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1 Emenda Constitucional n. 45/2004. Monica Herman Caggiano Professora Associada de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP. Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Diretora Cultural do CEPES. Sumário: Aspectos Introdutórios. Das Medidas Inovatórias em Geral. O avanço do efeito vinculante A Valorização do precedente. O efeito vinculante no Direito Comparado. Efeito vinculante na Constituição brasileira. O impacto da E.C. n. 45/2004. A súmula vinculante. Reengenharia do Poder Judiciário. Poder Judiciário/ Órgãos e competências da nova estrutura. Os Conselhos. Tratamento constitucional. I.- Um Gigantesco Desafio ao Poder Judiciário. Após longo período de reflexão e construção legislativa, eis que ao final do ano de 2004 foi promulgada e publicada1 a reforma do Poder Judiciário, medida reiteradamente reclamada com a expectativa de se modernizar a engrenagem jurisdicional, assegurar-lhe a necessária agilidade, eficiência na solução dos litígios Aspectos Introdutórios e a garantir menor nível de desmandos, a lisura e o equilíbrio, bem assim o sentido de segurança e de efetiva tutela para as relações que se processam no seio da nossa sociedade. Tarefa das mais árduas, o espinhoso trajeto de tramitação desta propositura acabou sendo marcado por profundos e prolongados debates, constante pressão de lobbies, das mais diferentes nuanças oriundos do próprio Judiciário, de segmentos da sociedade civil organizada, da mídia e da imprensa e acompanhada, durante todo o seu percurso, por um profundo descrédito de todos. Impactante, pois, referida Emenda Constitucional n. 45/2004, porquanto a par de poucos terem acreditado na sua real emergência, quando, a final, editada, a ausência de primor de técnica legislativa, a falta de precisão e a superficialidade com que trata determinados tópicos, impôs de imediato à comunidade jurídica uma nova e urgente tarefa: a de dissecá-la e neste ensaio de prática de verdadeira anatomia, identificar a exata extensão de seus efeitos e sua aptidão à, concretamente, alinhar a atuação do Poder Judiciário às demandas da sociedade brasileira do século XXI. Para os operadores do Direito, o advento das novas regras implicará, certamente, num atento debruçar sobre novas competências, rearranjos estruturais e de organização do Poder Judiciário, revisitação do quadro normativo recursal, enfim temas que integram o cotidiano do advogado, do procurador e do 1 A Emenda Constitucional n. 45/2004 foi promulgada em 8 de dezembro de 2004, sendo publicada, no entanto, apenas em data de 31 de dezembro de 2004. id30754926 pdfMachine by Broadgun Software - a great PDF writer! - a great PDF creator! - http://www.pdfmachine.com http://www.broadgun.com 2 promotor público. Para o Judiciário, no entanto, a inovação introduz uma monumental incumbência a de extrair da aplicação e fórmulas adotadas na implementação dos preceitos reformulatórios a reconquista de sua credibilidade. E esta nos parece uma ingrata atribuição, porquanto tímidos e frágeis são os instrumentos para tanto concebidos pelo constituinte. O presente estudo não tem a pretensão de exaurir a análise da mais recente remodelação constitucional aplicada ao Estatuto Fundamental de 1988. Isto seria até absurdo, porque a sua efetiva concreção processar-se-á paulatinamente, por intermédio de uma trajetória a integrar a edição de leis, resoluções e o reiterado pronunciamento dos Tribunais enfim, o tempo irá comandar a sua fática consolidação. Neste espaço, porém, pretende-se tão somente oferecer um exercício de reflexão sobre o produto da referida reforma, tal como lançado. Assim, nesta primeira etapa, a perspectiva é a de examinar, genericamente, os instrumentos criados para, a seguir, em dois diferentes e subseqüentes blocos, serem abordadas as espinhosas questões atinentes à súmula vinculante e às novas configurações dos tribunais. Múltiplas e multifárias as medidas novidadeiras introduzidas por força da E.C. n. 45/2004. Aproveitou o constituinte a oportunidade, inclusive, para alargar o já invejável catálogo dos direitos fundamentais do art. 5º, inscrevendo o princípio da razoável duração do processo (com) os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (inciso LXXVIII) Das Medidas Inovatórias em Geral e a imposição de reconhecimento das decisões de Tribunal Penal Internacional para cuja criação (o Brasil) tenha manifestado adesão (§4º), o que irá provocar calorosas discussões sobre eventual redução da soberania embora esta posição tenha resultado do exercício da soberania a qualidade das decisões a que o país deva se subordinar, a solução de eventual conflito entre o pronunciamento da Corte Internacional e a de um Tribunal interno. No bojo desta reformulação, conferiu-se, ainda, status constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros. (art. 5º, § 3º) tópico que, a seu turno conduzirá a refletir sobre eventual possibilidade de recepcionar2 os acordos anteriores, em matéria de direitos humanos, com o mesmo efeito. Alcançar um consenso nestes domínios não nos parece tarefa cômoda e não há dúvida de que a opinião pública e a pressão internacional deverão marcar presença como ingredientes obrigatórios. No entanto, do exame, ainda que perfunctório do dispositivo, depreende-se que o constituinte outorgou um tratamento muito exato, específico e restritivo à questão. Conferiu o pedestal constitucional tão só aqueles 2 O instituto da RECEPÇÃO opera mediante a integração do quadro normativo (leis, decretos, regulamentos, etc.) editado sob a égide da ordem constitucional anterior ao novo panorama jurídico advindo da promulgação de uma nova Constituição ou de reforma efetuada, desde que com esta compatível. 3 tratados e convenções que cuidassem de direitos humanos e que atendessem às regras de aprovação legislativa estabelecida para as emendas constitucionais. Em se afigurando excepcional o dispositivo, restrito o seu campo interpretativo, porquanto ausente a flexibilidade necessária a exercícios de hermenêutica. De resto, circunscreveu o legislador sua atuação a incisões precisas sobre o Poder Judiciário, perseguindo praticamente três objetivos: (1) conferir celeridade a sua ação, como anunciado pelo atual inciso LXXVIII, do artigo 5º, com a estréia do standard da razoável duração do processo; (2) torna- lo imune à ação corrosiva, assegurando lisura na prestação jurisdicional e evitando os repetidamente denunciados desmandos; (3) blindar o Supremo Tribunal Federal, modelando-o de forma a assumir, na ordem jurídica brasileira, a postura de Corte Constitucional. Nessa esteira, a par da criação do Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B), providência complementada com a previsão do Conselho da Justiça Federal (art. 105, p.ú., II) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (art. 111-A, § 2º, II), preconizou o constituinte a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, tanto no âmbito da Justiça comum, vinculando-a ao Superior Tribunal de Justiça (Art. 105, § 1º, I), como também para a área especializada, trabalhista, onde a ligação foi estabelecida com o Tribunal Superiordo Trabalho (art. 111-A, § 2º, I). A par disso, vedou expressamente o recebimento de auxílio ou contribuição por magistrado (art. 95, p.ú., IV) e instituiu a quarentena para os membros da magistratura três anos de impedimento para atuar perante o juízo ou Tribunal do qual tenha se afastado por aposentadoria ou exoneração (art. 95, p. ú. , V), o que não obstruiu a possibilidade de patrocinar causas na área judiciária, em outras instâncias e entrâncias. Complementando o mecanismo de controle, a Emenda Constitucional n. 45/2004 idealiza, também, uma figura inovadora na estrutura do Ministério Público, promovendo a estréia do Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A), composto por quatorze membros (14) uma quase reprodução do Conselho Nacional de Justiça e que, a exemplo do que se verifica neste último ambiente, acolhe um clima de clara preponderância da área do Judiciário (Ministério Público e do Poder Judiciário). De fato, geneticamente resultante do polêmico debate sobre a viabilidade de se estabelecer um sistema de controle em relação ao Poder Judiciário, o desenho final dos Conselhos e sua fórmula constitutiva3 oferece uma solução frágil no que toca à exigência de fiscalização e imposição de limites, visando a adequação da prestação jurisdicional à perspectiva constitucional e à expectativa da comunidade. Configura, porém, o instrumento que a Constituição 3 A constituição e a competência atribuída aos Conselhos evidenciam claramente que o controle visualizado permanece nas mãos e sob o domínio do próprio órgão, o que, a primeira vista, gera dúvidas sobre a eficacidade do mecanismo. A matéria será analisada com maior profundidade na terceira etapa deste estudo. 