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Janaina de Fatima Silva Abdalla Saturnina Pereira da Silva (ORGANIZADORES) AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS SABERES E PRÁTICAS FORMAÇÃO DOS OPERADORES DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 1ª Edição Rio de Janeiro 2013 ©Janaina de Fátima Silva Abdalla Direitos desta edição adquiridos pelo DEGASE. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em siste- ma de banco de dados ou processo sim- ilar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e /ou autor Janaina de Fátima Silva Abdalla Elionaldo Fernandes Julião Soraya Sampaio Virgílio Alexandre de Moraes Lessa Christiane Mota Zeitoune Roberto Bassan Peixoto Conselho Editorial Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira Paula Verneck Vargens Alexandre de Moraes Lessa Tania Mara Trindade Gonçalves Comissão Científica Janaina de Fatima Silva Abdalla Saturnina Pereira da Silva (ORGANIZADORES) AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS SABERES E PRÁTICAS FORMAÇÃO DOS OPERADORES DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 1ª Edição Rio de Janeiro 2013 Diretor-Geral Departamento Geral de Ações Socioeducativas DEGASE Diretora da Escola de Gestão Socioeduca- tiva Professor Paulo Freire Assessora da Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso Janaina de Fátima Silva Abdalla Saturnina Pereira da Silva Alexandre Azevedo de Jesus Wilson Risolia Rodriues Angélica Goulart Maria do Rosário Nunes Dilma Rousseff Secretário de Estado de Educação Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente Ministra de Estado Chefe Secretaria de Direitos Humanos Presidenta da República Cláudio Augusto Vieira da SilvaCoordenador-Geral Programa de Implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE Sérgio de Oliveira Cabral Santos Governador do Estado do Rio de Janeiro Capa Fernando Diaz Diagramação Gabriela Costa Revisão Thiago Pinheiro Ações Socioeducativas Saberes e Práticas Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro Janaina de Fátima Silva Abdalla Saturnina Pereira da Silva Organizadores Curso Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro Bianca Veloso Coordenadora Pedagógica Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso - AMSEG Assessora Saturnina Pereira da Silva Equipe Técnica Dulcinéia Seabra de Oliveira Fatima Dias Alves Tremura Maria Stela de Araujo Hilton Luiz Machado Serra Vera Lúcia da Silva Durão Daniel Oighenstein Loureiro Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire –ESGSE Diretora Janaina de Fatima Silva Abdalla Equipe Técnica Andréa Cristina de Castro Gamadano Bianca Ribeiro Veloso Maria Beatriz Barra de Avelar Pereira Tania Mara Trindade Gonçalves Marizélia Barbosa Apoio Técnico Administrativo Érica Peixoto Ferreira Luciana Cassia Costa da Silva Santos Mirian Maria da Fonseca Marcos Aurélio Pinto de Andrade Estagiários Thaisa Ambrósio Pinto Thaysa de Castro Bonfim Ivonete Guimarães Lima Samantha dos Santos Lidiane de Oliveira Braga Edgar Alves Pacheco 7 Agradecimentos Este livro é resultado de um esforço cooperativo e interativo. Agradecemos, inicialmente, ao Sr. Alexandre Azevedo de Jesus, Diretor-Geral do DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), que, além de acreditar plenamente na realização deste trabalho, nos possibilitou ampla liberdade em todas as etapas da organização e execução do Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro que deu origem a esta publicação. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da Republica, tem sido uma parceira importante do Novo DEGASE, ao longo do último quinquênio e, desta maneira, dirigimos nossos agradecimentos a seu coordenador do SINASE Sr. Claudio Augusto. O seu apoio às atividades de planejamento e execução da política de formação realizada pela Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire e Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso – AMSEG do Novo DEGASE tem sido decisivo. No Novo DEGASE , os aportes da direção da Assessoria de Sistematização Institucional- ASIST, Soraya Sampaio e Gabriela , juntamente com a Coordenação Administrativa e Financeira -COAFI, Sr. Wilson Richard e Maurício Gomes Teixeira, foram essenciais na definição e desenvolvimento do projeto que deu origem a este livro. Este agradecimento se estende, também, a todos os profissionais e técnicos, do Novo DEGASE que, de diferentes formas, têm interagido com nossa equipe. A nossos parceiros professores, mediadores e cursistas do Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, pela oportunidade de trabalharmos e aprendermos juntos e por suas valiosas e inspiradoras contribuições como autores deste livro. Além de dominarem conhecimentos sobre conceitos e metodologia de atendimento socioeducativo, as contribuições registradas neste livro demonstram o comprometimento com as ações socioeducativas na direção transformadora da doutrina da proteção integral da infância e juventude brasileira. Janaina de Fátima Silva Abdalla e Saturnina Pereira da Silva 9 Sumário Apresentação As Ações De Formação Continuada Do Curso Dos Operadores Do Sistema Socioeducativo Do Estado Do Rio De Janeiro: Concepção E Estrutura Pedagógica. Bianca Veloso Marizélia Barbosa Parte I Saberes, infância e juventudes Reflexões Sobre A Juventude Em Conflito Com A Lei: A Infância, A Adolescência E A Família Como Uma Construção Social E Histórica Christiane Mota Zeitoune Elis Regina Castro Lopes Murilo Peixoto Da Mota InfânciasoMarginalizadas,oAdolescentes Criminalizados? Virginia Georg Schindhelm O Adolescente No Sistema Socioeducativo: Uma Reflexão A Partir Da Psicanálise Erimaldo Matias Nicacio Violência Doméstica e Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes na Contemporaneidade: Um Processo de Judicialização da Questão Social? Paula da Silva Caldas Adolescentes E Medida Socioeducativa: Discursos em questão Andreia Gomes Da Cruz Janaína de Fátima Silva Abdalla Sharon Varjão Will 13 19 31 33 50 64 80 102 10 Parte II Políticas e Socioeducação O Sistema De Garantia Dos Direitos Da Criança E Do Adolescente E O Departamento Geral De Ações Socioeducativas Do Estado Do Rio De Janeiro Equipe Assessoria Às Medidas Socioeducativas E Ao Egresso – AMSEG O Adolescente, A Sociedade Dos Direitos E O Trabalhador Social: Aonde Vai Dar Tudo Isso? Heloisa Mesquita Anália Barbosa Panorama Histórico Da Atenção À Criança No Brasil João Carlos De Paula Notas Criminológicas Sobre Juventude E Controle Social Roberta Duboc Pedrinha A Mediação E O Sistema Socioeducativo Flávia Gallo Glória Mosquéra Parte III Ações socioeducativas : práxis Violência,oDrogas,oEducaçãooEoInstituição Socioeducativa A Adolescentes Em Conflito Com A Lei: Uma Experiência Em Construção Janaina De Fátima Silva Abdalla Soraya Sampaio Vergilio Papo Aberto: Uma Proposta E Experiência De Intervenção Cláudia Da Silva Rodrigues Juana Dos Anjos Cunha Louzada 117 119 134 149 159 178 191 193 207 11 Famílias E Escola Como Dimensões Possíveis Na (Re) Construção Da Cidadania Do Adolescente/Jovem Em Conflito Com A Lei Ana Maria Vasconcelos Moreira Fabiana Ferreira Braga Os Desafios Para A Efetivação Do Sinase No Centro De Referência Especializado De Assistência Social – CREAS Maurizete Da Silva Arruda Janine Duarte Fernandes Renaud Brazileiro Nogueira Da Silva O Sancionatório E O Pedagógico Nas Medidas Socioeducativas: Reflexões À Luz Do Pensamento De Erving Goffman E Michel Foucault Leonardo PossidonioDomingos Pedro De Oliveira Ramos Junior 217 230 240 13 Desde 2007, com a reestruturação do Novo DEGASE, a Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, responsável pela formação dos operadores do sistema socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro vem realizando diversos cursos em parceria com universidades, instituições públicas e privadas, promovendo conhecimentos nas diversas áreas que demandam a problemática do atendimento socioeducativo, possibilitando a reflexão e mudanças nas práticas institucionais. Tais ações foram implementadas com o apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Inicialmente, através da realização da Pesquisa Perfil das Relações Humanas Institucionais do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, possibilitando o mapeamento das medidas socioeducativas no Estado, e com o Convênio 076/2007 para Formação de Operadores do Sistema Socioeducativo Estadual. Este ultima, possibilitou a formação continuada de servidores do DEGASE e dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS repercutindo na articulação e construção de redes para a municipalização das medidas em meio aberto do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é possível perceber as mudanças ocorridas através de alguns indicadores de desempenho, dentre eles, a participação mais efetiva e consciente dos servidores do Sistema Socioeducativo Estadual nos processos sociopedagógicos que permeiam a execução e acompanhamento das medidas socioeducativas e na promoção da garantia de direitos, processos estes que foram explicitados no Plano de Atendimento Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro - PASE - Decreto N°42.715 de 23 de novembro de 2010 e na finalização do Plano Pedagógico Institucional - Novo DEGASE. Na medida em que se amplia a possibilidade de debate, reflexão, conscientização da realidade vivenciada, outras demandas são geradas, surgindo à necessidade de ações pedagógicas contínuas e aprimoradas para a melhor direção do atendimento, necessitando constantemente ser renovado e Apresentação 14 adequado às necessidades reais do período histórico, político e social. Cônscios da responsabilidade e da competência atribuída, a política de formação do Novo DEGASE, em 2011, através da Secretaria de Estado de Educação/ DEGASE firma novo convênios com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República SDH/PR – (Convênio 756784/2011) visando a execução do Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro A União e os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados. (art. 39, CF/88) Este curso envolveu cerca de 600 (seiscentos) profissionais que atuam diretamente e indiretamente com as medidas socioeducativas de restrição e privação de liberdade do DEGASE e em medidas em meio aberto dos- CREAS e 36 (trinta e seis) municípios. Atuaram diretamente 22 (vinte e dois) profissionais do DEGASE, pertencentes à Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso – AMSEG e à Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire – ESGSE. Participaram do processo de elaboração e execução do curso, cerca de 40 (quarenta) professores-pesquisadores de universidades federais, estaduais e privadas e 10 (dez) mediadores na gestão pedagógica dos polos de extensão descentralizados nos municípios de Macaé, Teresópolis, Nova Iguaçu, Niterói, Belford Roxo, Volta Redonda e na Capital, este ultimo, nos bairros da Ilha do Governador e Bangu. Em termos qualitativos de política pública, esse eixo de intervenção representou um considerável avanço à humanização do atendimento aos adolescentes e suas famílias, nos princípios legais e éticos. Acreditamos que a formação dos profissionais socioeducativos garante uma abordagem crítica e reflexiva acerca 15 da natureza da atividade socioeducativa, bem como mudança de mentalidade e do olhar para o sistema, saindo dos moldes cristalizados de coerção para uma mudança de paradigmas onde o atendimento realizado se traduza em reinserção do adolescente em conflito com a lei. Cabe ressaltar que o processo de formação vem fomentar a necessidade da implementação e expansão de uma rede de serviços. Entendendo a incompletude institucional, faz-se mister destacar que as ações supracitadas encontram-se respaldadas na Constituição Federal e no SINASE. Os programas de atendimento que executam a internação provisória e as medidas socioeducativas deverão buscar profissionais qualificados para o desempenho das funções utilizando critérios definidos para seleção e contratação de pessoal, entre eles a análise de currículo, provas escritas de conhecimento e entrevista. Deve ainda oportunizar e oferecer formação e capacitação continuada específica para o trabalho socioeducativo em serviço. (item 6.2.5, SINASE) Assegurar a implementação de ações e políticas que atendam às exigências de formação continuada e capacitação em serviço é um desafio a ser superado cotidianamente. Assim, na formação dos operadores socioeducativos proposto pelo curso buscou-se a articulação das parcerias institucionais prevista pela incompletude institucional e profissional do Sistema Socioeducativo Estadual. Sistema que se traduz por rede, conjunto, tendo como foco o atendimento socioeducativo ao adolescente. A formação continuada dos atores sociais envolvidos no atendimento socioeducativo e fundamental para a evolução e aperfeiçoamento de práticas sociais ainda muito marcadas por condutas assistencialistas e repressoras. Ademais, a periódica discussão, elaboração interna e coletiva dos vários aspectos que cercam a vida dos adolescentes, bem como o estabelecimento de formas de superação dos entraves que se colocam na pratica socioeducativa exigem capacitação técnica e humana permanente e continua considerando, sobretudo o conteúdo relacionado aos direitos humanos. 16 A capacitação e a atualização continuada sobre a temática “Criança e Adolescente” devem ser fomentadas em todas as esferas de governo e pelos três Poderes, em especial as equipes dos programas de atendimento socioeducativo, de órgãos responsáveis pelas políticas publicas e sociais que tenham interface com o SINASE, especialmente a política de saúde, de educação, esporte, cultura e lazer, e de segurança publica. (SINASE) O objetivo deste livro é contribuir para a humanização do atendimento aos adolescentes envolvidos em atos ilícito a partir de pesquisas, experiências e saberes produzidos pelos professores, coordenadores, mediadores, gestores e cursistas durante o Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Acreditamos que a formação continuada dos operadores do sistema possa contribuir em sua qualificação e permitir mudanças de paradigmas, a fim de garantir a formação plena do adolescente, autor de ato infracional, o seu exercício de cidadania e a sua qualificação para o trabalho (Alexandre de Azevedo Jesus, 2010,p :8) Este livro está organizado em três partes precedidas por um artigo explicitando a estrutura pedagógica do curso e a política de formação da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire. Esta organização tem como referência três temáticas que de articulam: “Saberes , infância e juventudes ”, “Políticas e Socioeducação” e “Ações socioeducativas : práxis ”, procurando situar o debate e as formas recentes encontradas pelas políticas públicas para o atendimento socioeducativo na esfera nacional e estadual. Na Parte I “Saberes, infância e juventudes”, apresenta-se cinco artigos, de diferentes enfoques teóricos e conceituais, propõem a problematização, reflexão e análise do processo de construção histórica e social da infância e “das juventudes”, que repercute do processo de subjetivação dos adolescentes envolvidos em atos ilícitos: vítimas e vitimadores da violência na atualidade. 17 Na Parte II “Políticas e Socioeducação” composta por quatro artigos, procura-se apresentar o contexto das políticas públicas no atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais e a interface com os saberes e práxis de seus operadores. Nesse desdobramento, expõem-se e analisam-se os instrumentos legais, normativos e as práticas nos arranjos da execução das políticas públicas do Sistema Socioeducativo. Na Parte III “Ações socioeducativas” dedica-se a reflexão da execução das medidas socioeducativas no interior de suas instituições, a cotidianidade do saber-fazer da socioeducação, através de cinco artigos, os quais nos convidam a debater e analisar os discursos, as redes de poder-saber , a construção de redes institucionais, a gestão e as ações socioeducativas cotidianas no atendimento aos adolescentes e suas famílias. Esta publicação reafirma o compromisso do Novo DEGASE/ SDH- PR no investimento na formação dos profissionais que atuam no atendimento ao adolescente e suas famílias. Enfim, eis um convite a que todos corroborem para construção de um Sistema Socioeducativo mais humanitário, onde todos sejam sujeito de direito e solidários. Janaina de Fátima Silva Abdalla Saturnina Pereira da Silva Rio de Janeiro, novembro de 2013 19 As ações de formação continuada do Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro: concepção e estrutura pedagógica Bianca Veloso1 Marizélia Barbosa2 Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Paulo Freire Introdução O curso de formação para os Operadores do Sistema de Atendimento Socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei objetivou promover a formação continuada dos profissionais que atuam tanto com as medidas em meio aberto quanto com as restritivas e privativas de liberdade no estado do Rio de Janeiro, para o domínio efetivo dos fundamentos teóricos e metodológicos da prática socioeducativa, em conformidade com o SINASE. O curso teve a duração de seis meses com carga horária total de 215 horas. Foi destinado aos profissionais com escolaridade mínima equivalente ao Ensino Médio, atuantes de forma direta ou indireta no atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei. O currículo se estruturou por módulos ministrados às terças-feiras, às quartas-feiras e às quintas-feiras, das 8h30min às 17h30min, em dez turmas descentralizadas e distribuídas em dez polos pela Capital e pelo Estado do Rio de Janeiro, divididos em dois eixos: o primeiro com início em novembro de 2012 e o segundo, em março de 2013. 