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Narra a vida do lendário gângster James “Whitey” Bulger, um dos criminosos mais cruéis e notórios da história dos Estados Unidos. Considerado em certa época o segundo nome na lista de mais procurados do FBI, atrás apenas de Osama bin Laden, James “Whitey” Bulger construiu um impressionante império do crime. Na década de 1980 ele aterrorizou a cidade de Boston praticamente sem ser importunado pela lei. Houve quem atribuísse isso a suas conexões políticas, pois James era irmão do inSluente William Bulger, presidente do Senado Estadual de Massachusetts. Os dois tinham reputação de astutos e inescrupulosos, mas, provou-‐se mais tarde, o anjo de James tinha outro sobrenome: Connolly. Agente em franca ascensão na divisão de Boston do FBI, John Connolly foi criado em South Boston, mesma vizinhança de Whitey, um gângster até então pouco inSluente. Era a época da caça à Cosa Nostra, e, após muitas tentativas de agentes do bureau, Connolly conseguiu o que poucos acreditavam ser possível: transformou Bulger em informante. O gângster, porém, fez muito mais do que seu dever de casa – além de colaborar para o desmantelamento da MáSia italiana, manobrou uma série de assassinatos e passou a comandar o tráSico de drogas na cidade. O acordo entre Bulger e Connolly saiu completamente do controle e, anos mais tarde, veio a se tornar o maior escândalo da história do FBI envolvendo informantes. Escrito por dois ex-‐repórteres que cobriram o caso, o livro é uma narrativa épica de pura violência, trapaça e corrupção, cujo ponto central é a amizade entre dois garotos cujas vidas seguiram caminhos opostos, porém igualmente nebulosos. LISTA DE PERSONAGENS A GANGUE DE BULGER James J. “Whitey” Bulger Stephen J. “Homem-Rifle” Flemmi Nick Femia, soldado Kevin Weeks, soldado e “filho substituto” de Bulger Kevin O’Neil, comparsa Patrick Nee, comparsa Joseph Yerardi, comparsa George Kaufman, comparsa A GANGUE WINTER HILL ORIGINAL conta com membros da gangue de Bulger e: Howard Winter, chefe John Martorano, matador de aluguel William Barnoski, comparsa James Sims, comparsa Joseph McDonald, comparsa Anthony Ciulla, arranjador de resultados em páreos Brian Halloran, comparsa MÁFIA EM BOSTON Gennaro J. “Jerry” Angiulo, subchefe Ilario “Larry” Zannino, caporegime e consigliere Donato “Danny” Angiulo, caporegime Francesco “Frankie” Angiulo, comparsa Mikey Angiulo, comparsa J. R. Russo, caporegime Vincent “Animal” Ferrara, caporegime Bobby Carrozza, caporegime Frank “Cadillac Frank” Salemme, amigo de infância de Flemmi e principal líder mafioso na década de 1990 FEDERAL BUREAU OF INVESTIGATION (FBI), DIVISÃO DE BOSTON H. Paul Rico, Esquadrão de Crime Organizado Dennis Condon, Esquadrão de Crime Organizado John J. Connolly Jr., responsável pelos informantes Bulger e Flemmi John Morris, supervisor do Esquadrão de Crime Organizado Lawrence Sarhatt, agente especial encarregado no início dos anos 1980 James Greenleaf, agente especial encarregado em meados dos anos 1980 James Ahearn, agente especial encarregado no fim dos anos 1980 Robert Fitzpatrick, assistente do agente especial encarregado James Ring, assistente do agente especial encarregado Nicholas Gianturco, Esquadrão de Crime Organizado Tom Daly, Esquadrão de Crime Organizado Mike Buckley, Esquadrão de Crime Organizado Edward Quinn, Esquadrão de Crime Organizado Jack Cloherty, Esquadrão de Crime Organizado John Newton, agente especial Roderick Kennedy, agente especial AUTORIDADES FEDERAIS, ESTADUAIS E LOCAIS Robert Long, Polícia Estadual de Massachusetts Rick Fraelick, Polícia Estadual de Massachusetts Jack O’Malley, Polícia Estadual de Massachusetts Tenente-coronel John O’Donovan, comandante da Polícia Estadual de Massachusetts Thomas Foley, Polícia Estadual de Massachusetts Joe Saccardo, Polícia Estadual de Massachusetts Thomas Duffy, Polícia Estadual de Massachusetts Richard Bergeron, detetive de polícia de Quincy, Massachusetts Al Reilly, agente federal da Drug Enforcement Administration (DEA) Stephen Boeri, agente federal da Drug Enforcement Administration (DEA) Daniel Doherty, agente federal da Drug Enforcement Administration (DEA) Jeremiah T. O’Sullivan, promotor federal do Departamento de Justiça Fred Wyshak, promotor federal do Departamento de Justiça Brian Kelly, promotor federal do Departamento de Justiça James Herbert, promotor federal do Departamento de Justiça PRÓLOGO Certo dia de verão em 1948, um garoto tímido de calça curta chamado John Connolly entrou numa loja de esquina com dois colegas. Queriam dar uma olhada nos doces do estabelecimento, próximo ao conjunto habitacional Old Harbor, em South Boston, onde moravam. “Olha o Whitey Bulger”, sussurrou um. O lendário Whitey Bulger: magrelo e tenso, com ar de valentão e um cabelo louro-claro e bem cheio que levou os policiais a lhe darem o apelido de Whitey, “esbranquiçado”, embora ele odiasse o apelido e preferisse seu nome de verdade, Jimmy. Ele era o mítico adolescente durão que andava com a gangue Shamrocks. Bulger viu os meninos olhando para ele e, num impulso, se ofereceu para pagar uma rodada de casquinhas para todos. Dois já foram logo dizendo os sabores. Mas o pequeno John Connolly hesitou, obediente à mãe, que lhe dizia para não aceitar nada de estranhos. Quando Bulger lhe perguntou por que também não tomava um, os outros meninos caçoaram do conselho. Então, Bulger interveio: “Ei, garoto, eu não sou nenhum estranho.” Então, deu ao garoto uma lição rápida e crucial sobre história e linhagens: os ancestrais dos dois eram irlandeses. Eles não eram estranhos um ao outro. “De que sabor você quer?”, perguntou Whitey outra vez. Connolly murmurou que gostava de baunilha. De bom grado, Bulger ergueu o garoto e o pôs no balcão para receber o sorvete. Foi a primeira vez que John viu Whitey. Muitos anos depois, ele diria que a emoção de encontrar Bulger por acaso nesse dia foi como a de “conhecer Ted Williams”, o então famoso rebatedor do Boston Red Sox, time de beisebol da cidade. INTRODUÇÃO Na primavera de 1988, começamos a escrever para o Boston Globe a história de dois irmãos, Jim “Whitey” Bulger e seu irmão mais novo, Billy. Numa cidade de passado tão antigo e rico quanto Boston, pródiga em figuras históricas de todos os naipes, os Bulger eram lendas vivas. No que faziam, ambos eram insuperáveis. Whitey, de 58 anos, era o gângster mais poderoso da cidade, um notório assassino. Billy Bulger, de 54, era o político mais influente de Massachusetts, presidente de mais longo mandato em 208 anos de história do Senado Estadual. Os dois tinham reputação de astutos e inescrupulosos,características que punham em prática em seus respectivos mundos. Era a quinta-essência da saga bostoniana, a história de dois irmãos que cresceram num conjunto habitacional no mais isolado dos bairros irlandeses, South Boston — “Southie”, como era muitas vezes chamado. Era comum ver um Whitey jovem, o primogênito rebelde, no tribunal, mas nunca na escola. Havia brigas de rua e frenéticas perseguições de carro, tudo com um certo toque hollywoodiano. Durante a década de 1940, ele entrou com o carro nos trilhos do bonde e passou à toda pela antiga estação da Broadway, sob os olhares chocados dos passageiros na plataforma abarrotada. Com um boné de tweed na cabeça e uma loura no carona, ele acenou e buzinou para a multidão. Depois se mandou. Já seu irmão Billy enveredou pela direção oposta. Estudou: história, língua e literatura clássicas e, por último, direito. Entrou na política. Ambos viraram notícia, mas suas vidas nunca tinham sido compiladas. Assim, naquela primavera, junto com dois outros repórteres do Globe, arregaçamos as mangas para mudar isso. Christine Chinlund, que se interessava pela política, se concentrou em Billy Bulger. Kevin Cullen, então melhor repórter policial da cidade, ficou com Whitey. Nós nos revezávamos entre os dois, mas no fim Lehr trabalhou mais com Cullen, e O’Neill