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(03) Sociologia da Educação

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SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO
FEST – Filemom Escola Superior de Telologia
Curso Bacharel em Filosofia
“Historicamente, as duas oposições polares no campo dos fins educacionais são: despertar carisma, isto é, qualidades heróicas ou dons mágicos; e distribuir treinamento especializado. O primeiro tipo corresponde à estrutura carismática de dominação; o segundo tipo corresponde à (moderna) estrutura racional ou burocrática de dominação. A oposição entre os dois tipos não significa ausência de conexões ou transições entre eles. O herói guerreiro ou o mágico também precisam de treinamento especial, e o oficial especializado geralmente não é treinado exclusivamento para o conhecimento. Entretanto, essas são oposições polares de tipos de educação e compõem o mais radical dos contrastes. Entre elas são encontrados todos aqueles tipos que têm por objetivo cultivar o aluno para uma conduta na vida, seja de caráter mundano ou religioso. Em todos os casos, a conduta na vida é a conduta do grupo de status.” (Max Weber, Os Literatos Chineses)
Esse artigo explora uma abordagem sociológica da educação que focaliza a participação específica da escolarização nos processos através dos quais se aprende a ser agente social (isto é, a participar das interações, a ocupar posições de status, a construir relacionamentos no grupo) e se adquire a competência, as habilidades, a sensibilidade e as disposições apropriadas para essa participação social�.
A discussão aqui desenvolvida é guiada pela tentativa de examinar as condições que tornam possível a construção da educação em sua forma escolar como objeto para o estudo da diferenciação social nas complexas sociedades contemporâneas. Pretende-se, particularmente, verificar em que medida essa dimensão de análise contribuiria para a compreensão da estrutura de dominação que dá sentido às interações entre os grupos sociais na sociedade brasileira.
Para isto, interroga-se certas proposições conceituais que tomam a escolarização como uma experiência capaz de interferir na organização da estrutura da percepção das crianças e jovens a ela submetidos, contribuindo para a produção de uma maneira específica de ver o mundo, que é, ao mesmo tempo, uma maneira de se ver no mundo em relação aos outros.
O estudo da escolarização implícito nessa forma de construí-la como objeto vai além da simples investigação da performance escolar, problema enfrentado pela sociologia da educação mais difundida, e propõe examinar a função de sociodicéia exercida pelo sistema educacional enquanto instância produtora da maneira como os diferentes grupos sociais definem e categorizam a si próprios e uns aos outros.
Essa maneira de pensar a educação foi especialmente desenvolvida por Max Weber e, posteriormente, por Pierre Bourdieu e seus colaboradores. O mapeamento das posições desses autores, junto com uma discussão a respeito dos estudos de Basil Bernstein sobre a organização do conhecimento escolar, constitui um dos eixos que estruturam o artigo. O segundo eixo relaciona essas hipóteses com os achados de uma pesquisa sobre as experiências de escolarização de grupos dirigentes na cidade de São Paulo. Com isso, pretende-se, ao mesmo tempo, verificar o potencial de uma tal abordagem e definir os limites da sua utilização.
I. Pertencimento e diferenciação
Pertencer a uma determinada sociedade ou dela sentir-se membro supõe a capacidade de operar uma cultura. Isto significa ser capaz manipular uma elaborada teia de significações socialmente constituída e institucionalizada que dá sentido às interações entre os indivíduos e torna única cada formação social. A idéia de cultura, nesse caso, permite compreender a possibilidade de comunicação entre as inteligências (Durkheim, 1995 [1922]).
Mas a cultura não produz apenas um efeito integrador. Este mesmo conceito permite compreender certos fundamentos da diferença social, na medida que a cultura está encarregada de produzir a integração num espaço social diferenciado e hierarquizado, concretizando a definição de posições específicas para os indivíduos ou grupo de indivíduos.
O pertencimento a uma formação social pode ser visto, assim, como o resultado de um processo através do qual o indivíduo se constitui como membro do grupo e, ao mesmo tempo, como ocupante de uma posição específica no espaço de diferenças que estrutura o grupo: a cultura que une é a cultura que separa (Bourdieu, 1989 [1977])�.
Uma das maneiras de se conceituar esse processo é tratá-lo como aprendizado, isto é, como um processo de aquisição do conhecimento e das disposições necessárias à operação dos elementos que caracterizam cada posição social. Nessa lógica, o aprendizado do pertencimento pode ser visto, ao mesmo tempo, como o aprendizado da diferença�.
Esse modo de pensar o pertencimento e seu aprendizado, que pretende ser válido para todo tipo de formação social, é particularmente adequado à abordagem da diferenciação nas sociedades complexas contemporâneas, em que as diferenças entre posições obedecem a uma forte hierarquização definida principalmente em função das diferenças de acesso aos recursos materiais e simbólicos coletivamente produzidos. Tais diferenças expressam não apenas desigualdades de renda e poder econômico, mas também desigualdades de estilo de vida e honra social�.
Pensar a escolarização, nesse quadro, significa interrogar a contribuição específica da escola na produção, manutenção e transformação das relações entre os diferentes grupos sociais. Mais particularmente, significa qualificar, numa dada sociedade, a natureza das interações entre, de um lado, a estrutura do sistema de ensino e, de outro lado, a estrutura das relações de classe e das relações de status.
Para isso, importa identificar os efeitos, sobre a diferenciação social e sobre o aprendizado da diferença, da existência dessa instituição denominada escola.
I. 1. A forma escolar, o pertencimento e a diferença
Parte das questões sobre a transmissão cultural intergeneracional pode ser traduzida como questões sobre a maneira como as gerações mais velhas conseguem estabilizar as formas culturais em que estão imersas�. Pode-se ver a estabilização como o resultado de uma transmissão propriamente dita de esquemas, códigos e representações (Lévi-Strauss), como o resultado de um trabalho que visa garantir condições específicas de desenvolvimento aos sucessores, constituindo um ambiente social que lhes permite adquirir suas próprias habilidades ou disposições (Geertz) ou, ainda, como as duas coisas (Bourdieu). Em todos os casos, supõe-se a ocorrência de um trabalho (consciente ou não) por parte das gerações mais velhas ao qual são submetidas as gerações mais novas.
As formações sociais que introduziram a modalidade escolar de educação nesse processo diferenciam-se das outras na medida que delegam parte dessa tarefa a um grupo de especialistas especificamente preparado, reunido num espaço especificamente designado para esse fim.
A crença de que a transmissão que se desenrola sem a participação desses agentes e sem essa especialização do espaço teria a seu favor a força social da tradição, impedindo as perguntas sobre a legitimidade de tal ou qual ação ou conteúdo pedagógico, tem apoiado algumas vezes a idéia de que a forma escolar de estabilização cultural possa ser pouco eficaz (Giddens, 1979a).
No entanto, estudos sobre a história das “sociedades sem história” (Sahlins, 1994 e Gellner, 1964), que apontam os limites da possibilidade de proteger uma tradição transmitida oralmente, e estudos que mostram como o modo de operação da escola aumenta as possibilidades de manutenção da tradição (recapitulando e refinando a memória até a exaustão nos exercícios que propõe como parte das rotinas de trabalho) (Ringer, 1979 e 1990) sustentam a idéia de que a escola reforça a tradição. Ela acrescentaria a força específica da memória escolar ao trabalho de estabilização cultural desenvolvido também em outros espaços�.
Atéo século XIX, a força estabilizadora da escola esteve, em grande parte, desvinculada do trabalho de garantir a continuidade intergeneracional das estruturas gerais de diferenciação social e cultural nas sociedades de classes. Até então, a resistência das famílias de diferentes grupos sociais à generalização da forma escolar de educação havia limitado as possibilidades de ocorrência de um encontro entre essas duas dimensões transmissoras (Ariès, 1972). Esse encontro foi tornado possível pelas modificações que acompanharam o surgimento dos sistemas nacionais de ensino.