4 idealizou, considerando notadamente a prevalência do macro-princípio da independência4 desta instituição, o que não pode ser desprezado. Avanços, todavia, há. Neste escaninho, a tão reivindicada transparência das decisões de perfil administrativo proferidas, introduzida por força da alteração da norma do inciso X do art. 93 da Constituição5. Vale a pena lembrar, a este passo, a sinalização do Professor Cláudio Lembo, no começo dos anos 90, apresentando sua proposta no 5º Encontro Nacional de Direito Constitucional, onde registrou: O princípio da publicidade e seu correlato direito fundamental à visibilidade exigem a publicação da integridade dos decisórios finais proferidos em procedimentos administrativos disciplinares desenvolvidos no âmbito do Judiciário. A coletividade necessita saber que o Judiciário é imparcial e age cumprindo os imperativos impostos pelo Estado de Direito.... O mau juiz desfigura a instituição e, por isso, seus atos e atitudes devem ser conhecidos por toda a gente..6 A busca de aprimoramento da atuação do Judiciário revela-se, ainda, por via de outros mecanismos coadjuvantes. Moldados, talvez, com o preciso escopo de fortalecer a peça central desta engrenagem e que se consubstancia na criação dos Conselhos. É o que se depreende do exame do novo requisito de aferição do merecimento de seus membros: produtividade e presteza no exercício da jurisdição (art. 93, II, c). Ou, ainda, da inovadora hipótese obstrutiva de promoção: não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal.... (art. 93,II,e). E mais, houve flexibilização das possibilidades de remoção, aposentadoria e disponibilidade do magistrado, por interesse público, reduzindo- se o quorum para maioria absoluta e outorgando-se, também, ao Conselho Nacional de Justiça esta competência, quando inerte o órgão de origem (art. 93,VIII). No capítulo da garantia da efetividade e presteza da prestação jurisdicional, inseriu o constituinte revisor regras de reforço, a exemplo da abolição do recesso forense (art. 93, XII), da exigência de proporcionalidade do número de juízes à efetiva demanda judicial e à respectiva população (Art. 93, XIII), da possibilidade de delegação de tarefas administrativas sem perfil jurisdicional aos servidores (art. 93, XIV), da determinação de imediata distribuição dos processos, em todos os graus (art. 93, XV). 4 Ainda que evidente se afigure a preponderância do Poder Judiciário, que detém o poder decisório no âmbito destes órgãos em razão da presença maciça de seus representantes, a AMB Associação dos Magistrados Brasileiros ajuizou, em data de 7 de janeiro/2005, ação Direta de Inconstitucionalidade apontando a desconformidade do art. 103B aos princípios constitucionais que asseguram a independência do Poder Judiciário e a inamovibilidade de seus membros. 5 Inciso X, art. 93 da C.F (redação atual): as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, .... 6 A palestra Direito Fundamental à Visibilidade e Processos Secretos integra hoje o livro O Futuro da Liberdade, São Paulo, Loyola, 1999, p. 169. 5 Por derradeiro, é de se anotar a blindagem efetuada em relação ao Supremo Tribunal Federal, com o reforço do efeito vinculante e a introdução de mais um requisito de admissibilidade para os recursos extraordinários repercussão geral da questão. Aliás, é de se remarcar o avanço do efeito vinculante das decisões do STF, obstando praticamente a renovação do O avanço do efeito vinculante debate de matérias que já contam com o seu pronunciamento. De fato, o alargamento da abrangência do § 2º, do art. 102, da Constituição para atribuir efeito vinculante também aos decisórios em ações diretas de inconstitucionalidade (Adins), acoplado à elaboração da figura da súmula vinculante consagra uma tendência que vem se robustecendo desde a edição da Emenda Constitucional n. 3/1993 (previu a ação declaratória de constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental) e que ensejou o advento das Leis de n. 9868, de 10 de novembro de 1999,7 e 9 882, de 3 de dezembro de 19998. É certo que a mecânica consistente em se cometer efeito vinculante às decisões do Excelso Pretório, a par de bloquear o reiterado ingresso de casos similares a já apreciados e matérias decididas por consenso dos ministros julgadores, tem por finalidade desanuviar o Poder Judiciário, liberá-lo da avalanche de papeis que se avolumam sobre as mesas dos magistrados, impedindo a presteza que, hoje, encontra na Constituição status de princípio. O problema que se oferece à análise, contudo, é identificar em que medida o alongamento do efeito vinculante, como preconizado pelo constituinte reformador, não invade, reduzindo-lhe o espectro de incidência, o cânone da inafastabilidade do controle do Judiciário (art. 5º, XXXV), entre nós acolhido pelo Estatuto Fundamental de 1988 como verdadeiro princípio conformador. Mais ainda, não há que ignorar que, em território dominado pelo efeito vinculante como o concebido pela reforma constitucional em exame não teria tido espaço, nem viabilidade, a tutela da propriedade alcançada por via do acionamento do sistema de controle de constitucionalidade difuso, por ocasião do bloqueio dos cruzados, medida implantada pelo Plano Econômico do Presidente Color de Mello, no início da década 90. Atenta a esta espinhosa questão provavelmente a E. C. n.45/2004, ao cuidar do tópico súmula vinculante (art. 103-A), já previu a possibilidade de sua revisão ou cancelamento, procedimentos que podem vir a ser provocados, inclusive, pelos constitucionalmente titulados para o ajuizamento da Adin (art. 103). Mas, como este acionamento restou na dependência de7 Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. 8 Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1º do artigo 102 da Constituição Federal. 6 legislação regulamentadora, infra-constitucional, é cedo, ainda, para visualizar o grau da blindagem do Poder Judiciário e o eventual efeito perverso em relação à concreta prestação jurisdicional e à construção e revitalização de um quadro jurisprudencial em contínuo desenvolvimento. II. A expansão do efeito vinculante Na primeira parte desta análise, já foi identificada uma intensa inquietação com o exacerbado acolhimento, em sede de controle de constitucionalidade, do caráter vinculante em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal, medida que, privilegiando o reino do precedente, busca respaldo, prima facie, na real e urgente exigência de se agilizar a atuação do Poder A Valorização do precedente Judiciário, desafogá-lo e aparelhá-lo de molde a tornar mais célere a solução dos litígios. Desta idéia é que decorre, também, a elevação da tradicional e clássica expectativa de celeridade nos pronunciamentos dos tribunais à nobre postura de princípio constitucional, o que veio a ser standartizado mediante a inserção do cânone da razoável duração do processo (C.F. E.C. n. 45/2004 art. 5º, LXXVIII), complementado pela exigência de produtividade e presteza no exercício da jurisdição (C.F. E.C. n. 45/2004 - art. 93, II, c). Suportado talvez no objetivo de homenagear o novo princípio, o constituinte revisor acabou por se exceder na dosimetria do caráter vinculante acoplado a pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal. Forçoso convir que a idéia de vinculação às decisões proferidas por Cortes Superiores, da valorização do precedente, é própria desta especialíssima plataforma do controle incidente sobre a conformização das leis e atos normativos primários9 à Constituição. É o que os portugueses denominam de processo de fiscalização de constitucionalidade, os franceses de contrôle de constitutionnalité des lois e os americanos de judicial review. Enfim é o domínio da Justiça Constitucional. Neste peculiar cenário, a imposição de respeito ao precedente remonta mesmo à common law10, constituindo o cerne da doutrina conhecida por stare decisis11. Esta, transportada para a paisagem norte- americana, ofereceu suporte à imposição de observância das decisões da Suprema Corte quando declara a inconstitucionalidade de lei. Aliás, a própria 9 Atos normativos primários são os editados com fundamento diretamente na Constituição. São leis, resoluções do Senado, etc. que retiram a sua base no próprio texto da Lei Fundamental. Ao lado desses e neles respaldando-se, há os atos normativos secundários (decretos, portarias, ordens internas, resoluções). Ver ainda sobre a classificação dos atos normativos: CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, São Paulo, Saraiva. 