supervisionou a operação toda. Ainda que normalmente realizássemos reportagens investigativas, o projeto era visto como um estudo biográfico aprofundado de dois dos personagens mais curiosos e interessantes da cidade. Havíamos todos concluído que a vida supostamente fascinante de Whitey Bulger era central para a história. De fato, Whitey chegara a cumprir nove duríssimos anos em prisão federal, alguns em Alcatraz, por uma série de roubos a banco, à mão armada, na década de 1950. Mas, desde seu retorno a Boston, em 1965, ele não fora autuado sequer uma vez, nem por infração de trânsito. Nesse meio-tempo, sua ascensão nas fileiras do submundo de Boston foi constante. De temido soldado raso na gangue Winter Hill, ele galgara os degraus do estrelato ao status de mais famoso chefe do submundo da cidade. Em certo ponto da trajetória, associara-se ao assassino Stevie “Homem-Rifle” Flemmi, e dizia-se que estavam empreendendo uma jornada criminosa inexorável rumo à fama e à riqueza graças à capacidade de levar a melhor sobre os investigadores que tentavam reunir evidências contra eles. No fim dos anos 1980, contudo, as polícias municipal e estadual, além dos agentes de narcóticos federais, chegaram a uma nova teoria sobre a ficha imaculada de Bulger. Diziam que, sem dúvida, o homem era astuto e extremamente cuidadoso, mas sua capacidade de se evadir à lei, como um verdadeiro Houdini, era sobrenatural. Para eles, havia algum trabalho interno. Argumentavam que Bulger estava ligado ao FBI, que, por sua vez, secretamente lhe fornecera cobertura ao longo de todos aqueles anos. Que outra explicação para o completo e rematado fracasso de todas as tentativas de enquadrar o homem? Mas a teoria tinha um porém: ninguém que a propôs foi capaz de apresentar uma prova irrefutável. * * * Para nós, a ideia parecia forçada, até um tanto conveniente. Para Cullen, que morava em South Boston, ela ia contra tudo que se sabia a respeito de um gângster com a reputação de ser um mafioso a toda prova, um chefão do crime que exigia total lealdade dos comparsas. Era algo que desafiava a cultura do mundo de Bulger, South Boston e sua herança irlandesa. Os irlandeses sempre nutriram um ódio particularmente arraigado por informantes. Já vimos, alguns de nós mais de uma vez, o famoso filme de John Ford de 1934, O delator, com seu retrato atemporal e inigualável do horror e da repulsa que os irlandeses sentem por eles. Num contexto mais local, havia a história de uma escuta em South Boston que se tornou um clássico nos círculos criminosos da cidade. A gravação clandestina capturou um subalterno de Bulger conversando com a namorada: — Eu odeio esses ratos do caralho — queixou-se John Shea. — Eles são a mesma merda que um estuprador e um molestador de criança. — E o que ele faria se encontrasse um informante? — Eu amarrava o cara na cadeira, ok? Então pegava um bastão de beisebol e dava minha melhor tacada na cabeça dele. Depois ficava só olhando a porra da cabeça sair voando. Daí pegava uma serra elétrica e cortava os dedões fora. — A gente se fala mais tarde, querido — respondeu a namorada. Esse era o mundo de Whitey, em que os sentimentos sobre informantes calavam fundo em todas as camadas da sociedade local, da escória à classe alta. Até seu irmão Billy externou uma versão mais refinada do ponto de vista manifestado por Shea. Em seu livro de memórias de 1996, recordou uma ocasião em que ele e alguns amigos de infância jogavam beisebol e quebraram uma luminária de rua. Os meninos foram avisados que teriam a bola de volta assim que identificassem o autor do estrago. Ninguém abriu o bico. “Odiávamos informantes”, escreveu Billy Bulger. “Nosso folclore sangrava com os nomes dos informantes que haviam vendido os irmãos para carrascos ou coisa pior nas terras de nossos ancestrais.” Uma vez que era também esse o folclore de Whitey, nós quatro, em 1988, ficamos incrédulos acerca do boato de ele ser informante. Examinamos a teoria de todos os ângulos e concluímos: impossível. A alegação só podia corresponder a ataques infundados e irresponsáveis de investigadores exasperados que fracassaram na tentativa de prender Whitey Bulger. A ideia de Bulger como informante soava absurda. Mas a suspeita continuou incomodando, uma comichão irresistível que permanecia à flor da pele. E se fosse mesmo verdade? Em 1988, a grande notícia em Boston foi a candidatura a presidente do governador de Massachusetts, Michael Dukakis, mas, durante todos os meses de campanha presidencial ficamos cada vez mais intrigados e envolvidos com a história de Whitey. Assim, Cullen voltou à pesquisa, e Lehr o acompanhou. Houve novas entrevistas com os investigadores que haviam tocaiado Bulger e tentado obter evidências contra ele. Os investigadores revisaram minuciosamente o material, mas o final era sempre o mesmo: Bulger em liberdade, livre de qualquer acusação e ileso, olhando por cima do ombro e rindo ao se afastar. Falaram sobre um certo agente do FBI, John Connolly, que, assim como os irmãos Bulger, crescera em Southie. Connolly fora visto na companhia de Whitey. Escrevemos ao FBI em Boston e, baseados na Lei de Liberdade de Informação, requisitamos arquivos de inteligência e material sobre Bulger. Foi uma mera formalidade; que o pedido tenha sido negado não constituiu surpresa. Mas decerto não poderíamos escrever um artigo declarando que Bulger era informante do FBI. Tínhamos apenas a forte suspeita — e nenhuma prova — vinda de outros órgãos da lei. O FBI não confirmaria a suspeita. Concluímos que o melhor que tínhamos era uma história sobre como Bulger dividira as forças da lei locais. Seria uma matéria sobre a cultura policial, com os policiais e os agentes de narcóticos saindo sempre de mãos abanando e depois aludindo a suas sinistras suspeitas contra o FBI. Em certo sentido, Bulger dividira e conquistara; ele vencera. * * * O submundo de Boston e a interação dos investigadores envolviam suspenses, ilusões; a ideia de Bulger como informante ainda nos parecia improvável. Mesmo assim, empreendemos um último esforço de reportagem para testar oque havíamos escutado com nossas fontes no FBI. A essência da reportagem está descrita no capítulo 16 deste livro. No fim, conseguimos confirmar, dentro do FBI, que o impensável era verdade: Bulger era informante do bureau, e foi assim por anos. A matéria saiu em setembro de 1988, e os oficiais do FBI locais a negaram com veemência. Em Boston, os agentes estavam acostumados a manipular a imprensa, fornecendo informação a repórteres agradecidos por um furo que, é claro, sempre deixava o FBI bem na foto. Nesse contexto, não foi surpresa que a divisão de Boston bancasse a parte ofendida, traída. E muitos acataram a reação — afinal, quem tinha mais credibilidade? O FBI, os orgulhosos homens do governo que vinham recebendo cobertura favorável por desmantelar a Máfia italiana? Ou um grupo de jornalistas que o FBI pintava como pessoas com interesses escusos? Com a total improbabilidade de Bulger ser informante e a pura veemência das negações oficiais, a matéria foi vista como especulação, não como a sinistra verdade. Quase uma década se passaria até que a justiça intimasse o FBI a confirmar o que repudiara com firmeza por tanto tempo: Bulger e Flemmi haviam de fato sido informantes: Bulger desde 1975, e Flemmi antes disso. As revelações foram feitas em 1997, no início de uma investigação sem precedentes da justiça federal sobre os laços de corrupção do FBI com Bulger e Flemmi. Em 1998, dez meses de depoimentos sob juramento e pilhas de arquivos antes secretos revelaram um alarmante padrão de conduta indevida: dinheiro mudando de mãos entre informantes e agentes; obstrução da justiça e múltiplos vazamentos no FBI para proteger Bulger e Flemmi de investigações em outras agências; trocas de presentes e lautos jantares entre agentes e informantes. Muitos comentários dos agentes revelavam uma arrogância inequívoca — era como se fossem os