I. 2. Os sistemas nacionais de ensino e a diferença social
O arcabouço institucional hierarquizado chamado aqui de sistema de ensino resulta de um processo historicamente definido de articulação, num sistema integrado e coerente, das diferentes formas de escolarização presentes em um território. Surge um sistema porque a cada entidade é reservado um lugar e uma função que se define em relação ao lugar e à função das outras. Assim, só é possível compreender um sistema educacional se tratarmos as diferentes instituições, currículos e diplomas aí presentes nas suas relações uns com os outros.
Na maioria dos países da Europa Ocidental, a articulação das formas escolares deu-se progressivamente entre o início do século XIX até a Primeira Guerra. No Brasil, ela teve lugar essencialmente a partir dos anos trinta (Schwartzman, xxx). Nos dois casos, essa articulação foi acompanhada por uma convergência progressiva com o sistema ocupacional (Müller et al., 1987, e Owensby, 1998).
Argumentos de caráter econômico-funcionalista têm sido freqüentemente mobilizados para explicar esse processo. Nesse quadro analítico, as mudanças no sistema de ensino que têm lugar nesse período são pensadas exclusivamente como uma resposta a “necessidades” econômicas (Locke, 1984). Evidências empíricas mostram, porém, que, mesmo a partir do momento em que as interações entre o mercado de trabalho e o sistema de qualificações educacionais tornaram-se mais próximas e certas formações passaram a ser percebidas como pré-requisitos para a ocupação de determinados postos, tanto pode-se dizer que o primeiro tem contribuído para modelar o segundo, quanto o oposto�.
Um modelo teórico alternativo pode ser encontrado em Bourdieu & Boltanski (1999 [1975]). No quadro analítico proposto pelos autores, a escola contemporânea (espaço de “produção dos produtores”) é definida, junto com a família, por uma dupla vinculação. Ela produz, ao mesmo tempo, a força de trabalho qualificada (exigida crescentemente pelo sistema produtivo a partir da Revolução Industrial) e os agentes dispostos a ocupar posições sociais específicas (garantindo a transmissão intergeneracional, na linguagem utilizada aqui).
A importância relativa de cada um dos elementos da dupla família/escola na produção dos agentes sociais está diretamente conectada com o tipo de organização econômica nas diferentes formações sociais. A escola torna-se predominante à medida que o espaço de produção econômica cresce e torna-se mais complexo, passando a exigir um maior volume de conhecimentos para se operar no seu interior.
O volume e o tipo de conhecimento necessário para a formação de produtores capazes de responder às demandas do espaço de produção assim organizado impõem a concentração e intensificação das atividades formadoras num nível que dificilmente pode ser assumido pelas famílias. Essas, em conseqüência, delegam parte do seu trabalho de formação a instituições especializadas.
A dupla vinculação da escola restringe a sua dependência com relação ao sistema produtivo. Essa condição, associada às suas tendências auto-reprodutoras (preservação da sua mensagem e conformismo dos seus agentes), leva a escola a depender “menos diretamente das exigências do sistema de produção do que das exigências de reprodução do grupo familiar” (Bourdieu e Boltanski, 1999 [1975]: 130).
O processo de sistematização do ensino que tem lugar a partir do final do século XIX é, assim, melhor compreendido quando analisado em termos dos seus efeitos sociais, isto é, em termos da contribuição que progressivamente a escola passa a oferecer aos processos de transmissão intergeneracional das diferenças sociais.
Dois efeitos da articulação das formas escolares tornam operatório o encontro dos dois sistemas de reprodução (o sistema escolar e o sistema de classes): a unificação formal dos conteúdos e a segmentação das modalidades de ensino.
I. 3. Sistematização e segmentação dos sistemas de ensino
A sistematização, reunindo num todo articulado e hierarquizado as formas escolares existentes num território, foi parte das transformações que acompanharam a construção dos Estados Nacionais. Esse processo implicou, entre outras mudanças, a instituição da escola universal, isto é, a inauguração do controle do Estado sobre o conteúdo do trabalho pedagógico desenvolvido em cada um dos sub-espaços que compõem o sistema.
Adicionado a formas mais ou menos rígidas de imposição do direito à escola enquanto obrigação de escolaridade, o surgimento dos sistemas nacionais de ensino acompanhou o deslocamento, para um espaço escolar razoavelmente homogeneizado, do trabalho de socialização e enculturação das gerações mais novas até então exercido majoritariamente pelas famílias, que, nesse momento, passam a entregar a formação de seus filhos a um corpo de especialistas certificados pelo Estado�.
O efeito desse deslocamento não seria tão importante se não tivesse sido acompanhado por medidas que implementaram a noção de currículo obrigatório.
Evidentemente, como mostra Bernstein (1971), o conhecimento escolar não se estrutura como uma amostra dos conhecimentos disponíveis numa dada sociedade. O conhecimento escolar, apesar de tratado como “público”, é o resultado de um processo de seleção, classificação, distribuição, transmissão e avaliação operado pela instituição e validado pela sociedade mais ampla que “reflete tanto a distribuição de poder quanto os princípios de controle social” (p. 47).
A sistematização do ensino que ocorre no século XIX é acompanhada pela definição de determinados conhecimentos como legítimos, o que implicou a desqualificação de outros. Compreendida à luz de uma teoria da violência simbólica (Bourdieu, 1989 [1977]), a sistematização do ensino significou a imposição, pelo Estado, de um modelo de competência escolar que passa a ser usado como medida do valor dos saberes produzidos pelos diferentes grupos sociais e diferencialmente apropriados pela instituição escolar.
É nesses termos que deve ser pensado o encontro entre a ação auto-reprodutora da escola e a continuidade intergeneracional da desigualdade entre os grupos sociais. Nos países da Europa Ocidental, o rendimento desse encontro é mais alto no período que vai do final do século passado até o pós-guerra, momento em que as modificações na percepção da justiça social colocaram a meritocracia escolar como eixo fundador da democracia moderna. Construindo a idéia de que a hierarquização escolar funcionaria de forma autônoma da hierarquia de classes, a ideologia meritocrática permitiu que o modelo escolar de competência passasse a informar também a idéia de competência pessoal ou social.
A concretização da diferenciação produzida pela escola se dá através da classificação e distribuição dos alunos pelos vários segmentos do sistema de ensino, hierarquizados em função, por um lado, da importância socialmente atribuída ao tipo de ensino que cada segmento está em condições de transmitir e, por outro lado, em função da importância social dos grupos que está encarregado de formar. 
As estruturas do ensino podem, assim, ser diferenciadas não só em termos de diferenças curriculares, mas também em termos da composição social do recrutamento dos alunos. A idéia de segmentação faz referência à estrutura e à função social do conhecimento. Ela diz respeito à importância desse conhecimento para a legitimação das estruturas educacionais, para a construção dasauto-imagens das diferentes camadas sociais e das hierarquias de prestígio e para a emergência de padrões culturais de interpretação, uma idéia explorada por Weber (1946 [1920]) no seu estudo sobre os letrados chineses�.
A teoria da reprodução proposta por Bourdieu e Passeron pretende dar conta do encontro contemporâneo entre estruturas escolares e estruturas de classe. Ela procura captar a contribuição específica da escola para a manutenção da hierarquia social propondo que a contribuição mais específica da escola para a reprodução da estrutura de diferenças é ideológica. Ela funcionaria como uma agência de certificação de desigualdades produzidas pela operação pedagógica ao traduzir imperceptivelmente para o idioma escolar diferenças no modo de se relacionar com a cultura que os indivíduos devem à sua origem social. Sua força reside basicamente na identificação do que há de arbitrário na ação pedagógica, o que permite que essa seja conceituada como violência simbólica, isto é, como ação de imposição de um arbitrário cultural.