10 Sistema legal oriundo da Inglaterra e praticado nos Estados Unidos da América. Tem por base a aplicação de precedentes. 11 Let the decision stand deixe a decisão perdurar. Sustenta a autoridade do precedente, que deve ser aplicado em hipóteses similares. 7 configuração do judicial review12 repousa sobre a necessidade da preservação dos standards nas decisões, pois reclama e tem por corolário a adoção de soluções idênticas para casos similares. Não se afigura novidadeira, pois, a postura do constituinte reformador (E.C. n.45/2004) ao potencializar o prestígio do precedente, ampliando o efeito vinculante, antes assegurado, tão só, em relação às decisões proferidas em ações declaratórias de constitucionalidade (C.F. § 2º, art.102)13. Alargou o círculo da vinculação para abarcar todas as decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade. De fato, foi além: acoplou efeito vinculante também às súmulas editadas, fortalecendo o quadro sumular e reduzindo sensivelmente o acesso ao Judiciário de casos novos que, no entanto, viessem a se enquadrar em precedentes e súmulas portadoras deste caráter vinculante. Em verdade, entusiasmado com a inspiração obtida a partir do clássico sistema do stare decisis anglo-saxônico, do modelo germânico (§ 31, abs. 1 da Lei do Tribunal Constitucional alemão) e, principalmente, do desenho das competências que a Constituição portuguesa atribuiu ao Tribunal Constitucional (art. 282/Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade), o nosso legislador extrapolou as suas musas e adotou com todo o vigor a conotação vinculativa, acolhendo-a em terrenos em que não é reconhecida em outros ordenamentos, a exemplo da declaratória de constitucionalidade, hipótese que, tanto no panorama norte-americano, como no germânico14, no italiano15 e no português16, é autorizado o reexame da matéria em qualquer outro tempo e caso. Destarte, resta a este passo, examinar a abrangência do efeito vinculante, como entre nós plasmado pelo constituinte revisor de 2004, identificar a quem vincula, qual a área de domínio desta vinculação, quais os seus limites temporais, enfim, qual o seu modus operandi. E, para tanto, impende, antes, visitar experiências e soluções anteriores, no segmento do Direito Comparado. 12 Trata-se do modelo norte-americano de controle de constitucionalidade, controle de natureza jurisdicional, que encontra sua certidão de nascimento no célebre caso Marbury v Madison, na corte do Juiz Marshall (1803). 13 E.C. n. 3/93 14 Na Alemanha é polêmico o tema atinente à eficácia das decisões que afirmam a constitucionalidade de norma que passa pelo processo de controle, questão ainda bastante controvertida e que não alcançou consenso. (V. a respeito Rui Medeiros, A DECISÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1999. 15 Hoje, ..., é quase unânime a tese de que as decisões de constitucionalidade não produzem efeitos em processos ulteriores- Rui Medeiros, A decisão de Inconstitucionalidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1999, p. 785. 16 Em território português também não há efeito preclusivo em relação às decisões que rejeitam a argüição de inconstitucionalidade. Isto quer dizer que, reconhecida a constitucionalidade da norma atacada, a questão pode vir a ser ressuscitada pelo mesmo requerente ou por outro. (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4a Ed., Portugal, Almedina, p. 993. Ver, neste sentido, ainda, L. Nunes de Almeida, A Justiça Constitucional no Quadro das Funções do Estado, in VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, José Manuel Cardoso da Costa, A Justiça Constitucional, p. 59). 8 Em ambiente norte-americano, a regra do stare decisis não detém o poder de impor os pronunciamentos de declaração de inconstitucionalidade ao legislador, castrando-o quanto à competência, que lhe é própria, de produzir novo direito (lei), até porque isto viria lesar a separação de poderes, e nem mesmo de cercear a liberdade da Corte que proferiu a decisão de rever O efeito vinculante no Direito Comparado casos em que a matéria contida na lei inquinada de inconstitucionalidade venha a constituir objeto de nova análise. Esta observação, aliás, vem registrada até por Kelsen, o pai do sistema europeu de justiça constitucional, em trabalho que dedica ao exame comparativo, do controlede constitucionalidade, dissecando as linhas de discrímen entre o modelo austríaco e o americano17. Neste diapasão é que registra Kelsen o fato de que referido princípio não pode ser concebido como absoluto, pois as questões constitucionais são sempre passíveis de reexame. Daí, a viabilidade de detectarmos decisões da Suprema Corte entendendo, num caso, uma determinada lei não conforme à Constituição e, em outro, pronunciamento em sentido oposto. E mais ainda, não opera o stare decisis sobre o domínio da coisa julgada, que fica a salvo dos novos posicionamentos da Suprema Corte. De se anotar, ainda, que em território norte-americano já se afigura robusto o entendimento de que o precedente não pode excluir a especificidade de interpretação e aplicação das normas constitucionais de conformidade com as exigências reais da sociedade, implicando, pois, a admissibilidade do que vem a ser denominado de overruling18. Na Alemanha, o efeito vinculante das decisões de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional atinge, por determinação legal, os órgãos constitucionais da Federação e dos Länder, os tribunais e as autoridades (§ 31, Abs.1 da BverfGG Lei do Tribunal Constitucional). Não se estende aos particulares e há razoável consenso no sentido de que não pode atingir o legislador, impedindo-o de reproduzir norma declarada inconstitucional pela Corte de Karlsruhe19. Aliás, identifica-se neste panorama plena consciência quanto ao efeito perverso do excessivo alongamento do efeito vinculante que acaba por produzir a estagnação do Direito e, mais particularmente, do Direito Constitucional, dinâmico. Daí a polêmica envolvendo a auto-vinculação da Corte as suas próprias decisões, 17 Le controle de constitutionnalité des lois, Hans Kelsen, in Revue Française de Droit Constitutionnel, 1990, n. 1, p. 17. 18 Rui Medeiros, op. cit., p. 813. 19 É acentuada, na realidade, a polêmica acerca da proibição do legislador alemão de reproduzir norma declarada inconstitucional pelo Tribunal (§ 31, Abs.1 da BverfGG). Muitos dos que apóiam a tese da vedação buscam respaldo nos caracteres de coisa julgada e força de lei (§ 31, Abs.2 da BverfGG) atribuídos à decisão de inconstitucionalidade. De qualquer forma, há consenso pacífico sobre a viabilidade de reorientação legislativa e reprodução das normas atingidas por decisão de inconstitucionalidade por força do limite temporal imposto a tais pronunciamentos. Ver ainda, Rui Medeiros, A decisão de Inconstitucionalidade, op. cit., p. 778 e seguintes. 