donos da cidade. Foi fácil imaginar o FBI, Bulger e Flemmi comemorando seu segredo, erguendo as taças de vinho e brindando ao sucesso em passar a perna nas polícias estadual e municipal, e nos agentes de narcóticos federais que vinham tentando reunir evidência contra eles sem nunca descobrir o esquema. * * * Claro que o caso Bulger não representa a primeira vez que o problema envolvendo agentes e informantes estourou publicamente para o FBI. Em meados da década de 1980, um agente veterano em Miami admitiu ter recebido 850 mil dólares de suborno do informante durante um caso de tráfico de drogas. Um episódio mais conhecido é o de Jackie Presser, antigo presidente do Sindicato dos Caminhoneiros, que atuou como informante do FBI por uma década, até morrer, em julho de 1988. Os responsáveis por Presser no bureau foram acusados de mentir para protegê-lo de um indiciamento em 1986. No fim, um supervisor foi exonerado. Mas o escândalo Bulger é o pior de todos, uma história exemplar que versa, mais fundamentalmente, sobre abusos de poder sem controle. O arranjo pode ter feito sentido no início, como parte da cruzada do FBI contra a Cosa Nostra. Em parte com a ajuda de Bulger e, sobretudo, de Flemmi, os principais chefes da Máfia já tinham sumido de cena na década de 1990, substituídos bem antes por um bando de mequetrefes esquecíveis com apelidos inesquecíveis. Bulger, por sua vez, foi o chefão criminoso que, ao longo dos anos, figurou com destaque no submundo. Whitey era a figura pública, e ele e Flemmi, as principais peças no campo de jogo. Um “informante de escalão superior” significa alguém que supre o FBI com segredos em primeira mão sobre figuras do crime organizado no mais alto nível. As diretrizes do FBI exigem que eles sejam monitorados de perto pelos responsáveis no bureau. Mas o que acontece se é o informante quem passa a monitorar os agentes? O que acontece se, em vez de ser o FBI, é o informante quem controla, e o FBI passa a chamá-lo de “good bad guy” — um bandido bonzinho? O que acontece se o FBI tira de circulação os inimigos do informante, que por sua vez ascende ao topo do submundo? E se o FBI protege o informante avisando sobre investigações conduzidas por outros órgãos policiais? O que acontece se os homicídios começam a se acumular, sem solução? Se os trabalhadores são ameaçados e extorquidos, sem ter a quem recorrer? Se repetidas vezes um cartel de cocaína engana os investigadores? Se elaboradas operações de escuta do governo custam milhões dos contribuintes mas vazam e são arruinadas? Isso jamais poderia ter acontecido, não é? Como um acordo entre o FBI e um informante de escalão superior pôde chegar a esse ponto? Mas chegou. Hoje sabemos que o acordo entre Bulger e o FBI era mais profundo, sórdido e pessoal do que qualquer um imaginara, e foi sacramentado numa noite enluarada de 1975 entre dois filhos de Southie: Bulger e um jovem agente do FBI chamado John Connolly. DICK LEHR E GERARD O’NEILL Boston, abril de 2000 INTRODUÇÃO À EDIÇÃO ATUALIZADA Há doze anos, publicamos nos Estados Unidos a primeira edição de Aliança do crime. É uma grande alegria que a PublicAffairs, nossa editora original, esteja lançando uma edição nova e atualizada. Bastante coisa aconteceu desde a primeira publicação. Muitos dos assim chamados poderosos caíram, de agentes federais corruptos do passado e do presente até o alto escalão da gangue de Bulger. Desde o lançamento de Aliança do crime, uma série de outros livros foi publicada sobre Bulger e o FBI, criando, na prática, um gênero Bulger todo próprio: livros de outros jornalistas, livros de memórias ao estilo “contando tudo” escritos por antigos membros da gangue de Bulger e, mais recentemente, relatos internos escritos por investigadores que perseguiram Bulger e acabaram topando com algum agente do FBI corrupto a bloquear o caminho. Em 6 de novembro de 2008, o agente federal no centro do escândalo, John J. Connolly Jr., foi condenado por homicídio de segundo grau ao conspirar com Bulger para o assassinato de um homem disposto a cooperar com investigadores numa ação contra os dois. Hoje com 71 anos, Connolly está preso numa penitenciária da Flórida. E o mais significativo: após se tornar fugitivo da justiça em 1995 e figurar na lista dos dez mais procurados do FBI, o personagem central do escândalo histórico, James J. “Whitey” Bulger Jr., foi capturado em 22 de junho de 2011, em Santa Monica, Califórnia, onde se escondera à plena vista, levando uma vida de aposentado ao lado de sua companheira de longa data, Catherine Greig. Aliança do crime é uma narrativa sobre o sinistro acordo do FBI com Bulger que revela suas origens, o reinado de terror do gângster durante os anos 1980 sob os auspícios do FBI e, por fim, a revelação pública durante a década de 1990 da profunda e perniciosa corrupção da agência federal. Com novos acontecimentos surgem novas informações, e somos gratos por ter a chance de atualizar a história do FBI e de Bulger neste livro. DICK LEHR E GERARD O’NEILL Janeiro de 2012 PARTE UM “O Príncipe das Trevas é um cavalheiro.” William Shakespeare, Rei Lear, ato 3, cena 4 CAPÍTULO UM 1975 Sob a lua cheia, o agente do FBI John Connolly entrou com seu Plymouth surrado numa vaga de estacionamento junto à Wollaston Beach. Às suas costas, as águas marulhavam e, mais além, as luzes de Boston cintilavam. A cidade de Quincy, centro de construção naval que faz fronteira com o sul de Boston, era o local perfeito para o tipo de encontro que Connolly tinha em mente. A rua ao longo da praia, QuincyShore Drive, dava direto na Southeast Expressway. Na direção norte, qualquer saída próxima da via expressa levava direto a South Boston, bairro onde Connolly e seu “contato” haviam crescido. Usando essas ruas, o trajeto de ida e volta para Southie levava apenas alguns minutos. Mas não foi só a conveniência o principal motivo para a escolha do lugar: acima de tudo, tanto Connolly quanto o homem que deveria encontrar não queriam ser vistos juntos no bairro de infância. Entrando de ré na vaga junto à praia, Connolly se acomodou no Plymouth e começou a espera. Nos anos seguintes, Connolly e o homem que ele aguardava nunca se afastariam muito um do outro. Os dois tinham Southie em comum, e moraram e trabalharam sempre no raio de mais ou menos um quilômetro de distância num submundo povoado por investigadores e gângsteres. Mas isso viria mais tarde. Por ora, Connolly aguardava ansiosamente em Wollaston Beach, o ronco do motor abafando o que parecia um zumbido elétrico da atmosfera carregada no interior do carro. Transferido para sua cidade natal um ano antes, ele estava pronto para deixar sua marca na divisão de Boston da agência policial de elite da nação. Tinha apenas 35 anos, e essa seria sua grande chance. Seu momento no FBI chegara. O ousado agente amadurecia trabalhando num FBI que lutava contra um raro revés nas relações públicas. No Congresso, sindicâncias sobre abusos haviam confirmado que o falecido diretor J. Edgar Hoover armazenara por muitos anos informações sobre a vida privada de políticos e figuras públicas em arquivos secretos. Principal alvo do FBI, a Máfia também constava no noticiário. Agitando-se em torno do turbilhão havia sensacionais revelações envolvendo uma parceria bizarra entre a CIA e a Máfia, também descoberta durante as investigações no Congresso. Falava- se de um acordo entre a CIA e os mafiosos para matar o líder cubano, Fidel Castro, e complôs de assassinato que envolviam canetas e charutos envenenados. Parecia que, de repente, a Máfia estava por toda parte, e todo mundo queria tirar casquinha da misteriosa e, de certo modo, glamorosa organização, incluindo Hollywood. A obra-prima cinematográfica de Francis Ford Coppola, O poderoso chefão — parte 2, fora exibida para um enorme público no ano anterior. Meses antes daquele encontro, o filme faturara uma porção de Oscar. O FBI de Connolly estava profundamente empenhado em seu tão