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O ENCILHAMENTO

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O ENCILHAMENTO
	
	“Terrível o apêrto, completos o acotovelamento e a igualdade; todas as classes da sociedade misturadas, confundidas, enoveladas, senadores, deputados, médicos de nota ou sem clínica, advogados bem reputados ou desprestigiosos, magistrados de fama, militares, um mundo de desconhecidos; homens vindos de todos os pontos do Brasil, alguns até das velhas bôlsas da Europa, espertos, ativos, de modos ora insinuantes, ora imperiosos como que de fidalgos deslocados do seu meio habitual, afeitos a todos os negócios, prontos para todas as transações havidas e por haver; gente chegada de fresco dos estados com a feição ainda tímida e acaipirada de provincianos e gestos de quem mal domina surprêsas e mêdos imensos, outros veteranos já naquele fogo de nova espécie, gabolas, farfalhantes, rindo alto, contando proezas e os mais arriscados lances; políticos de posição, há pouco afirmada pela cartola solene, sobrecasaca abotoada e ademanes compassados, agora de chapéu mole, paletó saco e maneiras familiares, a correrem, com o sorriso estereotipado das dançarinas, atrás dos passíveis fregueses, em penosa competência como caixeirinhos, verdadeiros meninos atirados em cheio na voragem da bôlsa, crianças quase, a levarem, nas pequeninas mãos nervosamente fechadas, grossos maços de notas amarrados por cordéis brancos em cruz, contos e contos de réis.” 
(Taunay, Afonso E. O Encilhamento. 1923. p. 16)
	
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	“Por sobre todos pairava uma ansiedade opressora, deliquescente, de esperanças e receios, como que fluido, indefinível, elétrico, febril, intenso, que, emergindo do seio da multidão, a envolvia em pesada atmosfera com prenúncios e flutuações de temporal certo, inevitável, mas ainda distante, longe, bem longe, - a fome do ouro, a sêde da riqueza, a sofreguidão do luxo, da posse, do desperdício, da ostentação, do triunfo, tudo isso depressa, muito depressa, de um dia para o outro!	Também nos rostos, quase todos alegres e desfeitos em riso, alguns não sombrios mas preocupados e sérios, se expandia uma alacridade contrafeita, reflexo de sentimentos encontrados, a consciência de se estar empenhando até os olhos num brinquedo, quando não, jôgo perigoso, travado de riscos e desastres iminentes, mas atraente, sedutor, irresistível.
	Era o Encilhamento, palavra quase genial do povo, adaptada da linguagem característica do esporte – local em que se dá a última demão aos cavalos de corrida antes de atirá-los à raia da concorrência e forçá-los, ofegantes e em supremos esforços, a pleitearem o prêmio da vitória. (...)
	Era o Encilhamento – espécie de redemoinho fatal, abismo insondável, vórtice de indômita possança e invencível empuxo a que iam convergir, em desapoderada carreira, prêsas, avassaladas, inconscientes no repentino arroubo, as fôrças vivas do Brasil, representadas por economias quase seculares e de todo o tempo cautelosas, hesitantes.”
(Taunay, Afonso E. O Encilhamento. 1923. pp. 17-18)
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Na corrida de cavalos a iminência da largada era indicada pelo seu encilhamento, isto é, pelo momento em que se apertavam com as cilhas (tiras de couro) as selas dos cavalos. É o instante em que as tensões transparecem no nervosismo das apostas. Por analogia, chamou-se “encilhamento” à política de emissão de dinheiro em grande quantidade que redundou numa desenfreada especulação na bolsa de valores.
Para compreender por que o governo provisório decidiu emitir tanto papel-moeda, é preciso recordar que, durante a escravidão, o mercado consumidor era limitado por ser a principal mão-de-obra escravizada e, portanto, não remunerada. Por essa razão, as emissões de moeda eram irregulares: emitia-se conforme a necessidade e sem muito critério.