1 Divisão Técnico Pedagógica da ESGSE/Novo DEGASE 2 Divisão Técnico Pedagógica da ESGSE/Novo DEGASE 20 Concepção pedagógica A Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, responsável pela execução do curso dos operadores do sistema socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, foi criada em 31 de Agosto de 2001 com o nome “Escola Socioeducativa”. Em 2008, com a alteração da Estrutura Organizacional do DEGASE, passou a ser denominada “Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire-ESGSE”. Partimos da concepção de escola como instituição histórico-social, inserida na sociedade e, por isso, determinada por um constructo social e, ao mesmo tempo, reprodutora das contradições nela existentes. Sendo a escola uma instituição social, faz-se necessário que seus projetos de formação sejam elaborados levando em consideração alguns elementos importantes para a manutenção de práticas educativas democráticas. Dessa forma, elencamos alguns elementos que consideramos fundamentais na construção de ações de formação tendo em vista um viés humano: a promoção dos sujeitos que compõem a escola como agentes de intervenção efetiva nas ações por ela promovidas; a democratização do planejamento das atividades de formação; a sistematização do conhecimento produzido pelo processo de formação e a valorização dos saberes e das práticas advindas dos sujeitos que participam desse processo. As ações de formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo consideraram todos os aspectos supracitados, reafirmando a ideia que defende o trabalho como atividade humana e educativa. O trabalho como atividade humana difere do trabalho como se apresenta no contexto atual de produção, dividido, fragmentado, incompleto e alienado. Como apontou Manacorda (2010), o trabalho no seu sentido genérico se manifesta como atividade vital de reprodução da condição de existência do ser humano. 21 Nesse sentido, o trabalho é práxis. Estas categorias – trabalho e práxis – foram objetos de estudo de incansáveis teóricos no campo da sociologia do trabalho, esclarecendo que não é nosso objetivo apresentar as complexas formulações e significações que envolvem essas categorias, mas elucidar, a partir dessas definições, algumas questões sobre as ações de formação em voga. “É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento.” (MARX, 1991, p.12) Apesar de o pensamento se antecipar à prática, esses estão completamente interligados. Sendo assim, teoria e prática são indissociáveis e interdependentes. “A ação humana no trabalho pressupõe sempre uma intencionalidade, um certo grau de racionalidade e o intercâmbio com os outros seres sociais.” (NEVES, 2008, p.21) O trabalho histórico-econômico caracteriza-se, no contexto do capitalismo, como produtor de bens materiais que satisfazem as necessidades humanas. Nessa tendência, ocorre a coisificação das relações, em que tudo se torna mercadoria. Assim, a educação para o trabalho e no trabalho segue essa visão. A educação se tornou algo comprável e vendível. Em detrimento dessa concepção que reduz o caráter humano da educação ao caráter mercadológico, consideramos uma concepção ampliada de educação e de formação para o trabalho. Nesse sentido, as ações de formação promovidas pela Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, em especial as desenvolvidas pelo curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo, visam à valorização de espaços formativos crítico-reflexivos, onde o processo de ensino-aprendizagem aconteça de forma dialógica, a partir da abordagem histórico- social do sujeito, das instituições de privação de liberdade, das medidas de atendimento socioeducativo e do próprio adolescente em conflito com a lei. Para tanto, estruturou-se o currículo do curso em dez módulos: a) Infância, Adolescência, Família e Sociedade; b) 22 Marco Legal, Políticas Públicas e Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Educação em Direitos Humanos e PNDH-3 do Adolescente; c) Instrumentos Legais, Normativos do SINASE, PNDH-3 e PNEDH; d) Socioeducação e Responsabilização: Natureza e Dupla Face da Medida Socioeducativa entre o Sancionatório ao Pedagógico; e) Socioeducação: Práticas e Metodologias de Atendimento em Meio Aberto; f) Socioeducação: Práticas e Metodologias de Atendimento em Meio Fechado; g) Plano Individual de Atendimento; h) Gestão e Financiamento do Sistema Socioeducativo; i) Programas de Justiça Restaurativa; j) Parâmetros Socioeducativos – Segurança. Como estratégia para sistematização do conteúdo lecionado aos alunos, adotou-se um instrumento avaliativo de caráter processual, ou seja, os alunos, ao longo do módulo, foram estimulados à construção de textos a partir das leituraspropostas pelos docentes. Como estratégia de avaliação, adotou- se a apresentação oral, pelos grupos discentes, dos trabalhos por eles elaborados. Dessa forma, distanciamos nossas ações de formação continuada das ideias pragmáticas, pontuais, descontextualizadas, positivistas e tecnicistas de educação. Aproximamo-nos da acepção de formação continuada destinada a adultos trabalhadores decorrente das correntes críticas3 da educação brasileira. Estrutura pedagógica A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. BRASIL, 1996. 3 Dentre elas, a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, e a Pedagogia histó- rico-crítica, de Dermeval Saviani 23 Acreditamos na ideia do trabalho coletivo. Nesse sentido, adotamos, durante todo o processo de construção das ementas, dinâmicas de trabalho que reunissem a equipe técnica e a equipe docente, conformando, assim, um trabalho mais democrático. Os professores foram convidados a participar desse projeto, partindo de critérios de seleção elaborados pela coordenação do curso, como de análise das suas experiências profissionais e da formação acadêmica desses. Foi adotado, também, o critério de referência, convidando professores renomados por seus trabalhos nas temáticas ministradas em cada módulo. Um grupo de professores está ligado às Universidades, aos Centros Acadêmicos, às Instituições parceiras; e outro grupo, aos setores da Secretaria Estadual de Assistência Social, aos locais onde se realiza amplo trabalho na área da socioeducação. Teve-se sempre a preocupação de convidar professores gabaritados não só no âmbito da titulação, mas também no âmbito da experiência profissional, para que se alcançassem de forma mais efetiva os objetivos traçados em cada módulo. As ementas foram construídas a partir da intervenção dos professores, que assumiram um papel importante nesse processo, para além do trabalho técnico, mas também do trabalho pedagógico, de pensar as aulas de forma didática, com a elaboração de material de estudo e de projeção, assim como a pesquisa de filmes e vídeos escolhidos de acordo com os objetivos de cada conteúdo. Os conteúdos foram escolhidos pelos professores de cada módulo, tendo em vista a ementa e as visões teóricas trazidas pelo corpo docente, a fim de construir um processo que culminasse nas aulas e nas relações pós-aulas, processo que se inicia quando findam as aulas, momento em que os alunos tiveram a oportunidade de ter acesso ao material disponibilizado pelo professor para estudo pessoal. A metodologia proposta para as aulas considerou a centralidade da construção do conhecimento, a partir de 24 análises sócio-históricas da sociedade com relação aos objetos de conhecimento analisados em cada módulo. As aulas assumiram um formato didático basicamente formado por aulas expositivas, dinâmicas em grupo, estudos de caso, leituras individuais, apresentações projetadas, exibição de vídeos e filmes e debates. Foram realizadas reuniões periódicas, em um primeiro momento, com a coordenação pedagógica do curso e, em segundo momento, entre os próprios professores. O projeto previu avaliações formais, com a pretensão de classificação em aprovação ou reprovação a partir do parâmetro da média no valor de 7,0 (sete) pontos. Entretanto, sabe-se que a avaliação não deve assumir um sentido classificatório, quantitativo e pontual, mas um sentido formativo e processual e, nesse sentido, a partir das discussões realizadas entre a coordenação pedagógica e os professores, elaboraram-se avaliações como mais um espaço de reflexão e construção de conhecimento crítico frente às temáticas e às questões apresentadas pelos módulos. Portanto, apesar de as avaliações culminarem em valores que determinariam a aprovação ou reprovação do cursista, usou-se esse espaço como parte integrante do processo de construção do conhecimento. O trabalho técnico-pedagógico desenvolvido pela ESGSE articulou-se ao trabalho técnico-administrativo executado ao longo dos cursos. A gestão da frequência e da entrega de trabalhos elaborados pelos alunos foi essencial para auxiliar o acompanhamento organizacional e pedagógico dos alunos. Consonante com o projeto que originou o curso, a frequência mínima para aprovação foi de 75% do total da carga horária e a média mínima para aprovação no módulo, de 7,0 (sete) pontos. O curso foi dividido em dois eixos: o primeiro descentralizado em quatro turmas (duas na Ilha do Governador, uma em Bangu e uma em Belford Roxo); o segundo em seis turmas (Ilha do Governador, Macaé, Niterói, Volta Redonda, Nova Iguaçu e Teresópolis). 