Para compreender as possibilidades e os limites dessa maneira de se conceituar o funcionamento pedagógico, é importante não perder de vista o quanto a teoria da reprodução deve a sua formulação a essa forma histórica de encontro entre a escola e o sistema social. Como será visto na próxima seção, isto se torna particularmente relevante quando se pretende utilizar esse modelo na compreensão das relações entre o sistema de ensino e a hierarquia social no caso brasileiro.
II. O caso brasileiro
As proposições teóricas discutidas na primeira parte desse texto informaram uma análise das interações entre os segmentos do sistema educacional brasileiro cujo objetivo foi examinar, com ênfase na escola secundária, as experiências de formação dos grupos dirigentestomadas como parte fundamental de um processo de socialização mais amplo, como meio para tratar do problema da diferenciação social no que se refere às fraturas e articulações tanto entre diferentes frações dirigentes, quanto entre esses grupos e a sociedade mais ampla.
Trata-se de um objeto bastante utilizado nos estudos da diferença e da dominação. No Brasil, no entanto, as referências à escolarização dos dirigentes concernem bem mais à sua formação universitária do que às suas experiências nas escolas secundárias. Ignorar essa etapa da formação implica desprezar um momento particularmente intenso da vida desses jovens.
A entrada dos adolescentes na escola secundária coincide com o momento em que esses inauguram uma fase de autonomia mais pronunciada em relação às suas famílias e constituem outras referências a partir das quais passam a se pensar no mundo. A escola representa, para as camadas sociais em discussão aqui, um importante espaço de organização dessas experiências. Isto não significa, porém, que o mais importante aconteça dentro das salas de aula. A se tomar como testemunho as memórias da escola registradas em livros, o mais significativo da vida escolar acontece nos corredores, nos encontros depois das aulas, nas viagens, etc.
No quadro analítico proposto acima, o estudo da escolarização de grupos dirigentes que utilizam intensamente a escola nas suas estratégias de inserção social, como é o caso daqueles focalizados nessa pesquisa, permite retraçar a forma específica de constituição de redes de influência e núcleos de formação de poder estruturados por relações de amizade ou alianças matrimoniais. Tal estudo permite também identificar as instâncias de aprendizagem dos modos de gestão das relações (como tratar as pessoas, gerenciar um grupo de trabalho, exercer o poder, etc.). Mas, além disso, é possível ainda, por meio dessa análise, abordar as diferenças de estilo de vida associadas, na fórmula weberiana, a diferenças de status concretizadoras das fraturas sociais.
Nesse sentido, o estudo das “escolas dos dirigentes” pode ir além da simples análise do produto imediato gerado por essas escolas (no caso, o aluno bem sucedido diante das exigências do sistema educacional) e examinar a função de sociodicéia exercida pelo sistema educacional, enquanto instância produtora da maneira como os grupos dirigentes definem e categorizam a si próprios em relação uns aos outros e também em relação aos grupos sociais menos privilegiados.
II. 1. Sistematização e segmentação do sistema de ensino
Uma das dificuldades da utilização do modelo analítico do “encontro entre as estruturas de transmissão da diferença social e as estruturas do sistema de ensino” para o caso brasileiro reside na problemática acepção de meritocracia escolar em vigor no país.
Como se sabe, a ideologia da meritocracia escolar tem como suporte a idéia de que o sistema de ensino é capaz de promover uma redistribuição dos recursos socialmente produzidos numa determinada sociedade em função de critérios de merecimento e capacidade pessoal, desvinculados da posição social inicialmente atribuída ao indivíduo pelo nascimento. Essa ideologia é um dos elementos centrais do encontro entre a força auto-reprodutora da escola e os processos de transmissão intergeneracional e pode-se dizer mesmo que seja o que torna tão extensos e profundos os seus efeitos.
Mas, como falar de meritocracia num país como o Brasil, onde a seleção operada pelo sistema de ensino depende tão obviamente das condições financeira das famílias, isto é, da sua capacidade em arcar com os custos da escolarização que promove a entrada nas posições de maior controle e autonomia? Como acreditar que os membros dessa sociedade possam ser convencidos que está em marcha um sistema escolar meritocrático, logo, um processo de produção de diferenças sociais meritocrático?
Alguns elementos de resposta a essa pergunta podem ser encontrados através do exame da forma particular de operação da escola brasileira, particularmente no sentido aqui atribuído à unificação e à segmentação do sistema de ensino.
De um lado, tem-se uma unificação que é resultado das reformas administrativas introduzidas durante os anos trinta. Essas reformas inauguraram o controle do Estado sobre os aspectos mais simbólicos da organização do sistema escolar, como, por exemplo, a definição dos conteúdos de ensino, a formação dos professores, e as autorizações para a criação de novos estabelecimentos. De outro lado, tem-se uma divisão que, por sua vez, é um fenômeno antigo que adquiriu novas formas a partir dos anos sessenta, com a expansão da escolarização. Trata-se de uma cisão que se efetuou progressivamente e sem recurso a qualquer legislação, impulsionada pelo declínio da qualidade da escola pública e pelo alto custo da educação privada.
Esses dois elementos provocaram uma separação entre a escolarização reservada às crianças e jovens oriundos dos grupos privilegiados e a escolarização proposta às crianças e jovens oriundos dos grupos pobres.
No momento do vestibular, quando o mérito dos candidatos é supostamente avaliado em igualdade de condições, a diferença entre os dois segmentos aparece de maneira dramática uma vez que suas posições respectivas são completamente invertidas. Assim, os alunos que tiveram condições de freqüentar as escolas de alto nível da rede privada são aqueles que têm as maiores chances de serem aprovados para os cursos mais seletivos das universidades públicas, geralmente os mais prestigiosos socialmente e os mais valorizados no espaço escolar. Quanto aos outros alunos, eles dispõem apenas dos cursos menos reconhecidos nas instituições púbicas ou das faculdades privadas que freqüentam no período noturno - se trabalham para arcar com as altas mensalidades - ou diurno - se pertencem a um meio privilegiado mas foram excluídos, ou excluíram-se, das trajetórias escolares mais valorizadas�.
Essa cisão do sistema de ensino faz com que, no Brasil, as dimensões econômicas da origem social do aluno tenham um peso especial na determinação da sua trajetória escolar, se comparado com outros países onde a universalização e extensão da escolarização baseou-se mais significativamentena provisão da educação pública�. Tais dimensões econômicas não são, porém, utilizadas diretamente para a exclusão ou inclusão dos alunos no grupo daqueles destinados às trajetórias escolares bem sucedidas.
Não obstante, a unificação do sistema permite a sujeição dessas trajetórias a critérios exclusivamente escolares, mesmo aceitando-se o fato de que o idioma escolar traduz, mais ou menos sutilmente, certos princípios de dominação social, como as diferenças econômicas, sexuais e étnicas.
A unificação influi nesse processo primordialmente através da imposição de uma identidade de vocabulário entre os dois segmentos do sistema definindo formalmente como idênticos os títulos, os diplomas e os conteúdos ensinados. Esse dispositivo permite unificar duas realidades educativas muito diferentes e cria, por conseqüência, as condições necessárias à imposição do domínio de uma sobre a outra.
A identidade de vocabulário torna possível, por exemplo, a circulação, entre os dois segmentos, de professores e de projetos pedagógicos considerados como legítimos. O sentido dessa circulação obedece, sem dúvida, aos constrangimentos impostos pela disparidade entre os dois pólos de um sistema onde todas as qualidades são atribuídas ao segmento do segmento privado considerado como de alto nível e todas as dificuldades e incompetências ao segmento público na sua globalidade�.
