, Ecumênico e Interconfessional. Já para PASSOS (2007), é possível catalogar no país os modelos de ER: Catequético, Teológico e o das Ciências da Religião. E SOARES (2010, p. 120), aponta em seu estudo a existência de outra tipologia presente no país: Giseli do Prado Siqueira, identifica quatro modelos de Ensino Religioso: o modelo confessional, ligado a uma religião, o ecumênico, organizado entre as denominações cristãs; o modelo baseado no estudo do fenômeno religioso, sugerido pelo FONAPER; e um quarto, que define o Ensino Religioso como educação da religiosidade, tendo como base o pensamento de Paul Tillich e W. Gruen (SOARES, 2010, p. 120). De modo que seria impossível trabalhar com todas as perspectivas. Assim, adotaremos para esta pesquisa a tipologia sugerida por João Décio Passos, sobretudo, em razão de nos possibilitar uma visão cronológica e diacrônica do ER na história do Brasil, o que facilita sua análise no que diz respeito aos fundamentos teóricos e metodológicos de cada modelo, de onde decorrem seus conteúdos, posturas políticas e didáticas na relação professor-aluno, como explica o autor. Para PASSOS (2007, p. 56-68), três modelos de ER estão presentes hoje nas escolas do Brasil: o Catequético, o Teológico e o das Ciências da Religião. Conforme ele, Podemos dizer que os três modelos têm sua concretização numa certa sequência cronológica. O modelo catequético é o mais antigo; está relacionado, sobretudo, a contextos em que a religião gozava de hegemonia na sociedade, embora ainda sobreviva em muitas práticas atuais que continuam apostando nessa hegemonia, utilizando-se, por sua vez, de métodos modernos. Ele é seguido do modelo 21 teológico que se constrói num esforço de diálogo com a sociedade plural e secularizada e sobre bases antropológicas. O último modelo, ainda em construção, situa-se no âmbito das Ciências da Religião e fornece referências teóricas e metodológicas para o estudo e o ensino da religião como disciplina autônoma e plenamente inserida nos currículos escolares (PASSOS, 2007. p. 54). De modo que já se percebe claramente em sua colocação a defesa do modelo das Ciências da Religião. Outros pesquisadores como SOARES (2010) JUNQUEIRA (2002), SILVA (2004) e SENA (2007), também comungam da mesma ideia. O que nos interessa, enfim, é discutir agora as bases teóricas e metodológicas destas três propostas e entrever que modelo responde com maior ganho a necessidade do ER enquanto área de conhecimento no contexto da escola laica. Mas antes disto, ainda devemos considerar nossa pretensão de trabalhar com categorias ou modelos de ER. Em nossa perspectiva estas categorias não são tomadas como delimitações cabais, mas sim, “tendências, mapas ideais extraídos a partir de práticas concretas da realidade; úteis, portanto, para a visualização da prática do que está acontecendo em sala de aula” (SOARES, 2007, p. 120). Em outras palavras, o uso da categoria de modelos de ER nesta pesquisa deve-se a razão de que, do ponto de vista epistemológico, eles nos permitem uma abordagem diacrônica da história do ER no Brasil (PASSOS, 2007). 1.1) O Modelo Catequético Conforme PASSOS (2007, p. 54), dos três modelos referendados, o Catequético é o mais antigo e se relaciona com os contextos de hegemonia católica do período Colonial e Imperial (1500-1889). O modelo catequético no ER é proselitista, objetiva à geração de novos fiéis mediante a propagação de sua doutrina religiosa. O ER teve seu início no Brasil como uma catequese que pretendia desenvolver a cristandade portuguesa nas “Índias”. Seus vieses são ontológicos, ou seja, essencialistas, não históricos e tão pouco existenciais. A catequese era levada para dentro das escolas confessionais e públicas, servindo como motivação espiritual, como base teórica e como estratégica para o Ensino Religioso. Num passado não muito remoto, foi a principal base do Ensino Religioso. (...) Essa ligação manteve uma continuidade entre as comunidades religiosas e as escolas e reproduziu no interior destas as catequeses das Igrejas que conquistavam espaço. Ainda que estejamos longe de uma legitimação dessa 22 prática, o modelo catequético ainda subsiste em algumas práticas do Ensino Religioso (PASSOS, 2006, p.29). Na busca da conquista espiritual do Brasil, a catequese teve um importante papel no que tange a ultrapassar os limites das comunidades religiosas, ou seja, atravessar a esfera das comunidades religiosas no intuito de angariar novos fiéis. Inúmeras vezes, em um passado não muito longe, a catequese, que ensinava a religião oficial do Estado ― no caso o catolicismo―, era apresentada dentro da escola pública. O ER, assim, se instrumentava num artifício eclesiástico na escola pública. Utilizamos o diagrama oferecido por João Décio Passos (PASSOS 2007, p.59) para mostrar esse modelo: Cosmovisão Unirreligiosa Contexto Político Aliança Igreja-Estado Fonte Conteúdos doutrinais Método Doutrinação Afinidade Escola tradicional Objetivo Expansão das Igrejas Responsabilidade Confissões religiosas Riscos Proselitismo e intolerância Este modelo, portanto, está organizado para a confessionalidade. Seu contexto político inicial é da aliança entre Igreja e Estado, sustentado por uma visão unirreligiosa da sociedade, onde cabia a Igreja a responsabilidade sobre seus conteúdos e professores. Oficialmente veio a ser corroborado pelo sistema nacional de ensino em 1961, com a LDBEN n° 4.024/61. No campo da Educação, este modelo apresenta grande afinidade com a escola tradicional, e seus métodos se enquadram no ensino de conteúdos prefixados, com estratégias bancárias e posturas autoritárias. Busca no contexto da atual sociedade moderna reconquistar a hegemonia de outrora, onde as confissões religiosas se impunham no contexto da sala de aula. Para PASSOS (2007, p. 59-60), trata-se de um modelo defasado, impossível de efetivar-se na atual conjuntura moderna, onde a Igreja e o Estado encontram-se separados; a não ser por alguma espécie de acordo entre ambos, o que é pouco provável diante da atual consciência educacional e religiosa que alcançamos nestes últimos tempos. 