propalado ataque contra a Cosa Nostra. Era a prioridade nacional do FBI, uma guerra para reverter a má imagem na imprensa, e Connolly tinha um plano em andamento para incrementar a causa. O agente esquadrinhou a rua à beira-mar, vazia àquela hora. De vez em quando, um carro passava pela Quincy Shore Drive. O bureau queria a Máfia, e, para reunir evidências contra ela, os agentes precisavam de informações. Para obtê-las, precisavam de infiltrados. No FBI, o valor de um homem se media pela capacidade de cultivar informantes. Connolly estava no bureau havia sete anos, sabia que isso era verdade e estava determinado a se tornar um dos principais agentes — um agente com o toque certo. O plano: conseguir o acordo que outros no escritório de Boston tinham tentado, mas sem sucesso. John Connolly estava prestes a fisgar Whitey Bulger, o gângster elusivo, astuto e extremamente inteligente que já era uma lenda em Southie. Usar a escada não fazia o gênero do estiloso carreirista do FBI. Ele era um homem de elevadores, e Whitey Bulger o levaria ao último andar. O bureau andava de olho em Bulger havia algum tempo. Antes, um agente veterano chamado Dennis Condon também fizera sua tentativa. Os dois se encontraram e conversaram, mas Whitey ficou com o pé atrás. Em maio de 1971, Condon conseguiu extrair extensa informação interna de Whitey sobre uma guerra de gangues irlandesa que estava dominando o submundo da cidade — quem se aliara a quem, quem visava quem. Era um panorama completo e detalhado, acompanhado pela enumeração dos personagens-chave. Condon chegou a abrir uma pasta de informante para Whitey nos arquivos. Mas, tão rapidamente quanto colaborou, Whitey se fechou em copas. Eles se encontraram diversas vezes ao longo do verão, mas as conversas azedaram. Em agosto, Whitey continuava “relutante em fornecer informação”, relatou Condon. Em setembro, o agente jogara a toalha. “Os contatos com o indivíduo supra têm sido improdutivos”, escreveu em seus arquivos no FBI, a 10 de setembro de 1971. “Consequentemente, o assunto está sendo encerrado.” Nunca se soube ao certo o motivo exato para Whitey ter se aberto e depois fechado o bico. Talvez a natureza absolutamente irlandesa da informação que fornecera tivesse se provado inquietante. Talvez fosse uma questão de confiança: por que Whitey Bulger deveria confiar em Dennis Condon, do FBI? Em todo caso, a pasta de Whitey foi engavetada. Em 1975, Condon estava se preparando para sair, de olho na aposentadoria iminente. Mas ele treinara Connolly, e o agente mais novo estava ávido por reabrir o arquivo de Whitey. Afinal, levava para a mesa algo que ninguém mais tinha: ele conhecia Whitey Bulger. Crescera num prédio de tijolos próximo à casa dos Bulger, no conjunto habitacional Old Harbor, em South Boston. Whitey era onze anos mais velho do que Connolly, mas o agente exalava confiança. Os velhos laços do bairro lhe proporcionavam a influência que os demais do escritório de Boston não tinham. Então, de repente, a espera terminou. Sem aviso, a porta do passageiro foi aberta, e Whitey Bulger entrou no Plymouth. Connolly levou um susto, surpreendido pela rapidez com que o outro chegou e por ser pego com a guarda baixa. Ele, um agente federal treinado, deixara a porta do carro destrancada. “Que diabos você fez? Caiu aqui de paraquedas?”, perguntou quando o gângster se acomodou no assento do passageiro. Connolly imaginara que o homem chegaria de carro e encostaria ao lado do seu. Bulger explicou que estacionara numa das ruas laterais e caminhara ao longo da praia. Havia esperado até ter certeza de que não tinha ninguém por perto, então se aproximara por trás, vindo da direção do mar. Connolly, um dos mais novos agentes no prestigioso Esquadrão de Crime Organizado, tentou se acalmar. Whitey, que acabara de completar 46 anos em 3 de setembro, estava no assento do carona, mais autoconfiante do que seus pouco mais de 1,70 metro e meros 75 quilos poderiam dar a entender. Era musculoso e estava em boa forma, tinha olhos azuis penetrantes e o cabelo louro característico, penteado para trás. Sob a proteção da escuridão, os dois começaram a conversar, e então Connolly, devidamente servil com o morador mais velho de seu bairro, que além do mais era um ícone, fez sua oferta: “Você devia pensar em usar seus amigos na lei.” * * * Foi este o argumento de Connolly: você precisa de um amigo. Mas por quê? No outono de 1975, a vida na cidade era tumultuosa e mudava de maneira imprevisível. Do ponto onde estavam na praia deserta, os dois viam a linha do horizonte de Boston além do mar. Na época, os bostonianos estavam em êxtase com a inesperada boa sina de seu Red Sox. Yaz, Luis Tiant, Bill Lee, Carlton Fisk, Jim Rice e Fred Lynn — que, ao final da temporada, seria premiado não só como a revelação do ano, mas também como o jogador mais valioso da American League, uma das ligas de beisebol quecompõem a Major League Baseball, principal liga de beisebol do país — estavam em meio a uma gloriosa disputa pelo título da World Series contra os poderosos Cincinnati Reds. Só que mais perto de casa o mundo era sombrio e instável. O pesadelo do transporte entrara no segundo ano. Em 1974, o bairro de Roxbury se transformara numa zona de guerra após um mandado da justiça federal ordenar o transporte escolar dos alunos negros do bairro até a South Boston High School, de modo a obter equilíbrio racial nas escolas públicas segregadas da cidade. O restante do país ficou sintonizado, e as pessoas começaram a conhecer Southie por meio de imagens transmitidas pela TV e por fotos na primeira página dos jornais exibindo a polícia em tumultos, policiais estaduais patrulhando corredores de escola, atiradores de elite no alto de prédios e legiões de negros e brancos berrando cantos de ódio mútuo. O Pulitzer de fotografia em 1976 foi concedido à chocante imagem de um negro sendo agredido com uma bandeira americana durante um distúrbio na frente da prefeitura. Por todo o país, o bairro foi visto através do prisma de um vidro quebrado — uma sangrenta, traumática e horrível primeira impressão. O irmão mais novo de Whitey, Billy, estava no olho desse furacão. Como todos os líderes políticos do bairro, Billy Bulger, um senador estadual, era inimigo jurado do transporte escolar imposto pela justiça. Ele nunca questionou o veredito federal de que as escolas da cidade eram terrivelmente segregadas. No entanto, opunha-se a ferro e fogo contra qualquer paliativo que forçasse os alunos a deixar seus distritos escolares. Ele viajara a Washington, D.C., para protestar e apresentar argumentos diante da delegação de congressistas, e, lá, proferiu seu discurso para um grupo de pais que se opunham ao transporte sob chuva torrencial. O senador estadual execrava a visão que as pessoas de fora vinham tendo de seu bairro e denunciava o “retrato incansável, calculado, inadmissível que fazem de cada um de nós, de que somos racistas retrógrados, veiculado na imprensa nacional e na local, no rádio e na TV”. Para ele, a questão era a legítima preocupação de seus vizinhos com o bem-estar e a educação dos filhos. Quando estava no bairro, Billy Bulger se pronunciava regularmente contra a indesejada intervenção federal. Mas a lei de transporte seguia vigorando, e o verão recém-terminado não fora nada bom. Em julho, seis jovens negros haviam ido de carro até Carson Beach, em South Boston, e se envolvido numa briga com uma gangue de rapazes brancos, e o resultado foi que um dos negros terminou hospitalizado. Quando novo, John Connolly trabalhara como salva-vidas nas praias de South Boston, assim como Billy Bulger antes dele, mas as areias também haviam se tornado campo de batalha. Num domingo de agosto, helicópteros da polícia circularam sobre Carson Beach, e barcos da Guarda Costeira patrulharam as águas, enquanto mais de mil cidadãos negros seguiam numa enorme carreata à beira-mar. A “investida” na praia foi acompanhada por mais de oitocentos