Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
LUZ E SOMBRA NA FOTOGRAFIA Os Efeitos de Sentido e as Estratégias da Imagem na Série de Fotorreportagens Access to Life da Agência Magnum FRANZON, Erica Cristina de Souza1 RESUMO Este estudo analisa de que forma a presença e a atuação de luz e sombra (áreas iluminadas e áreas em penumbra ou totalmente escuras) nas fotografias jornalísticas configuram-se como eixos de produção de sentido capazes de resgatar simbologias arcaicas e, ao mesmo tempo, responder a determinadas estratégias de composição de imagens. Dessa forma, descreve-se o papel da imagem, suas intencionalidades e as estratégias discursivas das fotografias da Agência Magnum, seção In Motion, série Access to Life (2008), realizada por oito fotojornalistas com soropositivos em nove países, quatro meses antes de iniciarem o tratamento com o antirretroviral para a Aids e quatro meses depois. Este trabalho reúne imagens com presença de luz e sombra, resultando em importantes instrumentos de significação, o que contempla o aporte teórico ancorado na Semiótica da Cultura e Teoria da Mídia. Por meio de uma pesquisa qualitativa, um estudo descritivo-dedutivo, verificou-se que: elementos como luz e sombra produzem intenções que transitam entre a subjetividade do fotógrafo, equipado de suas lentes sociais, e do aparelho, cuja funcionalidade permite escolhas por parte do fotógrafo, mas tais escolhas são “limitadas” ou “orientadas” pelas possibilidades tecnológicas de cada aparelho, que conjuntamente refletirão no resultado da imagem captada. Verificou-se também que existem estratégias inerentes ao texto imagético, evidenciando a edição e a produção de sentido como fruto da própria estrutura da imagem e não simplesmente de técnicas de composição. Palavras-chave: Luz e sombra, Produção de sentido, Fotojornalismo, Semiótica da Cultura. Introdução O interesse deste estudo é analisar de que forma a presença e atuação de luz e sombra (áreas iluminadas e áreas em penumbra ou totalmente escuras) nas fotografias jornalísticas configuram-se como eixos de produção de sentido capazes de resgatar simbologias arcaicas e, ao mesmo tempo, responder a determinadas estratégias de composição de imagens. As fotorreportagens da Agência Magnum2, na seção In Motion, na série Access to Life (2008) estão num contexto de narrativa fotográfica digital onde se mesclam áudio e vídeo. 1 Jornalista graduada pela Universidade Estadual Paulista (2002) e Pós-graduada em Estudos do Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Mestranda em Comunicação na Unesp e pesquisadora bolsista pela Fapesp. 2 www.magnuminmotion.com 2 Cada narrativa traz imagens de pessoas em situações do cotidiano, imagens peculiares de cada um dos nove países escolhidos para o ensaio, fotografados respectivamente por: África do Sul e Suazilândia (Larry Towell), Haiti (Jonas Bendiksen), Índia (Jim Goldberg), Mali (Paolo Pelegrin), Peru (Eli Reed), Ruanda (Giles Peress), Rússia (Alex Majoli) e Vietnã (Steve McCurry). Este estudo pretende, portanto, analisar uma amostra de fotografias de cada país, sem levar em conta o plano expressivo do áudio, apenas o conteúdo fotográfico, apoiando a análise, primeiramente nas ideias de teóricos da imagem. Outra inquietação que motiva este trabalho é a necessidade de pensar as raízes profundas da mídia, investigando arqueologicamente (ZIELINSKI, 2006) elementos constitutivos da imagem. Buscar no tempo informações sobre as bases da comunicação pode ajudar a pensar seu trajeto, entender seu presente e lançar perspectivas futuras. Podendo também revelar problemáticas novas, sugerir hipóteses, contribuindo assim para uma imaginação produtiva, criativa e reflexiva do campo do jornalismo visual. As ideias aqui articuladas são resultantes da leitura de teóricos como Aby Walburg, Hans Belting, Dietmar Kamper, Ivan Bystrina, Harry Pross, Vilém Flusser e de Norval Baitello Júnior. Eles entendem a imagem como ponto fundamental da cultura humana3, uma vez que é a partir da produção desta cultura que os homens se diferem dos outros animais por meio da imaginação e criação de textos culturais4. A proposta é realizar uma pesquisa qualitativa, um estudo descritivo-dedutivo que, na primeira fase de análise, pretende investigar os aspectos de luz e sombra. De acordo com a natureza qualitativa do método, a abordagem inclui planejamento, análise e exposição de idéias. Embora o método indutivo seja mais indicado para chegar a verdades gerais sobre os efeitos de sentido e as estratégias da imagem, obtidas por meio das particularidades das fotografias da Magnum In Motion, na série Access to life, não há como afirmar que a descrição seja totalmente livre de perspectivas, valores e emoções. Sendo assim, é importante fazer uma organização da informação de forma crítica e classificatória, com o intuito de 3 Segundo pesquisadores das escolas de Tartu e Moscou (J.M.Lotman, B. Uspienskii, V.V. Ivanov, V.N. Toporov e A.M. Pjatigorskii) a cultura constitui o conjunto de textos produzidos pelo homem. Deve-se entender por ‘textos da cultura’ não apenas aquelas construções da linguagem verbal, mas também imagens, mitos, rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos, performances, danças etc. (BAITELLO, 1999, p. 28). I.M.Lotman define cultura como “o conjunto de informações não-hereditárias, que as diversas coletividades da sociedade humana acumulam, conservam e transmitem. (1979, p. 31). O termo “cultura” é entendido como um sistema de idéias, um código presente na segunda realidade (descrita por Bystrina), socialmente compartilhado, do qual as pessoas utilizam para interpretar a si mesmas e o mundo, e para expressar suas ações (BYSTRINA, 1996). 4 Para a Semiótica da Cultura, o texto cultural é a unidade mínima formadora da cultura. Nesta definição, um texto engloba as informações verbais e, principalmente, não verbais. 3 perceber as similaridades ou disparidades dos efeitos e estratégias suscitados pelas fotografias analisadas. Os meandros ocultos da imagem À primeira vista, a imagem fotográfica parece ser facilmente desvendada, sem mistérios, devido sua semelhança com a cena real. Basta um olhar e o seu conteúdo superficial pode ser captado e revelado ao espectador. No entanto, um olhar mais atento a vaguear pela sua superfície pode conduzir à descoberta de camadas5 ocultas, cheias de significado, repletas de símbolos arcaicos, vivos e latentes, mas pouco percebidos pelo homem em plena “era da visibilidade” (KAMPER, 2002). O trabalho de escavação criado pela iconologia de Walburg (BAITELLO, 2006, p. 21) aponta para o passado da imagem e revela que seu surgimento tem uma ligação com o medo da morte e a necessidade de prolongar a vida simbolicamente. Belting (2001, p. 211) escreve sobre a íntima relação entre imagem e sombra de um ponto de vista antropológico. Para Belting, a fronteira entre vida e morte tornou-se uma experiência do mundo dos vivos no paradoxo corpo e imagem. Belting e Kamper ao tratarem de uma arqueologia da imagem confirmam a relação entre imagem e morte: Os primórdios da imagem midiática remontam ao espaço da experiência da morte. A imagem surgiu no vácuo deixado pelos mortos. Com Baudrillard pode-se falar de uma troca simbólica entre corpo e imagem. (...). O paradoxo da imagem, de fazer presente uma ausência, funda-se essencialmente na interação entre imagem e mídia [Medium]: a imagem responde pela ausência, estando, contudo, ao mesmo tempo, presente em sua mídia portadora atual, no espaço dos vivos que são seus observadores: observar imagens significa também animá-las (BAITELLO, 2005, p. 17). Bystrina (1989) descreve a relação do homem pré-históricocom o medo existencial e o surgimento da “segunda realidade” (imaginária), em oposição à “primeira realidade” (física), como uma forma de superar o medo da morte. Neste ponto do desenvolvimento humano, surge a cultura e a criação de todo um sistema de significações e de signos que passam a existir na realidade física para facilitar a comunicação e reduzir a distância entre as duas 5 Escavar camadas pode ser tanto fazer uma busca pelos códigos da comunicação humana, como propõe o semioticista Ivan Bystrina, ou da história cultural (ontogenética, filogenética, estrutural ou dialética) de um objeto. Segundo Norval Baitello, “Flusser não se cansava de lembrar que a palavra ‘história’ em alemão, Gestchichte, sendo schichte, exatamente camada. 