23 A consciência hoje é de que o estudo do fenômeno religioso deve-se dar a partir da escola, e não de uma ou mais denominações ou religiões como foi no passado. Claro que não se nega ao cidadão o direito a adquirir uma adequada formação para o exercício de sua religiosidade, porém, que isso aconteça fora do contexto escolar. Conforme o FONAPER, Por questões éticas e religiosas, e pela própria natureza da escola, não é função dela propor aos estudantes aos educadores a adesão e vivência desses conhecimentos, enquanto princípios de conduta religiosa e confessional, já que esses sempre são propriedade de uma determinada religião (PCNER, 1997, p.22). Claro que ainda há uma resistência a que este modelo se perpetua no seio das escolas, mesmo porque, é portador de longa tradição no interior das Igrejas cristãs históricas, vem do fato de tender fortemente ao proselitismo e a intolerância religiosa, o que se mostra inconcebível no contexto dos novos tempos. 1.2) O Modelo Teológico O segundo modelo surge com o objetivo de superar a prática catequética e responder melhor ao contexto de uma sociedadeplural e secularizada. Esta é uma perspectiva “ecumênica” do ER. Alguns autores (por exemplo, Sérgio Junqueira, 2002), preferem denominar esse modelo de interconfessional, inter-religioso e inter-relacional, o qual se desenvolveu, sobretudo, a partir da LDB nº 5.692/71, tendo forte influência do Concílio do Vaticano II realizado na década de 1960. Quanto a nós, continuaremos usando a definição de João Décio Passos, que assim se refere ao modelo Teológico. A teologia não configura, necessariamente, conteúdos confessionais nas programações de Ensino Religioso, mas age, sobretudo como um pressuposto que sustenta a convicção dos agentes e a própria motivação da ação; a missão de educar é afirmada como um valor sustentado por uma visão transcendente do ser humano. A religiosidade é, portanto, uma dimensão humana a ser educada, o princípio ‘fundante’ e o objetivo fundamental do Ensino Religioso escolar (PASSOS, 2006, p.31). Essa visão, conquanto revele uma disposição democrática da disciplina de ER, também parte do dado da fé nas diversas designações religiosas. Avoca a modernidade, e em certo modo, procura o diálogo entre as diferentes confissões religiosas e a sociedade. Proporciona o respeito e o diálogo entre as religiões, objetivando a formação integral do ser 24 humano. A disciplina de ER é apresentada sob o viés interdisciplinar na conjuntura escolar. Abaixo, apresentamos o quadro indicado por João Décio Passos (2007, p.63). Cosmovisão Plurirreligiosa Contexto Político Sociedade secularizada Fonte Antropologia, teologia do pluralismo Método Indução Afinidade Escola Nova Objetivo Formação religiosa dos cidadãos Responsabilidade Confissões religiosas Riscos Catequese disfarçada Do ponto de vista pedagógico é pautado pela antropologia da religião. Entende a religiosidade como uma dimensão integrante ao ser humano, sendo, portanto, um valor importante a ser educado. Caracteriza-se ainda por um avanço no sentido de superar a visão de cristandade medieval, assumindo uma cosmovisão plurirreligiosa (PASSOS, 2007, p. 60) da comunidade humana. As propostas elencadas por GRUEN (1995) na década de 70 evidenciam muito bem este modelo de ER na escola. Seu contexto histórico-político é a sociedade secularizada, moderna, em diálogo com a pluralidade cultural e religiosa do país, dentro de um horizonte de afinidades ecumênicas. A finalidade primeira é aperfeiçoar o homem religioso, contribuindo com a formação integral do cidadão, objetivo geral da Educação moderna. Entretanto, a responsabilidade pelos conteúdos e a habilitação de seus professores ainda recaem sobre os sistemas religiosos, o que leva ao risco de uma catequese disfarçada. “Mesmo embasado nessa antropologia e na convicção do respeito às diversidades, o risco desse modelo afigura ser o de uma catequização disfarçada, não tanto pelos seus conteúdos, mas pela responsabilidade ainda delegada às confissões religiosas” (PASSOS, 2007, p. 64). De fato, como não existe teologia aconfessional ou supraconfessional (SENA, 2007, p. 92), qualquer uma das religiões que assumir sua condução pode, facilmente, “estender para dentro da escola suas comunidades confessionais e suas reproduções doutrinais” (PASSOS, 2007, p. 61), o que iria de encontro ao princípio de laicidade do Estado moderno. 