A situação mudou com a abolição da escravatura e a grande imigração. Com o trabalho livre e remunerado, o dinheiro passou a ser utilizado por todos, ampliando o mercado de consumo.
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Para atender à nova necessidade, o governo provisório adotou uma política emissionista em 17 de janeiro de 1890. O ministro da Fazenda, Rui Barbosa, dividiu o Brasil em quatro regiões, autorizando em cada uma delas um banco emissor. As quatro regiões autorizadas eram: Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. O objetivo da medida era o de cobrir as necessidades da pagamento dos trabalhadores e, além disso, expandir o crédito a fim de estimular a criação de novas empresas.
Todavia, a desenfreada política emissionista acarretou uma inflação incontrolável, pois os “papéis pintados” não tinham como lastro outra coisa que não a garantia do governo. Por isso, o resultado foi muito diverso do esperado: em vez de estimular a economia a crescer, desencadeou uma onda especulativa. Os especuladores criaram projetos mirabolantes e irrealizáveis e, em seguida, lançaram as suas ações no mercado da bolsa de valores do Rio de Janeiro, onde eram negociadas a altos preços. Desse modo, algumas pessoas fizeram fortunas da noite para o dia, enquanto seus projetos permaneciam apenas no papel.
Em 1891, depois de um ano de ‘orgia’ especulativa, Rui Barbosa se deu conta do caráter irreal de sua medida e tentou remediá-la, buscando unificar as emissões no Banco da República dos Estados Unidos do Brasil. Mas a demissão coletiva do ministério naquele mesmo ano frustrou a sua tentativa.
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Eulália Lahmeyer Lobo aponta que a visão tradicional sobre o Encilhamento merece ser revista. Tal visão tradicional apontada por essa autora está presente em grande parte da bibliografia referente ao Encilhamento. Estas obras descrevem essa conjuntura somente como um episódio especulativo, inflacionário e comprometedor do crédito externo brasileiro. Essa vertente historiográfica não cita fatores relevantes de nossa História ocorridos dentro do Encilhamento, como o deslocamento de classes sociais no poder governamental, a tentativa de romper com as tradicionais estruturas agrárias imperiais e a reorganização do trabalho.
[1] LOBO, Eulália M. L. O Encilhamento. Revista Brasileira de Mercado de Capitais, 2(5), mai/ago, 1976.
[2] Quanto a historiografia antiga podemos citar, TAUNAY, A . E. Ensaios de História Econômica e Financeira. Anais do Museu paulista. Tômo XVI. São Paulo, 1962. FILHO, José Procópio op. cit. p - 117. TAUNAY, Visconde. O Encilhamento. Rio de Janeiro, 1893. Citamos também obras mais recentes baseadas nessa associação do Encilhamento com a especulação como SCHULZ, John. A Crise Financeira da Abolição: 1875-1901. São Paulo: Edusp, 1996 . VERSIANI, M.T. The Coton Textile Industry of Minas Gerais, Brazil. Begninnings and early Development - 1886/1906. PhD Thesis, University College, London, 1991.
[3] LOBO, E. M. L. op. cit pp. 264-265. Ver também CARVALHO, José Murilo de. A composição social dos partidos políticos imperiais. Cadernos do Departamento de Ciência Política, Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais. (2). 1-34, dez. 1974.
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	Os fatores que consideramos pertinentes e que se referem a essa conjuntura são demonstrados por uma corrente historiográfica, formada em meados de 1970, que aponta em seus estudos para fatos decorrentes na conjuntura do Encilhamento como assistência do governo à agricultura pós-abolição, direito de bancos comerciais investirem na indústria e outros empreendimentos, a nova legislação das sociedades anônimas, gerando um conjunto de fatores que demonstram um crescimento substancial no processo de industrialização brasileira.
[4] STEIN, S. J. Origens e evolução da Indústria têxtil no Brasil - 1850/1950. Rio de Janeiro: Campus, 1979
[5] MELLO, J. M. Cardoso de. O capitalismo tardio: contribuição à revisão crítica da formação e desenvolvimento da economia brasileira. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982.