Como conseqüência, o pólo privado considerado de alto nível passa a ser usado como representação da "boa educação" perseguida como ideal pelo outro segmento. Através da circulação de projetos pedagógicos e cursos de treinamento, o que circula de fato são os critérios a partir dos quais são avaliados e, no mais das vezes, condenados, os alunos, professores e práticas pedagógicas do sistema público de ensino.
Assim, a forte segregação de base financeira que exclui as crianças e jovens oriundos dos grupos sociais economicamente desfavorecidos da distribuição dos diplomas mais valorizados - particularmente os universitários - é operada a partir da imposição de critérios propriamente escolares de excelência importados do pólo do sistema reservado às crianças e jovens oriundos dos grupos sociais mais privilegiados�.
Ficam definidas, assim, as condições para a utilização da meritocracia na explicação das trajetórias escolares dos alunos. Resta saber de que maneira esses critérios escolares são produzidos e tornam-se dominantes. Isso será feito através do exame do espaço escolar da cidade de São Paulo.
II. 2. Escola secundária e vestibular: um elo vital
Quais qualidades ou propriedades definem uma escola como sendo de alto nível? Essa é uma questão crucial para a compreensão do sistema de relações que estrutura o espaço escolar da cidade de São Paulo: a disposição hierárquica do conjunto de escolas, a distribuição dos alunos entre elas e, inclusive, as diferenças de orientação propriamente pedagógica de cada uma. Nesse espaço escolar, o vestibular desempenha um importante papel estruturador. Trata-se de um efeito da importância do diploma universitário nas estratégias reprodutivas das camadas sociais médias e superiores associado à forma como é regulada, no Brasil, a entrada na universidade�.
Diferente de outros países, como a França, por exemplo, onde a admissão depende dos resultados escolares obtidos num exame nacional, aqui, o grupo de alunos destinados ao ensino superior é definido através de um exame proposto por cada universidade. O procedimento difere também do que ocorre nos Estados Unidos, onde a admissão aos colleges mais prestigiosos, como aqueles que fazem parte da Ivy League, é igualmente regulada por cada instituição, mas consiste numa avaliação das propriedades escolares e também pessoais dos candidatos.
Uma vez que as qualidades ditas "pessoais" dos candidatos são aquelas descritas nos relatórios e cartas de recomendação enviadas pelas escolas secundárias e analisadas pelos admissions committees [comissões encarregadas da admissão]�, o processo acaba por ser bastante influenciado pela capacidade das escolas secundárias em comunicar as qualidades de seus alunos aos encarregados da seleção�.
Em contraste, as universidades brasileiras, para escolher seus estudantes, consideram apenas as notas obtidas nas provas que fazem parte do concurso e que avaliam os conteúdos ensinados no nível secundário. Dessa forma, o vestibular brasileiro, sobretudo aquele das universidades mais prestigiosas, não dá oportunidade para o emprego sistemático de relações pessoais a fim de que um candidato seja aceito. E a seletividade crescente do concurso - 105.492 candidatos para 6.872 lugares na USP em 1995 - contribui para tornar ainda mais difícil esse tipo de prática�.
Todos os alunos que sobrevivem aos mecanismos de exclusão implementados pelo sistema escolar e chegam até o final do secundário podem apresentar-se como candidatos a uma vaga na universidade. A escolarização de nível secundário no Brasil, porém, é bastante rara, em função da proporção de alunos excluídos durante os períodos anteriores do curso. Em 1989, por exemplo, apenas 17% dos jovens entre 15 e 19 anos estavam nesse nível de ensino (MEC, 1990). Trata-se, é claro, de uma exclusão praticada desigualmente entre os diferentes grupos sociais e, como resultado, tem-se que a população atingida pelo vestibular esse concurso, uma pequena parte da população total, inclua, de fato, a quase totalidade dos jovens oriundos das famílias mais privilegiadas�, aos quais se juntam, em menor número, aqueles jovens oriundos de famílias mais pobres que conseguiram sobreviver ao ensino secundário�. Somando-se a esse quadro a impessoalidade da avaliação escolar realizada pelo vestibular, tem-se como resultado um ensino de segundo grau que se define, antes de tudo, como uma via de acesso à universidade, assumindo um caráter propedêutico�.
Essa situação define o vestibular das universidades mais prestigiadas como o principal elemento estruturador do espaço escolar onde elas estão inseridas, na medida que os resultados obtidos pelos alunos nas provas desse concurso impõem uma hierarquização nítida das escolas secundárias aí também situadas. Ao monopolizar a produção dos critérios que definem o "bom aluno", esses vestibulares monopolizam, no mesmo movimento, a definição dos critérios para definição do currículo secundário e dos colégios "de qualidade".
II. 3. Vestibular e definição da excelência
Nos vestibulares das universidades - públicas, em sua maioria - que ocupam o pólo dominante do sistema superior de ensino, as decisões de privilegiar um tipo particular de prova impõem, seja pelo tipo de questões (múltipla escolha por oposição a questões abertas), seja pelos assuntos considerados importantes, seja ainda pelas características definidoras das respostas corretas, uma concepção determinada das competências que as escolas secundárias se engajam em produzir�.
O estilo do vestibular não é o mesmo em todas as universidades. Também não se trata de um estilo imutável, mas de um estilo que tem recentemente sofrido modificações importantes, particularmente a partir de meados dos anos oitenta, quando a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) passa a propor exames mais analíticos e interpretativos, progressivamente tomados como modelo por outras universidades�. Entre essas encontra-se a USP, cujo vestibular, tal como é pensado hoje, valoriza aqueles alunos que, no vocabulário dos professores e reformadores, "se interessam pelos desafios intelectuais" e apresentam "capacidade de análise e de interpretação". As provas de português e redação estão no centro do exame e são responsáveis pela distribuição do maior número de pontos, mas a tarefa de avaliar as ditas capacidades de análise e interpretação não é tratada como um monopólio dessas provas. Um dos professores que participam da preparação do vestibular da USP, por exemplo, lembrava recentemente aos alunos que "ler os clássicos e ir ao cinema é muito importante para compreender física e química" (Revista Veja São Paulo, 1997:21)�.
O vestibular da USP dá também uma grande importância à familiaridade dos alunos com as "atualidades", o que é definido como um conhecimento da "realidade" que os cerca e uma capacidade de explicá-la. Essa familiaridade com a "atualidade-realidade", segundo os conselhos dos professores da universidade entrevistados pela imprensa, seria obtida através de um contato constante dos alunos com a mídia.
Aceitando-se a idéia de que a forma como a sociedade seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento escolar reflete tanto a distribuição de poder quanto os princípios de controle social e considerando-se que tal conhecimento é um importante regulador da estrutura da experiência, como mostraram Bourdieu (1967) e Bernstein (1971), torna-se necessário investigar os efeitos, sobre os diferentes grupos de alunos que se submetem ao vestibular, da inclusão das ditas capacidades de interpretação e crítica no centro das qualidades mais valorizadas. 
Primariamente, essas exigências têm por efeito a desvalorização relativa daquelas capacidades intelectuais passíveis de ser adquiridas exclusivamente dentro das escolas. Até esse momento o vestibular valorizava sobretudo a acumulação de conhecimentos, compunha-se majoritariamente de provas de múltipla escolha e eram poucas as exigências relativas a dissertações ou interpretação. Nesse sistema, a acumulação de informações através da memorização desempenhava um papel importante na obtenção de um bom resultado no concurso. Os cursinhos, que ofereciam uma nova forma de trabalhar a memorização, são originalmente produto dessa lógica.