policiais uniformizados. As câmeras filmaram. Na época em que Connolly providenciara o encontro com Whitey na Wollaston Beach, as escolas haviam sido reabertas. Boicotes de alunos e brigas entre negros e brancos eram ocorrências regulares. Achando que pudesse ajudar a aliviar a tensão racial, as autoridades pela primeira vez tentaram promover a integração na equipe de futebol da South Boston High School. Mas os quatro jogadores negros que se apresentaram para o primeiro treino precisaram de proteção policial. O bairro estava dividido e Connolly sabia, sentia essa dor, porque aquele também era seu bairro, e ele usara esse vínculo ao marcar o encontro com Bulger. Mas, embora o vínculo tivesse lhe rendido uma conversa com Whitey, ele precisaria persuadir seu herói de infância a fazer um acordo. Acima de tudo, Connolly queria explorar os distúrbios mais amplos do submundo que fermentavam entre a Máfia de Boston e uma gangue à qual Bulger se associara na cidade vizinha de Somerville. Encarregado do crime organizado em Southie, a essa altura Bulger passara a trabalhar com o chefão do crime em Somerville, Howie Winter. A gangue operava com base numa oficina mecânica da área de Winter Hill da cidadezinha, logo do lado oeste do rio Charles. No ano anterior, Whitey agira em parceria com outro membro da gangue, Stevie “Homem-Rifle” Flemmi. Os dois se deram bem, descobriram que tinham certas coisas em comum e começaram a andar juntos. Quando Connolly e Bulger se encontraram, o jovem agente fizera a lição de casa. Ele sabia que Bulger e a gangue Winter Hill enfrentavam a ameaça em duas frentes de uma máfia local que por décadas era controlada pelo poderoso subchefe Gennaro J. Angiulo e seus quatro irmãos. No momento, ocorria a disputa entre as duas organizações pela instalação de máquinas de venda automática por toda a região. Mafiosos tinham ameaçado resolver a questão à bala. Com toda essa instabilidade, argumentou Connolly, amigos viriam a calhar para um sujeito como Bulger. Além disso, Angiulo era manhoso e inescrutável. O mafioso costumava armar a prisão dos que não lhe eram mais úteis. Por exemplo, anos antes um soldado da Máfia escapara de seu controle. Reza a lenda que Angiulo procurara seus contatos no Departamento de Polícia de Boston, e o renegado não tardou a ser detido sob falsas acusações após os policiais corruptos terem plantado armas em seu carro. Ninguém sabe ao certo se Angiulo era de fato capaz de manipular uma prisão como essa. Mas a história circulou, e Whitey Bulger e o resto da gangue de Howie Winter acreditavam nela. Como Connolly bem sabia, convicção sobre a veracidade de algo era tudo que importava de verdade. — E se três policiais me pararem à noite e disserem que eu tinha uma metralhadora no carro? Em quem o juiz vai acreditar? Em mim ou nos três policiais? — Bulger estava claramente preocupado com uma possível armação de Angiulo. Connolly se fez valer dessas contracorrentes de paranoia no submundo. Os dois estavam no Plymouth, as luzes da cidade tremeluzindo na água. — Você devia usar seus amigos na lei — salientou Connolly, frase que levou Bulger a encarar o agente intensamente, pressentindo uma abertura capaz de lhe proporcionar vantagem. — Quem? — perguntou Whitey, finalmente. — Você? — É — respondeu Connolly para o homem impiedoso que usava as pessoas e as jogava fora. — Eu. * * * A proposta de Connolly era simples: Bulger devia entregar a Cosa Nostra e deixar que o FBI cuidasse do resto. Connolly lembrou o gângster de que “se nós do FBI estivermos perseguindo a Máfia, vai ser muito difícil a Máfia perseguir vocês”. No momento em que Connolly dera a entender que queria um encontro, Bulger sabia o que o FBI queria. Por semanas, já vinha trabalhando a proposta, pesando prós e contras, visualizando os ângulos e potenciais benefícios. Chegara a consultar Stevie Flemmi. Bulger tocou no assunto quando os dois estavam em Somerville, na Marshall Motors, oficina mecânica de Howie Winter. Com apenas um andar, a garagem era um prédio inconspícuo feito de blocos de concreto. Parecia um bunker e servia de fachada para a infinidade de negócios ilegais da gangue, que desde 1973 haviam se expandido e passado a arranjar resultados em corridas de cavalos por toda a Costa Leste. Bulger contou a Flemmi que o agente federal John Connolly estava fazendo uma oferta por seus serviços. “O que acha?”, perguntou Bulgerquando ficaram a sós. “Devo me encontrar com ele?” A pergunta pairou no ar. Mais tarde, Flemmi concluiu que, se Whitey Bulger lhe confidenciara uma proposta do FBI, estava sinalizando que já sabia algo sobre o “status” secreto do próprio Flemmi, que tinha um passado com o FBI de Boston, e que passado. Ele fora recrutado como informante pela primeira vez em meados dos anos 1960. Flemmi adotou o codinome “Jack de South Boston” para tratar com seu responsável no bureau, um agente chamado H. Paul Rico (parceiro de Dennis Condon). Rico, um elegante agente veterano que gostava de vestir sobretudo Chesterfield e usar abotoaduras francesas, mantinha Flemmi por seu acesso à Máfia da região da Nova Inglaterra. Ele não era membro, mas conhecia todos os seus atores principais e, com frequência, estava em sua companhia. A Máfia gostava de Flemmi, um ex-paraquedista do exército que saíra de um centro de detenção juvenil com 17 anos para cumprir dois desdobramentos na Coreia com o 187o Grupo de Combate Regimental Aerotransportado. Flemmi tinha a reputação de ser um assassino impiedoso, apesar de seu físico diminuto: 1,70 metro de altura e 64 quilos. Ele atuava por conta própria, baseado no Marconi Club, em Roxbury, propriedade sua que combinava casa de apostas, salão de massagem e bordel, onde pegava recados, atendia a telefonemas e marcava reuniões. Flemmi era um sujeito popular, de cabelo castanho cacheado e olhos da mesma cor, apreciador de carros e da companhia de jovens mulheres na noite. Até o chefão da região da Nova Inglaterra, Raymond L. S. Patriarca, manifestava seu apreço por ele. No inverno de 1967, Flemmi foi convocado a Providence. Almoçou com Patriarca e o irmão do mafioso, Joe, e o evento se estendeu pela tarde afora. Conversaram sobre família. Patriarca perguntou-lhe de onde na Itália eram seus pais. Conversaram sobre negócios. O chefão prometeu levar carros para a nova oficina de funilaria que Flemmi abrira. Conversaram um pouco sobre o irmão de Flemmi, Jimmy “Urso”, que cumpria pena por tentativa de homicídio. Num gesto de amizade, Patriarca deu a Flemmi 5 mil dólares em dinheiro para sua nova oficina. Em Boston, Flemmi andava na maior parte do tempo com um colega de infância, Frank Salemme, cujo apelido era “Cadillac Frank”. Os dois haviam crescido em Roxbury, onde a família de Flemmi morava no conjunto habitacional Orchard Park. Seu pai, Giovanni, um imigrante italiano, trabalhava como pedreiro. Flemmi e Salemme atuavam juntos nas ruas como soldados, agenciadores de apostas e agiotas. Frequentavam o North End, bairro italiano fortemente unido onde o subchefe Gennaro Angiulo mantinha seu escritório, e muitas vezes terminavam em festanças tarde da noite, na companhia do beberrão Larry Zannino. Zannino era o mafioso violento e cruel em quem Angiulo confiava para usar de força bruta nas empreitadas da Cosa Nostra em Boston. Zannino, por sua vez, confiava em Flemmi e Salemme para empregar parte de seu dinheiro de agiotagem nas ruas. Mas, se por um lado todo mundo gostava de Flemmi, o sentimento não era mútuo. Ele não confiava no North End, tampouco em Angiulo, e menos ainda em Zannino. Quando bebiam juntos, Flemmi pegava leve e tomava cuidado para não baixar a guarda. Mas Zannino e os outros não notavam e se tornaram cada vez mais amigos de Flemmi. No verão de 1967, por exemplo, houve a noite no restaurante Giro’s, na Hanover Street, passada com um bando de mafiosos locais: Zannino, Peter Limone, Joe Lombardi. Flemmi estava com Salemme. Eles comeram e beberam, então Zannino insistiu que