[6] FISHLOW, Albert, Origens e consequências da substituição de importações no Brasil. In: Formação Econômica do Brasil, a experiência da industrialização. São Paulo, Saraiva, 1977
[7] LOBO, E. M.L. op cit. , . LEVI, Maria Bárbara. A Indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. UFRJ,
1994. FISHLOW, Albert, Origens e consequências da substituição de importações no Brasil. In: Formação Econômica do Brasil, a experiência da industrialização. São Paulo, Saraiva, 1977. STEIN, S.J. Origens e evolução da Indústria têxtil no Brasil - 1850/1950. Rio de Janeiro Campus, 1979. SUZIGAN, Wilson. INDÚSTRIA BRASILEIRA Origem e Desenvolvimento. Ed. Hucitec-funcamp, Nova edição, 2000.
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	Acompanhamos essa evolução historiográfica referente ao Encilhamento, e percebemos que essa corrente não isenta a conjuntura do Encilhamento de ser um período especulativo e inflacionário, porém não se retém a isso. Mostra também o crescimento de investimentos em nossa órbita financeira, o início do processo de industrialização do Brasil, a ampliação de formação de sociedades anônimas e outros fatores estimulantes para o desenvolvimento do quadro sócio-econômico brasileiro. 
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	O Encilhamento é um tema que possui uma vasta bibliografia dentro da História do Brasil e existem teorias opostas dentro desse contexto. Algumas colocam o episódio como entrave político, social e econômico, outras apontam o fato como precursor do desenvolvimento industrial brasileiro.
	Tal vertente historiográfica aponta a conjuntura do Encilhamento como entrave, devido ser esta fruto de uma administração inapta do Ministro da Fazenda Republicano - Rui Barbosa.
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	No entanto, podemos entender o Encilhamento como tendo sua origem ainda no regime imperial, sendo o criador dessa conjuntura o então ministro Visconde de Ouro Preto, em 1888. Consideramos o ministério que realizou a abolição o mais atuante do século, pois seriam os planejadores de uma mudança estrutural. Tal mudança, iniciaria uma nova conjuntura econômica, tendo que estimular o crédito e estabelecer a força do mecanismo econômico perante o impacto da abolição, oferecendo mais autonomia a um mercado financeiro baseado em normas institucionais. A nova forma de trabalho remunerado exigiria uma estrutura financeira institucionalizada e, certamente, as Bolsas de Valores e o aparelhamento bancário assumiriam a frente dessa evolução no mercado financeiro.
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	Luiz Werneck Vianna aponta que o Encilhamento teve seu início na gestão do Ministro Ouro Preto, demonstrando que no período de 1888 a 1889, o capital das empresas chegou a 403.000 contos, enquanto nos 64 anos anteriores à abolição chegou à 411.000 contos. O Jornal do Comércio noticiava que nos meses de agosto a outubro de 1889 as transações na Bolsa de Valores tiveram um "descomunal desenvolvimento”.
[8] VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 2o ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
[9] Jornal do Comércio. 18 de dezembro de 1889.
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	Wilson Suzigan em sua obra Indústria Brasileira, Origem e Desenvolvimento coloca fatores que demonstram com clareza a influência do Encilhamento sobre setores de nossa economia. Este autor faz um balanço de quatro teorias sobre a industrialização no Brasil e conclui que a conjuntura do encilhamento criou uma formação de capital industrial em um período marcado pela agroexportação. O autor dá início ao assunto demonstrando através da teoria de Stanley Stein que a grande emissão de papel moeda incentivou o aumento dos investimentos industriais, criando novos ramos de produção e expandindo os já existentes. 
[10] SUZIGAN, Wilson. Indústria Brasileira, Origem e Desenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1986.