A ênfase nas habilidades de crítica e interpretação muda a relação de forças presentes no vestibular. Uma base de conhecimentos continua a ser solicitada aos alunos bem sucedidos e só pode ser acumulada através de um volume intenso de trabalho escolar. Esses conhecimentos, porém, passam a servir de pretexto para medir a capacidade dos alunos de analisar e questionar o mundo em que vivem, isto é, a ordem social em que estão imersos. Uma capacidade que depende de uma relação específica, desigualmente distribuída entre os grupos sociais, com o mundo e com a cultura (Bourdieu, 1979, e DiMaggio, 1991) e que, para ser adquirida exclusivamente através da escola, exige um trabalho de transformação da representação que o aluno tem de si mesmo e do mundo que o cerca.
O exame das experiências de escolarização dos dirigentes paulistas mostrou que essas capacidades e habilidades valorizadas pelo vestibular operam um conjunto de marcadores de excelência social bastante eficientes na definição de fraturas e articulações no interior desses grupos e entre esses e a sociedade mais ampla�. Isso se dá através da mediação do trabalho escolar que os diferentes colégios presentes no espaço escolar da cidade estão em condições de oferecer. Nessa lógica, compreender as trajetórias escolares das crianças e jovens desse grupo implica relacioná-las com o espaço de possibilidades de escolarização com o qual suas famílias são confrontadas.
II. 4. A produção e reprodução dos grupos dominantes�
Pensar as escolas como espaços onde são construídas as diferenças entre os grupos sociais, mas que são, ao mesmo tempo, relativamente independentes das imposições da ordem econômica, pressupõe aceitar como provável que as famílias, instadas a delegar a educação de seus filhos ao sistema de ensino e tendo por referência um espaço escolar diferenciado, procurarão (de maneira intencional ou não) aquelas instituições que melhor correspondam aos valores e visões de mundo que professam.
Essa idéia, por sua vez, pressupõe que cada instituição educacional seja portadora de um estilo mais ou menos visível, isto é, capaz, em maior ou menor grau, de ser percebido e de falar à imaginação dos potenciais novos clientes. Um estilo que seria tributário tanto da história da instituição e da imagem que os seus fundadores construíram para ela, quanto do destino social reservado aos alunos que formou.
A adequação total entre o tipo de escolarização oferecido pela instituição e o ethos específico de cada família é raramente verificada na realidade. Mas a possibilidade (lógica) da coincidência perfeita entre uma e outro, mesmo se construída como idealização, impõe sobre as famílias os limites definidores do espaço do possível em termos da escolarização dos seus filhos.
Tomou-se, então, nessa pesquisa, a idéia da ocorrência de uma correspondência potencial entre o tipo de escolarização buscado pelos diferentes tipos de famílias e as escolas onde eles realmente matriculam seus filhos como ponto de partida para compreender os problemas de diferenciação social que esses grupos se colocam em momentos específicos de sua história.
No entanto, esse encontro entre famílias e escolas não é, evidentemente, estruturado apenas pelos anseios das famílias, pelo menos nas sociedades que dispõem de um sistema de ensino unificado, onde o Estado se apresenta como promotor de uma educação para todas as famílias, independentemente, logo, dos desejos de cada uma delas. Nesses casos, o Estado garante para o sistema educacional um grau não desprezível de autonomia também com relação às famílias que está encarregado de servir�.
Isso acontece, é claro, com graus variados de sucesso e cada situação histórica deve ser objeto de análise específica, na medida que interfere diretamente na forma como a escola pode participar dos processos de transmissão das diferenças sociais.
O Brasil, como foi visto, constitui-se num terreno particularmente adequado para o estudo dos limites impostos a essa autonomia do sistema de ensino, já que o Estado garante em alguma medida a homogeneização do sistema (em graus que variaram ao longo do tempo), mas a predominância do ensino privado vincula a escola às expectativas e demandas das famílias. Isto é especialmente válido no nível secundário, em decorrência da situação de quase monopólio do segmento privado do sistema de ensino na formação dos grupos dirigentes.
O efeito mais flagrante desse quase monopólio é a dependência das escolas em relação às famílias fornecedoras dos seus clientes, já que esses são a origem principal dos recursos financeiros necessários ao funcionamento dos estabelecimentos.
Será que essa situação implica a transformação das escolas reservadas às famílias dos dirigentes brasileiros em reféns das demandas e expectativas que essas expressam com relação à educação dos seus filhos?
Aqueles que têm um mínimo de familiaridade com o espaço escolar brasileiro sabem que a noção de refém é bastante inadequada para descrever a relação que um certo número de escolas privadas estabelecem com as famílias de seus alunos. Refiro-me aqui àquelas instituições caracterizadas comumente pela imprensa como super colégios, em função do alto conceito social atribuído à preparação acadêmica que oferecem.
Não se pode negar que a posição social da família, especialmente a sua situação econômica, desempenha um papel essencial para garantir a admissão dos seus filhos, já que, na maioria dos casos, os custos das mensalidades cobradas são bastante elevados. Não obstante, essa situação econômica não é suficiente para comprar uma boa educação. Uma vez aceitos nessas escolas, os jovens passam a ser julgados e apreciados por critérios essencialmente escolares. Isto deve ser reconhecido mesmo considerando-se que esses critérios apenas traduzem, para uma linguagem escolar, os princípios de dominação dados pelo posicionamento diferencial de cada grupo social nas condições de acesso à cultura�.
Aceitando esse primeiro ponto, somos imediatamente confrontados com a questão de saber por que determinadas escolas privadas brasileiras conseguem manter uma autonomia significativa frente às famílias que estão encarregadas de servir.
A resposta deve ser buscada no modelo escolar de formação de grupos dirigentes até agora em vigor no país. Um elemento desse modelo é especialmente determinante: o fato de que a passagem para o tipo de ensino superiorvisto como necessário para a entrada nas posições sociais dominantes (aquele oferecido pelas universidades públicas mais prestigiadas) é regulada por um exame em que são medidas competências propriamente escolares dos alunos e que é realizado numa situação de alta competitividade.
O poder das escolas em interferir na seleção dos alunos destinados à universidade, então, é o que permite a elas, e ao sistema de ensino por extensão, estabelecer uma autonomia específica com relação às famílias. Essa autonomia, no entanto, não deixa de ser limitada pela dependência econômica das escolas com relação aos pais dos alunos.
Nesse sentido, o caso brasileiro oferece a possibilidade de verificar a operação de um sistema de ensino relativamente pouco autônomo em relação às famílias dos dirigentes que ele está encarregado de formar e de discutir os efeitos dessa situação sobre a produção das diferenças sociais. A partir daí pode-se perguntar se, de fato, a escola oferece alguma contribuição específica para a legitimação da estrutura de dominação ou se as famílias dos grupos dirigentes têm perfeito controle sobre a sua reprodução e utilizam a escola apenas como uma espécie de “verniz” para consumo interno e deleite próprio.
A investigação das formas de escolarização secundária dos grupos dirigentes torna-se, assim, uma etapa necessária na produção das análises sobre o poder. A pesquisa sobre a escolarização dos grupos dirigentes paulistas foi pensada e organizada a partir de um interesse em estabelecer fundamentos para essas análises, dada a falta de estudos sistemáticos sobre o tema.
Tomando a cidade de São Paulo para estudo, a preocupação central foi examinar (i) a pertinência de se pensar a ocorrência de uma concordância entre as demandas e expectativas das famílias dos grupos dirigentes (ou em processo de entrada nesses grupos) e a organização do segmento privado do sistema de ensino, (ii) os elementos da experiência escolar e da estrutura social que concretizam essa concordância e, por fim, (iii) os limites desse acordo�.