25 No campo da Educação, esta proposta possui grande afinidade com a Escola Nova, caracteriza-se pelo método da indução e valoriza a individualidade do educando. Destaca-se por “demarcar sua distinção da catequese e de afirmar o direito à pluralidade religiosa, bem como o valor do diálogo inter-religioso e da prática ecumênica no processo educativo” (PASSOS, 2007, p. 64). A visão é da Educação enquanto processo de humanização da pessoa e de um agir ético no mundo, pois conforme afirma a CNBB em seus estudos 2 , toda ação educativa se situa num contexto filosófico e de valores: Toda proposta de educação é também uma proposta de valores, de um tipo de homem e de um tipo de sociedade [...] um processo de humanização, expressão de um projeto utópico, o homem novo e a nova sociedade, que impulsiona para a transformação do mundo de opressão (PASSOS, 2007. p. 62). Assim, o homem aqui é visto como um projeto infinito, aberto à transcendência, disposto a uma realidade maior do que ele próprio. Educar é afirmar este horizonte, e encaminhar o ser humano a uma ação libertadora e uma sociedade mais justa. Já a metodologia, é da argumentação racional teológico-confessional, onde a filosofia se coloca como serva da teologia para pensar o ER. Entretanto, nenhum destes dois modelos responde às exigências didático- metodológicas de um contexto escolar laico, precisando assim, serem substituídos por uma proposta mais ampla que garanta a autonomia epistemológica e pedagógica do ER na escola, como veremos a seguir. 1.3) O Modelo das Ciências da Religião O terceiro modelo de ER tem sua base teórica nas Ciências da Religião. Na visão do modelo das Ciências da Religião, o ER adquire sua autonomia como área do conhecimento e como saber com estatuto epistemológico e pedagógico próprios. Também é denominado como modelo fenomenológico. A legislação brasileira para o ER adota esse modelo. Sua responsabilidade é da comunidade científica e do Estado, admitindo um objeto de estudo “maior do que a confessionalidade presente em cada denominação religiosa” 2 Para um maior aprofundamento sobre o assunto consultar: CNBB. Estudos da CNBB n. 41. Para uma pastoral da educação. 26 (JUNQUEIRA, CORRÊA e HOLANDA, 2007, p. 51). Efetivamente, a disciplina de ER, no contexto das escolas públicas, não necessita mais ser desempenhada por um teólogo, mas por um cientista da religião, com as apropriadas capacidades pedagógicas para o desempenho da docência. Conforme PASSOS (2006, p. 32), As Ciências da Religião podem oferecer a base teórica e metodológica para a abordagem da dimensão religiosa em seus diversos aspectos e manifestações, articulando-a de forma integrada com a discussão sobre a educação. Conforme essa concepção para o ER, a religião é uma elaboração histórica e sociocultural. Esta proposta não parte da profissão de fé do aluno/a nem do professor/a. Analisa-se a religião como fenômeno humano, utilizando o auxílio das variadas ciências: Psicologia, Antropologia, Sociologia, entre outras. Essa perspectiva visa à formação e desenvolvimento para a cidadania do educando. Assume a religião como algo que aceita a compreensão da realidade social e a vivência plena da cidadania. PASSOS (2007, p.66) considera: Cosmovisão Transreligiosa Contexto Político Sociedade secularizada Fonte As Ciências da Religião Método Indução Afinidade Epistemologia atual Objetivo Educação do cidadão Responsabilidade Comunidade científica e do Estado Riscos Neutralidade científica O modelo das Ciências da Religião assume uma cosmovisão transreligiosa 3 da religião e se baseia na redação da LDB nº 9.394/96, com a nova redação do Artigo 33, implementando um novo paradigma educacional, mais tarde ratificado pela Resolução do CEB/CNE nº 02/98 e CNE/ nº 07 de 14 de dezembro de 2010, que situaram o ER como área de conhecimento. Conforme PASSOS, (2007, p. 64), este terceiro modelo rompe com os dois anteriores e funda uma epistemologia abalizada em diferentes campos de estudo, como a História, 3 Mais adiante, especialmente no terceiro capítulo de nossa pesquisa, conceituaremos com Gilbraz Aragão o termo transreligioso. 27 Filosofia,Fenomenologia, Antropologia, Sociologia, Psicologia, etc., sendo caracterizado ainda por uma intencionalidade educativa clara e pelo método indutivo. Este modelo está em vias de desenvolvimento, mas já se encontra contemplado em algumas propostas pedagógicas, como na dos Parâmetros Curriculares do FONAPER. Sua cosmovisão se distingue dos demais modelos por ser secularizada e transreligiosa, estando em grande afinidade com a epistemologia atual. Também assume o método da indução e sua responsabilidade é da comunidade científica e do Estado. Passa-se a afirmar aqui a necessidade da educação religiosa em outros termos, não mais enquanto direito do cidadão ou dimensão antropológica que precisa ser educada, Trata-se de reconhecer sim, a religiosidade e a religião como dados antropológicos e socioculturais que devem ser abordados no conjunto das demais disciplinas escolares por razões cognitivas e pedagógicas. O conhecimento da religião faz parte da educação geral e contribui com a formação completa do cidadão, devendo, assim, estar sob responsabilidade dos sistemas de ensino e submetido às mesmas exigências das demais áreas do saber que compõem os currículos escolares (PASSOS, 2006, p. 65). A proposta, então, é de um conhecimento universal, tomando como ponto de partida o fenômeno religioso, fundamentado nas Ciências da Religião e sob a responsabilidade da comunidade científica e do Estado, capaz de possibilitar uma visão ampla das diversidades da Religião, e ao mesmo tempo, da singularidade que caracteriza o fenômeno religioso. Neste sentido, trata-se de uma visão transreligiosa que pode sintonizar-se com a visão epistemológica atual, sendo que busca superar a fragmentação do conhecimento posta pelas diversas ciências com suas especializações e alcançar horizontes de visão mais amplos sobre o ser humano (PASSOS, 2007, p.66). Para PASSOS ainda, a afirmação deste modelo acarretará em muitos desafios, tanto de ordem política, quanto histórica. Isto dependerá em muito dos trabalhos de profissionais da Educação, autoridades políticas e do próprio MEC. Para ele, o encaminhamento final está relacionado à transposição didática da área de Ciências da Religião para o ER, como também, a habilitação dos professores de ER pela Licenciatura em Ciências da Religião. As dificuldades, por fim, se devem à politização da disciplina, que a situa no campo de disputa entre Igreja e Estado. Porém, a própria Lei n. 9.475/97 abriu caminho para a afirmação de um modelo de ER secularizado e nos impõe agora a tarefa de construir para o 28 ER “um perfil pedagógico de releitura das questões religiosas da sociedade, baseado na compreensão de ‘área de conhecimento’ e orientado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais” (OLIVEIRA et. al., 2007, p. 58). 