9 o que implica em fator redutor do potencial de inovação da justiça constitucional20, o que seria absurdo. É de se registrar, de outra parte, preocupação com a exigência de limites temporais para o efeito vinculante, porquanto as situações mudam, as demandas sociais evoluem e a realidade constitucional passa a reclamar atenção. Sem atingir a qualidade de coisa julgada, limites temporais são impostos ao efeito vinculante, liberando o legislador e a própria Corte Constitucional da observância de decisões anteriores; isto para impedir um processo inevitável de petrificação da própria constituição21. O cenário italiano em matéria de controle de constitucionalidade é comandado a partir do art. 136 da Constituição, que se limita a assegurar eficácia erga omnes às decisões que acolhem a inconstitucionalidade de lei ou ato com força de lei. Coube à doutrina e à jurisprudência explicitar o alcance da decisão de inconstitucionalidade, em especial no que toca à posição do legislador e sua liberdade de lege ferrenda. Assim é que, hoje, predomina o entendimento de que a sentença de acolhimento da inconstitucionalidade veda ao legislador a atividade de reprodução de norma idêntica à atacada. Porém esta proibição não se estende para o futuro. Neste sentido, a anotação de Rui Medeiros, com esteio nas lições de Asessandro Pizzorusso: Para o futuro, (desde que não se aplicando as mesmas fattispecies) ..., o legislador é juridicamente livre de aprovar nova regulamentação idêntica, embora correndo o risco de a nova lei ser declarada inconstitucional pelos mesmos motivos22. Portugal, na realidade, é que inspirou a marcha ascendente e progressiva do caráter vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal entre nós. Motivado pelo tratamento que o texto constitucional lusitano (Constituição/art.282)23 ofereceu ao tema, avançou o constituinte em território doméstico, culminando com a edição da E.C. n. 45/2004. Assim é que, em razão do disposto no já referido art. 282, inciso 1, da Constituição portuguesa, às decisões declaratórias de inconstitucionalidade foi atribuída força obrigatória geral, fórmula sintetizada pela doutrina e jurisprudência na idéia de vinculação geral, impondo-se ao legislador e ao próprio Tribunal Constitucional24. Neste clima, entendeu-se que ao legislador restara vedada a reprodução de lei considerada inconstitucional, salvo se esta inconstitucionalidade tiver sido operada por força de vício formal e a nova norma venha a observar os preceitos constitucionais antes lesados. 20 Ver neste sentido, Rui Medeiros, A decisão de Inconstitucionalidade, op. cit., p. 773 e seguintes. 21 Rui Medeiros, A decisão de Inconstitucionalidade, op. cit., p. 780. 22 Id.ibid. 23 Art. 282 (Constituição portuguesa, com o aditamento da Reforma de 1982): I. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado. ... in Constituição da República Portuguesa, Coimbra Editora, 6a ed., 2002. grifo nosso. 24 Ver neste sentido J.J. Canotilho, op. cit., p. 983. 10 Conquanto ainda robusta e respaldada em respeitável doutrina25, a tese da vinculação do legislador vem encontrando cada vez mais opositores26. Isto, em razão do prejuízo que a proibição da reprodução de normas atingidas por inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal Constitucional imporia à própria evolução do Direito, conduzindo, ademais, a uma canonização da interpretação acolhida27 por esse e introduzindo, assim, um flagrante desequilíbrio entre o Legislativo e a Corte Constitucional. Nessa esteira, o registro de Rui Medeiros da inviabilidade jurídica de qualquer proibição de reprodução da norma declarada inconstitucional, porquanto o legislador não se encontra assim numa posição subordinada em face do Tribunal Constitucional. Pelo contrário, a admissibilidade da renovação do acto conduz a uma solução de equilíbrio entre os dois órgãos de soberania28. A Constituição brasileira de 5 de outubro de 1988 impactou pelo privilegiado tratamento cometido aos direitos fundamentais, promovendo o seu alongamento não apenas no que toca à enumeração de direitos (alojando as, hoje célebres, três gerações) como, ainda, introduzindo um novo rol de garantias, concretizadas por ações judiciais que, de uma parte, propiciaram o polêmico fenômeno da politização da Efeito vinculante na Constituição brasileira O impacto da E.C. n. 45/2004 Justiça29 e, de outra, abriram a porta para a invasão do Poder Judiciário por um número significativo de demandas girando em torno dos novos mecanismos de defesa das liberdades.O efeito vinculante a ornamentar as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal tem por direção, exatamente, desarticular esta explosão de litigiosidade, afastando do Judiciário o ônus de vir a se manifestar em centenas de casos absolutamente semelhantes. Buscou-se, para tanto, a técnica do precedente, bloqueando-se a possibilidade de ingresso de novos casos similares 25 Ver neste sentido: Jorge Miranda, Canotilho, etc. 26 Nessa linha o magistério de Paulo Otero (Ensaio sobre o caso julgado Inconstitucional, Lisboa, 1993), que registra a inoportunidade da tese. Esta, a seu ver, implicaria numa preclusão da liberdade conformadora do legislador e numa dominação de elevado risco do Tribunal Constitucional. E, deste mesmo sentir Luís Nunes de Almeida (Les Effets des arretes du Tribunal Constitutionnelle au Portugal, in La Justice Constitutionnele, Paris, 1989.) 27 Rui Medeiros, op. cit., p. 826. 28 Id. p. 870 29 A politização do Judiciário ou judicialização da política, fenômeno que vem despertando a atenção dos especialistas e que se manifestou de forma mais evidente após o advento da Constituição Federal de 1988 implica no transporte de questões políticas para a esfera judicial. Como o magistrado, uma vez acionado, deve se manifestar sobre os casos submetidos a sua apreciação, a inserção dos novos instrumentos de defesa dos direitos fundamentais (ações civis públicas, mandados de segurança coletivos, o mandado de injunção, a omissão legislativa) ensejaram um infindar de litígios muitos extremamente semelhantes, ingressando em esfera judicial. O sistema de controle de constitucionalidade que o constituinte buscou aperfeiçoar, a seu turno, contribuiu para esta avalanche de ações a assolar o Poder Judiciário. 11 aos já decididos pelo Supremo Tribunal Federal e criou-se uma ligadura irremovível das instâncias inferiores a pronunciamentos do Excelso Pretório. Esta obstrução iniciou sua trajetória com a promulgação da Emenda Constitucional n. 3/1993, que introduziu a ação declaratória de constitucionalidade e uma novíssima figura no campo da tutela dos direitos fundamentais: a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Em particular, no tocante à ação declaratória de constitucionalidade, atribuiu às decisões definitivas de mérito eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo (C.F. § 2º, art. 102). Em 1999, foram editadas as Leis de n. 9.868, de 10 de novembro30, e 9.882, de 03 de dezembro, configurando este último texto a regulamentação do processo e do julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, que a já referida E.C. n. 3/93 idealizara, por força da inserção do § 1º, ao artigo 102, da Constituição Federal. E, por via infra- constitucional, o documento acabou estendendo o efeito vinculante ao campo da argüição de descumprimento de preceito fundamental, estatuindo no § 3º do seu art. 10: A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público. Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004 a redação do assinalado § 2º, art. 102 da Constituição passou a acoplar efeito vinculante às decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, (que) produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. E, progredindo nesta empreitada, por via da inserção do art. 103-A fixou o desenho da nova figura jurídica: a súmula vinculante: O Supremo Tribunal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. Pois bem, da mais breve incursão neste quadro da vinculação, idealizado pelo constituinte doméstico, alguns registros evidenciam-se desde logo: (1) a inequívoca tendência em se adotar o modelo europeu de controle de constitucionalidade, erigindo-se o Supremo Tribunal Federal à Corte Constitucional; 30 Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. 12 (2) não há, entre nós, de que questionar se as decisões proferidas pelo STF, em sede de controle de constitucionalidade, vinculam a atividade do legislador. Este em nenhum momento foi abarcado pelo constituinte que, de forma clara, exige a observância dos pronunciamentos vinculantes, apenas e tão somente, por parte do Poder Judiciário e dos órgãos do Poder Executivo, nas três esferas de governo. Nada obsta, daí, que o legislador venha a reproduzir norma entendida inconstitucional pelo STF; (3) deixou o constituinte de constitucionalizar o efeito vinculante que a Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999, cometeu à decisão prolatada em argüição de descumprimento de preceito fundamental (§ 3º, art. 10). Parece- nos, portanto, revogada esta regra, porquanto não pode vir a ser recepcionada pelo novo ordenamento, afigurando-se, ademais, incompatível com esta. É que esta qualificação de vinculante às decisões judiciais é acoplada em caráter especialíssimo pelo constituinte, que a concretiza de forma explícita nas hipóteses que contempla expressamente. Por comparecer como conotação peculiar e extraordinária não admite interpretações flexíveis, ampliadoras, nem por parte do legislador e nem mesmo para o aplicador dos princípios contidos no Estatuto