Essa maneira de abordar o problema da desigualdade no Brasil não implica, é claro, reduzir todas as diferenças sociais a diferenças educacionais. Ela implica, porém, admitir que a hierarquia do sistema educacional traduz uma hierarquia social pré-existente no idioma do prestígio intelectual e que, uma vez estabelecida nesses termos - isto é, uma vez detentora de uma certa autonomia -, a hierarquia educacional interage de volta com a hierarquia social contribuindo tanto para legitimá-la e reforçá-la, quanto para modificá-la e torná-la mais complexa.
A pesquisa em questão examinou as interações entre os segmentos público e privado do sistema de ensino brasileiro, procurando avaliar a relevância dessas relações para o processo de transformação das desigualdades sociais em diferenças escolares legítimas. Discutiu, mais especificamente, os efeitos da articulação entre o segmento público de educação superior e o segmento privado de educação secundária sobre o modo de produção e de imposição dos critérios de excelência escolar legítimos.
A partir da análise da configuração do sistema de ensino, eu tomei como objeto o espaço escolar da cidade de São Paulo para discutir o papel atribuído ao vestibular das universidades públicas na definição desses critérios. Em seguida, eu analisei três casos exemplares de produção da excelência escolar para mostrar os investimentos diferentes exigidos de cada população de alunos para a aquisição do perfil exigido pela universidade. Um primeiro colégio atende majoritariamente uma população de crianças e jovens de oriundos de famílias que ocupam posições dominantes há pelo menos duas gerações (pais e avós na admnisitração superior, profissionais liberais, proprietários). O segundo recebe principalmente alunos cujas famílias estão em forte mobilidade ascedente (avós pequenos proprietários pouco escolarizados ou mesmo exercendo profissões manuais, pouco escolarizados e pais profissionais liberais ou proprietários). O terceiro colégio, por fim, recebe alunos dos dois tipos de família, acolhendo uma importante população de filhos de imigrantes orientais.
O estudo da escolarização secundária dos futuros dirigentes paulistas mostrou que as atividades que se desenrolam nos colégios são estruturadas o suficiente para serem percebidas como uma totalidade portadora de sentido. Isto indica que a imersão escolar (entendida como participação nas atividades propostas a partir da escola e não apenas na escola) conduz, muito provavelmente, à interiorização dos princípios de organização desse espaço, mesmo admitindo-se a improbabilidade de uma interiorização que se dê da mesma forma para todos.
Uma escola sob medida
O alto grau de concordância entre tipos de família e tipos de escola é um dos traços principais das escolas privadas consideradas de alto nível.
A pesquisa mostrou que a história de cada um dos três colégios estudados está associada de forma estreita à história dos grupos que eles estão encarregados de servir. A coincidência histórica entre, por um lado, a criação dos colégios e suas transformações e, por outro lado, as modificações na estrutura social da cidade de São Paulo, é apenas um dos indícios externos dessa associação. O que importa ser retido é o nível de adequação entre as demandas dos grupos familiares e os principais elementos definidores do trabalho pedagógico a que seus filhos são submetidos.
Na relação que une as famílias e os estilos de ensino, tudo se passa como se cada colégio tivesse sido especialmente encomendado para resolver os problemas de diferenciação que as primeiras se colocavam em momentos específicos de sua história.
A transformação de determinados segmentos do sistema de ensino em enclaves é uma das maneiras pelas quais as famílias dos grupos dirigentes procuram tradicionalmente garantir algum controle sobre a formação dos seus filhos. A escolarização nesses espaços reservados assegura uma limitação do espaço das experiências possíveis aos alunos ali matriculados.
Essa situação pode ocorrer tanto no setor público quanto no setor privado do sistema de ensino. Se, no Brasil, o setor privado é o alvo privilegiado dessas estratégias no que concerne ao ensino secundário, os cursos mais seletivos das universidades públicas hoje são exemplos de espaços públicos onde o mesmo fenômeno pode ser observado.
Os resultados obtidos a partir dos estudos da escola privada paulistana mostram os efeitos específicos do monopólio do setor privado na formação dos dirigentes sobre a produção de diferenças sociais. Isto pede por mais pesquisas que abordem comparativamente os sistemas de ensino onde a formação dos dirigentes se dê majoritariamente num e noutro setor. De qualquer forma, é razoável supor que a escola privadas desempenhe com mais eficiência o papel de inculcação de disposições ligadas a grupos específicos do que a escola pública, pelo menos na forma como essa última tem sido pensada nas sociedades complexas.
No que se refere às escolas privadas paulistanas, essa pesquisa mostrou que elas são mediadoras eficientes não apenas entre as posições dos pais e dos filhos, mas também entre o passado e o presente, operando como instâncias transportadoras de uma tradição.
Uma relação com a tradição cultural ocidental
Um dos traços da escolarização considerada de alto nível que podem surpreender os espíritos mais desavisados ou mais seduzidos pelos discursos que apregoam o fim da modernidade é a importância atribuída ao contato com a tradição cultural ocidental (os “clássicos”) no ensino ministrado pelos colégios.
Imposto pelos vestibulares das universidades como o conhecimento necessário para a ocupação das posições dominantes, o contato com a tradição cultural do ocidente opera uma primeira divisão entre os grupos sociais chamados a se submeter a uma longa escolarização e as camadas menos privilegiadas.
Essas últimas não têm como desenvolver as habilidades que o sistema de ensino define como superiores,já que estão relegadas a um segmento caracterizado primordialmente pela desestruturação. Desistindo da escola após inúmeros fracassos diante das avaliações dos professores, pouco lhes resta além de desenvolver uma certa dose de respeito pelas exigências culturais responsáveis por sua exclusão das salas de aula. Uma exclusão, sempre é bom lembrar, efetuada em nome de critérios especificamente escolares.
A distinção entre os diferentes colégios privados paulistanos e, por conseqüência, entre os diferentes grupos dirigentes que eles estão encarregados de formar não reside no fato de que uns e não outros estejam em contato com essa tradição. A construção de pontos de vistas diferentes se dá sobretudo pela maneira como é proposta a relação com a tradição cultural em cada ambiente.
Nos casos estudados, ela variou entre uma primeira proposta que colocava os alunos como produtores a partir da tradição, uma segunda que os incitava a se apropriar da tradição enquanto usuários e, finalmente, uma terceira que os ensinava a se submeter a essa tradição e a aceitar os seus critérios de validação.
Essas propostas podem exercer um papel diferenciador porque coincidem com as propriedades sociais das famílias dos seus alunos. Associadas a grupos sociais específicos, a relação com a tradição traduz, num idioma propriamente escolar, as diferenças que separam esses grupos. Elas contribuem, assim, para a interiorização de disposições que definem, para cada grupo social, o espaço do possível em termos de estilos de vida e maneira de se ver no mundo.
III. Os limites da influência da escolarização na produção da diferença
A identificação de mecanismos através dos quais a escola brasileira contribui de maneira específica para a produção de um sentimento de pertencimento ao grupo e de diferença dentro do grupo aponta para a força desse modelo histórico de estabilização inter-generacional das relações de classes que resultou do encontro entre a auto-reprodução do sistema escolar e a reprodução dos grupos sociais.
Se uma das razões pelas quais esse encontro pode ser tão eficaz em termos da contribuição à manutenção do status quo encontra-se na sua possibilidade de utilizar de maneira tão pertinente a ideologia da meritocracia, a análise do caso brasileiro permite justamente interrogar os limites dessa justificativa já que aqui não se verifica o grau de autonomia da esfera da escola encontrado nos países da Europa Ocidental e que sustenta a ideologia meritocrática.
Por causa da operação problemática da meritocracia, as tentativas de tentar compreender o funcionamento e, principalmente, a subsistência do “modelo brasileiro” de diferenciação social através da escola têm necessariamente que lidar com mecanismos de produção da diferença e distância social para além do espaço escolar. Entre outros, essa análise deve deter-se sobre os efeitos da memória do sistema escravista sobre a clivagem entre o valor atribuído ao trabalho manual e ao trabalho intelectual. A meu ver, encontra-se nessa dimensão fortes elementos de resposta para a questão do poder diferenciador da escola e, por conseguinte, da ´cultura letrada” no Brasil.