4 realidades. (BYSTRINA, 1995, p.14-15). As mensagens e as interpretações dos textos se armazenam na segunda realidade criada pelo homem em “camadas superpostas umas às outras, partindo das mais simples e superficiais, às estruturas mais profundas e complexas” (BYSTRINA, 1995, p. 18). Para o autor, com uma “raspagem” dessas camadas, chega-se às significações mais densas e duradouras, compartilhadas por todos os homens através dos tempos. Para funcionar, essas significações vão se basear em símbolos organizados, em códigos6, já que a comunicação humana é um processo artificial, diferente da de outras espécies animais (FLUSSER, 2007, p. 89). Bystrina (1995, p. 5) identifica que a comunicação humana pode ser classificada em três níveis de camadas, três códigos principais: os códigos primários, que regulam a vida biológica; os secundários: os códigos da linguagem; e os terciários ou culturais: os códigos que possuem um determinado discurso e são intencionais. Os códigos terciários são os mais relevantes para este estudo, uma vez que são estes os códigos regem as camadas de significação presentes nas imagens da mídia. Os códigos terciários possuem três estruturas básicas: a binaridade, baseada na observação do mundo físico no início da cultura humana, onde a oposição mais importante era vida e morte; a polaridade, bastante presente no jornalismo; e a assimetria, onde o lado sinalizado negativamente é visto ou sentido mais fortemente em relação ao seu oposto, o pólo positivo. Os códigos culturais são organizados em binariedades e apresentam-se polarizados e valorados. A necessidade de valorar os pólos começa na infância e serve de subsídio para a decisão, comportamento e ação do ser humano. Isso acontece devido a experiência humana do medo da morte, que por ser intransponível na primeira realidade para o homem, ela sempre é vitoriosa. A partir dessa oposição principal (vida/ morte), surgiram outras oposições que dominam fortemente o pensamento cultural de cada indivíduo e o desenvolvimento da cultura, como: saúde/doença, prazer/desprazer, céu/terra, espírito/matéria, movimento/repouso, homem/mulher, amigo/inimigo, direita/esquerda, sagrado/profano, paz/guerra. Pross afirma que as mídias, sobretudo as visuais, constituem próteses tecnológicas que apenas amplificam aspectos rudimentares do homem, estando seu corpo na origem e na chegada de todo o processo comunicativo, partindo do corpo as experiências corporais primárias de acima/abaixo, dentro/fora e claro/escuro, conceitos imprescindíveis não apenas para a orientação do homem, mas também para a criação de outros símbolos mais complexos. 6 Código é o conjunto de regras de funcionamento de determinada linguagem. (BAITELLO, 1999, p. 29) 5 Por serem estas as primeiras experiências vivenciadas durante o processo de formação neural do indivíduo, elas serão incorporadas como valores que se tornarão conceitos e padrões para a vida inteira. Para Pross (1980, p. 43) as imagens “oferecem um amplo campo interpretativo ao indivíduo”; neste caso, o indivíduo poderia interpretá-las como algo “completamente arbitrário se não tivesse que se basear em representações já dadas”, isto é, nas experiências pré-predicativas. Conhecer as raízes da cultura humana e saber como se estruturam os códigos que regulam os textos culturais ajuda a compreender o funcionamento e as intenções7 das imagens. Para este trabalho interessam os signos que Pross (1980, p. 23) denomina símbolos. A fotografia, por exemplo, é um signo com função designadora que carrega em si valores simbólicos que vão além do real que ela representa. Segundo Kamper, a imagem, enquanto produto cultural humano, é criada por um mortal com a finalidade de vencer a morte, ou seja, existe com a função de registro, duração e sobrevivência; já que “os símbolos vivem mais longamente que os homens”, (PROSS, 1993, p. 15). O simbolismo da luz e da sombra é tão antigo quanto a história do homem, cujas experiências foram coincidentemente marcadas pela incidência do fenômeno natural do claro e do escuro, do dia e da noite -, criando simbolicamente uma vida movida por uma tensão entre forças opostas. A luz8, “condição necessária para a percepção visual, fator de beleza, agente plástico integrante da pintura, escultura, arquitetura, fotografia e cinema”. Na filosofia, adquiriu status do bem, em oposição à sombra9, “do latim umbra, implica a ausência local de luz, estando associada à fidelidade do contorno e à inseparabilidade da figura que a produz”; vinculada ao mal, às trevas, ao reino dos espíritos e da morte. Tais forças antagônicas, com características distintas e assimétricas, exercem grande influência no imaginário humano desde os primórdios; perpassaram no tempo diferentes civilizações e continuam presentes na atualidade, reafirmando seus sentidos ancestrais e marcando presença nas diversas manifestações e criações culturais produzidas pelo homem. A luz costuma ser comparada à razão, aquilo que parece bom, superior, equilibrado, bem-sucedido, civilizado – como as cidades iluminadas pela eletricidade. A luz é o avanço, o lado direito, positivo, relaciona-se facilmente com o progresso, capaz de aliviar o medo, 7 Anotações da disciplina “As Imagens e as intenções da mídia”, ministrada no Curso de Pós-Graduação em Comunicação da FAAC/UNESP, pelo Prof. Dr. Luciano Guimarães – campus Bauru, 2º semestre de 2010. 8 Dicionário de Estética e Filosofia da Arte. Disponível em: <http://filosofiadaarte.no.sapo.pt/lexico.html> Acesso: em 8/4/2011. 9 Idem. 6 revelar o bom, trazer conforto e segurança, conceber a vida é dar à luz. A sombra ao contrário é projetada, sendo cópia, simulacro, um visível não palpável, é consagração de um mistério. É primitiva, instintiva, rebelde, confusa, desestruturada, deformada, não civilizada, desumana, louca, esquizofrênica, localizada na parte inferior e no lado esquerdo. Representa o perverso, o dionísico, aquilo que dissimula e finge, que reside no subterrâneo, suscita o medo, assinala o perigo, a perdição, o desconhecido e a morte. No conceito de luz, Baxandall (2003, p. 17) descreve as duas fontes, a luz natural e a luz artificial. A primeira é produzida pelo sol e a segunda por qualquer fonte luminosa criada pelo homem, desde a tocha de fogo aos raios lasers. A luz visível é formada por fótons, cuja energia é captada pela retina do olho, que evoluíram para reagir a eles. Desse conceito de Baxandall, pode-se inferir que os seres humanos são fisiologicamente diferentes às reações luminosas, diferente de outros animais. A retina humana identifica, codifica e reage a nuances cromáticas e intensidades de luz. Essa sensibilidade se manifesta não apenas do ponto de vista fisiológico, como também psicológico. Com a claridade é formada a obscuridade, e essa alternância entre luz e sombra se estabelece percepções geradorasde sentimentos, que transitam entre um eixo e outro das emoções humanas, podendo provocar alegria, fazer um convite à tranqüilidade, motivar a esperança ou incitar angústia, medo e pavor. Para compreender a presença e a atuação da luz e da sombra como forças simbólicas que expressam sentidos, é preciso olhar para o passado, para o início da existência e do desenvolvimento do homo sapiens; quando, a partir da observação do mundo físico, da primeira realidade, o homem começou a demarcar e a valorar oposições binárias, construindo uma estrutura de códigos10 que dominam fortemente o desenvolvimento da cultura11 humana. Tais códigos estão fundamentados na oposição mais importante e insuperável para a humanidade, desde os primórdios até os dias atuais, que é a oposição vida-morte. Sendo a morte, a mais traumática e insuperável experiência vivida pelo homem; ele vem tentando em toda a existência criar meios para aliviar esse destino misterioso e infalível que o separa de seu corpo físico e de seus entes queridos. O trabalho de escavação criado pela iconologia de Aby Walburg (apud BAITELLO, 2006, p. 21) aponta para o passado da imagem e revela que seu surgimento tem uma ligação com o medo da morte e a necessidade de prolongar a vida simbolicamente. No capítulo 10 Baitello (1999, p. 29) define código como um conjunto de regras de funcionamento de determinada linguagem. 11Bystrina (1995) entende “cultura” como um sistema de idéias, um código presente na segunda realidade, socialmente compartilhado, do qual as pessoas utilizam para interpretar a si mesmas e o mundo, e para expressar suas ações. I.M.Lotman e Boris A.Uspenskii (1971, p. 40) definem cultura como “memória não-hereditária da coletividade.” 