Fundamental. O constituinte revisional de 2004 poderia ter elevado a vinculação, preconizada na Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999, a nível constitucional, convalidando a interferência do texto infra- constitucional. Não o fez; ao invés ampliou o domínio de abrangência da idéia de vinculação e deixou fora do seu círculo a hipótese da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Sob a nova incursão do constituinte, destarte, o indigitado preceito do § 3º, art. 10, da Lei n. 9 882/99 não detém condições de resistência e, conseqüentemente, de sobrevivência; (4) contrariamente ao entendimento dominante no universo da prática da vinculação31, o constituinte brasileiro insiste em resguardar o efeito vinculante para as decisões proferidas em ações declaratórias de constitucionalidade, degradando o instituto e transformando-o em mecanismo de preservação do poder, à disposição do governo para impedir a evolução jurisprudencial nas matérias de seu interesse; (5) a vinculação não atinge os particulares. Estes, a qualquer tempo, podem ressuscitar a questão, o que na prática apresenta-se perfeitamente viável no espectro das interpretações conforme à Constituição. De fato se, de uma parte, é certo que a invalidação da lei ou ato normativo inquinado de inconstitucional ocasiona um quadro de inexistência da referida lei ou ato o que inviabiliza que este venha a servir de superfície, no futuro, para qualquer nova situação jurídica, de outra, também é verdade que, em se tratando de mera interpretação conforme, esta poderá sofrer alteração por parte dos particulares, até mesmopor via de mediação ou arbitragem. 31 Ver acima e, notadamente, as notas de ns. 6, 7 e 8 deste artigo. 13 Aspecto sensível no plano da eficácia vinculante toca de perto a sua limitação no tempo. Não se questiona aqui a prevalência da coisa julgada e nem o efeito erga omnes, aquela, consubstanciando-se em caráter específico da decisão proferida em sede judiciária e este próprio das decisões do sistema de controle de constitucionalidade concentrado. Já que as condições da vida em sociedade são mutáveis e considerando, ademais, que no acelerado processo de desenvolvimento do mundo contemporâneo emergem a toda hora reclamos e novas situações a solicitar a lente do jurista, do legislador e do Judiciário, impende verificar, em que medida este efeito vinculante deve ou pode resistir ao tempo; em outras palavras, mister é investigar se há limites temporais a obstar a perpetuidade da vinculação e petrificar o direito. E, nesta perspectiva, impõe-se, a nosso ver, a adoção das fórmulas já consagradas em outros ordenamentos, autorizando-se, para o futuro, a reformulação dos posicionamentos adotados e agora vinculantes do STF, mormente no plano das interpretações conformes, onde não se dá a invalidação plena e fatal do texto inquinado de inconstitucional, oferecendo-se-lhe uma interpretação mais próxima da norma fundamental. O tema da prevalência no tempo das decisões do Supremo Tribunal Federal detecta questionamentos mais inquietantes no campo de outra figura inovadora do constituinte revisor de 2004: a súmula vinculante que a seguir, será objeto do nosso exame. Instituto estreante no campo processual, esta figura vem apresentada pelo constituinte com contornos definidos, impondo-se-lhe, para a edição, tanto requisitos de forma quorum qualificado de 2/3 dos membros do STF, como ainda de fundo (a) reiteradas decisões sobre matéria constitucional; (b) controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública sobre a matéria; A súmula vinculante (c) grave insegurança jurídica; (d) relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Há, ainda, evidente limitação quanto à matéria versada e inviabilizada, restando a sua elaboração sobre temário que não envolva questões constitucionais. Importa, contudo, registrar que a construção desta figura toda particular é que acaba por forçar a adoção entre nós do precedente, buscando o seu robustecimento e valorização. E, mais, ao desenhá-la, a Constituição promoveu o alongamento da idéia de vinculação, transbordando do espectro do controle de constitucionalidade para alcançar casos à margem do denominado judicial review. Com efeito, preceitua o art. 103-A da Constituição, introduzido pela E.C. n. 45/2004: Art. 103-A: O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação 14 na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º : A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º: Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º: Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. Ora, esta idéia emerge dentro de um contexto circunscrito pela imposição de limites materiais, temporais e dos requisitos de fundo e de forma que devem ser observados a expectativa é a de que efetivamente o sejam para a sua confecção. Ainda assim, significativa a inquietação, porquanto, a par de novidadeira, representa mecanismo otimizador da estagnação da jurisprudência e, mais que isto, relevante fator repressivo e inibidor do talento construtivo que lhe é próprio e que a posiciona como força motriz na renovação do direito. A nova figura, como acima anotado, não opera no campo do controle de constitucionalidade; ao menos, aparentemente, não foi idealizada para incidir sobre esta esfera, principalmente no concentrado. No entanto, pode ser aplicada em sede de controle difuso, pois esta parece ser a perspectiva delineada no § 1º do art. 103-A, ao prever: A súmula terá por objetivo a validade,...... e a eficácia de normas determinadas. Assim é que, por força sumular poderá ser declarada a invalidade de normas ou, ainda, cessada sua eficácia, o que, em verdade somente é viável em terreno de controle de constitucionalidade. De outra parte, há inequívoca interrogação a respeito do potencial vinculativo desta espécie de súmula. A quem vincula? Por quanto tempo vincula? Da leitura do texto constitucional depreende-se como razoavelmente correto o fato de que este vínculo jurídico-constitucional não atinge o legislador, que mantém ampla liberdade de reproduzir normas similares àquelas atacadas, objeto de súmula, como ainda não alcança o particular. Inviabiliza uma atuação inovadora tão só em relação ao Poder Judiciário incluindo a Corte que a editou e aos órgãos do Poder Executivo, nas três esferas governamentais. Neste contexto, pois, não há óbices à reedição das normas pelo Poder Legislativo e, também, é viável sua aplicação, por exemplo, via arbitragem ou técnicas de mediação. A obstrução diz respeito única e exclusivamente aos órgãos do Poder Judiciário e aos da Administração Pública cuja atuação, contrariando à súmula, resta vedada. 15 A questão atinente à limitação no tempo, a própria Emenda Constitucional 45/2004 contemplou, preconizando a possibilidade de revisão e cancelamento (art. 103-A caput e § 2º), tanto por provocação como, ainda, pelo próprio órgão emissor, isto é o Supremo Tribunal Federal. É certo que para sua remodelação cuidou o constituinte de exigir procedimento próprio e atribuiu a tarefa ao legislador ordinário, o que, em última análise, implica que, estabelecida a súmula vinculante, esta só possa se submeter a processo de revisão após a edição do texto regulamentador, restando na dependência da operosidade do legislador que, também, poderá permanecer omisso e hibernando por um bom período. Ponto de acentuada polêmica, contudo, constitui a fórmula indicada para a fixação da súmula vinculante. Isto porque, se as hipóteses de revisão e cancelamento foram inequivocamente subordinadas à regência de lei ordinária posterior, em relação ao tratamento cometido à técnica de aprovação o constituinte não logrou este grau de clareza. Em verdade, previu dois diferentesprocedimentos para a sua aprovação: (1) de ofício; (2) por provocação. No tocante a segunda modalidade, por provocação, legitimou os titulares da ação direta genérica de inconstitucionalidade (art. 103) para a sua propositura e advertiu para a possibilidade de o legislador ordinário vir a disciplinar todo o procedimento, ampliando ou reduzindo o campo do ajuizamento de propostas de novas súmulas e, até mesmo, de revisão e cancelamento destas. Aliás, dispondo sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei (art. 103-A , § 2º), acolheu o constituinte a modalidade de construção de norma constitucional conhecida como de aplicabilidade imediata e eficácia contida32, o que, a nosso ver, permite a imediata operabilidade