25 O primeiro eixo foi destinado aos servidores do DEGASE lotados em unidades da capital; e o segundo eixo, destinado aos servidores dos CREAS e CRIAADS. As turmas do segundo eixo possuíram alguns servidores do DEGASE, assim como servidores de Conselhos Tutelares, Tribunais e demais entidades que trabalham com os adolescentes em conflito com a lei. No polo localizado na cidade do Rio de Janeiro, participaram os seguintes CREAS: João Manoel, Arlindo Rodrigues, Stella Mares, SMDS, Wanda Engel, Padre Guilherme, Capital, Janete Clair, Adaiza Sposati, Nelson Carneiro, Simone de Beauvior, Márcia Lopes, CSIRS 10ª CAS, Adaiza Sposati, Zilda Arns, João Hélio, Daniela Perez. No polo de Niterói, Itaboraí, Niterói, S.P. da Aldeia, São Gonçalo, Magé, Maricá, Saquarema, 5ª Creas/RJ. No polo de Macaé, Campos dos Goytacazes, Macaé, Quissamã, Depto. Proteção Social Rio das Ostras, Conselho Tutelar de Macaé, Cabo Frio. No polo de Volta Redonda, Levy Gasparian, Resende, Paraíba do Sul, Porto Real, Miguel Pereira, Barra Mansa, A. dos Reis, Valença, Volta Redonda. No polo de Nova Iguaçú, Itaguaí, Nilópolis, Japeri, Paracambi, Mesquita, São João de Meriti, Queimados, B. Roxo P. Amorim, Seropédica, B. Roxo-S. Amélia, SEMAS-Nova Iguaçu, SMAS-Duque de Caxias. E, no polo Teresópolis, Nova Friburgo, Três Rios, Teresópolis, Guapimirim, T.J.R.J, MP Teresópolis. Na capital e em Nova Iguaçú, não houve a participação de nenhum CRIAAD. Em Niterói, participaram os CRIAADS da Ilha e de Niterói. Em Macaé, Macaé e Campos. Em Volta Redonda, V. Redonda, Barra Mansa. Em Teresópolis: Nova Friburgo, Teresópolis. No Eixo I, o dos CRIAADS participantes, temos a seguinte divisão: CRIAAD Ilha (no polo da ESGSE e do professor Antônio Carlos Gomes da Costa), o CRIAAD Nova Iguaçú (no polo do Cai Belford Roxo) e o CRIAAD Bangu (no polo do ESE). Podemos apontar que a execução do curso apreendeu o entendimento de que todos os atores nele envolvidos, em certa 26 medida, são educadores ao mesmo tempo em que são educandos. Sendo assim, a formação continuada dos servidores foi vista como um dos caminhos para que o DEGASE cumprisse sua missão de garantir os direitos fundamentais dos adolescentes em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas e/ou protetivas no Sistema. Conclusão Compartilhando as experiências e percepções obtidas nesse processo, podemos concluir que esse trabalho nos levou a refletir sobre a nossa própria práxis, buscando compreender como os diferentes temas abordados no curso para os operadores do Sistema Socioeducativo dariam base para as reflexões sobre o trabalho nesse sistema. A ideia de que o DEGASE e cada servidor sozinhos não podem dar conta de todas as demandas que chegam através dos adolescentes atravessou todos os módulos. Os diferentes temas apontaram para o trabalho em rede, para a necessidade do fortalecimento da rede interna e para a ampliação da rede externa. Foi predominante o pensamento de que é importante estreitar o diálogo com os diferentessetores do DEGASE. O curso, por congregar servidores dos diferentes setores e com variadas funções e formações, propiciou um espaço de desconstrução de mitos institucionais e de reafirmação de algumas parcerias. Através de ações proativas – cursos, palestras, práticas de trabalho inclusivas, grupos de estudo e outros encaminhamentos –, o Novo DEGASE vem investindo na valoração de seus servidores. Temos ações objetivas que buscam a desconstrução de diferentes estigmas da figura do servidor. Estamos no processo, construindo novas práxis socioeducativas, em uma perspectiva crítico-emancipatória. Para isso, nossas finalidades de educação estão alinhadas às de formação humana, de maneira que os 27 trabalhadores possam, alicerçados por ferramentas conceituais, teóricas e metodológicas, adquiridas ao longo do curso, atuar alinhados à prática socioeducativa. Para Costa (2001), a formação plena do educando contribui para torná-lo autônomo, com competência para fazer análises de diferentes circunstâncias, de fazer escolhas, deixando-o apto a retornar à sociedade, sabendo distinguir o certo e o errado, sabendo dos seus direitos e também dos seus deveres, ou seja, tornando-o um cidadão. O Novo DEGASE, como órgão de proteção integral aos adolescentes em conflito com a lei, tem caminhado firmemente em sua missão. Várias unidades têm investido em sua rede interna e externa, ampliando, assim, as possibilidades de sucesso às demandas apresentadas pelos adolescentes e seus familiares. Os desafios continuam muitos, entre esses o de acompanhar o desenrolar dos diferentes casos quando o adolescente perde o vínculo formal com a instituição, assim como entender que a sua reestruturação visa ao adolescente que pretende formar. As reflexões acima tentam organizar o panorama no qual está se dando o Curso para os Operadores do Sistema, buscando estratégias que facilitem a interlocução dos atores citados. Os espaços ocupados pelos servidores do sistema socioeducativo ainda estão refletindo o desgaste na “qualidade” da comunicação dos diferentes sujeitos. Pequenos, mas importantes acordos podem ser feitos, necessitando-se para isso de disponibilidade para o “ouvir”. A partir da execução do curso, algumas demandas advindas da implementação do curso a partir da sua descentralização começam a surgir, pedindo urgência em seus encaminhamentos. As atribuições da equipe, dentre outras, estiveram ligadas às escolhas dos melhores caminhos para a operacionalização do curso, ou seja, como fazê-lo acontecer da melhor forma possível. 28 Desde as reuniões com os professores para o planejamento dos módulos até a elaboração das ferramentas de organização (inscrições, programas, matrícula, listagens para controle de frequências e notas e outros), sempre se buscou, dentro das nossas possibilidades, respeitar as diferenças dos atores envolvidos nessa organização, assim como considerar as suas capacidades e habilidades. Alguns encaminhamentos foram necessários para que houvesse um processo coerente de trabalho, frente às diferenças supracitadas. As reuniões entre a equipe técnica aconteceram buscando um enfoque multidisciplinar, que não pretendeu criar uma “receita”, e sim agregar valores frente aos desafios propostos. Muitas questões perpassaram o trabalho da equipe pedagógica, a valer: a) ofereceu-se uma estrutura facilitadora do processo de formação em serviço?; b) houve acesso aos materiais didáticos de forma adequada?; c) a dinâmica do curso foi bem compreendida pelos servidores? Entendemos a tarefa socioeducativa como sendo de toda a sociedade, garantindo aos usuários dessas redes, os adolescentes em cumprimento de mediadas socioeducativas, um suporte que esteja disponível sempre que necessário. Dessa forma, verificamos que se faz cada vez mais necessária a promoção da formação continuada dos operadores do Sistema Socioeducativo, de forma a atingir o propósito da efetiva garantia dos direitos do adolescente em conflito com a lei e de aperfeiçoamento das práticas cotidianas. 29 Referências bibliográficas COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Aventura Pedagógica: Caminhos e Descaminhos de uma Ação Educativa. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 2001. BRASIL. Lei n. 9.394 de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001. MARX, K. A ideologia alemã.. São Paulo: Hucitec, 1991. MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. Campinas, SP: Editora Alínea, 2010. NEVES, Lúcia Maria Wanderley. O mercado do conhecimento e o conhecimento para o mercado: da formação para o trabalho complexo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008. 30 31 Parte I “Saberes, infância e juventudes” 33 Reflexões sobre a juventude em conflito com a lei: a infância, a adolescência e a família como uma construção social e histórica. Christiane Mota Zeitoune4 Elis Regina Castro Lopes5 Murilo Peixoto da Mota 6 Resumo: O presente artigo busca refletir sobre a dimensão social que envolve os jovens em conflito com a lei, acentuando uma crítica à perspectiva da análise funcionalista sobre o crime e a criminalidade. Estão em discussão as ações e intervenções no âmbito das políticas públicas para a criança e o adolescente, a partir das aulas realizadas no Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Imerso em um campo teórico-metodológico da construção social, abre-se para um breve panorama social e histórico sobre as categorias infância, família e adolescência. Palavras-chave: ato infracional; políticas públicas; criança; adolescente. 