2) Um novo conceito de Ensino Religioso Partindo de suas novas diretrizes legais, o ER adota uma perspectiva que prioriza mais a diversidade e a pluralidade de expressões religiosas. Avançando nesse princípio, o respeito pela liberdade religiosa de cada educando pode ser possibilitado pela escola por meio de educadores habilitados, instruídos devidamente, ocasionando assim a consolidação para qualquer Governo, fundamentando-se em seu sistema ou na ideologia que o infunda. A renovação do conceito de um novo ER, da sua aplicação pedagógica, do estabelecimento de seus conteúdos e definição de sua metodologia, fornece à escola o respaldo adequado que qualquer ser humano precisa para produzir o seu conhecimento religioso. Adotando essa visão, as metodologias não são critérios, parâmetros, para a aprovação ou reprovação, mas motivos para uma análise individual no prosseguimento do seu processo de aprendizagem. Assim, a escola pode se tornar em uma agência significativamente expressiva para uma sociedade. O ER é tido transformador da educação (e da sociedade), uma vez que seu objetivo é a formação e as outras disciplinas intentam mais informar. Desse ponto que o ER é eficiente, porquanto se ocupa com a educação e não somente com a instrução. De acordo com a afirmação acima, o desafio no processo de ensino-aprendizagem busca, pela via do respeito, convivência, tolerância e paz, uma educação mais adequada, por um sistema educacional em que possa haver igualdade de expressão, em que, segundo Edgar Morin (MORIN, 2002), as diferenças não sejam destruídas, mas integradas (transdisciplinaridade). Quanto ao foco na busca de separar entre o certo e o errado no processo do ER, está na busca da integração dos saberes, uma integração que não deve significar a desintegração da própria religião, da cultura, do saber e dos conhecimentos em geral do outro. Esta concepção visa realçar que a partir da perspectiva da transdisciplinaridade, O ER nas escolas públicas buscará a realidade que está entre e além 29 das disciplinas científicas, possibilitando gerar uma atitude transreligiosa, que parte da experiência do sagrado ou divino e por isso não contradiz nenhuma tradição religiosa e envolve até as correntes ateias. Trata-se de favorecer o diálogo inter-religioso (pluralismo religioso), pela percepção de uma experiência comum, entre e para além das religiões. A qualidade de tal escolha (transdisciplinaridade) deve levar em consideração os critérios das definições das informações, a coerência, na compreensão e levantamento das questões da divergência entre os princípios fundamentais que devem ser continuamente estudados, revisados. Nesse sentido, é importante pôr em ação a não fragmentação também da formação de um profissional, cuja reflexão e ação norteiam o seu trabalho. Este novo conceito de ER pode se transformar num elemento extremamente útil para a formação cidadã, posto que a transdisciplinaridade no ER engendra uma atitude transcultural e transreligiosa. A atitude transcultural e transreligiosa designa a abertura de todas as culturas e religiões para aquilo que as atravessa e as ultrapassa, indicando que nenhuma cultura e religião se constituem em um lugar privilegiado a partir do qual podemos julgar universalmente as outras culturas, como nenhuma religião pode ser a única verdadeira ― mesmo que cada uma possa se experimentar como absolutamente verdadeira e universal. O ER engloba a condição de cidadão, faz parte da cidadania, o que inclui que ainda perante a negação da religiosidade humana é imperativo procurar compreender o outro, estando à disposição para preparar o cidadão para manter a sua religião e respeitar a religião alheia. O conceito de tolerância, entretanto, precisa ir muito além da expectativa, posto que o ser religioso é um dado cultural vigente em cada cultura e de larga representação no Brasil. É um progresso considerar o ER como elemento integrante da formação básica do cidadão. Uma das conquistas na contemporaneidade foi o direito da cidadania proposto na carta dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos elaborada na Assembleia Nacional Francesa (1789). Posteriormente, esta concepção foi resgatada pelas nações modernas na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), pela qual cada cidadão tem o direito de expressar-se diferentemente, portanto, o pluralismo na sociedade não é um problema, mas um contínuo aprender a viver (JUNQUEIRA, 2002, p. 19). Assim sendo, o cidadão tem o direito de executar com liberdade sua religião, e ademais, a religiosidade passa a achar espaço nas ambiências escolares. Com isso, o 30 dispositivo legal objetiva enfatizar a importância do fenômeno religioso para o entendimento da realidade social ao mesmo tempo em que insiste