fossem para um bar nas proximidades, Bat Cave. Após tantos copos e com a voz empastada, Zannino e Limone deram a entender que haviam decidido afiançar Flemmi e Salemme “para serem membros da organização”. Dando-se ares de importância, Peter Limone então passou os braços em torno de Flemmi e Salemme. “Normalmente, antes de virar membro o cara tem que apagar alguém”, confidenciou o mafioso mais velho. “Além de tudo, eu precisaria ir junto, como responsável, para verificar se fizeram mesmo o serviço e informar como se saíram. Mas, com a reputação de vocês dois, talvez isso não seja necessário.” Mas Flemmi não tinha intenção de se juntar à Máfia e resistiu à abordagem. Para começar, não ia com a cara do brutal Zannino, que era capaz de abraçar você num momento e estourar seus miolos no seguinte. O mesmo valia para Angiulo. Além do mais, Flemmi tinha Rico, e vice-versa. Dada a guerra de gangues e todas as voláteis alianças, a vida de Flemmi estava nas mãos de quem chegasse primeiro. Mais de uma vez ele dissera a Rico que “era alvo preferencial para uma execução” e, em outros informes, Rico reportou que Flemmi não tinha endereço permanente porque, se “a casa ficar conhecida, provavelmente vão tentar acabar com sua vida”. Flemmi passou a confiar cada vez mais nos alertas de Rico quanto a qualquer problema que o FBI identificasse por meio de outros informantes. Mais do que isso, Flemmi passou a esperar que Rico não o pressionasse para saber de suas atividades criminosas — a jogatina, a agiotagem, muito menos os assassinatos. Na primavera de 1967, após o desaparecimento do gângster Walter Bennett, Flemmi contou a Rico: “O FBI não deveria perder tempo procurando por Walter Bennett na Flórida, nem em lugar algum, porque não vai encontrar”. Rico perguntou o que acontecera de fato com Bennett. Flemmi deu de ombros e respondeu que não fazia “o menor sentido conversar sobre o paradeiro de Walter”, e que seu sumiço era melhor para todos. Rico simplesmente deixou por isso mesmo. No fim dos anos 1960, Flemmi era suspeito da chacina de vários membros de gangue, mas o FBI jamais o pressionou seriamente para falar sobre os assassinatos. No início de setembro de 1969, Flemmi foi finalmente indiciado por júris secretos em dois condados. No condado de Suffolk, foi acusado pelo homicídio do irmão de Walter Bennett, William, morto a tiros no fim de 1967 e jogado de um carro em movimento na área de Mattapan, de Boston. Depois, no condado de Middlesex, Flemmi e Salemme foram acusados pela explosão no carro de um advogado, que arrancou a perna da vítima. Pouco antes da sentença, Flemmi recebeu um telefonema. Era o início da manhã e Paul Rico estava no outro lado da linha. “Foi uma conversa muito curta, breve”, lembrou Flemmi. “Ele me contou que as acusações seriam formalizadas e sugeriu que eu e meu amigo caíssemos fora de Boston imediatamente, ou qualquer coisa nesse sentido.” Flemmi fez exatamente como instruído. Mandou-se de Boston e passou os quatro anos e meio seguintes foragido, primeiro em Nova York e depois, na maior parte, em Montreal, onde trabalhou como impressor num jornal. Durante o período, ligou para Rico várias vezes, e o amigo o manteve informado do andamento dos processos. Rico não passou adiante qualquer informação sobre o paradeiro de Flemmi para os investigadores de Massachusetts que tentavam rastreá-lo. Ainda que Rico houvesse instruído Flemmi de que ele não devia se considerar empregado do FBI e tivesse conversado sobre parte das outras diretrizes básicas do bureau para os informantes, os dois encaravam a maior parte das instruções como uma incômoda formalidade. O importante era que Rico prometera a Flemmi que manteria a confidencialidade sobre o fato de ele ser informante, o que se constituía fundamental para a aliança. Era uma garantia que a maioria dos agentes normalmente dava aseus informantes, uma garantia tida como “sagrada”. Mas, para Rico, a promessa era sagrada a qualquer custo, mesmo se exigisse que ele cometesse o crime de auxiliar e encorajar um fugitivo. Rico prometeu que, enquanto Flemmi trabalhasse como seu informante, ele tomaria as providências para que não o processassem por atividades criminosas. Por motivos óbvios, um acordo como esse se mostrara vantajoso para Flemmi. Ele também apreciava o fato de que Rico não o tratava como algum tipo de gângster do mal. Rico não era o pomposo homem do governo preparado para borrifar o lugar com desinfetante assim que Flemmi deixasse o ambiente. Estava mais para um amigo e um igual. “Era uma parceria, acredito”, declarou Flemmi. No fim, as acusações criminais contra Flemmi foram retiradas após testemunhas-chave terem dado para trás. E, em maio de 1974, Flemmi pôde encerrar a vida de fugitivo e voltou para Boston. Com a ajuda do FBI, ele sobrevivera às guerras de gangues e superara as acusações de homicídio e participação no atentado contra o advogado. Mas Flemmi não tinha a menor intenção de seguir uma vida honesta. Assim que regressou a Boston, associou-se a Howie Winter e voltou ao que sabia fazer melhor. E dessa vez estava ao lado de Whitey Bulger na Marshall Motors. — Devo me encontrar com ele? — perguntara Bulger. Flemmi refletiu por um momento. Não fazia um ano desde que voltara, e lhe parecia óbvio que as coisas estavam caminhando. Ficou claro para ele que algum novo arranjo estava em curso. Ele até se encontrara a sós com Dennis Condon, uma breve reunião num café onde foi apresentado a John Connolly. Flemmi encarou toda a conversa ao pé do ouvido como uma espécie de “transição”, com Connolly sendo preparado para assumir, por causa da transferência de Paul Rico para Miami e sua iminente aposentadoria. Com o tempo, é claro, Flemmi conhecera um lado bastante vantajoso no acordo com o FBI. Mas ele era apenas Steve Flemmi, não o já lendário Whitey Bulger. Com cautela, Flemmi optou por uma resposta curta. Carregada de entrelinhas, mas, não obstante, breve. — Provavelmente é uma boa ideia — respondeu. — Vai lá e fala com ele. * * * Connolly não tinha a menor pressa para tentar convencer Bulger. “Só quero que me escute”, disse dentro do carro na Wollaston Beach. Connolly se aproveitou com cuidado da ameaça em duas frentes que Bulger e sua gangue Winter Hill vinham enfrentando com a Máfia de Gennaro Angiulo: “Ouvi dizer que Jerry está passando informação para os federais pegarem você.” Conversaram sobre como Jerry Angiulo definitivamente contava com uma vantagem na competição, sendo capaz de recorrer a um policial corrupto para pedir favor. “A Máfia tem todos os contatos”, disse Connolly. Então, Connolly foi em frente e citou a pendenga das máquinas automáticas. Comentou que vinham dizendo nas ruas que Zannino estava pronto para pegar em armas contra Bulger e seus amigos da gangue Winter Hill. “Sei que está sabendo que a organização vai tentar alguma coisa contra você.” O comentário deixou Bulger particularmente de orelha em pé. Na verdade, a Cosa Nostra e a Winter Hill sempre haviam encontrado um jeito de coexistir. Não que não houvesse disputas para resolver, mas os grupos estavam mais para parceiros cautelosos do que para inimigos à beira da guerra. O venenoso e imprevisível Zannino, o duas-caras da Máfia, era capaz de denunciar a Winter Hill durante um acesso de raiva e jurar fazer picadinho deles com uma saraivada de balas, mas no momento seguinte ficar melodramático e proclamar com ardor: “A Hill somos nós!” Verdade seja dita: na época, Gennaro Angiulo estava mais preocupado com as ameaças que vinha recebendo de um desertor italiano cabeça quente conhecido como “Bobby Brilhantina” do que com uma guerra iminente com a Winter Hill. Mas, para os propósitos de Connolly, era melhor enfatizar a rusga entre a Cosa Nostra e a Winter Hill a respeito das máquinas automáticas, e Connolly percebeu ali mesmo que acertara um ponto sensível do destemido Bulger ao mencionar o potencial para a violência na situação. Bulger ficou claramente enfezado. — Acha