7 Imagem e sombra – a teoria da imagem de Dante no processo rumo a uma teoria da arte, Hans Belting (2010, p. 233) descreve sobre a íntima relação entre imagem e sombra de um ponto de vista antropológico. As sombras encontradas por Dante em sua jornada pelo reino dos mortos, em analogia com o corpo vivo, adquirem uma dimensão ontológica no momento em que evocam um corpo ausente. Segundo Dietmar Kamper (2002), o medo da morte, levou o homem a fazer imagens. A imagem enquanto produto cultural humano é criada por um mortal com a finalidade de vencer a morte, ou seja, existe com a função de registro, de duração e de sobrevivência; já que “os símbolos vivem mais longamente que os homens”, como escreve Pross (1993, p.15). “Contra o medo da morte os homens só têm a possibilidade de fazer uma imagem dela. Por isso às imagens se prendem aos desejos de imortalidade. Por isso a órbita do imaginário é regida sobre o ‘eterno’, e por isso os homens sofrem hoje o destino de já serem mortos em vida” (KAMPER, 2002, p. 9). Para Belting, a fronteira entre vida e morte tornou-se uma experiência do mundo dos vivos no paradoxo corpo e imagem. Com a ocorrência da morte, “desejava-se preservar a sombra”, capturando uma imagem que perdurasse, como uma recordação de que o corpo esteve ali. As imagens foram produzidas “de princípio, para evocar a aparência de algo ausente”, aponta John Berger (1999, p. 14). A sombra capturada seria o substituto do defunto no mundo dos vivos. Belting e Kamper ao tratarem de uma arqueologia da imagem confirmam essa ligação entre imagem e morte: Os primórdios da imagem midiática remontam ao espaço da experiência da morte. A imagem surgiu no vácuo da deixado pelos mortos. Com Baudrillard pode-se falar de uma troca simbólica entre corpo e imagem. (...). O paradoxo da imagem, de fazer presente uma ausência, funda-se essencialmente na interação entre imagem e mídia [Medium]: a imagem responde pela ausência, estando, contudo, ao mesmo tempo, presente em sua mídia portadora atual, no espaço dos vivos que são seus observadores: observar imagens significa também animá-las (BAITELLO, 2005, p. 17). O episódio da morte levou o homem a criar rituais em torno desse acontecimento, variando de acordo com a civilização na qual estava inserido. Os egípcios, por exemplos, acreditavam na imortalidade da alma e, para deixar registrada tal crença, construíram necrópoles e túmulos para os faros, sacerdotes e altos funcionários. Os monumentos, ricamente ilustrados, tinham uma espécie de capela para as oferendas e um compartimento secreto onde ficava a estátua funerária do defunto, para a encarnação da alma. Belting (2010, p. 235), em “El poder de la imagen “radica” en la luz y en su opuesto trascendental, la 8 sombra”, explica que a produção de imagens foi uma resposta a uma ameaça existencial para o homem ao se deparar com o enigma da ausência. Este aspecto ontológico de la imagen está ligado a la muerte, porque sólo en este vínculo la apariencia de la imagen, tantas veces criticada, recupera el ser perdido, que es imprescindible para existir en el mundo, y que tras el fallecimiento dejó de ocupar un lugar. Sin la referencia a la muerte, las imágenes, que únicamente simulan el mundo de la vida, se vaciarían rápidamente de sentido, y en consecuencia se convertirían en un engaño manifestó, ya que sin el parámetro de la muerte carecerían de referencia.12 No passado, “as imagens dos mortos eram elaboradas sempre no centro do mundo e da vida, e para os vivos”. Belting resgata no encontro de Dante com os mortos do além, em A divina comédia, a ideia de que os mortos da alegoria criada por Dante eram sombras vivas, como um corpo duplicado; pode ser comparada à mesma sombra que projetada a partir do corpo, que durante a infância assombra a criança quando ela se depara pela primeira vez com seu duplo e sente-se perseguida por sua sombra. Uma cena espantosa de materialização da sombra é descrita por Ryuta Imafuku (2000/2006) sobre a transformação imediata de um corpo em sombra permanente por ação da bomba atômica lançada em Hiroshima: Uma das mais aterrorizantes imagens das conseqüências da bomba atômica é esta foto famosa, de uma sombra humana que permanece nas escadarias do edifício do banco Sumitomo, no centro de Hiroshima. Será que ele estava esperando o banco abrir? Os intensos raios térmicos da bomba atômica fizeram-no desvanecer instantaneamente, restando ali somente uma sombra. Se dermos uma olhada na História da Arte, veremos que a sombra era freqüentemente retratada como um símbolo de fantasmagoria e ilusão. Hoje, em Hiroshima, vemos que esse típico ícone histórico da ilusão tornou-se uma imagem real. Uma imagem real do ser humano que conta sua própria existência unicamente através da sombra. Um paradoxo induzido pela violência científica (IMAFUKU, 2000, p. 4)13. 12 BELTING, Hans. Antropología de la imagem. Trad. Gonzalo Vélez Espinosa. 3ª ed. México: Katz, 2010. 13 IMAFUKU, Ryuta. Ocupação visual nas ilhas: imagem e violência no Japão pós-guerra. Biblioteca do Cisc: Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia. 9 A presença da sombra demonstra a ausência de um corpo, sem o qual não se pode existir. Com a ocorrência da morte, a captura da sombra em uma imagem duradoura, confirma que o corpo esteve ali como um substituto do defunto no mundo dos vivos. Ao encontro do pensamento de Belting sobre o que são imagens, as palavras de Baitello (2010)14 discorrem sobre a face misteriosa da imagem, de seu aspecto visível e invisível: Porque as imagens são indeléveis, porque conferem uma segunda existência, elas possuem um status semiótico na segunda realidade (cf. Bystrina,1989), em seu caso particular, a presença de uma ausência e seu oposto, a ausência de uma presença. Por isso elas são fantasmagóricas, em sua origem mais remota. Além disso, as imagensnão são, distintamente do que às vezes somos tentados a pensar, subprodutos da luz, formas de luz ou seres do dia. São muito mais, em sua origem e desde então, habitantes da noite, possuem muito mais faces invisíveis do que aquelas que se deixam ver, mantém estreitos laços históricos com o sombrio e com o insondável, com as zonas profundas de nós mesmos, com as quais tememos ter contato. É antiga a necessidade humana de fixar, em um suporte material, cenas do mundo físico ou imaginário; de tentar “eternizar” histórias de seu povo, suas crenças, hábitos e rituais importantes. Desde as figuras gravadas nas paredes das cavernas, dos túmulos das antigas civilizações, às novas imagens produzidas com auxílio do aparato tecnológico, há todo um arcabouço imagético que dá pistas sobre esse gesto de gravar o momento por meio de imagens. A própria filogênese15 da humanidade está associada aos traços visuais que as 14 BAITELLO, N. (2010). A sociedade das imagens em série e a cultura do eco. http://blogln.ning.com/profiles/blogs/a-sociedade-das-imagens-em\ Acessado em 8/11/2010. 15 Por filogenia entende-se a história evolucionária de uma espécie, aqui aplicada ao desenvolvimento do homem como um ser cultural, que produz cultura por meio de sua apropriação de imagens, de cenas, do mundo. 10 sociedades antepassadas deixaram por meio da escultura, arquitetura, de pinturas rupestres16, de petroglifos (pinturas entalhadas em pedra), geoglifos (desenhos no solo) entre outros. Embora existam teorias que tentem explicar o surgimento e o significado das diversas inscrições visuais feitas pelo homem, muitas delas ainda são um mistério, como as linhas de Nazca, no Peru. Alguns pesquisadores têm notado a semelhança de estilos de pinturas rupestres em diferentes continentes, enquanto espera-se que todos os povos seriam inspirados por aquilo que viam em seus arredores; é difícil de explicar os estilos comuns. A explicação para essa similaridade está principalmente fundamentada na psicologia junguiana e nas opiniões de Mircea Eliade. De acordo com algumas teorias, é possível que a semelhança de petroglifos (e outros símbolos atávicos ou arquétipos) de diferentes culturas e continentes seja resultado da estrutura herdada geneticamente do cérebro17 humano. Outras teorias sugerem que os petroglifos foram feitos por xamãs em um estado alterado de consciência, talvez induzido pela utilização de alucinógenos naturais. Uma informação interessante é que foi identificado que muitos dos padrões geométricos comuns nos petroglifos e pinturas rupestres foram mostrados como constantes em formulários do cérebro humano afetados por perturbações visuais e alucinações provocadas por drogas, enxaqueca e outros estímulos18. 16 Pinturas rupestres da caverna ou pinturas rupestres são pinturas pintadas na caverna ou paredes de pedra, normalmente datando de épocas pré-históricas. As pinturas rupestres foram feitas durante o Paleolítico Superior, há 40.000 anos. Os temas mais comuns em pinturas rupestres são grandes animais selvagens, como bisontes, cavalos e veados, e os traçados das mãos humanas, assim como padrões abstratos. 17 Vale ressaltar que Jung trabalha como conceito de psique e não de mente. 18 <http://citrinitas.com/history_of_viscom/rockandcaves.html> Acesso em: 18/5/2011. Fig. 2 – Necrópole de Tebas, Egito. Decoração pariental do túmulo do faraó Horemheb, XVIII dinastia. 