Num outro sentido, é possível supor que o avanço da escolarização no país, com a diminuição progressiva das taxas de exclusão, acabe por configurar um sistema em que “tipos diferentes” de sucesso escolar acabem por diluir a força social do diploma como definidor de posição social. Em todo caso, é possível pensar que uma tal diferença poderá dificultar a ocultação da operação da violência simbólica.
Mas, talvez esse seja um horizonte ainda difícil de ser vislumbrado. A observação das modificações sofridas mais recentemente pelo sistema de ensino brasileiro mostram que esse, ao contrário, tem se armado de maneira bastante eficiente para resistir ao “avanço das massas” mesmo que ao preço de transformar radicalmente sua configuração. Afinal, será possível interpretar de outra maneira os ataques sofridos pela universidade pública nos últimos anos em termos dos cortes nos financiamentos e nos constrangimentos impostos à sua operação autônoma? É possível deixar de ver esses ataques, simultâneos à definição de sistemas de controle estatal da universidade privada, como uma preparação para o fortalecimento de um setor em detrimento de outro? É possível não imaginar que, tudo continuando como está, assistiremos, na fase seguinte, à migração dos grupos dirigentes para o setor privado do sistema universitário, repetindo uma trajetória já vivida pelo ensino médio?
A análise da função reprodutora da escola, a meu ver, oferece um instrumento que nos permite identificar o mecanismo reprodutor: a articulação de funções exercidas pelos diferentes segmentos do sistemas de ensino. Essa é a condição básica para a formulação de propostas que visem diretamente o cerne da questão e seria o oposto de deixar permanecer a função apenas mudando o espaço em que ela está sendo desempenhada. Para a política educacional contemporânea brasileira, isso significaria estabelecer como meta de trabalho o desmascaramento da violência simbólica que a escola está encarregada de implementar.
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� A pesquisa que deu origem a essa reflexão foi financiada pela FAPESP (Processo: 95/5257-0).
� Talvez seja prudente explicitar que foge aos limites desse trabalho precisar a natureza da relação entre o indivíduo e a cultura, o que permitiria interrogar, por exemplo, a coerência e consistência da teia de significados e das práticas que ela dá sentido. Além disso, eu renuncio momentâneamente a explorar com mais detalhe a maneira como as crianças e jovens constróem suas próprias experiências do mundo em que vivem e como eles utilizam essa construção em proveito próprio.
� Apesar desse artigo focalizar essencialmente as dimensões dos processos de aprendizagem que dizem respeito mais diretamente às gerações mais novas, o aprendizado do pertencimento não se refere apenas à idéia de incorporação da criança à sociedade. Como mostra Giddens (1979), esse processo é melhor compreendido se a sociedade for pensada como uma entidade em constante recriação por indivíduos chamados a ativar instituições e, portanto, deixar de ser tomada como uma forma estática na qual a criança é progressivamente incorporada. Um argumento similar é desenvolvido por Bourdieu (1980).
� Esse esquema faz mais sentido, é claro, quando se pensa num modelo de estratificação social do tipo proposto por Weber (1947) ou Bourdieu (1979).
� A discussão sobre a estabilização cultural supõe, é claro, uma discussão sobre as possibilidades de mudança. Ver em Giddens (1979) e Passeron (1986) duas maneiras de examinar esquemas de mudança disponíveis. 
� Esse ponto foi desenvolvido minuciosamente por Bourdieu e Passeron no livro A Reprodução. Como explica Passeron (1986: 68), foi a percepção de que as escolas compartilham com as Igrejas (“instituições religiosas de vocação universalista”) algumas “grandes funções sociais e simbólicas”, como “o enquadramento das massas, a repartição do território, a autoperpetuação no tempo e a reivindicação de um monopólio de legitimidade”, o que permitiu aos autores utilizar, na análise do funcionamento da escola, o mesmo esquema estrutural-funcionalista aplicado por Weber no estudo da rotinização eclesiástica de uma mensagem profética inicial. Esse modelo permitiu aos autores identificar mecanismos propriamente escolares de auto-reprodução (especialização e conformismo dos seus agentes de difusão, minimização dos riscos de deformação da mensagem através do tempo e do espaço), todos eles análogos aos verificados por Weber na operação das Igrejas. São esses mecanismos que fazem da escola contemporânea uma agência essencialmente reprodutora.
� O caso da Prússia, onde as qualificações educacionais serviram de base para a definição da carreira no serviço público e não o oposto, é particularmente instrutivo (Müller, 1987). Mas essa constatação se dá mesmo no caso da Inglaterra, geralmente usado como paradigma do argumento econômico-funcionalista. Brian Simon (1987: 94) mostra como, ao final do processo de transformação por que passaram as formas escolares no período, o resultado não foi um sistema que refletisse as necessidades da economia (priorizando a ciência e a tecnologia, por exemplo), mas um “conjunto de subsistemas (...) mais ou menos fechado, articulado apenas de uma maneira limitada, e (...) cuja função básica era reforçar divisões de classe”. Uma linha de argumentação semelhante desenvolvida para o caso brasileiro pode ser encontrada em Carvalho (1978) e Cardoso (1982), mas tratando de instituições específicas.
� Isso não quer dizer que até então a forma escolar fosse inexistente. No quadro anterior, porém, mesmo quando delegavam a educação dos seus filhos para as escolas, as famílias podiam exercer maior controle sobre as modalidades de ensino a que seus filhos estavam sujeitos. O controle do Estado e a conseqüente homogeneização do trabalho pedagógico, inexistente ou pouco exercido até então, implicou numa diminuição da autonomia das famílias. Esse argumento está particularmente bem desenvolvido em Canêdo (1991).
� Embora a idéia de segmentação refira-se especificamente às relações entre diferentes tipos de conhecimento, quaisquer que sejam eles, talvez seja útil lembrar que Bernstein (1971, 1975, 1991) propõe um protocolo para avaliar a intensidade dessas diferenças curriculares em termos do grau de (1) separação entre os conteúdos e (2) controle do professor e do aluno sobre a seleção, organização e velocidade da transmissão de conhecimentos na relação pedagógica. Nesse sentido, Bernstein oferece um arcabouço para a análise intrínseca das diferenças entre os tipos de currículo alternativo ao proposto nesse artigo. Como será visto mais à frente, a análise proposta aqui tenta relacionar o valor atribuído a cada segmento do sistema com a sua vinculação a uma tradição especialmente valorizada pela sociedade em questão.
� Eu incluo nesse conjunto tanto os filhos das famílias privilegiadas que foram expulsos das trajetórias escolares consideradas como naturais para o seu grupo social, quanto os filhos de famílias que, ocupando importantes posições econômicas, não consideram a opção universitária como interessante para a inserção social. Sobre o primeiro grupo, ver Martins (1981), especialmente o capítulo 3; sobre o segundo, ver Grün (1992).
� Em 1996, entre os alunos inscritos no primeiro ano nos diferentes cursosoferecidos pela Universidade de São Paulo, 61,8% haviam feito seus estudos de segundo grau exclusivamente em escolas privadas (Fuvest, 1996). Em 1997, um levantamento feito pela Revista Veja sobre a origem escolar dos alunos inscritos no primeiro ano dos cursos mais disputados oferecidos pela Universidade de São Paulo mostrou que dez escolas paulistanas entre os 916 estabelecimentos de ensino secundário da cidade, haviam formado 32% desses alunos. Nove dessas escolas são privadas (Veja São Paulo, 1997). O preço médio das mensalidades cobradas por essas escolas na época do levantamento era da ordem de R$500.