que a gente não vence esse páreo? — retrucou. Connolly de fato achava que Bulger poderia levar a melhor. Acreditava piamente que Whitey e Flemmi eram muito mais duros na queda do que Angiulo e seus rapazes — “matadores rematados”, era como chamava a dupla. Mas a questão não era essa. — Tenho uma proposta: por que não usa a gente pra fazer com eles o que estão fazendo com você? Combater fogo com fogo. O acordo era simples assim: Bulger devia usar o FBI para eliminar os rivais mafiosos. E, se isso por si só já não fosse motivo suficiente, caso Bulger cooperasse, o bureau deixaria de tentar pôr as mãos nele. Na verdade, naquele momento havia outros agentes do FBI farejando e fazendo perguntas sobre as operações de agiotagem de Bulger. — Trabalhe com a gente. Vamos proteger você — prometeu Connolly, assim como Rico prometera a Flemmi antes dele. Bulger ficou claramente intrigado. — Não dá pra sobreviver sem amigos dentro da lei — admitiu ele ao final da noite. Mas foi embora sem se decidir. Duas semanas depois, Connolly e Bulger voltaram a se encontrar em Quincy, dessa vez para sacramentar o acordo. — Tudo bem — afirmou Bulger —, me põe nessa. Se eles querem jogar dama, a gente vai jogar xadrez. Eles que se fodam. Isso foi música para os ouvidos de John Connolly. Era incrível, mas ele acabara de recrutar Whitey Bulger para o FBI. Se manter informantes era considerado o ponto culminante do trabalho investigativo, Connolly passara a ser cachorro grande, concluiu ele com orgulho. Numa única jogada ousada, ele deixara todo o entediante trabalho burocrático para trás e passara a integrar uma nata composta por homens do naipe de Paul Rico, prestes a se aposentar. Se, para Connolly, Rico era o agente que servia de modelo para um monte de jovens reformistas do bureau, Bulger era a lenda do bairro, reverenciada por todos os rapazes em Southie. Connolly sentiu que o momento marcava a fusão mágica dos dois mundos. Além do mais, esse acordo em particular gozava de um certo elã. O último gângster que qualquer um em Boston imaginaria ser informante do FBI era Whitey Bulger, de South Boston. De fato, com o passar dos anos Connolly sempre se mostrou sensível a essa aparente incongruência. Entre os colegas, ele raramente, se é que alguma vez, chamou Bulger de informante, delator, dedo-duro ou caguete. Sempre ficava irritado quando, mais tarde, escutava alguém usar esses termos. Para ele, Bulger era uma “fonte”. Ou então usava expressões que Bulger pedia: “estrategista” ou “ligação”. Era como se nem o próprio homem que convencera Whitey a virar a casaca acreditasse. Ou, talvez, desde o início o acordo fosse mais uma amizade renovada entre Johnny e Whitey, do Old Harbor, do que um entendimento formal com o FBI. E, embora John Connolly certamente estivesse pensando em sua carreira, o trato não tinha a ver com o que podia estar por vir, mas com o lugar de onde ele viera. Um círculo, uma volta, um laço: todas as ruas levavam a Southie. Connolly sempre se mostrou respeitoso com Bulger, que era mais velho, e preferia tratá-lo pelo primeiro nome, Jim, em vez de usar o apelido das ruas que a mídia adotara. Essas coisas talvez pareçam detalhes, mas foram detalhes que tornaram o acordo palatável. Bulger, por exemplo, insistiu que forneceria informações apenas sobre a Máfia italiana, não sobre a irlandesa. Alémdo mais, insistiu que Connolly não contasse a seu irmão Billy, na época senador estadual, sobre a nova “transação”. Havia uma ironia carregada e inescapável no acordo entre Bulger e o FBI, que se deu durante o segundo ano de transporte escolar forçado em South Boston. O panorama era bizarro. O povo de Southie, incluindo líderes como Billy Bulger, não conseguira repelir o governo federal, que estava varrendo a área para fazer valer a lei. As autoridades federais chegaram em grande número e eram odiadas. Essa era a dura realidade da vida pública dos moradores. Mas Whitey Bulger firmara um acordo que paralisaria os federais. O FBI precisava de Whitey e não contemplava a possibilidade de dar cabo dele. O resto do mundo podia pertencer aos federais, mas isso não valia para o submundo. Whitey encontrara uma forma de mantê-los afastados de Southie. Por vias tortas, ele fora bem-sucedido onde seu irmão falhara. Na mesma hora, a estrada da informação ganhou movimento. Houve novos encontros. Bulger incluiu Flemmi, e firmou-se um pacote de acordos. De sua parte, Bulger admitia claramente o valor de se juntar a Flemmi, dado o rico acesso deste aos mafiosos e ao tipo de informação que Connolly tanto desejava. Por sua vez, Flemmi tinha que reconhecer o valor de se associar a Bulger, não só por sua mente afiada, como pela condição de protegido, particularmente com Connolly. Flemmi percebia algo especial se passando entre Bulger e Connolly desde o início. “Eles tinham uma relação.” Para Connolly, Flemmi era um recurso já utilizado, mas Bulger era dele, uma grande jogada para o FBI em Boston. Era um tremendo acordo, uma conquista louvável, e Connolly ficou encarregado de dois gângsteres de nível intermediário posicionados para ajudar o FBI na campanha declarada para enfraquecer as operações da Máfia. Mas o novo acordo não significava que Whitey refrearia seu estilo. Na verdade, apenas cinco semanas após o arquivo do informante Whitey Bulger ter sido oficialmente aberto, em 30 de setembro de 1975, ele realizou o primeiro assassinato em seu período com o FBI. Ele e Flemmi liquidaram um estivador de Southie chamado Tommy King. O crime foi parte briga por poder, parte vingança e, principalmente, questão de orgulho para Bulger. Bulger e King, que nunca haviam sido amigos, tiveram uma discussão certa noite num bar de Southie. A pancadaria começou. King derrubou Bulger e o socou até os outros enfim o tirarem de cima. A oportunidade do troco surgiu para Bulger em 5 de novembro de 1975. Sem dúvida encorajado por saber secretamente que o FBI sempre tentaria permanecer em bons termos com ele, Bulger atacou King com Flemmi e um comparsa. O estivador desapareceu de Southie e do mundo. Não surpreende que Bulger não tenha mencionado nada disso nos encontros com Connolly; pelo contrário, um dos primeiros relatórios de Bulger foi de que a inquietação da gangue irlandesa e o derramamento de sangue supostamente iminente entre Winter Hill e a Máfia havia gorado — muito barulho por nada. As ruas estavam calmas, relatou Bulger. E então começou. CAPÍTULO DOIS South Boston Para esperar por Whitey em Wollaston Beach, John Connolly tinha primeiro que conseguir regressar de Nova York. Cadillac Frank Salemme, amigo de infância de Flemmi, seria sua passagem de volta para casa. A prisão de Salemme aconteceu numa tarde nova-iorquina fria e de céu claro, em dezembro de 1972, quando mocinhos e bandidos se cruzaram na Third Avenue. De repente, um rosto na multidão chamou a atenção de Connolly, que pediu aos colegas de FBI que desabotoassem os casacos de inverno e sacassem as armas. Na neve, uma perseguição lenta, quase cômica, terminou com o vendedor de joias Jules Sellick, da Filadélfia, protestando que não era Frank Salemme, de Boston, procurado pela tentativa de assassinato de um advogado da Máfia. Mas era ele. O jovem agente não tinha algemas e precisou apontar a arma, enfiar Salemme num táxi e gritar para o perplexo motorista levá-los à sede do FBI mais próxima, na East Sixty-ninth com a Third. A questão das algemas mereceu uma repreensão afável do chefe, mas houve sorrisos invejosos e tapinhas nas costas pela captura de um dos mafiosos mais procurados de Boston. Alguns ficaram admirados com o fato de Connolly ter sido capaz de reconhecer Salemme, mas não foi tanto uma questão de sorte, como pareceu. Um agente veterano no escritório do FBI em Boston fora com a cara de Connolly e mais cedo lhe enviara fotografias e lugares prováveis para encontrar Salemme, dicas que obtivera com relatórios de informantes. Foi um exemplo perfeito de quão valiosos eles podiam