11 Retomando a experiência humana a partir da observação do mundo físico, Bystrina (1989) descreve a relação do homem pré-histórico, assim que ele desenvolveu seu biótipo, com o medo existencial e o surgimento da “segunda realidade” (imaginária), em oposição à “primeira realidade” (física), como uma forma de minimizar o medo da morte. Neste ponto do desenvolvimento humano surge a cultura e a criação de todo um sistema de significações e de signos que passam a existir na realidade física para facilitar a comunicação e reduzir a distância entre as duas realidades. (BYSTRINA, 1995, p. 14-15). Esse sistema de signos (cultura humana), explica Bystrina, tem sua origem em quatro principais raízes: no sonho, no jogo, nos estados alterados da consciência e nos desvios psíquicos. As duas primeiras esferas são de ordem subumana e, as duas últimas, surgem no próprio âmbito da cultura. Dessa maneira, todos os signos produzidos pela imaginação, todas as imagens produzidas pelo homem e todo o sentido designado a estes signos nascem de uma dessas raízes, ou da união entre elas. Essas raízes da cultura humana são importantes para entender o processo de significação das imagens, uma vez que a ação desses quatro fatores influencia profundamente a vida humana, tornando-se indispensável investigar seus mecanismos. Por exemplo, um mesmo signo criado pelo homem pode ter diferentes significações. O mesmo vale para o texto cultural19 (imagem), que pode possuir diversos significados e suscitar inúmeros sentidos. Conforme elucida Bystrina (1995, p. 18), as mensagens e as interpretações dos textos se armazenam na segunda realidade criada pelo homem em “camadas superpostas umas às outras, partindo das mais simples e superficiais, às estruturas mais profundas e complexas”. Para Bystrina, o mais importante no trabalho proposto pela Semiótica da Cultura é precisamente essa análise em profundidade dos textos culturais: conhecer as mensagens ocultas nos signos e interpretá-las para compreender melhor como as estruturas de significação fundamentam a relação do homem com o mundo. Com uma “raspagem” dessas camadas, chega-se às significações mais densas e duradouras, compartilhadas por todos os homens através dos tempos. 19 Os semioticistas das Escolas de Tartu e Moscou afirmam em suas clássicas teses de 1973 que o texto é veiculo de sua significação global e de uma função global (se se distingue a posição do estudioso da cultura daquela do portador da cultura, do ponto de vista do primeiro o texto vem a ser veículo de uma função global; do ponto de vista do segundo, veiculo de um significado global). Neste sentido, o texto pode ser considerado como elemento primeiro (unidade de base) da cultura. (Ivanov et alii, 1979, p. 193-4). (BAITELLO, 1999, p. 38) 12 Para funcionar, essas significações vão se basear em símbolos organizados, em códigos20, já que a comunicação humana é um processo artificial, diferente de outras espécies animais (FLUSSER, 2007, p. 89). Bystrina (1995, p. 5) identifica que a comunicação humana, tanto na realidade física quanto na realidade cultural pode ser classificada segundo três níveis de camadas, três códigos principais: os códigos primários, que regulam a vida biológica; os secundários são os códigos da linguagem; e os terciários ou culturais são os códigos que possuem um determinado discurso, são intencionais. São, portanto, produtos diretos da ação da cultura humana sobre uma informação. Estes três níveis de códigos são intercomunicantes de maneira múltipla: um distúrbio nos códigos primários (por exemplo, no metabolismo ou na dinâmica de funcionamento dos neurotransmissores, determinadas patologias, distúrbios metabólicos e hormonais) pode afetar diretamente a capacidade criativa de um indivíduo: teríamos aí casos de interferência dos códigos hipolinguais sobre os culturais. Inversamente, um determinado espetáculo, um poema ou um romance, um ritual, uma dança, uma peça musical ou teatral, ou até mesmo a narrativa empolgada de uma partida esportiva podem emocionar alguém até as lágrimas, afetando, ainda que por momentos, seu equilíbrio biológico, ou seja, alterando o ritmo e aqualidade da comunicação intraorgânica: temos aí uma interferência dos códigos culturais nos códigos da vida intraorgânica. (BAITELLO, 1999, p. 40) Produzidos culturalmente, os códigos terciários identificados por Bystrina são os mais relevantes para este estudo, uma vez que são estes os códigos que regem as camadas de significação presentes nas imagens da mídia. Munidos de discurso, os códigos culturais ou hiperlinguísticos configuram-se como signos e, como destacam Harry Pross e Vilém Flusser, precisam ser interpretados. Embora a estrutura desses códigos possa ser interpretada de acordo com o contexto e experiências pessoais, ela também segue algumas hipóteses comuns e invariantes em diferentes culturas. De acordo com conceitos elaborados por Bystrina (1995), os códigos terciários possuem três estruturas básicas: a binaridade, baseada na observação do mundo físico: no início da cultura humana, onde a oposição mais importante era vida-morte. A partir dessa oposição principal, surgiram outras oposições: saúde/doença, prazer/desprazer, céu/terra, espírito/matéria, movimento/repouso, homem/mulher, amigo/inimigo, direita/esquerda, sagrado-profano, paz-guerra etc. configuram algumas aplicações binárias, as quais desempenham papel fundamente na construção de discursos. Assim, toda a estrutura dos códigos culturais se desenvolve a partir dessa oposição básica, dominando com enorme força 20 Código é o conjunto de regras de funcionamento de determinada linguagem. (BAITELLO, 1999, P. 29) 13 o pensamento cultural de cada indivíduo e o desenvolvimento da cultura de modo geral (BYSTRINA, 1995, p. 6). A outra estrutura que opera nos códigos terciários é organizada em polaridades, bastante presente no jornalismo. Os códigos culturais são organizados em binariedades e apresentam- se polarizados e valorados. A necessidade de valorar os pólos serve de subsídio para a decisão, atitude, comportamento e ação do ser humano. Desde o nascimento o homem começa a demarcar e valorar os pólos binários. “A estrutura binária e polar é claramente assimétrica”, conforme escreve Bystrina: o lado marcado ou sinalizado negativamente é visto ou sentido mais fortemente em relação a seu oposto, o pólo positivo. Isso acontece devido a experiência humana do medo da morte, que por ser intransponível na primeira realidade para o homem, ela sempre é vitoriosa. Nesta assimetria, a morte sempre é mais forte que a vida. Daí, a necessidade do homem em buscar a imortalidade ou a vida após a morte. Da mesma forma, a doença, o inferno, o escuro, a esquerda e a posição abaixo possuem um valor negativo, pois são mais forte que seus opostos: saúde, céu/ paraíso, claro, direita e alto. Segundo Bystrina, as estruturas binárias dos códigos terciários funcionam como diretrizes e instruções para a ação humana. Carregam em si um discurso, uma indicação para que o homem tenha respostas para lidar com a primeira e a segunda realidade. Portanto, sobre os códigos terciários, os lados assimétricos, como na dualidade vida-morte, devam necessariamente ser valorados como vida/positivo e morte/negativo em todas as aplicações culturais. Bystrina propõe padrões de solução para reverter os códigos. Essa abordagem teórica soma-se a de Pross, ao tratar das mídias, sobretudo as visuais. Para Pross, o corpo está na origem e na chegada de todo o processo comunicativo. Segundo ele, as mídias visuais são como próteses tecnológicas que apenas amplificam aspectos rudimentares (ou obsoletos) do homem. O corpo, explica Pross, serve não apenas de modelo estruturador das formas mais elementares de comunicação e poder humano sobre o mundo, partindo dele também, por meio das experiências corporais primárias de acima-abaixo, dentro-fora e claro-escuro, conceitos imprescindíveis não apenas para a orientação do homem, mas também para a criação de outros símbolos mais complexos. Essas experiências pré- determinam o comportamento social do homem e organizam o mundo de tal forma que fica fácil antecipar raciocínios e ações nos cenários de interpretação das imagens. As conseqüências resultantes destas experiências são de extrema importância, já que são iguais para todos os seres humanos e levam as mesmas determinações pré-predicativas daquilo que no pensamento evolutivo se denomina consciência interpretante. Por serem estas as primeiras experiências vivenciadas durante o processo de formação neural do indivíduo, 14 elas serão incorporadas como valores que se tornarão conceitos e padrões para a vida inteira. Como afirma Pross (1980, p. 43), as imagens “oferecem um amplo campo interpretativo ao indivíduo”; neste caso, o indivíduo poderia interpretá-las como algo “completamente arbitrário se não tivesse que se basear em representações já dadas”, isto é, nas experiências pré-predicativas. O que chamamos de realidade e experimentamos como tal, afirma Pross, está carregada de coisas que estão no