[11] STEIN, Stanley. Origem e Evolução da Indústria Têxtil no Brasil. 1850/1950. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
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	Suzigan aborda a teoria de Cardoso de Mello demonstrando que este autor destaca o Encilhamento como uma conjuntura em que o Governo tomou medidas como apoio à agricultura pós-abolição, abertura aos bancos de investirem nas indústrias e outros empreendimentos, além da nova legislação sobre as sociedades anônimas.
	
	
[12] MELO, João Cardoso de. O capitalismo tardio... op. cit.
[13] FISHLOW, Albert op.cit.
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	A última teoria analisada por Suzigan, escrita por Versiani & Versiani, gera um debate interessante no que diz respeito à conjuntura do Encilhamento e suas influências no desenvolvimento industrial brasileiro.
	Para os Versiani essa conjuntura não passou de um movimento especulativo, ocorrido na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, que em 1891 começou a desmoronar. Divergem de Stein, discutindo a questão do aumento do capital industrial. Argumentam que este, durante o Encilhamento, foi mínimo e a expansão ocorreu de fato devido à distribuição de títulos e bonificações por parte do governo. Apontam também que Stein não estabeleceu uma relação de causa e efeito entre o Encilhamento e a expansão industrial. 
 
[14] VERSIANI & VERSIANI. A industrialização brasileira antes de 1930: uma contribuição. São Paulo, Saraiva, 1977.
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	Wilson Suzigan, porém, demonstra que os dados de Stein são mais condizentes dos que os apresentados pelos Versiani. Ele demonstra o aumento substancial na indústria brasileira durante o período do Encilhamento através de dados levantados sobre a importação de maquinaria industrial para o Brasil, corroborando assim também os argumentos de Fishlow. Suzigan demonstra que tal importação de máquinas industriais indicam a ocorrência de um pico no investimento industrial durante o período do Encilhamento:
		"...as exportações de maquinaria industrial para o Brasil aumentaram cerca de 30% em 1890 e mais 70% em 1891! Deve-se observar que os níveis médios para 1888-1889 já haviam sido 37% superiores média para 1883-1887, e que apesar de uma redução a partir de 1892, o investimento industrial (representado pelas exportações de maquinaria industrial para o Brasil) manteve-se em níveis mais de 50% superiores aos de 1888-1889.“
[15] SUZIGAN, Wilson. INDÚSTRIA BRASILEIRA. Origem e Desenvolvimento. Ed. Hucitec-funcamp. São Paulo, Nova Edição. 2000. 
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	Suzigan aborda que, como observado por Stein, algumas das maiores empresas industriais brasileiras de todos os tempos foram fundadas durante o Encilhamento, descartando os argumentos de Versiani e Versiani. Ele argumenta que os Versiani trabalharam somente sobre dados das cinco maiores fábricas de tecidos de algodão registradas no Rio de Janeiro, o que pode gerar uma "discussão enganosa".
	Ele destaca o desenvolvimento industrial de outras áreas regionais do Brasil dentro dessa conjuntura, demonstrado por Stein. No nordeste, principalmente na Bahia, Pernambuco e Maranhão, foram estabelecidas grandes fábricas de algodão, e também em São Paulo e Rio de Janeiro, "o centro especulativo". Surgiram investimentos também em outros ramos de produção, como sacaria de juta, tecidos de lã, moinho de trigo, cervejarias, fábricas de fósforo e indústrias metalmecânicas. 
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	Analisamos que a interpretação de Stein, e dos que apontaram o Encilhamento como precursor do desenvolvimento industrial brasileiro, é uma interpretação mais concreta, não isentando a conjuntura de abusos especulativos, mas olhando também os efeitos positivos no campo industrial. 
	
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	O Encilhamento foi uma conjuntura que determinava uma grande emissão de papel moeda, facilidades para abertura de S/A’s, o que certamente ofereceu um quadro atraente para muitas manobras especulativas e inflacionárias, mas ao mesmo tempo, proporcionou também a impulsão de grandes empreendimentos de longo prazo.
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