desta hipótese, viabilizando a apreciação de propostas de aprovação desde logo, ainda que inexista o documento legal de regulamentação. Advindo este, todavia, o procedimento de provocação a ele deverá se sujeitar, observando as novas condições impostas. A aprovação de ofício, por outro turno, não nos parece tenha curvado o constituinte à edição de norma regulamentadora. O dispositivo constitucional apresenta-se auto-executável, impondo-se a ligadura à lei posterior tão somente para os processos revisionais. Nada obsta, contudo, que a própria Corte Superior, por resolução, venha a disciplinar os trâmites da aprovação, sistematizando o procedimento. Por derradeiro, demanda atenção o especialíssimo preceito do art. 8º, da E.C. n. 45/2004, que autoriza o Supremo a outorgar o 32 Na doutrina clássica norte-americana, as normas constitucionais podem se apresentar auto-excutáveis ou não-auto-executáveis. São os célebres tipos: mandatory provisions e as derectory provisions. José Afonso da Silva é que, inspirado pelas lições do italiano Vezio Crisafulli (La Costituzione e lê sue disposizioni di princípio, Milão, Giuffrè Ed., 1952, acabou apresentando uma tipologia revolucionária apontando: as normas de eficácia plena (auto-executáveis) e mais duas categorias: as de eficácia contida e as de eficácia limitada ou reduzida (Aplicabilidade das Normas Constitucionais, São Paulo, RT Ed. , 1982.) 16 caráter vinculante a súmulas já em vigor, anteriores à constitucionalização da espécie. E para este particular escaninho, previu um procedimento de confirmação, individualizado e submetido às condições de forma e de fundo estabelecidos para a atividade de aprovação. Ainda aqui, não nos parece tenha demandado o constituinte a edição de lei a dispor sobre o processo de confirmação de súmulas, para fins de outorga da qualificação de vinculante. Certo, no entanto, se nos afigura a exigência de regulamentação especial, cuidando da respectiva tramitação, a ser editada pelo STF. De qualquer forma a atribuição de efeito vinculante às decisões do STF, ainda que em sede de controle de constitucionalidade, alinhada à nova modelagem assegurada às súmulas vinculante, constituem fatores que corroboram a visão de um processo de blindagem do Poder Judiciário, bloqueando o acesso a uma solução judicial dos litígios. Isto, de certo, ofende o standard da inafastabilidade do controle judicial, inscrito, pelo constituinte originário, no art. 5º, XXXV, da nossa Lei Maior, inicia um pernicioso percurso de petrificação do Direito, propiciando, assim, até uma involução do próprio Direito Constitucional, que avança por força da construção jurisprudencial produzida em panorama de controle de constitucionalidade e, enseja o desenvolvimento de outras receitas de solução da litigiosidade, mediante, por exemplo, mediação e arbitragem. III - A nova estrutura do Poder Judiciário Como demonstrado ao início deste estudo, a Reforma concretizada por via da E.C. n. 45/2004, sintetiza um verdadeiro esforço de reengenharia, perseguindo, por força da introdução de novas estruturas e rearranjos no campo da atribuição de competências, Reengenharia do Poder Judiciário assegurar ao Judiciário maior agilidade no desempenho de sua tarefa básica, qual seja, a prestação jurisdicional, e, concomitantemente, oferecer-lhe o instrumental apto a resgatar a idéia de lisura e da desejada densidade quanto à segurança jurídica que deve impregnar seus pronunciamentos. Perquirindo o universo da referida reforma constitucional, o analista, de fato, vem a se surpreender com o volume e a qualidade das novas figuras estreantes: os novos órgãos; a fixação de novos princípios; o rompimento de velhos tabus, a exemplo da sigilosidade das decisões de caráter administrativo que, agora, passam a se sujeitar, a seu turno, ao standard da transparência (Constituição, art. 93, IX e X); a projeção de uma Justiça mais próxima do cidadão, instalando-se a Justiça itinerante (Constituição, arts.107, § 2º, 115, § 1º, 125, § 7º) e, acolhendo uma forte linha de descentralização, as Câmaras regionais (Constituição, arts.107, § 3º, 115, § 2º, 125, § 6º); uma Justiça tecnicamente mais preparada 17 (Constituição, arts. 105, p.ú., I, 111-A, § 2º, I, 93, IV), mais célere, sob a permanente vigilância da sociedade e, em especial, de organismos superiores. Contudo, a leitura mais detida impacta pela periculosidade das inovações, dentre as quais, um considerável número pode conduzir a sérias lesões à segurança jurídica, em razão do rompimento de princípios já consagrados no plano constitucional, como é o caso do respeito à coisa julgada (Constituição, art. 5º, XXXVI), a exigência de duplo grau de jurisdição e o dogma do juiz natural. Isto implica, afinal, numa excêntrica suspeita de que a nova configuração judiciária não passaria de um falso front para medidas autoritárias e invasivas, pois que viriam a afrontar o desenho do Estado de Direito nos moldes plasmados pelo constituinte originário; chegariam, até mesmo, a aniquilá-lo. Pois bem, a última parte desta análise, focada sobre a reorientação constitucional a incidir sobre o Poder Judiciário, ensejando sua revitalização, será tratada em dois diferentes planos: o primeiro buscando uma sucinta apresentação da inovadora arquitetura utilizada para oferecer solidez e modernidade à estrutura do sistema judiciário, reservando para um segundo tópico o exame dos pontos de maior complexidade e que, sob a ótica constitucional, importam em elevado risco à preservação do modelo acolhido pela Constituição de 1988, o do Estado de Direito. Desde a primeira das constituições republicanas a de 1891, a figura do Supremo Tribunal Federal33 preside, em território doméstico, a pirâmide do Judiciário, consagrando-se mesmo como cúpula deste Poder. Revolucionária na estruturação do Judiciário, a Constituição de 1988 introduziu novas figuras, preservando, no entanto, a postura sobranceira do STF. Criou o Superior Tribunal de Justiça, mediante processo de transformação do antigo Tribunal Federal Poder Judiciário. Órgãos e competências da nova estrutura de Recursos e os juizados especiais, no campo cível (pequenas causas) e criminal (infrações de menor potencial ofensivo). É verdade, também, que a E.C. n. 3/93 criou a ação declaratória de constitucionalidade, em tudo similar à draconiana avocatória34; concretamente, porém, restou assegurada a apreciação judicial de qualquer demanda, podendo esta galgar o mais elevado degrau desde que se discutisse questão constitucional. E tudo isto, atendido o cânone do devido processo legal, princípio altamente densificado, por compreender no seu bojo aampla defesa, o juiz natural, o contraditório, o duplo grau, enfim a legalidade na sua amplitude democrática. 33 Ainda que a Constituição de 1934 tenha passado a denominá-lo de Corte Suprema, retomando a clássica nomenclatura de Supremo Tribunal Federal com o advento da Carta de 1937, a verdade é que em todos os momentos da história constitucional republicana brasileira coube ao Supremo Tribunal Federal este honroso posto de expoente máximo no plano jurisdicional. 34 A ação declaratória de constitucionalidade vem analisada na Parte II deste estudo dedicado à E.C. n. 45/2004. 18 Poder Judiciário Configuração (Constituição de 5.10.1988) Supremo Tribunal Federal Superior Tribunal de Justiça Conselho da Justiça Federal Tribunal Superior do Trabalho Tribunal Superior Eleitoral Superior Tribunal Militar3 (Justiça federal) Tribunal de Justiça ou Tribunal de Justiça Militar (efetivo da PM acima de 20.000 integrantes) Tribunal de Justiça (Justiça estadual) + Tribunais de Alçada Tribunais Regionais Federais (Justiça federal) Tribunais Regionais do Trabalho (Justiça federal) Tribunais Regionais Eleitorais (Justiça federal) Conselhos de Justiça Juízes de Direito (Justiça estadual) + Juizados de Pequenas causas Cíveis e criminais Varas da Justiça Federal (Justiça federal + Juizados de Pequenas causas Varas da Justiça do Trabalho (Justiça federal) Justiça Eleitoral (Justiça federal) Auditorias Militares (Justiça federal) Justiça especializada do Estado Justiça Comum Justiça Especializada Federal A revisão constitucional de 2004 alterou, significativamente, esta estrutura, introduzindo na modelagem original o Conselho Nacional de Justiça, composto por quinze (15) membros, seis dos quais não pertencentes aos quadros da magistratura35, com a competência do controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes,.... (art. 103-B, § 4º). Ora, conquanto o novo colegiado seja presidido por Ministro do Supremo Tribunal Federal e a esta Corte seja cometida a apreciação das causas contra ele propostas, a função de controle com que foi agraciado não deixa dúvidas do pedestal a que este novo organismo foi erigido, passando a ocupar na pirâmide judiciária o seu ápice. Deduz-se, daí, um novo desenho arquitetônico para o Poder Judiciário, superfície onde se identifica: 3 Em área estadual, também, pode (como de fato o foi ) ser criada uma linha especializada na área militar: a Justiça Militar estadual, de primeiro e segundo grau (C.F. art. 125, § 3º). 