lugar de outras coisas distintas do que elas são: O semáforo da esquina não é a ordenação do trânsito, mas está ali para representar esta função. Ou o nome não é a pessoa, mas existe por causa dela. O selo não é o poder estatal, o representa. O certificado não é o rendimento, o representa. O dinheiro não é o poder aquisitivo, o representa. A televisão não é o olhar que abrange o mundo, mas está em seu lugar. O monumento não é o homem que rememora, o representa (PROSS, 1980, p. 13 – tradução nossa). O mesmo acontece com a oposição luz-sombra descrita no início deste capítulo. Uma oposição nascida da experiência do homem com a primeira realidade e que está impregnada nos objetos culturais criados ao longo de sua evolução. Originados do medo existencial e de sensações como conforto/desconforto, prazer/desprazer, a luz e a sombra compõem os códigos terciários ou culturais, que se encontram polarizados e valorados. A necessidade de valorar os pólos positivamente e negativamente serve para orientar o homem na tomada de decisões, atitudes e comportamentos. Nos primórdios, quando ele via a necessidade de se proteger da noite dentro das cavernas, pois havia perigo na escuridão. O escuro representou o negativo. Assim como, o dia lhe servia para todo tipo de atividade, já que a luz o ajudava a avistar o perigo, dando-lhe a sensação de segurança, sendo, portanto, positiva. Nesse ponto do desenvolvimento humano surge a cultura, a criação de significações e de signos que passam a existir na realidade física, por meio dos textos culturais21 criados pelo homem, especialmente os textos imaginativos e criativos – como os mitos, os rituais, as obras de arte, utopias, ideologias, as ficções - situadas no centro da Semiótica da Cultura e possíveis na segunda realidade. 22 De acordo com alguns pressupostos da Semiótica da Cultura, “a 21 Segundo cinco importantes pesquisadores das escolas de Tartu e Moscou (J.M.Lotman, B. Uspienskii, V.V. Ivanov, V.N. Toporov e A.M. Pjatigorskii – em seu texto fundamental, de 1973, Teses para a investigação semiótica da cultura), a cultura constitui o conjunto de textos produzidos pelo homem. Deve-se assim entender por ‘textos da cultura’ não apenas aquelas construções da linguagem verbal, mas também imagens, mitos, rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos, performances, danças etc. (BAITELLO, 1999, p.28). 22 De acordo com Bystrina (1995, p.12 e 15), assim que o homem foi capaz de solucionar suas deficiências físicas, passou a ter um medo existencial que não conhecia quando vivia protegido pela floresta. Para solucionar esse medo de suas próprias capacidades psíquicas ele criou o que o autor chama de segunda realidade. A segunda realidade foi, portanto, uma invenção tardia, construída após o nascimento da linguagem.Os animais, por exemplo, têm suas linguagens, mas não possuem cultura. “A segunda realidade é um jogo, mas também é um 15 cultura como texto implica a existência de uma memória coletiva que não apenas armazena informações como também funciona como um programa gerador de novos textos, garantindo uma continuidade”.23 Tais valores relativos ao claro e escuro serão agregados às imagens de forma permanente, contribuindo na construção de todo um universo do imaginário humano a partir dessas primeiras experiências da visão. Daí surgirão toda sorte de textos arcaicos, mitológicos, mágicos, oníricos, religiosos, e também contemporâneos, artísticos, midiáticos, políticos etc. que farão valer a oposição claro-escuro, luz- sombra, luz-trevas. A essas ações Harry Pross chamou de experiências primárias ou pré-predicativas. Para ele, claro-escuro é uma das mais importantes experiências pré-predicativas que dominam o universo simbólico das imagens. As outras são dentro-fora e alto-baixo/vertical-horizontal. 24 Entre os diversos textos produzidos pelo homem referentes à presença de oposições binárias, polarizadas e assimétricas estão os textos mitológicos, religiosos e artísticos. Neles, pode-se observar os desdobramentos no sentido que o homem dá para o termos binários luz e sombra, sem, no entanto, distanciar-se de seu significado primordial. No texto bíblico cristão, por exemplo, a luz e a sombra, no seu aspecto físico, de claro e escuro, e em seu sentido positivo e negativo (bem e mal) encontram-se associadas ao mito da Criação: “No princípio Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.”25. A separação inicial entre luz e trevas, como forma de dividir o dia da noite, está associada a emoções ambíguas e a impressões contrastantes sentidas pelo homem ao longo de sua evolução como espécie. A presença da luz admite segurança, proteção e conforto. A ausência da luz provoca o avesso dessas sensações, como insegurança e medo. O dia iluminado pelo sol e a noite marcada pela escuridão tornam- se a imagem visual do conflito entre bem e mal. As oposições que mencionamos, como dia/noite ou claro/escuro, são mais que uma necessidade técnica de comunicação ou expressão linguística adequada. Vistas pelo eixo cultural, vão até a estrutura mais profunda do texto. Por exemplo: tem a ver sonho ou uma visão. A pluralidade, a diversidade da segunda realidade é maior ainda do que a da primeira. Na verdade, ela é um acréscimo à primeira realidade.” 23 MACHADO, Irene. Escola de Semiótica – A experiência de Tártu-Moscou para o estudo da cultura. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003, p. 54. 24Revista digital Ghrebh. Mídia, luz e sombra. [Editorial]. São Paulo, v.1 n.15, maio, 2010. www.cisc.org.br/ghrebh 25 BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. 160ª ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 2004. Gênesis 1: 1-2. 16 com os bons aos maus espíritos, com o céu e o inferno, com uma visão luminosa como teve Jesus, até o medo primordial do reino das trevas. 26 O dualismo entre luz e sombra marca uma batalha ética entre bem e mal. A salvação e o próprio Cristo são identificados com a luz, enquanto o diabo, o pecado e a morte estão vinculados à obscuridade e às trevas. O Novo Testamento, a dualidade que se dá entre luz/dia – noite/trevas indica o eixo de procedência do homem: “Mas vós, irmãos, não estais em trevas, de modo que esse dia vos surpreenda como um ladrão. Porque todos vós sois filhos da luz e filhos do dia. Não somos da noite nem das trevas.” 27 Em outros textos, como o mitológico, o simbolismo do Sol28, rico em contradições, sendo concebido como o próprio deus e também associado a diversas divindades. Apolo, deus grego olímpico, também conhecido como Febo (brilhante) é identificado como uma divindade solar, que cruza os céus numa carruagem resplandecente, embora em Ilíada (canto I), ao surgir durante a noite, ele brilha como a lua, é reconhecido como o deus solar, o deus da luz, cujas flechas são comparadas ao Sol com seus raios. Para os egípcios, o Sol era Ra e também Aton, deus solar e espiritual a um só tempo, que transmitia irradiação de seu calor e de sua luz para todos os seres. Os persas o nomearam Mitra, distribuidor de energia vital, soberano dos exércitos, chamado de Deus ou de Sol invicto. Para os hindus era Brahma, para os fenícios era Adonai, os gregos o chamavam de Helios e depois Apolo – “Em Roma, não é assimilado por nenhum outro deus: só ele consegue, entre os deuses estrangeiros adotados pela cidade e pelo império, permanecer sempre intacto, único, incomparável” (Ibid, p. 67) -, os astecas o titularam Quetzalcoalt. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 1990) No Zen-budismo a ideia da iluminação indica a experiência alcançada pelo praticante por meio da meditação. A iluminação surge com a descoberta da verdadeira natureza da realidade e de si mesmo e, em seguida, de forma mais duradoura e profunda, o praticante tem 26 BYSTRINA, Ivan. Tópicos da semiótica da cultura. São Paulo: Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia, 1995, p. 4. 27 Idem. Bíblia Sagrada. Tessalonicenses 1: 5-4. 