4 Psicóloga. Coordenadora de Saúde Integral e Reinserção Social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas. Doutora em Teoria Psicanalítica – UFRJ. Mestre em Psicologia Clínica – PUC-RJ. Formação Psicanalítica. E-mail: christia- nezeitoune@gmail.com 5 Psicóloga Clinica; Agente Socioeducativo do Departamento Geral de Ações Socioeducativas; Mestre em Políticas Públicas do adolescente em Conflito com a Lei/ UNIBAN-SP. E-mail: elispsirj@yahoo.com.br 6 Sociólogo do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely de Sousa Almeida/UFRJ. Doutor em Serviço Social – ESS/UFRJ. Mestre em Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ. muriloufrj@gmail.com 34 Introdução No decorrer do ano de 2012, a proposta de capacitar os profissionais do Departamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE – foi vislumbrada como um desafio concreto para a equipe e consultores convidados. A ideia de um projeto planejado logo estaria em pauta nos comentários do cafezinho, na fila do almoço, nas conversas informais e reuniões institucionais, envolvendo estudiosos e pesquisadores, com expertise no campo de reflexões, que pudessem ampliar uma análise crítica sobre a clientela abordada, ou seja, jovens em conflito com a lei. O que era um projeto de curso se evidenciou como uma realidade interventiva. O Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo entraria em prática com amplos objetivos e desafios, principalmente o de possibilitar envolver o profissional técnico como um protagonista de suas ações, sem determinações de manuais ou regras impostas. Entrava em questão a efetivação de um debate crítico e frutífero sobre os amplos aspectos que envolvem o adolescente em conflito com a lei que aportasse uma reflexão metodológica, a fim de situar o educador nos amplos aspectos que a questão socioeducativa envolve. Salienta-se a convicção de que o trabalho que o educador do DEGASE desenvolve origina-se no contexto da totalidade de sua vida, cujos temas infância, família e adolescência não são conceitos ignorados. Não seria trivial afirmar o fato de que não há quemnão se emocione com as inúmeras questões sociais que afetam a clientela atendida pela Instituição. De todo modo, no âmago de todo o processo em discussão está a ampliação de habilidades já existentes na atividade profissional. Nos debates sobre o conteúdo do curso, as categorias infância, família e adolescência logo vigoraram como discussão obrigatória, considerando que não se poderia falar de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas sem apreciar as 35 abordagens teórico-metodológicas, que porventura esclareceriam o contexto político no qual tais sujeitos estão inseridos na sociedade, sob a ótica da integralidade. Nesse sentido, este artigo apresenta uma breve discussão analítica sobre as três categorias centrais, que consideramos ampliar as análises sobre as ações e intervenções no âmbito das políticas públicas para a criança e o adolescente a partir da experiência do Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Uma breve reflexão crítica da análise funcionalista sobre a juventude em conflito com a lei Estamos imbuídos em esclarecer as consequências da delinquência juvenil, suas dimensões sociais, os meios de enfrentá-la ou meramente controlá-la? Nessa questão, está explícita a preocupação de analisar os posicionamentos teóricos nos quais muitos de nós estamos inseridos sem ao menos nomeá-los; isso porque não existe pensamento neutro, ausente de reflexões anteriores nos quais se formam as bases da análise sobre os fatos sociais. Nesse sentido, há de se considerar certa hegemonia do pensamento funcionalista7 sobre as bases analíticas dos fenômenos relacionados ao crime. Observa-se ampla tendência de se criminalizar a pobreza e individualizar a ação criminal no âmbito de um discurso, que assinala uma natureza moral para o ato criminoso. As argumentações realizadas no senso comum, construídas pela mídia em geral, pouco contextualizam o problema como um fato social. O que se percebe são panoramas simplistas, que não articulam a conjuntura das questões sociais e as contradições de um sistema econômico e político desigual, que não oferece ao 7 A corrente sociológica funcionalista foi introduzida por Émile Durheim e, posteriormente, por Talcott Parsons no contexto do positivismo. 36 indivíduo oportunidades, acesso a políticas públicas no âmbito da promoção do bem-estar necessário para a vida digna em sociedade. Em consequência, o olhar para o crime está sempre voltado para o criminoso considerado naturalmente propenso a ser mal, cruel e que deve ser punido para o resto de sua vida por não estar apto à vida em sociedade. Mesmo em um contexto de mudanças no campo do judiciário, em que se efetiva a “doutrina da proteção integral”, fundada com a executividade do Estatuto da Criança e do Adolescente, até certo ponto pode-se afirmar que ainda impera a perspectiva simbólica da “doutrina da situação irregular”, de caráter funcionalista. Há todo um sentido ideológico que norteia inúmeras ações e intervenções por parte do Estado contra a criminalidade. Essa análise pode ser exemplificada a partir das ideias que, volta e meia, entram em pauta na mídia e na agenda política, tais como: a redução da maioridade penal para os jovens infratores; a busca de resolutividade em torno do aumento do número de prisões; individualização da problemática do crime como argumentação que pauta certo problema da natureza violenta do criminoso. Tais questões são exemplos do quanto ainda temos uma análise funcional da delinquência acometida por jovens em nossa sociedade, cujo mecanismo interventivo tem como referência a “correção” normativa, certo exercício de vingança da sociedade, a fim de normalizar a engrenagem da máquina social e promover uma limpeza dos “maus elementos”. A dimensão teórica funcionalista é hegemônica em muitas interpretações dos fenômenos sociais em nossa sociedade, cujas análises criam vieses equivocados, na medida em que sugere esquemas baseados em impulsos biológicos e define as consequências dos atos criminais como patológicas, nas quais certos indivíduos são vistos como portadores de falhas no seu desenvolvimento moral determinado por uma natureza comportamental. Em decorrência disso, a interpretação sobre o crime está reduzida a sua causa, cujas explicações levam a generalizações dos fatos sem estabelecer relações com outras 37 variáveis sociais, como classe, etnia, gênero, geração, religião. Assim, uma proposta funcionalista para a socialização do sujeito considerado desviante ou criminoso por seu delito consistiria em impor certo adestramento, em que o indivíduo a ser normalizado é levado a interiorizar regras, valores, habilidades, atitudes e doutrinas implantadas mecanicamente sobre o que se pode entender como sendo uma atitude civilizada e sob a égide da moral burguesa, que prima pela manutenção do seu status quo. No âmbito do funcionalismo, a hipótese comumente sugerida para as pesquisas sobre a delinquência juvenil consiste em provar que o enfraquecimento do controle social sobre aqueles indivíduos imersos na pobreza e alijados da sociedade de consumo é a verdadeira causa do fenômeno do crime; ou seja, a falta de controle pode se tornar um fator de risco e, nesse sentido, são os jovens mais desprovidos desse controle que se tornam delinquentes (DUBAR, 2007). Ademais, essa análise abre para certa generalização, isso é, a delinquência percebida como um atributo individual, com diferenciação entre dois tipos de jovens: um considerado “normal”, geralmente com característica branca, de camadas médias e bem integrado à sociedade, em detrimento daquele outro, que não quer estudar, trabalhar, que é perigoso, geralmente de aparência negra ou parda, que veste o estigma de delinquente e tira o maior proveito de sua situação delituosa. Ironicamente, não seria este percebido como em “situação irregular” da era do Código de Menores? Para o olhar funcionalista, não entra em discussão a trajetória de vida da maioria dos indivíduos em nossa sociedade, que envolve a dimensão do trabalho infantil, desemprego, desigualdade econômica, violência simbólica estrutural, desestruturação familiar em meio à exclusão social. Tais aspectos são traços peculiares da relação capital/trabalho e exploração, avanço da carência de oportunidades a todos, frágil conteúdo educacional do ensino público, que não favorece ascensão social (SOARES, 2007). 38 Considerando os ensinamentos de Pierre Bourdieu (2003), será preciso ir mais longe e decifrar os conflitos como expressões simbólicas, que não podem ser feitos a partir de padrões ou crivos preestabelecidos e soluções pela ótica do “olho por olho, dente por dente”. Será necessário perceber que os jovens que cometem atos infracionais o fazem atuando em um campo de poder, em que o “mundo do crime” é visto como marca de virilidade. Há de se relativizar o quanto as forças que muitos jovens dispõem em uma sociedade distintiva como a nossa, que impõe buscar a qualquer preço ser aceito e integrado socialmente em cujos ritos de passagens pelas gangues, muitas vezes, passam pela prática do delito (ZALUAR, 2004). De todo modo, devemos reconhecer o fato de que todo indivíduo impulsiona sua experiência de vida sobre determinadas práticas e são responsáveis por elas. As ações individuais são relacionais e podem ser previsíveis ou inesperadas, mas certamente estão baseadas na trajetória de vida de cada um, em meio a estilos e identidades socialmente construídos. É importante considerar que esse ato infracional, que teve como consequência uma resposta jurídica, desempenha uma função na vida desse jovem e na sua relação com o outro, sendo importante recuperar a análise sobre o seu envolvimento nesse ato, a fim de tornar possível para ele responsabilizar-sepor isso. No Brasil, é através do cumprimento da medida socioeducativa que o adolescente é convocado a responder pelo ato cometido. Só assim poderá responsabilizar-se por aquilo que lhe escapa e que aparece realizado em seu desvio com a lei. O caráter sancionatório e pedagógico das medidas socioeducativas envolve um modelo de