que ao cidadão não pode faltar o conhecimento dos valores religiosos de nossa cultura. O estudoda religião se torna uma via indispensável na tarefa urgente de educar para a convivência universal, e mais, para a sobrevivência humana e ecológica em tempos de crise planetária. O conhecimento das alteridades religiosas é um objetivo educacional sem o qual não se podem conhecer verdadeiramente as particularidades e a totalidade que compõem nossa vida sempre mais globalizada e, com maior razão, a lógica religiosa inerente a muitos conflitos mundiais em franco curso ou, cinicamente, anunciados por certos blocos de poder (PASSOS, 2007, p. 125). A concepção de conhecimento geralmente está agregada, latente ou patentemente, a uma imagem metafórica que, em grande parte, estabelece o papel das disciplinas. Por meio desses conhecimentos possibilita ao educando o saber de si, e durante o seu trajeto na caminhada escolar compreenderá com mais nitidez a sua procura do Transcendente que colaborará para a formação de cidadania. É a reflexão a partir do conhecimento que possibilita uma compreensão do ser humano como finito. É na finitude que se procura fundamentar o fenômeno religioso, que torna o ser humano capaz de construir-se na liberdade. Entende-se também que a Escola é o espaço de construção de conhecimentos e principalmente de socialização de conhecimentos historicamente produzidos e acumulados. O conhecimento religioso deve estar disponível a todos os que a ele queiram ter acesso (FONAPER, 1997, p. 21). A tradição religiosa de cada educando é o que vai fazer a diferença na ideia de integração entre a formação pessoal e social, entre o desenvolvimento das personalidades individuais e o absoluto exercício da cidadania sem proselitismo de qualquer tradição. Desse modo o ER articula o dado antropológico, ao conceber o fenômeno religioso a partir da abertura do ser humano para a transcendência, e o elemento sociológico, ao considerar a importância da religião na vida social. Todos esses elementos se encontram conjugados a partir da dimensão pedagógica, uma vez que o objetivo principal do ER é a formação para a cidadania e a convivência universal, descobrindo as diferentes alteridades religiosas. Um conhecimento político ou religioso pode não interessar a um grupo, mas, uma vez produzido, é patrimônio humano e como tal deve estar disponível. O conhecimento religioso é um conhecimento disponível e, por isso, a Escola não pode recusar-se a socializá-lo. Por questões éticas e religiosas, e pela própria natureza da Escola, não é função dela propor aos educandos a adesão e vivência desses conhecimentos, enquanto princípios de conduta religiosa e confessional, já 31 que esses são sempre propriedade de uma determinada religião (FONAPER, 1997, p.22). Através dos conteúdos o conhecimento do fenômeno religioso é propiciado, respeitando as características de cada educando dentro da série que se encontra engajado. Deve-se fazer um elo com os eixos organizadores do ER através das culturas e tradições religiosas, teologias, textos sagrados, ritos e ethos que apoiam a pluralidade religiosa do Brasil, valorizando a vivência religiosa de cada educando. Toda a proposta para o trabalho realizado no Ensino Religioso está baseada no respeito à diferença. O outro é sempre o diferente; sua história é diferente. Sua vida e o modo de enxergá-la é diverso. Suas manifestações culturais são diferentes e, sempre, muito bonitas, se pensadas na prerrogativa da diferença cultural. Assim, sua religiosidade se manifesta diferentemente e isto não deveria ser motivo de surpresa. Esta é a razão que justifica um Ensino Religioso que se pauta pela perspectiva da ciência da religião (MENEGHETTI, 2002, p.53). A história e o conhecimento do fenômeno religioso são ao mesmo tempo construídos e revelados. Diante dessa complexidade é necessário que o educador seja proprietário de conhecimento para a sensibilização que o educando precisa para desvendar o mistério do sentido da vida pelo sentido da vida além da morte, tema presente nas Tradições Religiosas. O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. [...] Encontramo-nos diante do ato misterioso: a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, ‘profano’ (ELIADE, 2001, p. 17). Esse pressuposto sugere alguns embates entre os pesquisadores na área de ER. Enquanto uma disciplina escolar, não pode o ER ignorar a dimensão de transcendência do ser humano, ficando reduzido meramente ao dado racional. Há experiências que procuram transformar o ER numa aula de História das Religiões. O caminho não é esse. O objetivo é proporcionar, ainda que no plano da fenomenologia, uma experiência humana significativa que envolva a dimensão do Sagrado presente nas diferentes tradições religiosas. Assim, essa experiência é complexa, holística, pois procura atingir o ser humano como um todo, e não apenas seu aspecto intelectual. O Ensino Religioso poderá despertar o aluno para os aspectos transcendentes da existência como: a busca do sentido radical da vida, a descoberta de seu compromisso com o social e a conscientização de ser parte de um todo. Esse processo de despertar e descobrir, que é permeado de ações, gestos e palavras, 32 símbolos e valores, que só adquirem significação na vivência, na participação e na partilha (JUNQUEIRA, 2002, p. 91). É ao longo do percurso do Ensino Fundamental que se constrói a compreensão sobre as reflexões concebidas do fenômeno religioso, nas indagações existenciais: Quem sou? De onde vim? Para onde vou? Associada a