28 De acordo com o Dicionário de Símbolos, o Sol é fonte da luz, do calor, da vida. Seus raios representam as influências celestes – ou espirituais – recebidas pela Terra. Ele vivifica, seu brilho manifesta as coisas, não só por torná-las perceptíveis, mas por representar a extensão do ponto principal, por medir o espaço. Sob outro aspecto, é verdade, o Sol é também destruidor, o princípio da seca, à qual se opõe a chuva fecundadora. O Sol aparece como um símbolo de ressurreição e de imortalidade. Ele está no centro do céu como o coração no centro do ser. Nos textos irlandeses e gálicos, o Sol serve para caracterizar, não só o brilhante ou o luminoso, mas tudo o que é belo, amável, esplêndido. Em astrologia, o Sol é símbolo de vida, calor, dia, luz, autoridade, sexo masculino e de tudo o que brilha. Enquanto símbolo cósmico, o Sol ocupa a posição de uma verdadeira religião astral, cujo culto domina as grandes civilizações antigas, com as figuras dos deuses-heróis gigantes, encarnações das forças criadoras e da fonte vital de luz e de calor que o astro representa (Aton, Osíris, Baal, Mitra, Hélio, Apolo etc.). (CHEVALIER E GHEERBRANT, 1990, p. 836-841) 17 uma experiência intensa da natureza de Buda, e vê sua face original. Em um contexto diferente e com rituais que diferem das religiões ocidentais, o Zen também se refere à luz, como “salvação”, não para levar o homem ao paraíso, ao céu, mas para fazê-lo vivenciar, nessa dimensão, a “luz” e a purificação. A luz também é um importante símbolo tanto no judaísmo como na maçonaria. O Chanukah ou Hanukkah, conhecido como o Festival das Luzes, é um dos grandes feriados judaicos. Na maçonaria, a luz é um símbolo de intenso significado, não é a luz material, mas do intelecto, representa o espírito divino, a liberdade religiosa, o esclarecimento, a claridade intelectual29. Eliade (1991, p. 62-76)30 relata a experiência do homem com as luzes místicas verificadas em todas as partes do mundo e ligadas a diversas religiões ou mesmo a ideologias não-religiosas. De alguns relatos e experiências, conclui que a divindade se realiza pela manifestação da luz, uma vez que a divindade é luz ou emana luz; na Índia, os sábios ou os que chegam à unio mystica irradiam luz (Bhagavad-Gitã, bhakti; xamanismo) Nessas religiões e em práticas xamânicas, por exemplo, a experiência vivida pelo homem com a luzinterior é sentida como um fenômeno luminoso no sentido físico da palavra. Essa luz mística e transcendental é sempre uma experiência religiosa e capaz de mudar radicalmente o status ontológico do indivíduo. Tais constatações indicam o sentido sagrado da experiência do homem com a luz, mas sua atuação e presença transcendem esses aspectos e atingem outras camadas da vida humana. Do texto religioso e mitológico, que marca a atuação da luz e da sombra como forças opostas, o sentido visual da luz e da sombra e do claro e do escuro foi se desdobrando em outros textos, mas sempre em torno de seu eixo de significação principal; a luz como uma força reveladora e inteligente, porque com a luz é possível ver; e a sombra como representante da ignorância, porque sob sua tutela, as coisas estão ocultas e obscuras. Nesse sentido, a visão, como uma janela aberta, é que possibilitou o conhecimento das visibilidades do mundo físico. Marilena Chauí (1998)31 apresenta a visão como um sentido primordial na cultura ocidental, que influencia tanto o desenvolvimento da linguagem visual como da escrita. A constituição do olhar como sentido de realidade é algo que aparece na linguagem cotidiana, em expressões como: ponto de vista, perspectiva, sem sombra de 29 CARVALHO, W. A. Maçonaria e Judaismo. Monografias maçônicas. Disponível em: < http://www.freemasons-freemasonry.com/18carvalho.html> Acesso em: 18/1/ 2012. 30 ELÍADE, M. Mefistófeles e o Andrógino – comportamentos religiosos e valores espirituais não-europeus. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 31 CHAUI, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In NOVAES, Adauto (org.). In: O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 18 dúvida, visões de mundo, é usada para diferenciar lúcidos e alucinados, iluminados e sombrios. A primazia do olhar molda a linguagem e a forma de pensar, conhecer e conceber o mundo. Nessa lógica, conhecer é clarear a vista; é trazer por meio da visão o mundo do lado de fora para dentro de si; na certeza de que a visão se origina nos olhos. “Assim falamos porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cremos em nossos olhos: cremos que as coisas e os outros existem porque os vemos e que os vemos porque existem” (p. 33). Mas, o que é ver? Por que Aristóteles escreve est ideín? Da raiz indo-européia weid, ver é olhar para tomar conhecimento e para ter conhecimento. Esse laço entre ver e conhecer, de um olhar que se tornou cognoscente e não apenas espectador desatento, é o que o verbo grego eido exprime. Eido – ver, observar, examinar, fazer ver, instruir, instruir-se, informar, informar-se, conhecer, saber – e no latim, da mesma raiz, vídeo – ver, olhar, perceber – e viso – visar, ir olhar, ir ver, examinar, observar. Antes de Aristóteles tratar da visão como um instrumento para “conhecer” a realidade, Platão (427-347 a.C.) desenvolveu no Livro VII de República, a ideia de conhecimento, fazendo uma separação entre o mundo sensível (dos fenômenos) e o mundo inteligível (das ideias gerais), a partir de uma “analogia solar” no Mito da Caverna. Nessa alegoria, luz e sombra constituem uma oposição radical entre o conhecimento e a ignorância. O Sol, para Platão, proporciona às coisas visíveis a possibilidade de serem vistas. A aptidão para ver é a aptidão para conhecer, o exercício da visão é o exercício da razão, os órgãos da visão (olhos) são os órgãos do conhecimento, como descrito no Livro VI: “Fica sabendo que o que transmite verdade aos objetos cognoscíveis e dá ao sujeito que conhece esse poder, é a idéia do bem. (...) E, tal como se pode pensar corretamente nesse mundo que a luz e a vista são semelhantes ao Sol...” (508ae-509ae). A luz seria, no mundo dos sentidos, o supremo grau, o sinal absoluto de Deus, a verdade e o bem, o belo, já que ela transcende os limites do físico. Na perspectiva de Platão, a luz do Sol é como uma fonte de iluminação intelectual, a representação do bem, que por vezes é interpretada como a noção de deus para o filósofo. As ideias de Platão discutidas acima e as reflexões sobre as oposições luz e sombra, bem e mal, encontram-se demarcadas em dois momentos da história da humanidade: a Idade Média e a Idade Moderna. Os acontecimentos “sombrios” e “iluminados” que marcaram essas eras alcançaram seu auge a ponto de classificá-las e nomeá-las como época das “trevas” e das “luzes”. A Idade Média, situada entre os anos 476 e 1453, compreendeu um período de mil anos e ficou marcada como a “Idade das Trevas”. Esse momento foi tomado pelos valores da religião cristã, que influenciou as artes, a literatura e a filosofia. A denominação do período 19 em “trevas” e “obscuro” se deu pelo fato de ter sido caracterizado por intenso maniqueísmo religioso. Já na Idade Moderna, período datado de 1453 a 1798, o obscurantismo começa a se dissipar, abrindo espaço para ideais libertários, transformações no plano intelectual e cultural, descobertas científicas e mudanças na estrutura política, principalmente na Europa. Nessa era aconteceram movimentos importantes como o Renascimento e o Iluminismo, cujos nomes remetem a algo positivo, ao contrário do período medieval, demarcado negativamente. A Idade Média está ligada à ideia de retrocesso do pensamento, atraso intelectual, científico e cultural, devido o domínio da fé cristã que obscureceu as “luzes” da razão e soterrou o conhecimento, embora historiadores, ao se debruçarem sobre o período, entendem que a Idade Média não foi um período infértil como denominam.32 O que se discorreu até o momento mostra como a observação do mundo físico e a influência de forças opostas levou o individuo a estruturar seu pensamento e a transferir sua visão de mundo para as diversas esferas da vida em que atua e produz sentido. A presença de forças e ideias antagônicas, segundo Carlo Ginzburg (1989), configura-se como uma tendência da espécie humana em representar a realidade tendo como base categorias opostas por meio de percepções contrapostas como luz e sombra, calor e frio, alto e baixo. Essa polarização tem profundas raízes biológicas, que são refletidas pela linguagem, pelo pensamento, num âmbito regulado por “categorias antitéticas e carregadas de significado cultural e simbólico. Portanto, se manifestam além do nível biológico. Dentre todas as categorias, Ginzburg aponta que nenhuma delas é tão intensa quanto o alto e baixo. Dessa contraposição, que valorada como alto, positivo e baixo, negativo, outras contraposições podem ser alinhadas ao eixo que opera positivamente e ao seu inverso. A luz e a sombra, por exemplo, operam nos eixos positivo e negativo. Do alto, na parte superior, emana a luz, o sol, o divino. Na parte de baixo está tudo o que ocupa uma posição inferior, como a terra ou o inferno se comparados ao céu. Mas o intenso valor cultural atribuído a essa contraposição em todas as sociedades conhecidas (ao que eu saiba) provavelmente está ligado a um elemento diferente, especificamente humano – de fato, o elemento que teve um peso decisivo na história do homo sapiens. A prolongada infância do homem, a excepcional lentidão do seu 32 Fonte: História do Mundo. < http://www.historiadomundo.com.br/idade-media/3/> Acessado em: 03/12/2011. 20 desenvolvimento físico e intelectual explicam de modo plausível a identificação imediata daquilo que é alto com a força, a bondade e assim por diante. 