atendimento articulado ao sistema de garantia de direitos que visam à promoção da cidadania. A grande questão que se coloca aqui, para um olhar não funcional, será pensar as ações das instituições que desenvolvem programas de medidas socioeducativas privativa e restritiva de liberdade, que priorizam o resgate da cidadania do jovem em conflito com a lei. Busca-se, assim, ir além das estratégias 39 coercitivas, punitivas e disciplinadoras muito em voga e que tanto disseminam a violência simbólica. Porém, qual é o objetivo de tais ações? Integrar, normalizar, doutrinar e adequar? Ou empoderar tais sujeitos como agentes de sua história e capazes de buscar em si mesmo novas saídas para o sentido da vida, como sujeitos detentores de capitais culturais, que possibilitam o exercício da civilidade? Podemos analisar, à luz dos ensinamentos de Sigmund Freud (1930), que a ideia de civilização tem por objetivo moderar e limitar a vontade de gozo, por meio da formação dos ideais. Contudo, não estamos mais em uma época como a de Freud, quando os ideais e as ideologias estavam no zênite do social (MILLER, 2004). Estamos em uma época em que existem impasses; uma época em que as leis simbólicas, que regem os laços sociais, não têm tido consistência para assegurar as relações do sujeito com o outro, em função do declínio dos ideais. Consequentemente, estamos confrontados com certos tipos de comportamentos de jovens que colocam as ações dos educadores em xeque e nos desafiam a novas intervenções. A sociedade quer punição, quer a retirada de todos aqueles que cometem atos de barbárie, mas o aprisionamento por si só seria suficiente para promover o sentido de civilidade? Entretanto, direcionar para o sentido de civilidade seria o interesse da sociedade? Ou interessaria mais puni-lo, encarcerá- lo e extirpá-lo da convivência como se o curasse um câncer social, como se promovesse uma limpeza, livrando-se de um indivíduo- problema em uma retomada retórica já vista pela “ideologia da situação irregular”? O que se observa é que são amplas as questões que devem ser relativizadas, a fim de nortear as ações e intervenções com as medidas socioeducativas, mas sem perder de vista a égide da integralidade sobre o jovem em conflito com a lei. 40 Infância e adolescência: uma construção social e histórica Hoje, a ideia de infância e adolescência está amparada a partir de uma análise histórica e social, o que implica afirmar que é o resultado variável de um amplo processo social, político e econômico vivido ao longo de séculos. Nesse sentido, refuta-se qualquer perspectiva de se afirmar ser um fenômeno meramente determinado pela natureza, baseado em princípios hormonais e implicados por relações biocorporais no âmbito de uma faixa etária cronológica. A análise sobre a infância como questão analítica em ciências sociais ganha visibilidade com a publicação do livro de Philippe Ariés, A história social da criança e da família (1981). Até então, poucos historiadores se manifestaram sobre o tema, aspecto que colocava o debate sobre a criança na sociedade como certa penumbra teórica e analítica ou como preocupação para as políticas públicas fora do cerco assistencialista. O próprio Ariès (1981) salientou que a falta de uma história da infância e o seu registro historiográfico tardio são um indício da incapacidade por parte do adulto de ver a criança em sua perspectiva histórica, para além de suas capacidades “naturais” vinculadas à idade. Na sociedade brasileira, ao analisarmos o processo de construção social da infância desde o período colonial, é preciso considerar que o Brasil-colônia estava organizado entre casa grande e senzala, senhores e escravos. As crianças eram “crianças rapazes” à força. Gilberto Freyre (1983) fez questão de caracterizar esses homenzinhos obrigados a se comportarem como gente grande, salientando que a educação dos pequenos tinha o propósito de destruir toda a espontaneidade e alegria de quem ainda aprendia a viver em um sistema escravocrata. Esse autor destaca que, até os cinco anos, “os meninos de família andavam nus do mesmo modo que os moleques; mais tarde é que vinham as roupas pesadas e solenes distinguir os filhos-família dos moleques da senzala com as roupas de homem” (FREYRE, 1983, p. 412). 41 Em 1808, a chegada e estadia da Família Real Portuguesa no Brasil foram um marco para aquele século. Logo foram inauguradas as Escolas Militares, a Escola de Direito e Medicina, a Biblioteca Real, o Jardim Botânico, a Imprensa. A assistência era feita pela Santa Casa de Misericórdia, onde foram instaladas, nos moldes de Portugal, as Rodas dos Expostos, primeiro modelo de acolhimento de recém-nascidos órfãos ou abandonados, seja por ser pobre seja por ser filho de uma mãe solteira. Pelos códigos morais da época, era impensável uma mulher mãe solteira. A uma gravidez ilegítima, fruto de uma relação fora do casamento, só restava a tentativa de se livrar do filho bastardo. A Roda dos Expostos consistia em um mecanismo em forma de tambor com uma portinhola giratória, onde o bebê era colocado. Bastava tocar um sino e rodá-la para que alguém a pegasse do outro lado. Tal sistema mantinha o anonimato, uma vez que era construído de tal forma que aquele que colocava a criança não era visto por aquele que a recebia. Foram longos os usos desse dispositivo em nossa História, que datam de 1726 a 1950. Por quase um século e meio, a Roda de Expostos foi praticamente o único mecanismo de assistência à criança abandonada em todo o Brasil. Em 1822, ocorre a proclamação da Independência e, em 1824, a primeira Constituição brasileira, que foi uma Constituição considerada liberal e moderna para a época. Em 1830, foi sancionado o primeiro Código Criminal no Brasil. O artigo de número 10 determinava que os menores de 14 anos não fossem julgados como criminosos (CARVALHO, 2010). Ademais, a lei do Ventre Livre teve uma importância estruturante para a época. Em seu primeiro artigo, salientava que: “Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre”. Qual é a nossa herança? No contexto educacional, do Brasil-colônia à República Velha (1889 -1929), nenhuma mudança estrutural ocorreu em uma perspectiva de equidade para a qualidade de ensino entre a elite e as camadas populares. Na assistência, a infância pobre 42 era vista como em situação irregular e desprovida de direitos. De todo modo, a década de 1920 foi marcada pelas transformações que consolidaram leis de assistência e proteção aos jovens como tutela e coerção do Estado. No entanto, a infância pobre era caracterizada como delinquente. Em 1927, promulga-se o Código de Menores, momento a partir do qual o Estado passa a se comprometer e intervir com políticas públicas. A infância se transformava e a criança de pequenos adultos passava a ser um problema social em meio às inúmeras desigualdades sociais vividas, que a expunham em situação social irregular, sendo percebida como vagabunda, desocupada, baderneira, capoeira. Nesse sentido, passou a ser objeto de tutela assistencialista do Estado com vistas a inibir essa constante situação colocando-a fora das ruas e dentro das instituições penais em prol da disciplina, normalização social e controle da ordem. A dimensão política, que passou a reconhecer as opiniões das crianças e adolescentes, seus desejos e limitações como um tema para o seu bem-estar, veioà tona com a promulgação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em 1989. A partir de então, temos um marco importante, que acarretou mudanças na definição de infância e fortaleceu no Brasil a tese da doutrina da Proteção Integral. A criança e o adolescente, reconhecidos como sujeitos na sua condição peculiar de desenvolvimento, passam a ter seus direitos fundamentais respeitados, dentre os quais: vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária, o que lhes garante consentimentos e confidencialidade no mundo dos adultos, tal como determinado pela Constituição Federal de 1988 e normatizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. 