� A comunicabilidade entre os dois segmentos tornou-se ainda maior (ou revestiu-se ainda de um outro caráter) a partir do início dos anos noventa, quando os proprietários e os diretores das escolas privadas consideradas de alto nível começaram a fazer parte das equipes estatais de planificação da política educativa pública. O secretário da educação que reformou a educação pública estadual em Minas Gerais, por exemplo, é também o proprietário de uma escola desse tipo. Em São Paulo, a segunda pessoa na hierarquia da secretaria de educação no atual governo é diretor licenciado de um dos colégio privados de melhor reputação na cidade de São Paulo.
� A imposição desses critérios expressa-se com maior força através das operações de avaliação que levam à retenção. A "descoberta" do peso da retenção no processo de exclusão escolar da maioria dos alunos oriundos das camadas mais desfavorecidas vem oportunamente fundamentar essa hipótese. Ver Ribeiro (1991).
� A importância do diploma para esses grupos é atestada por diversos estudos. Para uma análise de cunho histórico em que se associa o prestígio das profissões liberais à sua condição de "requisito" para uma carreira de funcionário, ver Holanda (1994 [1936]) e também Faoro (1987).
� Uma análise minuciosa do procedimento pode ser encontrada em Cookson & Persell (1985).
� Cookson & Persell (1985) mostram, por exemplo, que os college advisors [orientadores para a escolha da universidade] dos internatos mais prestigiosos do país mantêm relações pessoais próximas com os admission officers [funcionários encarregados das admissões] das universidades que ocupam as posições dominantes no espaço educacional, onde a maioria também fez seus estudos.
� Num país onde a percepção da importância das relações pessoais nas situações de interação com os poderes públicos é compartilhada por grande parte da população, é significativo que até hoje os concursos de admissão às universidades mais importantes não tenham jamais sido confrontados por denúncias de privilégio. Alguns episódios de fraude já tiveram lugar na história do vestibular da USP - os candidatos de 1996, por exemplo, tiveram que refazer algumas provas depois da descoberta de um vazamento de informação sobre algumas questões -, mas, aparentemente, eles foram todos descobertos antes da publicação dos resultados. Como em outros casos, fazendo os candidatos submeterem-se a "provas-reserva", a universidade conseguiu retomar o controle do processo sem perder sua credibilidade.
� Um dos indicadores da importância do vestibular para essas camadas sociais hoje é o espaço a ele reservado na imprensa das grandes cidades a partir do mês de agosto de cada ano até o momento de realização das provas (entre dezembro e janeiro). Em São Paulo, os dois jornais mais importantes - a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo - dedicam a esse assunto um suplemento semanal de oito a dez páginas destinado àqueles que se preparam para o concurso.
� Além das dificuldades associadas ao acesso à escola secundária, esses alunos são confrontados também a um obstáculo suplementar bastante concreto: o custo da taxa de inscrição ao vestibular. Em 1996, a taxa de inscrição ao vestibular da USP era igual à metade do salário mínimo em vigor, apesar de tratar-se de uma universidade pública que oferece uma escolarização gratuita. Programas de isenção das taxas de inscrição estão sendo implementados pelas universidades paulitas apenas a partir do vestibular do ano 2000. Mesmo nessa caso, a isenção é extremamente circunscrita. No caso da USP, 5.000 dos 130.000 candidatos esperados serão isentos. A UNICAMP propõe isentar 1.350 num universo projetado de aproximadamente 40.000 candidatos. A UNESP, por sua vez, oferece a isenção para todos os candidatos aos cursos de licenciatura.
� Isto é verdadeiro mesmo para as escolas profissionalizantes do segundo grau, entre as quais as mais prestigiosas são aquelas que adicionam à formação profissional uma boa preparação para o vestibular.
� Isto não significa que todas as escolas aderem com a mesma intensidade à definição das competências imposta pelo vestibular. A importância desse último para a clientela das escolas secundárias, no entanto, limita em grande medida a independência dos colégios face ao "programa do vestibular" das universidades mais prestigiosas.
� Essa mudança, acompanhada por vivas discussões entre os professores do secundário e das universidades, foi conduzida pelo proprietário de uma escola secundária privada de São Paulo e marcou o fim da associação da Unicamp ao vestibular da USP, gerenciado pela Fuvest. Até então os vestibulares das duas universidades eram realizados conjuntamente.
Nesse momento da pesquisa, eu trato sobretudo do poder de imposição, por parte da Universidade, dos critérios definidores do ensino considerado de alto nível, através da análise da dependência do ensino secundário em relação ao vestibular. Num segundo momento, eu pretendo interrogar também se e como as escolas (ou o ensino secundário) chegam a impor um modelo de excelência sobre o vestibular. Um estudo mais aprofundado sobre as mudanças no vestibular que leve em consideração os agentes sociais aí atuantes - sua formação escolar, suas relações ligação com o ensino privado considerado de alto nível (do qual eles são, na maior parte, antigos alunos) - poderia ajudar a esclarecer essa relação. As mudanças no vestibular da Unicamp, por exemplo, não podem ser compreendidas sem que se leve em conta as relações entre o reitor que as implementou no final dos anos oitenta e a pessoa que pensou a reforma - os dois foram militantes de um grupo revolucionário estudantil, a Ação Popular, durante o regime militar.
�Essa constatação parece indicar a existência de uma certa "tradução", num idioma propriamente brasileiro, dos mesmo princípios de hierarquização das disciplinas identificados por Pierre Bourdieu & Monique de Saint Martin (1970), no seu estudo sobre os laureados do concurso geral na França.
� Trata-se aqui de grupos de pessoas que um determinado sistema de relações coloca numa posição privilegiada na repartição dos bens materiais e simbólicos produzidos por essa sociedade. A ênfase no sistema de relações é importante para explicitar que não se trata de indivíduos específicos nem de posições específicas. Para tornar a leitura desse texto mais fácil, talvez seja útil esclarecer que estou tratando aqui da formação escolar de um grupo de jovens que está em vias de acumular uma série de recursos acadêmicos e sociais considerados necessários na sociedade brasileira para a ocupação das posições sociais dominantes. Se serão eles a ocupar essas posições nos próximos vinte anos, ou se essas posições serão ocupadas por seus colegas que passaram por outras escolas presentes nesse espaço escolar, mas não analisadas aqui, não é muito relevante. O interesse dessa investigação está na sua capacidade de definir o espaço do possível em termos de formação para as posições dirigentes. Para uma visão geral dos problemas teóricos de definição no que se refere ao estudo dos grupos dominantes, ver Wacquant (1993), Grynspan (1996), e, naturalmente, os protagonistas do debate (Marx, Mills, Parsons, Bourdieu, etc.).
� A opção de se privilegiar nesse texto o estudo dos grupos dominantes não implica considerar o argumento válido apenas para esses grupos. A hipótese de que a escolarização desempenhaum papel importante na socialização dos diferentes grupos sociais é o que sustenta a idéia de que ela possa ser significativa na socialização de um grupo particular.
� Ver Bourdieu e Boltanski (1998 [1975]) para uma apresentação mais detalhada dessa hipótese, Prost (1981) para uma demonstração empírica a partir do caso francês e Ringer (1979) para uma comparação entre os casos francês, alemão e inglês.
� Uma demonstração dessa autonomia é a capacidade demonstrada por certos colégios em produzir o fracasso escolar de jovens cujas famílias apresentam-se com capacidade financeira e social suficiente para dominar o colégio em questão, mas que, não obstante, aceitam e convivem com esse veredito escolar.
� Informações mais detalhadas sobre o desenvolvimento da pesquisa empírica podem ser encontradas em Almeida (1999).
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