35 Art. 103-B, caput, da Constituição. 19 Poder Judiciário (Constituição de 5.10.1988 com a redação da E.C. n. 45/2004) Conselho Nacional de Justiça Supremo Tribunal Federal Conselho da Justiça Federal (competência correicional e decisões com caráter vinculante)36 Superior Tribunal de Justiça Conselho Superior da Justiça do Trabalho (competência correicional e decisões com caráter vinculante)37 Tribunal Superior do Trabalho Tribunal Superior Eleitoral Superior Tribunal Militar (Justiça federal) Tribunal de Justiça ou Tribunal de Justiça Militar (efetivo da PM acima de 20.000 integrantes) Tribunal de Justiça (Justiça estadual) + Câmaras Regionais Tribunais Regionais Federais (Justiça federal) + Câmaras Regionais Tribunais Regionais do Trabalho (Justiça federal) + Câmaras Regionais Tribunais Regionais Eleitorais (Justiça federal) Conselhos de Justiça Presididos por Juiz de Direito + Juízes de Direito Juízes de Direito (Justiça estadual) + Juizados especiais + Justiça itinerante + Varas especializadas para questões agrárias. Varas da Justiça Federal (Justiça federal + Juizados especiais + Justiça itinerante Varas da Justiça do Trabalho (Justiça federal) + Justiça itinerante Justiça Eleitoral (Justiça federal) Auditorias Militares (Justiça federal) Justiça Especializada do Estado Justiça Comum Justiça Especializada Federal Mais ainda, como acima ilustrado, no universo das linhas da justiça federal, atribuiu competência correicional aos Conselhos (Conselho da Justiça Federal e Conselho Superior da Justiça do Trabalho, este recém criado38), propiciando, ainda, às suas decisões caráter vinculante39, robustecendo a idéia de que o Poder Judiciário passará a vivenciar um clima de permanente controle superior, o que, não resta dúvida, investe contra a independência do magistrado40, podendo 36 Constituição , Art. 105, p.ú., II. 37 Constituição, Art. 112, § 2º, II. 38 Constituição, Art. 111, § 2º, II preceito introduzido pela E.C. 45/2004. 39 O Conselho da Justiça Federal, na idealização original (parágrafo único do art. 105, detinha meras funções de supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Federal de primeiro e segundo graus. Isto quer dizer que o constituinte lhe propiciara tarefas de ordem técnica (supervisão administrativa e orçamentária) e de mero órgão de apoio para o próprio Tribunal. 40 A tônica da independência do Poder Judiciário já foi suscitada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, que ajuizou Ação Direta de inconstitucionalidade, rebelando-se contra a fórmula utilizada na criação do Conselho Nacional de Justiça, atacando-a por entendê-la antagônica ao princípio constitucional da 20 conduzir a sérios desvios na prestação jurisdicional, que impõe a observância da cláusula do devido processo legal. Ainda, no escaninho da Justiça Federal, no campo da Justiça do Trabalho, admitiu o constituinte reformador que os juízes de direito (dos quadros da justiça estadual) possam apreciar e decidir litígios nas comarcas em que não haja vara especializada, de natureza trabalhista. (art. 112/Constituição). De relevância, a nosso ver, a determinação constitucional tendente a ampliar o espectro de atendimento do Poder Judiciário. A Justiça mais perto do cidadão, parece consubstanciar-se no elemento vetorial desta inovadora perspectiva atinente à introdução obrigatória do juiz itinerante, da viabilização de o juiz de direito integrante da magistratura estadual vir a apreciar causas de perfil trabalhista onde inexista Justiça do Trabalho e do sistema de descentralização (criação de Câmaras regionais) proposto em caráter facultativo, tanto em nível federal, como, ainda no estadual41. Mais ainda, nesta linha, a imposição aos Tribunais de Justiça (esfera estadual) de instalação de varas especializadas, com competência exclusiva para as questões agrárias42 (art. 126, caput). Em sede de justiça estadual, importa anotar, ainda: (1) A extinção dos Tribunais de Alçada (art. 4º da E.C. n. 45/2004), atendendo-se a uma perspectiva já antiga dos Estados da federação brasileira. Aliás, no panorama paulista, a Emenda ConstitucionalEstadual n. 08, de 20 de maio de 1999, já previa o fim dos Tribunais de Alçada no Estado de São Paulo, excluindo-os da estrutura do Poder Judiciário estadual. Suspensa, no entanto, a nova redação dada ao art. 54 da Constituição paulista, por força da Adin n. 2 011- 1, até o advento da Reforma, veiculada por Emenda à Constituição Federal, o quadro dos Tribunais de Alçada permaneceu inalterado. Agora, sob reorientação da Constituição Federal, os Tribunais de Justiça estaduais devem, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contados da promulgação da E.C. 45/2004 (6.06.2005), promover a integração dos quadros dos Tribunais de Alçada na sua própria estrutura, elevando os juízes, membros daquelas Cortes, a posto de desembargador43. (2) A inovação na estrutura da justiça militar estadual. Esta foi alvo de reformulação mais significativa. De fato, nos antigos moldes, era preconizada uma primeira instância atribuída aos Conselhos de Justiça e uma segunda instância, um grau recursal, função cometida ao próprio Tribunal de Justiça do Estado ou, nas hipóteses de efetivo, da polícia militar, superior a vinte independência dos poderes, inerente ao standard da separação de poderes, entre nós acolhido. Não há, até o momento, notícia de liminar. 41 Ver neste sentido, os artigos da C.F. acima citados: arts.107, § 3º, 115, § 2º, 125, § 6º. 42 A Constituição do Estado de São Paulo já prevê a designação de juiz de direito com competência exclusiva para questões agrárias (art. 86). 43 Art. 4º, parágrafo único da E.C. n. 45/2004. 21 mil integrantes, a Tribunais de Justiça Militar, que poderiam vir a ser criados. O novo modelo altera esta estrutura. E o faz por via de um processo de esvaziamento, retirando-lhe competências. Em verdade, a reformulação acabou constitucionalizando medida já adotada por via da Lei n. 9 299, de 7 de agosto de 1996, que retirou da apreciação militar os crimes dolosos contra a vida cometidos contra civil44. Na nova configuração, no primeiro grau, posicionam-se juízes de direito e Conselhos de Justiça, estes sempre sob a presidência de juiz de direito, mantida, porém, em instância superior, o Tribunal de Justiça Militar ou, na ausência desse, o Tribunal de Justiça. (C.F. art. 125, § 3º). Nessa esteira, poder-se-ia ilustrar referida reorganização como infra esquematizado: Justiça militar estadual Antes da E.C. n. 45/2004 Depois da E.C. n. 45/2004 Tribunal de Justiça ou Tribunal de Justiça Militar (efetivo da PM acima de 20.000 integrantes) Tribunal de Justiça ou Tribunal de Justiça Militar (efetivo da PM acima de 20.000 integrantes) JURI Conselhos de Justiça Conselhos de Justiça Presididos por Juiz de Direito + Juízes de Direito (2.1.) O mecanismo de atuação oferecido a esta nova estrutura, decorrente da revisão constitucional, é apreendido a partir da análise das competências, tema que passa a atender a renovadas regras. Com efeito, a primeira inovação neste domínio é a inserção da figura do Júri, que, em se tratando de civil, como vítima, desloca, chamando a si, a atribuição anteriormente cometida à Justiça Militar de julgar os militares dos Estados nos crimes militares definidos em lei.... Preservada restou, todavia, a tarefa cometida ao Tribunal, de decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças (C.F., art. 125, § 4º - preceito remodelado pela E.C. n. 45/2004). 44 A Lei n. 9 299, de 7 de agosto de 1996 alterou os Decretos-leis n. 1.001 e 1.002, de 21 de outubro de 1969 Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, criando polêmica e uma série de demandas girando em torno da viabilidade de, por via de lei, alterar competência preconizada em esfera constitucional. 