43 Considerações finais O que podemos alinhavar no âmbito deste debate são as inúmeras contradições políticas nas quais os temas infância, adolescência e família envolvem em nosso cotidiano, quais sejam: trabalho infantil, pobreza, exclusão social, desemprego, desigualdade social, violência estrutural, a arma como símbolo de virilidade, o sentido de transgressão pela criminalidade, acesso a oportunidades, baixa escolaridade, entre outros. O que buscamos ressaltar, diante desta reflexão, são as contradições marcantes das questões sociais em voga, que culminam com a exclusão social, aspectos que elucidam a base dos indicadores da vulnerabilidade de todos os cidadãos, mas principalmente das crianças, dos adolescentes e das famílias de um modo geral. Em meio à ideia de questão social, há a análise da não naturalização dos problemas sociais. Essa perspectiva se apoia na apreciação política da estrutural desigualdade de direitos por parte de setores inteiros da sociedade (CASTELO, 2012). A partir destas reflexões, reafirmamos a análise de que a dinâmica das desigualdades são construções e, como tais, requerem ser analisadas a partir de parâmetros metodológicos, éticos, críticos e transformadores, que rumam em direção ao exercício majoritário dos Direitos Humanos como uma prática. Para isso, acreditamos ser preciso que tenhamos senso crítico. Será obrigatório abrir mão de conceitos e preconceitos solidificados, para que possamos olhar para os jovens, principalmente aqueles que estão em cumprimento de medida socioeducativa, considerando-os inseridos nos âmbitos das questões sociais que trazem em suas trajetórias de vida, pois esses jovens não são os atos infracionais que cometeram. O que entra em discussão neste debate é perceber a criança como sujeito de direito, que necessita de cuidados dos adultos e assistência do Estado. Porém, o adolescente de baixa renda ainda 44 continua a ser percebido como um problema social, sob a ótica da doutrina da “situação irregular”, mesmo em meio ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que abre legalmente a perspectiva para sua a análise a partir da doutrina da “proteção integral”. Enfim, houve um longo percurso histórico das instituições sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos das sociedades ocidentais reconhecessem, à criança, o estatuto de sujeito e a dignidade de pessoa com base no princípio das obrigações por parte da família, da comunidade e do Estado, mas não seremos nós a perder o rumo desta história. As famílias: novos olhares Pensar família, hoje, requer uma compreensão de famílias no sentido plural, que interpele novas reflexões para além do modelo “nuclear burguês”. Essa perspectiva possibilita analisar a diversidade de relações e arranjos existentes no âmbito das conjunções familiares contemporâneas. Haja vista que coexistimos com novas configurações familiares, não se pode pensar tal instituição fora do contexto mais amplo, que envolva o reconhecimento de modelos de coabitação diversos. Não se pode negar, nesse sentido, a influência da família na construção das identidades e estilos de vida dos sujeitos. Afirma-se o fato de que a família se transforma e se adéqua às mais diversas formas de influências sociais e culturais do mundo moderno (HINTZ, 2001). Podemos conceituar a família como uma instituição na qual os membros se unem por vínculos de consanguinidade, afetividade e coabitação, sendo um espaço de proteção e socialização, mas também de coexistência de conflitos e violência. Nesse aspecto, será necessário compreender os mais diversos arranjos, que na atualidade se destacam como diferentes formas de expressão familiar, a saber: um núcleo familiar formado por pai, mãe e filhos, no qual o pai tradicionalmente detém maiores 45 poderes simbólicos nas relações de gênero; as famílias extensas formadas por outros membros, como avós, tios e primos; a família monoparental, chefiadas por um pai ou uma mãe; as homoafetivas, formadas por casais homossexuais com ou sem crianças; reconstituídas, formadas por várias pessoas coabitando juntas, sem laços legais, mas com forte compromisso mútuo; entre outros modelos. De todo modo, havemos de reconhecer que o grupo familiar irá exercer influência fundamental no desenvolvimento individual do sujeito, na constituição de suas identidades, seus gostos e estilos de vida, além de contribuir na formação de sua personalidade, seu comportamento e suas relações sociais estabelecidas fora e dentro do ambiente familiar. Há de se levar em conta, nesse contexto, as mudanças ocorridas na formação da família. Com as transformações ocorridas a partir da segunda metade do século XX, quando a sociedade passou por grandes transformações, houve mudanças fundamentais no âmbito da vida pública e privada, caracterizadas pela ampla urbanização das cidades, pelos avanços tecnológicos, pela efetiva participação da mulher no mercado de trabalho, pelo aumento no número de separações e divórcios, pelo controle da natalidade como um mecanismo de escolha a partir dos métodos contraceptivos, entre outros. O Censo de 2010 apontou novo perfil da família brasileira (IBGE 2010). Foi apresentado um declínio das uniões formais para as informais, um crescimento das famílias reconstituídas e das famílias monoparentais, em especial formadas por mulheres provedoras do lar. Na atualidade, o Brasil aumenta ainda mais as desigualdades sociais, acarretando algumas particularidades próprias de um sistema que sofre com a ausência de políticas públicas consistentes. Como fruto de ampla mobilização popular, a Constituição Federal de 1988 fortalece a instituição familiar e deflagra ampla consolidação de políticas públicas, com os seguintes destaques: o Sistema Único de Assistência Social, que passou a apresentar como 46 um de seus pilares norteadores a matricialidade sociofamiliar; e o Estatuto da Criança e do Adolescente – lei 8069/1990, na qual a família passa a vigorar com importância vital na construção da cidadania. Em decorrência, tem-se o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, que apresenta como uma de suas principais diretrizes a centralidade da família, a primazia da responsabilidade do Estado no fomento de políticas integradas de apoio e o reconhecimento das competências familiares na sua organização interna e na superação de dificuldades. Em se tratando especificamente do adolescente-autor de ato infracional e sua família, o Sistema de Atendimento Socioeducativo – SINASE – reconhece a participação familiar como fundamental no processo socioeducativo, a fim de atingir os objetivos da medida socioeducativa aplicada. Embora tenha sido descrito um aparato legal como forma de proteção à família, cabe ressaltar que a aprovação de leis e a existência dessas não são o suficiente para se garantir uma proteção real às famílias e a seus membros. As mudanças só ocorrem realmente a partir do momento em que asleis saem do papel e se transformam em políticas públicas em meio à consolidação de uma sociedade mais justa e igualitária. Considerações finais O que podemos alinhavar no âmbito deste debate são as inúmeras contradições políticas nas quais os temas infância, adolescência e família envolvem em nosso cotidiano, quais sejam: trabalho infantil, pobreza, exclusão social, desemprego, desigualdade social, violência estrutural, a arma como símbolo de virilidade, o sentido de transgressão pela criminalidade, acesso a oportunidades, baixa escolaridade, entre outros. 47 O que buscamos ressaltar, diante desta reflexão, são as contradições marcantes das questões sociais em voga, que culminam com a exclusão social, aspectos que elucidam a base dos indicadores da vulnerabilidade de todos os cidadãos, mas principalmente das crianças, dos adolescentes e das famílias de um modo geral. Em meio à ideia de questão social, há a análise da não naturalização dos problemas sociais. Essa perspectiva se apoia na apreciação política da estrutural desigualdade de direitos por parte de setores inteiros da sociedade (CASTELO, 2012). A partir destas reflexões, reafirmamos a análise de que a dinâmica das desigualdades são construções e, como tais, requerem ser analisadas a partir de parâmetros metodológicos, éticos, críticos e transformadores, que rumam em direção ao exercício majoritário dos Direitos Humanos como uma prática. Para isso, acreditamos ser preciso que tenhamos senso crítico. Será obrigatório abrir mão de conceitos e preconceitos solidificados, para que possamos olhar para os jovens, principalmente aqueles que estão em cumprimento de medida socioeducativa, considerando-os inseridos nos âmbitos das questões sociais que trazem em suas trajetórias de vida, pois esses jovens não são os atos infracionais que cometeram. O que entra em discussão neste debate é perceber a criança como sujeito de direito, que necessita de cuidados dos adultos e assistência do Estado. Porém, o adolescente de baixa renda ainda continua a ser percebido como um problema social, sob a ótica da doutrina da “situação irregular”, mesmo em meio ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que abre legalmente a perspectiva para sua a análise a partir da doutrina da “proteção integral”. Enfim, houve um longo percurso histórico das instituições sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos das sociedades ocidentais reconhecessem, à criança, o estatuto de sujeito e a dignidade de pessoa com base no princípio das obrigações por parte da família, da comunidade e do Estado, mas não seremos nós a perder o rumo desta história. 