33 Em se tratando da atuação de forças opostas na configuração das manifestações culturais do homem, tanto forças sentidas fisicamente, como o fenômeno do claro e escuro, como as sensações provocadas por essas forças, há que se levar em consideração o papel de certas emoções instintivas que impulsionaramo homem a lutar pela sobrevivência. Em um estudo comparativo entre o comportamento humano e animal, Konrad Lorenz34, aponta um impulso inato do homem, como de muitos animais, em relação à sobrevivência da própria espécie. Seu estudo, publicado na década de 60, descreve o papel da agressão para a manutenção da vida. Para Lorenz, a natureza humana é agressiva diante da ameaça e do perigo com a finalidade de preservação da vida. Walter Bukert35, adepto dos estudos de Lorenz, acredita que as reações ancestrais, genéticas, existentes entre animais e humanos servem para informar os homens, dar “recomendações” de como agir em determinadas situações para garantir a sobrevivência da espécie. Segundo o Bukert, esse medo ancestral e instintivo, geneticamente transmitido é o fundamento para o comportamento religioso e a posterior explicação divina para o mal. O reconhecimento de um poder maior que o “eu” são comportamentos anteriores ao aparecimento do “homo sapiens”, podendo ser anterior à própria linguagem. Clifford Geertz (1989, p. 32)36, em uma de suas proposições sobre o impacto do conceito de cultura37 no conceito de homem, afirma que o ser humano “depende de mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele”, e de “programas culturais”, tais como costumes, tradições, hábitos, para ordenar seu comportamento. Nessa perspectiva, sem um sistema organizado de símbolos ou dirigido por padrões culturais, “o comportamento humano seria ingovernável, com atos sem sentido e explosões emocionais”. Portanto, a cultura acumulada, de acordo com Geertz, é essencial para a existência humana, o que implica que 33 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história.Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 98. 34 LORENZ, Konrad. A agressão: uma história natural do mal. Lisboa: Moraes, 1979. Zoólogo austríaco, Lorenz, foi fundador da moderna Etologia, uma nova área de estudos científicos com profundas implicações para a humanidade. Pelas suas descobertas recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia em 1973. 35 BURKERT, Walter. A criação do sagrado - Vestígios biológicos nas antigas religiões. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 46. 36 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. 37 Geertz (1989, p. 66) define cultura como um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. 21 não existiria “natureza humana” independente da cultura. É como se o indivíduo estivesse preso ao passado da espécie e, de acordo com Hall e Nordby (1993, p. 31), preso “à longa cadeia de evolução orgânica”.38 Contrera (2005) trata de uma outra característica da visão, como sentido de defesa, diferente da visão como instrumento para conhecer o mundo, desenvolvida no decorrer da evolução do homem, cuja sobrevivência dependia de um instinto de proteção, no qual precisava avistar ameaças à distância. Por isso a ênfase absoluta que a sociedade dá à comunicação visual é uma das mais amplas formas de incomunicação, já que a visão não é preferencialmente um sentido que se abre à criação de vínculos comunicativos, mas sim um sentido de defesa, utilizado para manter o controle sobre o movimento dos outros à uma distância segura. (CONTRERA, 2005, p. 56) Desse modo, a visão humana atravessou séculos, como um instrumento capaz de “prever” e alertar sobre perigos. Sob esse aspecto, as imagens, ao necessitar da visão para serem reconhecidas e vistas, irão resgatar Luz e sombra em comunhão na fotografia Mali - O jogo de luz e sombra e de espelhos: o corpo duplicado. Figura 01. Mali. Paolo Pelegrin. Figura 02. Mali. Paolo Pelegrin. 38 HALL, C.S., NORDBY, V.J. Introdução à psicologia junguiana. São Paulo: Cultrix, 1993. 22 Mali – O jogo de luz e sombra: o corpo dividido. Figura 03. Mali. Paolo Pelegrin. Figura 04. Mali. Paolo Pelegrin. As imagens 01 e 02 possuem uma profundidade simulada pelo espelho e pela sombra. “I’ll be your mirror”: “Eu serei seu espelho”, não significa serei o seu reflexo”, mas “serei o seu engano” . Com esta frase Jean Baudrillard (1991) resgata o mito de Narciso representado na pintura de Caravaggio (1571-1610) para descrever o encantamento provocado por determinadas imagens. No mito, Narciso se encanta com sua imagem refletida na água e, seduzido por sua beleza, mergulha para a morte. No capítulo que trata dos artifícios da sedução, Baudrillard explica sobre a técnica do trompe-l’oeil ou o que ele chama de “simulação encantada” (p. 69-81), recurso utilizado na pintura para criar uma ilusão de ótica, como indica o termo francês da expressão: tromper, “enganar”, l’oeil, “olho”. Nas imagens 01 e 02, esse recurso pode ser observado como estratégia para criar uma ilusão de ótica, produzindo um discurso sedutor, de aparência simulada. Na Rússia, as primeiras fotografias expressam o contraste imposto pela paisagem fria. O branco da neve, os prédios horizontais, as estacas na vertical e o silêncio nas ruas indicam distanciamento e solidão, sensações que estarão impregnadas nas histórias dos personagens. As fotografias destacadas abaixo remetem ao que Pross (1974, p. 53) chamou de experiências polarizadas: claro/escuro, dentro/fora, acima/abaixo, que se configuram em eixos de produção de sentido. As imagens fotográficas de 05 a 08 apresentam essas polaridades de forma diferente em cada uma. O eixo vertical representado pelos prédios e árvores na foto 05, pode ser percebido na posição vertical (vida) do paciente soropositivo (foto 07). Na foto 06, 23 uma estaca no chão, na horizontal, sugere o que a foto 08 mostra: o paciente na horizontal, morto. Essas e outras polaridades, como dentro/fora, longe/perto podem ser encontradas nas demais imagens selecionadas no decorrer deste artigo. Sua utilização infere categorias que representam, sempre, um pólo positivo e outro negativo, ajudando a produzir sentido e revelando aspectos mais profundos a serem desvendados para a leitura de uma imagem. Rússia – luz e sombra e eixos de sentido vertical/horizontal = vida/ morte. Figura 05. Rússia. Alex Majoli. Figura 06. Rússia. Alex Majoli. Figura 07. Rússia. Alex Majoli. Figura 08. Rússia. Alex Majoli. As fotografias do Vietnã mostram os afetados pela doença na presença de suas famílias, formadas por esposa e filhos, que transmitem muita dedicação nos cuidados com os vitimados pela doença, na maior parte, representada por homens. As imagens também indicam uma rotina de vida e costumes marcada pela simplicidade e pelo trabalho rural. Nessa série de fotografias há cores e símbolos peculiares no modo de vestir e viver, na disposição dos móveis, no compartimento da casa e nos rituais diários dessas famílias. As fotografias não trazem intensos contrastes de luz e sombra. Outros eixos de sentido podem ser analisados neste contexto. 24 Vietnã – dentro/fora, vertical/horizontal Figura 09. Vietnã. Steve McCurry. Figura 10. Vietnã. Steve McCurry. Figura 11. Vietnã. Steve McCurry. Figura 12. Vietnã. Steve McCurry. Na seleção de fotos sobre a Índia, as primeiras imagens representam um culto à imagem. Uma sequência de fotografias recortadas e coladas como num álbum irregular e desordenado abre a reportagem e expressa o caos vivido naquele ambientede promiscuidade e miséria no qual a Aids se manifesta. O culto à fotografia pode ser entendido pelas inúmeras representações de imagens nas paredes das casas. Em qualquer cômodo há muitas fotografias e fotografias de fotografias, muitas recortadas no formato da pessoa, do rosto, do corpo, com inscrições, anotações no idioma local. 25 Índia: um culto à fotografia Figura 13. Índia. Jim Goldberg Figura 14. Índia. Jim Goldberg Vertical/doença Figura 15. Índia. Jim Goldberg Figura 16. Índia. Jim Goldberg O olhar vago é, à primeira vista, o que mais atrai nas fotografias de Ruanda, feitas pelo francês Giles Peress. As fotos em branco e preto trazem aspectos da vida dos personagens, que narram um pouco de sua trajetória de vida e da conturbada história recente do país. Ruanda se destaca como uma das histórias de sucesso de combate à Aids na África. No entanto, a Aids continua a ser um grave problema de saúde em um país de reconstrução de guerra e genocídio. Talvez em meio a esse duplo desafio, as fotografias de Ruanda apresentem portas e janelas, no sentido de representarem uma saída possível a tão difícil história pessoal de seu povo e do país. 26 Ruanda – luz e sombra, duplicidade, tela dentro da tela. Figura 17. Ruanda. Giles Peress. Figura 18. Ruanda. Giles Peress. Longe e perto Figura 20. Ruanda. Giles Peress. Figura 21. Ruanda. Giles Peress As fotografias da Suazilândia, na África, e da África do Sul foram feitas em branco e preto pelo fotógrafo Larry Towell. Os mesmos aspectos podem ser observados nas fotografia dos dois países. Nas imagens em preto e branco, de modo geral, a variação no tom (claro/escuro) apontam para uma expressividade intencionalmente escolhida pelo fotógrafo. A ausência de cor é uma opção discursiva carregada de significados. Já as fotos com cor, apontam para uma informação visual complexa. Guimarães (2004, p. 12) explica que “a cor é uma informação visual, causada por um estímulo físico, percebida pelos olhos e decodificada pelo cérebro.” As cores podem passar sensações, comunicar ideias e transmitir emoções, de acordo com as tonalidades utilizadas na fotografia. 