este fato, cresce a consciência da necessidade de organizações de conteúdos que contribuirá para situar as atenções sobre a construção dos significados da pluralidade religiosa. Na compreensão dos diferentes significados dos símbolos religiosos na vida e na convivência, espera-se que o educando chegue ao significado dos símbolos mais importantes de cada tradição religiosa, a partir do seu contexto socio-cultural, e que, na comparação do(s) seu(s) significado(s), desenvolva um entendimento e respeito crescentes na convivência da sala de aula e nos diferentes grupos (FONAPER, 1997, p. 45). A educação, segundo a concepção de Paulo Freire, busca promover condições para que o ser humano supere as limitações próprias de sua condição de oprimido. O reconhecimento de que o ser humano não está pronto e se sabe assim, faz com que este busque formas para construir sua própria existência. Esta busca, para que seja legítima, deve partir do sujeito em sua própria iniciativa, levando em conta a sua realidade e seu contexto existencial. O comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores. Os oprimidos, que introjetam a ‘sombra’ dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que ‘preenchessem’ o ‘vazio’ deixado pela expulsão do outro ‘conteúdo’ – o de sua autonomia (FREIRE, 1988, p.34). Os pressupostos didáticos do ER, para serem bem desenvolvidos, pedem o bom uso dos meios auxiliares de ensino-aprendizagem. Solicitam também, que os educadores conheçam os fundamentos da sua pedagogia amparados em argumentos que sejam acolhidos de acordo com a necessidade na sintonia escola – vida. O processo de construção de conhecimento desenvolve-se no convívio humano, na interação entre indivíduo e cultura na qual vive, na qual se forma e para qual se forma. Por isso, fala-se em aquisição de competências, à medida que o indivíduo se apropriade elementos com significação na cultura. Nesse contexto o Ensino Religioso ocupa relevante papel educacional. Portanto, não há real construção de conhecimentos sem que resulte, do mesmo movimento, uma construção de competências (JUNQUEIRA, 2002a, p. 25). 33 Portanto, é preciso operacionalizar os pressupostos do ER, explicitando a concepção do ser humano, da cultura, da sociedade e da história, na qual o ser humano assume um valor inquestionável da sociedade, da justiça, da solidariedade e da igualdade. Não é possível fazer uma reflexão sobre o que é educação sem refletir sobre o próprio homem. Por isso, é preciso fazer um estudo filosófico-antropológico. Comecemos por pensar sobre nós mesmos e tratemos de encontrar, na natureza do homem, algo que possa constituir o núcleo fundamental onde se sustente o processo de educação... A educação é uma reposta da finitude na infinitude. A educação é possível para o homem, por que este é inacabado e sabe-se inacabado (FREIRE, 2006, p. 27). Quando falamos de ER, a referência é explícita à opção por uma ética de respeito ao outro, do diálogo, acentuando o caráter comunitário e, portanto, o relacionamento social como fator básico dos pressupostos educacionais. Nesta perspectiva, é fundamental que o ER, desde cedo, ensine os nossos educandos a lidar com clareza com os conflitos religiosos, não os ignorando, nem os radicalizando, mas tentando superá-los dialeticamente com sínteses novas e perspectivas fecundas. A promoção da dignidade humana perpassa, entre outros pontos, pelo respeito e reconhecimento das diferentes formas de religiosidades, tradições e/ou movimentos religiosos, bem como daqueles que não seguem forma alguma de religião ou crença religiosa. A condição necessária para o exercício do diálogo é o reconhecimento do Outro4, como um legítimo interlocutor: Sem alteridade não há diálogo. Por isso, se o pluralismo é condição sine qua non para o diálogo, esta será garantida por uma atitude relacional, capaz de romper com uma visão do outro que o toma como uma abstração ou uma configuração psíquica. (TEIXEIRA, 1993, p. 26). Para TEIXEIRA (2004), no diálogo inter-religioso não se pode violar, apagar ou negar o dado essencial da diversidade dentre as religiões. Ao contrário, dever-se-á (re)conhecer singularidades e especificidades de cada tradição e/ou movimento religioso. No exercício do diálogo não há fusão e nem confusão, mas este exige abertura e distanciamento de autossuficiências que dificultam e limitam a compreensão de que cada religião é um 4 O termo “Outro” (com a inicial em maiúsculo) quer representar os “Outros” e “Outras”, que para LEVINAS (2005), representa aquele que não pode ser contido, que conduz para além de todo contexto e do ser. O Outro não pode ser reduzido a um conceito; é rosto, presença viva que interpela, convoca, desafia e constrói. 