22 (2.2.) Outro fator de impacto constitui a inserção da competência outorgada a juiz de direito, designado para atuar junto à Justiça Militar, para, singularmente, processar e julgar os crimes militares contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, restando aos Conselhos de Justiça, necessariamente presididos por juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares (C.F., art. 125, § 5º- preceito introduzido pela E.C. n. 45/2004) . O ponto nevrálgico da remodelação do Poder Judiciário, produto da E.C. n. 45/2004, parece repousar, essencialmente na configuração dos Conselhos. A estes, aliás, como acima apontado, contemplou o constituinte revisor com poderes de Os Conselhos. Tratamento constitucional controle que vão além da mera competência fiscalizatória, de uma singela vigilância, para alcançar o status de verdadeira postura de dominação. Controle, na acepção do control americano, ou seja, um sentido de comando. Assim, o primeiro problema a enfrentar diz respeito à previsão arquitetônica do Conselho Nacional de Justiça, conforme delineamento do art. 103-B, que o idealiza composto por quinze membros, seis dentre os quais não integrantes das carreiras da magistratura. Até aí, desde que inexistisse o poder de controle (cf. art. 103-B, § 4º), não haveria inquietação, porque a maioria do colegiado (9 membros) é originária, de fato, do ambiente jurisdicional, e de meras tarefas fiscalizatórias poderia vir a ser encarregado. O tema ganha preponderância, no entanto, no momento em que se verifica a presença desta função de controle (comando/dominação) nas mãos de personagens não integrantes do Poder Judiciário, abalando a idéia de independência do Poder, standard colocado a salvo da ingerência do Poder reformador por conta do art. 60, § 4º, da Constituição, que o erige à cláusula intocável, compondo o cerne fixo do nosso Estatuto Fundamental, no seio do princípio da separação dos poderes. E não há, parece-nos, como insistir em que indigitada regra do § 4º, do art. 103-B, traduza simples competência de supervisão. Se assim fosse, o constituinte, como o fez em outras matérias, teria utilizado os vocábulos vigilância ou fiscalização. Empregou, todavia, a expressão controle e foi além; contemplou este organismo com funções que, a este passo, o posicionam como a real cúpula do Judiciário45. Na realidade, da mais breve incursão no elenco de competências que o mesmo preceito do § 4º, do art. 103-B, insculpe no âmbito do poder de controle, ressalta à evidência a soberana postura do CNJ, rompendo-se, em prol desta superioridade, cláusulas assecuratórias exatamente da independência do Poder Judiciário. Nesta linha, basta tentar compreender as duras tarefas que lhe foram conferidas por intermédio dos preceitos dos incisos III e V da já mencionada norma constitucional, in verbis: 45 Ver a nova configuração do Poder Judiciário, fls. deste trabalho. 23 C.F. art. 103-B, § 4º III receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ...podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria... ; ............................................................................................................ V rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;Ora, a par de ressuscitar a autoritária medida em que se consubstancia a avocatória digna, aliás, do entulho autoritário com que se convencionou adornar o célebre pacote de abril/1977 que a previa46 e que rompe com a idéia do duplo grau de jurisdição, própria do devido processo legal o novo texto atinge em cheio a força da coisa julgada, autorizando a revisão até mesmo de ofício de casos julgados há menos de um ano. Convém advertir, contudo, que não nos parece viável relativizar o princípio da certeza da coisa julgada, sob pena de subverter a segurança jurídica. Não são tais valores dotados de plasticidade e uma interpretação flexível viria a romper todo o sistema de tutela dos direitos fundamentais, sistema que, dúvida não há, envolve e tutela também os membros do Poder Judiciário. Demais disso, referida regra do inciso V, § 4º, art. 103-B, colide frontalmente com garantias de independência do Judiciário. Nesta esteira, basta lembrar a norma assecuratória de vitaliciedade (C.F.art. 95,I), que concebe a perda do cargo de juiz tão só mediante processo judicial. Daí porque, deve permanecer à margem do nosso ordenamento e carente de qualquer respaldo constitucional a inovação do revisor ao autorizar a ruptura da coisa julgada (rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano) e a reformulação de decisões de competência privativa e exclusiva do Judiciário. No entanto, forçoso convir que esta linha de elevada periculosidade quanto à sobrevivência de históricos e clássicos standards integrantes da idéia de Estado de Direito veio a ser privilegiada pela reforma constitucional de dezembro de 2004. Neste diapasão, basta examinar a remodelação do Conselho da Justiça Federal e do recém criado Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Os dois, idealizados sob idêntico padrão, conquistaram poderes correicionais, sobrepondo-se aos próprios Tribunais que integram. E mais que isto, contagiado pelo espírito vinculante, o constituinte revisor acoplou esta perversa conotação, também, às decisões emanadas destes colegiados, fortalecendo ainda mais a supremacia de sua postura na estrutura judicial, como, de fato, retro apontado. É verdade que a figura do Estado de Direito tem sido alvo, nos últimos anos, de sérios e relevantes ataques, até porque vem se 46 A avocatória foi medida preconizada pela Emenda Constitucional n. 7/77 à Constituição de 1967. 24 dilacerando e se apresentando frágil diante dos novos fatos sociais, situações e demandas sempre em dinâmico processo de mutação. Configura, contudo, o único modelo a oferecer suporte à concretização do regime democrático e, mais, foi o cânone adotado pelo constituinte de 1988 como moldura para a organização e a estrutura do Estado brasileiro. Destarte, enquanto não promovida a alteração deste padrão, por via de nova Constituição, indisponíveis à ação reformadora restam os seus postulados básicos, a exemplo do sistema de tutela dos direitos fundamentais, a separação de poderes, a preservação da segurança jurídica, etc. Fevereiro de 2005. B I B L I O G R A F I A BÁSICA ALMEIDA, L. Nunes de, A Justiça Constitucional no Quadro das Funções do Estado, in VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus. ALMEIDA, L. Nunes de, Les Effets des arretes du Tribunal Constitutionnelle au Portugal, in La Justice Constitutionnele, Paris, 1989. CANOTILHO, J.J. 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Neste espaço, destarte, pretende-se oferecer um mero exercício de reflexão sobre o produto da referida revisão do Estatuto Fundamental, examinando-se, numa primeira etapa, genericamente, os instrumentos criados para, a seguir, em dois diferentes e subseqüentes blocos, serem abordadas as espinhosas questões atinentes à súmula vinculante e às novas configurações dos tribunais. A efetiva concreção dos novos dispositivos processar-se-á, certamente, de forma paulatina, por intermédio de uma trajetória que deverá integrar a edição de leis, resoluções e o reiterado pronunciamento dos Tribunais. Enfim, o tempo é que irá comandar a sua fática consolidação. ABSTRACT: This work does not intend to present a whole view over the new constitutional rules introduced by the 45th. Amendment to the brazilian Constitution, that came into force at the end of the year of 2004. But it pretends to be a tool for those who seek informations about the recent changes suffered by the Brazilian Constitution (E.C. n. 45/2004), with new rules concerning the judiciary branch of our government. Indeed, this article offers a constitutional approach to some new instruments, new structure for the judiciary system, new commissions and new powers that the 45th. Amendment vested these new bodies and the old ones. The precedent effect (a brazilan kind of stare decisis) conceived as a new legal principle is one of the most important points of this specific Amendment and it is particularly studied here. And, on another hand, is to be discussed the expected results of this large amending constitutional process. What the author hopes is to show that the concrete performance of this new Amendment will depend upon a future and difficult debate and that the constitutionalists must prepare themselves for the new issues.
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