27 Milton Guran (2002) relembra que no domínio profissional há muitas escolhas em termos de composição, entre elas, ângulo de tomada, luz, enquadramento, objetiva, além do ponto de foco, velocidade de obturação e abertura de diafragma. Mais que puramente técnicas, as opções implicam diferenças significativas em termos de linguagem e conferem autoria a cada registro. As imagens da Magnum têm um forte viés autoral, embora, acredita-se que a imagem possui elementos comunicativos intrínsecos em seu discurso que transcendem a autoria. Suazilândia e África do Sul: o contexto e os símbolos Figura 22. Suazilândia. Larry Towell. Figura 23. Suazilândia. Larry Towell. Figura 24. África do Sul. Larry Towell. Figura 25. África do Sul. Larry Towell. No Haiti, o fotógrafo Jonas Bendiksen quis rastrear as mudanças nos pacientes em tratamento com o antiretroviral. Para isso, muniu-os de filmes e câmeras Polaroid. Sua intenção era traçar a trajetória diária dessas pessoas, a mudança na aparência, as rotinas de tratamento, o efeitos do uso da medicação. Apenas algumas fotografias dessa reportagem são 28 de Bendiksen; sua presença é notada quando o video feito no local, indica que uma fotografia foi tirada sob o mesmo ângulo de visão, notadamente por um observador mais experiente. Um aspecto interessante é que nas fotografias do Haiti há predominância da cor azul em algum tecido, roupa ou objetos. Haiti – Luz, sombra e cores Figura 26. Haiti. Jonas Bendiksen. Figura 27. Haiti. Jonas Bendiksen. Figura 28. Haiti. Jonas Bendiksen. Figura 29. Haiti. Jonas Bendiksen. No Peru, o fotógrafo Eli Reed retrata a realidade apontada pelas pesquisas sobre as causas da incidência de Aids no país. Homessexuais, usuários de drogas e profissionais do sexo são as principais vítimas da doença. Nessas fotografias há um marcante jogo de imagens no espelho, com efeito de duplicação. Há também o uso de várias fotografias montadas em sequência, compondo uma narrativa, a partir de imagens diferentes. 29 Peru – Luz e sombra e espelhamento Figura 30. Peru. Eli Reed. Figura 31. Peru. Eli Reed. Figura 32. Peru. Eli Reed. Figura 33. Peru. Eli Reed. Conclusão As imagens de Access to life apresentam binaridades nos planos de conteúdo e de expressão. O próprio tema Aids aponta uma ameaça de morte, o pólo negativo extremo, de onde originaram-se os outros. A presença desse pólo na fotografia é representado em diversos elementos do discurso fotográfico, como no alto contraste (luz e sombra) em determinadas imagens, carregadas de dramaticidade. O outro lado da sombra, a luz, mostra a coexistência de vida e morte naquele enquadramento feito pela lente da máquina. Em algumas fotografias, a luz vence a sombra, em outras, a sombra é mais acentuada, prenunciando a morte, por meio da penumbra, e de tudo que a morte traz: o medo, o desconhecido, o mistério. Neste momento, incide sobre a imagem moribunda, o elemento sedutor, trazido pelo mistério que está oculto - por não se saber como será a passagem da vida para a morte, da luz para a sombra, esta sutilmente revelada por sua aparência obscura e invisível, mas que se deixa notar pelos sentidos humanos mais arcaicos e profundos. 30 É imperioso ressaltar que a edição da fotografia e sua produção de sentido é fruto da própria estrutura da imagem e não simplesmente de técnicas de composição. Entre os padrões compositivos da imagem nota-se que o contraste (luz/sombra) é uma poderosa ferramenta de expressão e uma maneira de intensificar o sentido do que está sendo comunicado. O contraste representa uma força de oposição, que quebra a monotonia, estimulando o contato visual com a imagem. Outro recurso que chama a atenção é o uso de close, o recorte de partes do corpo carregadas de significado como olhos, pés e mãos. É na observação do contraste que se percebe o quanto as técnicas visuais são ordenadas por polaridades. Bystrina coloca a imagem no universo simbólico e cultural (segunda realidade). Isso implica que tudo se constrói em função de um oposto, oposições binárias que dominam intensamente o pensamento humano e está presente nos objetos culturais que o homem cria e dá significado. Visando à descoberta e à contribuição, este estudo traçou os principais pontos a serem investigados mais a fundo. Não se pretendeu, tampouco haveria essa possibilidade, esgotar o tema; ao contrário, a intenção foi indicar uma via de abordagem para estudos futuros. Espera- se, ainda, compreender melhor a influência das estratégias discursivas das fotografias jornalísticas, como elas comunicam ideias, pensamentos, ações; entender as intencionalidades e descobrir maiores possibilidades de leitura da imagem fotográfica. Este artigo buscou, ainda, reforçar proposições sobre a presença de técnicas visuais intencionais ou não, que podem servir para uma ampliação do repertório de conhecimento sobre a linguagem fotográfica. Referências BAITELLO JR., Norval. Para que servem as imagens mediáticas. Os ambientes culturais da comunicação, as motivações da iconomania, a cultura da visualidade e suas funções. São Paulo: CISC, 2007a. _____. O animalque parou os relógios: ensaios sobre cultura, comunicação e mídia. 2ª Ed, São Paulo: Annablume, 1999. BAXANDALL, Michael. Sombras e Luzes. tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. BERGER, John Modos de ver. Lisboa, Edições 70, 1999. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. 160ª ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 2004. 31 BURKERT, Walter. A criação do sagrado. Vestígios biológicos nas antigas religiões. Lisboa: Edições 70, 2001 BYSTRINA, Ivan. Tópicos da semiótica da cultura. São Paulo: Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia, 1995. FELLINI, Federico. Fazer um Filme. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989 CHAUI, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In NOVAES, Adauto (Org.). In: O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história.Trad. Frederico Carotti. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. GONÇALVES, M.C.F. Helgel leitor de Goethe: entre a física da luz e o colorido da arte. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, Recife, ano 5, nº8, p. 37-56, 2008. GHREBH – Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia. Mídia, luz e sombra. [Editorial]. São Paulo, v.1 n.15, maio, 2010. www.cisc.org.br/ghrebh CONTRERA, M. BAITELLO, N. (2010) Na selva das imagens, algumas contribuições para uma teoria da imagem na esfera das ciências da comunicação, <http://www.ciec.org.br/Artigos/Revista_4/malena.pdf> GUIMARÃES, Luciano. O sistema simbólico das cores no jornalismo. Em: CONTRERA, Malena Segura, GUIMARÃES, Luciano; PELLEGRINI, Milton; SILVA, Maurício Ribeiro. O espírito de nosso tempo: ensaios de semiótica da cultura e da mídia. São Paulo: Annablume: 2005. p.51-59. JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Trad. Dora Ferreira da Silva. 21ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 2008. LORENZ, Konrad. A agressão: uma história natural do mal. Lisboa: Moraes, 1979. MACHADO, Irene. Escola de Semiótica – A experiência de Tártu-Moscou para o estudo da cultura. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003. MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. MITCHELL, W.J.T. (1986) Iconology. Chicago, University of Chicago Press. MROGINSKI, S.S.S. As vozes da morte em o sétimo selo: aproximações culturais. 2009. 129 f. Tese (Mestrado em Letras) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel, Disponível em: < http://cac-php.unioeste.br/pos/media/File/letras/sheyla_sabino.pdf> PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2006. PONCE DE LÉON, Paz Garcia. Breve história da Pintura. Editorial Estampa. Lisboa, 2006. 32 TEDESCO, João Carlos. Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração. Passo Fundo: UPF; Caxias do Sul: EDUCS, 2004. ZIELINSKI, Siegfried. Arqueologia da mídia: em busca do tempo remoto das técnicas do ver e do ouvir. São Paulo: Annablume, 2006.
Compartilhar