34 fragmento em processos de crescimento e afirmação. “O diálogo não enfraquece a fé, como alguns temem, mas possibilita um aprofundamento e ampliação de seus horizontes” (TEIXEIRA, 2004, p. 19). O diálogo é processo mediador, articulador, fomentador e criador de possibilidades para o reconhecimento do Outro no processo educativo, através do qual é possível construir explicações e referenciais que escapam do uso ideológico, doutrinal e catequético (FONAPER, 1997). Na dinâmica da abertura (pró)vocada pelo diálogo, irrompem possibilidades da construção de outros desenhos – fios – nas e para tramas identitárias individuais e coletivas. Na concepção de FREIRE (1988), o diálogo é instrumento educativo que propicia e encaminha à libertação comunitária. Nesse exercício, saberes diferentes são socializados, revendo situações, limites, posturas, decisões, num movimento que atinge, emociona, desaloja e desafia o individual e o coletivo. Nesse lugar de encontro “não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que em comunhão buscam saber mais” (FREIRE, 1988, p. 81), conhecendo-se e reconhecendo-se sujeitos e agentes da e na história. Diante das cegueiras de caráter religioso que contribuem para a manutenção de complexos processos de exclusões e desigualdades, a educação através do ER e as religiões são apontadas como ambientes privilegiados à constituição de uma cultura dos direitos humanos. O teólogo Hans Küng (1998, p. 186), em sua obra Projeto da ética mundial, enfatiza que não haverá futuro no planeta sem o exercício de uma ética mundial, um estado de paz no mundo. Para ele, o problema consiste no confronto entre a “minha” crença e a crença do “outro”. Nesse campo, situa-se o risco do conflito, mas também a possibilidade do diálogo. Nesse sentido, o ER comprometido com a promoção dos direitos humanos elegerá o diálogo como metodologia privilegiada para o aprendizado. O diálogo possibilitará o conhecimento do Outro em alteridade, incentivando a convivência com as diferenças numa perspectiva de descoberta e releitura do religioso em seus diferentes aspectos. 35 Ao socializar e promover o diálogo acerca das diferentes vivências, percepções e elaborações religiosas que integram o substrato cultural da humanidade, a educação oportunizará a liberdade de expressão religiosa. Desse modo, problemáticas que envolvem questões como discriminação étnica, cultural e religiosa têm a oportunidade de sair das sombras, que levam à proliferação de ambiguidades nas falas e nas atitudes, para serem trazidas à luz, como elementos de aprendizagem, enriquecimento e crescimento do contexto escolar como um todo (BRASIL, 1997). Assim, o estudo, a pesquisa e o diálogo sobre a diversidade cultural religiosa se apresentam como um dos elementos para a formação integral do ser humano no espaço escolar e encaminham vivências fundamentadas nos direitos humanos e direito à diferença (OLIVEIRA, 2003). O despertar desta nova compreensão se apresenta com uma das mais importantes contribuições da escola na atualidade: a participação coletiva na busca pelo término de conflitos religiosos, violações dos direitos humanos e desrespeitos à liberdade de pensamento, consciência, religião ou de qualquer convicção. Isso corrobora com a concretização da Declaração para Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com Base em Religião ou Convicção (ONU, 1981), assim estabelecida: Artigo 2º § 1°. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicções por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares. § 2°. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou nas convicções e cujo fim ou efeito seja a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Artigo 3º A discriminação entre os seres humanos por motivos de religião ou de convicções constitui uma ofensa à dignidade humana e uma negação dos princípios da Carta das Nações Unidas, e deve ser condenada como uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal de Direitos Humanos e enunciados detalhadamente nos Pactos internacionais de direitos humanos, e como um obstáculo para as relações amistosas e pacíficas entre as nações. [...] Artigo 5° [...] § 3°. A criança estará protegida de qualquer forma de discriminação por motivos de religião ou convicções. Ela será educada em um espírito de compreensão, 36 tolerância, amizade entre ospovos, paz e fraternidade universal, respeito à liberdade de religião ou de convicções dos demais e em plena consciência de que sua energia e seus talentos devem dedicar-se ao serviço da humanidade. Artigo 6º [...] e) A de ensinar a religião ou as convicções em lugares aptos para esses fins. [...] Considerando que a escola não é espaço para ensinar a religião ou convicções de uma determinada confessionalidade, mas lugar de construção de conhecimentos sobre a diversidade cultural religiosa brasileira e mundial, cabe aos educadores e aos educandos refletir sobre as diversas experiências religiosas que os cercam; analisar o papel dos movimentos e tradições religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas; compreender que cada sujeito ou grupo social possui seus próprios referenciais para lidar com os desafios da vida cotidiana e, acima de tudo, execrar toda e qualquer forma de discriminação e preconceito. Oportunizar tempos, espaços e lugares ao estudo científico e respeitoso da diversidade cultural religiosa, entendida como patrimônio da humanidade (UNESCO, 2001), significa romper com diferenciais de poder (da cultura religiosa dominante, o cristianismo), com relações de poder que encobrem e naturalizam estereótipos, discriminações e preconceitos. Reconhecer o religioso em sua diversidade, em vez de excluí-lo da escola, ou aprisioná-lo sob os imperativos de uma perspectiva proselitista, implica mudar não apenas as intenções do que se quer transmitir, mas os processos internos que são desenvolvidos. Essa mudança necessária perpassa a utilização de outra base epistemológica, de perspectiva transcultural, transreligiosa e transdisciplinar, numa adoção de métodos pedagógicos que abarquem a complexidade das culturas, das religiões e das relações humanas (nosso assunto do segundo e terceiro capítulo desta pesquisa). À escola, enquanto lugar de trânsito de culturas, não compete homogeneizar a diversidade religiosa, mas garantir a liberdade religiosa, por meio da igualdade de acesso ao conhecimento de todas as culturas, tradições/grupos religiosos e não religiosos, promovendo os direitos humanos. 