48 Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 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As crianças, futuros adolescentes, vivem com várias realidades sociais e delas apreendem valores e estratégias de compreensão de mundo e de formação de suas próprias identidades pessoal e sociocultural. Quase sempre mediadas por adultos, no interior de complexos modos de organização e de produção cultural, crianças e adolescentes desenvolvem-se como participantes de comunidades e nelas vivem experiências, muitas vezes configuradas como situações de risco. Nas comunidades com concentração de famílias de baixa renda, é comum atribuir aos sujeitos trajetórias que afirmam e potencializam noções subjetivas e sociais de desqualificação e marginalização. Os jovens emergentes destas comunidades, comumente, são considerados perigosos em potencial, inimigos da sociedade e, por isso, sujeitos que devem ser evitados e excluídos para o melhor desenvolvimento da sociedade. Nesse contexto, configura-se um processo de criminalização que atravessa infâncias e jovens que vivenciam políticas públicas intervencionistas de governo com ações policiais opressoras. Diante dessas questões, desenvolvemos reflexões sobre crianças e jovens configurados por identidades homogêneas, inferiores e desqualificadas e, por isso, atravessados e constituídos por políticas governamentais que os consideram fora de perspectivas de normalidade, de autonomia e mesmo de liberdade. 8 Doutora em Educação Universidade Federal Fluminense –UFF.;E-mail: psi- covir@terra.com.br Professora Convidada do Curso de Formação de Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro 51 Palavras-chave: crianças, jovens, risco e exclusão social, infração. Introdução Este artigo parte da experiência do curso de formação dos profissionais do sistema socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei do Estado do Rio de Janeiro, que procurou introduzir os fundamentos teóricos para a prática socioeducativa sobre os temas infância, adolescência, família e sociedade, em conformidade com as diretrizes legais e normativas nacionaise internacionais no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SINASE e do PNCFC (Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária). Nossa proposta é trazer algumas reflexões sobre infâncias e adolescentes, entendidos como sujeitos de direitos que se encontram em processo de desenvolvimento e de construção de uma identidade social, histórica, psíquica e corporal como pessoa humana. Nosso curso partiu de reflexões acerca de conceitos de infância e adolescência, de modo a entendermos que não são simplesmente fenômenos naturais e biológicos a partir do nascimento, mas caracterizam-se como fenômenos históricos, culturais e sociais. Para compreendermos a história da infância e da adolescência, indiscutivelmente, precisamos visitar a história da família, dos processos de urbanização, do trabalho e das relações de produção para entendermos que vivemos com uma herança histórica com particularidades latino-americanas construídas a partir de sociedades cindidas em classes com marcas de um passado oriundo de longos processos de colonização e de escravidão e de um presente configurado por sociedades com classes dominantes subordinadas aos grandes centros 52 hegemônicos do capital financeiro com a finalidade de auferir lucros, independente da produção. Neste processo surge a ideologia do capital humano referindo-se à importância do sujeito social como mão de obra qualificada para o processo produtivo numa sociedade que valoriza a pedagogia das competências, a empregabilidade e o empreendorismo. Nesta lógica social com espírito mercantil, onde ficam as crianças que caminham para adolescência num contexto familiar em situação de pobreza, distanciadas desse ideal social e que, muitas vezes, é criada num lugar de conflito e num espaço de violação dos direitos legais que asseguram a sua liberdade, dignidade, integridade física, psíquica e moral, sua educação, saúde, proteção, assistência social à cultura, ao lazer, ao desporto, à habitação, a um meio ambiente de qualidade, dentre outros anunciados pelos documentos institucionais? Diante desses pressupostos, apresentamos um breve histórico da infância, adolescência e famílias pobres no Brasil na tentativa de situá-los no contexto social nacional. Contextualizando a infância, a adolescência e famílias pobres no Brasil A infância e a adolescência não são simplesmente fenômenos naturais e biológicos a partir do nascimento, mas caracterizam-se como fenômenos socioculturais construídos ao longo da História. Referimo-nos à história do Brasil que começou a ser registrada a partir do anos 1500, quando europeus aportaram em nossas terras. Mesmo assim, até a transferência da família real para o Rio de Janeiro, em 1808, há poucos e esparsos registros da formação histórico-social da sociedade brasileira. Predominavam aqui valores tradicionais, herdados das elites rurais escravagistas, que, na prática, controlavam o poder político local. Existiam crianças e jovens nas tribos indígenas com culturas singulares e diferentes 53 daquelas que os colonizadores conheciam. Vemos assim, que a concepção de criança que temos na atualidade ocidental não é a mesma que a História nos conta. Até o século XVI ainda estava longe de ser delimitada enquanto etapa cronologicamente precisa. Na Idade Média europeia, as crianças misturavam-se aos adultos e participavam de atividades de diversão, de trabalho e também de sexo, pois eram livres para assistir a tudo que os adultos faziam. Durante séculos as crianças foram consideradas como adultos menores, mais frágeis e menos inteligentes, mostradas através da arte, como adultos em miniatura, com vestimentas e atitudes próprias da adultez. Pouco a pouco, diferentes infâncias instituem-se quando reconhecidas por suas diferentes naturezas: desde a infância angélica e nobilíssima do Príncipe, passando pela infância dos filhos das classes privilegiadas até a infância rude das classes populares, descrevem Varela e Alvarez-Uria (1992, p. 71). Cada uma dessas infâncias recebia programas educativos diferenciados. A educação para as classes menos abastadas acontecia por meio de uma ampla rede de sociabilidade com aprendizagem gradual dos usos, dos costumes e das técnicas conhecidas pelas comunidades. Tuteladas por um adulto, as crianças tornavam-se aprendizes a partir dos sete anos com responsabilidades que se tornavam progressivamente mais próximas às dos adultos. Os autores e eclesiásticos, que preocupavam-se com o ensino das letras aos pequenos, acordavam sobre a necessidade de que muito cedo fossem os infantes iniciados na aprendizagem da fé e dos bons costumes, pois conferiam a essa etapa especial da vida características como a maleabilidade, a fragilidade, a rudeza, a fraqueza de juízo e, enfim, a necessidade de civilizar a “natureza em que se assentam os germens dos vícios e das virtudes”, explicitam Varela e Alvarez-Uria (1992, p. 71). A inocência infantil é uma conquista posterior a esse período, efeito, em grande medida, da aplicação de toda uma ortopedia 54 moral sobre o corpo e a alma dos jovens, complementam os autores (ibidem 1992, p. 72). De acordo com Ariès (1981), o conceito de infância é recente na história da humanidade, foi modificado e determinado pelos interesses sócio-político-econômicos dos movimentos culturais iluministas e religiosos protestantes, que permitiram, nos séculos XVII e XVIII, um olhar diferenciado sobre ela. Fundamentalmente, a partir dessa época, começa a configurar-se o sentimento de infância, tal como hoje o percebemos, todavia não tinha como significado a afeição pelas crianças, mas sim a consciência da particularidade infantil, entendida como uma etapa diferente da idade adulta e dotada de capacidade de desenvolvimento. Heywood (2004) ressalta, no entanto, que nos séculos XVI e XVII já existia uma consciência de que as percepções de uma criança eram diferentes das dos adultos e que já havia uma infância presente na Idade Média, mesmo que a sociedade não tivesse tempo para a criança. Segundo o autor, nessa época a Igreja já se preocupava com a educação das crianças, colocadas a serviço do monastério e, no século XII, já existiam indícios de um investimento social e psicológico nas crianças. Dessa forma, Heywood considera mais frutífera a busca de diferentes concepções sobre a infância, uma vez que identificou várias descobertas sobre ela em diferentes tempos e lugares. Ariès (1981) elaborou historicamente o estatuto da infância, relacionou a sua constituição com as classes sociais, com a emergência da família moderna e com uma série de práticas educativas aplicadas especialmente nos colégios. Todavia, relegou a um segundo plano, um tanto longínquo, os métodos empregados no recolhimento e moralização dos meninos pobres. A constituição da infância de qualidade fazia parte de um programa político de dominação: quando rica era governada e submetida à autoridade pedagógica e aos regulamentos, que constituíam passos para assumir mais tarde funções do governo, quando pobre não recebia atenções e tinha nos hospitais, nos 55 hospícios e em outros espaços de correção, os primeiros centros- pilotos destinados a modelá-la (VARELA e ALVAREZ-URIA, 1992, p. 75). A partir dos estudos de Àries e de Heywood podemos inferir que as crianças sempre estiveram presentes nos diferentes meios socioculturais, apesar da impossibilidade de categorizar a uma infância universal, natural, sempre igual, homogênea e de significado óbvio devido à diversidade de aspectos temporais, sociais, culturais e políticos e das especificidades diferenciadas das características adultas que interferiram na sua formação. Sendo assim, compreender uma história da infância e da adolescência
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