37 3) Educação religiosa e Ciências da Religião Na seleção dos conteúdos a serem trabalhados em sala de aula no ER é importante que se faça uso das Ciências da Religião, uma vez que os Parâmetros Curriculares Nacionais abordam o elemento religioso a partir da sua fenomenologia, isto é, de sua manifestação enquanto cultura produzida pelo ser humano. Nesse sentido a fenomenologia vê a religião como uma produção do homo religiosus, do ser humano que produz religião. O uso das ciências vinculadas ao fenômeno religioso compreende basicamente o recurso à História das Religiões, à Sociologia da Religião e à Psicologia da Religião. Na esfera dos saberes encontra-se a Filosofia da Religião, a Teologia, a Teologia das Religiões e a Fenomenologia da Religião. A utilização dos pressupostos das diferentes ciências e saberes no campo religioso permitem uma melhor abordagem dos conteúdos no ER. Deste modo, a seleção dos temas de estudo, mesmo tratando do horizonte religioso, encontra o respaldo de diferentes ciências e conhecimentos sistematizados (CROATTO, 2002, p.17- 27). Os conteúdos fundamentais das diferentes religiões podem ser condensados a partir da seguinte sistematização: A Experiência Religiosa; O Símbolo; O Mito; O Rito e A Doutrina. Todas as religiões possuem esses elementos como partes indispensáveis de sua organização e constituição. Desse modo, a atuação docente no ER não pode ignorar esses elementos. Antes, deve incorporá-los no desenvolvimento dos temas de estudo em suas atividades didático-pedagógicas (CROATTO, 2002, p.11). 3.1) A área das Ciências da Religião Uma vez que visamos adotar a área das Ciências da Religião para o ER, passa a ser importante examinar um pouco melhor suas constituintes. A origem das Ciências da Religião remonta ao final séc. XVIII, mas sua institucionalização se dá somente no séc. XIX, quando é criada a primeira cátedra da área na Suíça, em 1873. Posteriormente viria a se firmar também na Holanda, França, Bélgica e Alemanha (USARSKI, 2007, p. 56). O foco das Ciências da Religião é a religião enquanto fenômeno presente na história de todos 38 os povos e em todas as culturas. No entanto, por ser uma área recente nas universidades, seu estatuto ainda está em processo de consolidação. Conforme TEIXEIRA (2007, p. 64), As Ciências da Religião vêm se firmando cada vez mais nos panoramas acadêmicos internacional e nacional. Trata-se de um campo disciplinar marcado por uma estrutura dinâmica e aberta, cujo estatuto epistemológico permanece ainda em processo de definição. De modo que ainda não há um consenso em torno do seu objeto e método de pesquisa. Afinal, a Ciência da Religião possui um método, ou vários: Ciências da Religião? Seu objeto é unitário: a religião, ou plural, as religiões? Mas não é nosso objetivo fechar esta questão. A discussão é bem vinda, e precisa se estender mais. Porém, assumimos nesta pesquisa as Ciências da Religião, com a cosmovisão transdisciplinar e transreligiosa, que analisa a religião de vários ângulos através da fenomenologia, sociologia, história, psicologia, antropologia etc., que nos coloca em afinidade com as epistemologias atuais. No Brasil, as Ciências da Religião é uma área ainda mais nova. Em 2016, existem no país dez cursos de pós-graduação em Ciências da Religião, todos recomendados pelo Capes 5 , inclusive em Universidade públicas, como a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/Mestrado e Doutorado), Universidade Federal da Paraíba (UFPB/Mestrado) e Universidade do Estado do Pará (UEPA/Mestrado), as demais são privadas, como a Universidade Metodista de São Paulo (UMESP/Mestrado e Doutorado). Aqui o campo acadêmico é marcado pela inter, multi e transdisciplinaridade e pluralismo metodológico, pois capta o fenômeno religioso a partir da metodologia de várias disciplinas, dentre as quais, a História das Religiões, Filosofia da Religião, Psicologia da Religião, Teologia, Fenomenologia da Religião, Sociologia da Religião, Antropologia da Religião e o estudo comparado das religiões. Quanto a seu procedimento metodológico, na área das Ciências da Religião ainda se discute a plausibilidade do “ateísmo metodológico”, que arrazoa a possibilidade de uma postura neutra por parte do pesquisador ao investigar o fenômeno religioso. Mas nessa questão também há controvérsias. PONDÉ (2001, p. 57), por exemplo, argumenta que tal procedimento não ajuda, até o contrário, conduz o pesquisador a uma militância 5 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, ligada ao Ministério da Educação, que se encarrega de avaliar a pós-graduação stricto sensu. 39 antirreligiosa, prejudicando o conhecimento do outro, sendo preferível o risco do contágio à “carência epistemológica”. De fato, sobretudo na pesquisa qualitativa, não é aconselhado desmerecer a relação objeto e sujeito, que iremos aprofundar mais a frente ao tratar do método fenomenológico. Assim, nas ciências humanas, diverso das naturais, o que se conhece está nesta relação, que têm, certamente, implicações importantes na pesquisa e até pode ajudar. Se nas ciências naturais se pretende evitar ao máximo o envolvimento do pesquisador, nas humanas o que se tem a fazer é tirar proveito desse envolvimento. 3.2) Ciências da Religião e Fenomenologia da Religião Como vimos, o campo acadêmico das Ciências da Religião é marcado pela interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, transdisciplinaridade
Compartilhar