ser. Para Connolly, a prisão de Cadillac Frank resultou numa transferência de volta para casa, uma volta extraordinariamente rápida para um agente com apenas quatro anos de serviço. Em 1974, Salemme foi sentenciado a quinze anos de prisão, e Connolly estava de volta às ruas de sua infância. Na época, Bulger era o gângster irlandês proeminente no bairro notoriamente irlandês de South Boston. Quando Connolly regressou, Bulger acabara de solidificar seu domínio na jogatina e na rede de agiotagem em Southie, a culminação de uma ascensão lenta e constante que começara em 1965, ao ser libertado das prisões mais implacáveis do país. Os dois falavam a mesma língua e partilhavam profundas raízes naquele lugar tribal. Achavam-se cada um numa ponta do estreito espectro de carreiras disponíveis para católicos irlandeses morando em isolamento na península que avançava pelo oceano Atlântico. O coeso bairro ficava separado do centro de Boston pelo Fort Point Channel e por um modo único de pensar. Por décadas, Southie fora o imigrante irlandês contra o mundo, lutando primeiro uma batalha perdida contra a vergonhosa discriminação dos comerciantes de ascendência inglesa, ianques, que haviam governado Boston por séculos, depois outra contra burocratas negligentes e um obstinado juiz federal que impôs o transporte escolar à “cidade” que, para começo de conversa, odiava forasteiros. Ambos os confrontos foram o tipo de luta honrada que deixou os moradores do jeito que gostavam: ensanguentados, mas insubmissos. As batalhas compartilhadas reafirmavam uma visão sobre a vida: nunca confie em estranhos e nunca se esqueça de onde veio. Certa vez, um policial aposentado recordou as escolhas restritas que se ofereciam a um jovem de South Boston durante as décadas de 1940 e 1950: Forças Armadas, prefeitura, empresas de serviços públicos, trabalho fabril, crime. “Era gás, energia, Gillette, município, policial, bandido”, declarou ele. As décadas de trabalho árduo tornaram os moradores de Southie rápidos na briga por oportunidades limitadas. Bulger e Connolly, bandido e policial, cresceram no primeiro conjunto habitacional de Boston, um lugar espartano com 34 edifícios populares exiguamente espaçados, feitos de tijolos. O projeto foi erguido por um empreiteiro amigo do lendário prefeito James Michael Curley, com dinheiro da Agência Administrativa de Serviços Públicos, de Franklin Delano Roosevelt. Os dois eram reverenciados na casa dos Bulger, em Logan Way — Curley pela língua afiada, e Roosevelt por salvar a classe trabalhadora da devastação do capitalismo. Os pais de Connolly — John J. Connolly, empregado da Gillette por cinquenta anos, e sua modesta mãe, Bridget T. Kelly — moraram no conjunto até John completar 12 anos. Em 1952, a família “subiu de vida” e se mudou para City Point, melhor endereço de Southie, pois tinha vista parao mar, no extremo do promontório. O pai de Connolly era conhecido como “Galway John”, nome do condado irlandês onde nasceu. Ele fez da igreja, de South Boston e da família o centro de sua vida. De algum modo, o pai de três crianças conseguiu ganhar dinheiro suficiente para mandar John para a Columbus High, escola católica no italiano North End. Era como viajar para um país estrangeiro, e John Jr. gracejava sobre uma baldeação que exigia “carros, ônibus, trens”. O instinto de Southie para o dever patriótico e o serviço público também conduziu o irmão mais novo de Connolly, James, para as forças da lei. Ele se tornou um respeitado agente da Drug Enforcement Administration (DEA), uma versão atenuada de seu fanfarrão irmão mais velho. Os irmãos Connolly e os Bulger chegaram à adolescência num lugar limpo e bem-iluminado à beira-mar, cercados por quilômetros de parques, campos de futebol americano e de beisebol, além de quadras de basquete. Os esportes dominavam. Old Harbor tinha gerações de famílias inteiras, sorvete de graça no Quatro de Julho e escadarias que viravam sedes de clube, com cerca de trinta garotos por prédio. O projeto de 110 mil metros quadrados era o ponto intermediário entre City Point, com suas brisas marinhas e cortinas de renda, e o Lower End, com mais diversidade étnica e suas casinhas em forma de caixote ladeando rotas de caminhão que levavam a fábricas, garagens e tavernas ao longo do Fort Point Channel. Até hoje o bairro mantém de maneira consistente a porcentagem mais elevada de moradores antigos, reflexo de uma ênfase histórica em permanecer bravamente, em vez de ir embora, sinal de um orgulho poderoso. À medida que South Boston se rendeu pouco a pouco à valorização imobiliária em sua desocupada orla marítima no fim da década de 1990, os vereadores locais procuraram reafirmar seus valores tradicionais, proibindo portas francesas nos cafés e deques de cobertura nos condomínios de frente para o mar. * * * A mentalidade “nós contra eles” no coração da vida em Southie é ainda mais profunda do que as raízes irlandesas. Antes de a primeira grande onda de imigrantes irlandeses tomar a península, após a Guerra Civil, em 1847 chegara à prefeitura uma petição furiosa ao governo “central” queixando-se da falta de serviços municipais. Levaria algumas décadas para os imigrantes famintos — que cambalearam para a praia em Boston quando a praga da batata assolou a Irlanda de 1845 a 1850 — alcançarem os ondulantes e verdejantes outeiros do que na época se chamava Dorchester Heights. A fome reduziu em um terço a população da Irlanda, com a morte de 1 milhão por inanição e a fuga de 2 milhões que queriam se salvar. Como se fosse a menor distância entre dois pontos, muitos rumaram para Boston e se espalharam pelas fétidas habitações populares à beira- mar do North End. Na década de 1870, eram gratos por partilhar um barraco em que três de cada dez crianças morriam antes de completar 1 ano. Os recém-chegados católicos irlandeses se aferraram imediatamente às tradicionais implicâncias de Southie contra gente de fora. De fato, isso ganhou força de palavra religiosa à medida que a comunidade se congregava em torno da igreja e da família, formando uma sólida falange contra qualquer um que não compreendesse seus modos e costumes. Desde então, nada incomoda mais os moradores de Southie do que se considerarem menosprezados por alguém de fora querendo mudar O Modo como as Coisas São. Na hegemonia católico-irlandesa que se formou, um casamento misto não era apenas entre católico e protestante. Podia também ser de um italiano com uma irlandesa. Embora Boston já fosse uma cidade estabelecida havia dois séculos à chegada dos maltrapilhos e famintos imigrantes, South Boston só se tornou uma comunidade irlandesa integrada após a Guerra Civil, quando negócios recém-criados levaram emprego estável para os moradores locais. No período posterior à guerra, a população da península cresceu em 30%, comparado à população atual, de 30 mil pessoas. Trabalhadores irlandeses começaram a se fixar no Lower End para se empregar nos estaleiros e nas ferrovias que tanto simbolizaram a época. Pouco depois, os bancos locais e as igrejas católicas abriram as portas, incluindo a paróquia de Santa Monica, destino dominical do irmão mais novo de Whitey Bulger, Billy, e de seu inseparável parceiro, John Connolly. No fim do século XIX, a maioria dos homens trabalhava na estiva dos cargueiros na Atlantic Avenue. As mulheres atravessavam a Broadway Bridge após o jantar para ir ao distrito financeiro da cidade, onde limpavam o chão e esvaziavam cestos de lixo, voltando para casa pela mesma ponte por volta da meia-noite. Ao fim do século, a presença católica irlandesa era tal que os moradores se congregavam segundo o condado irlandês de origem — Galway nas ruas A e B, gente de Cork na D e assim por diante. O espírito de clã era parte da maresia. Foi por isso que John Connolly do FBI conseguiu retomar um relacionamento fácil com um arquicriminoso como Whitey Bulger. Certas coisas faziam diferença. Além das raízes étnicas em comum, o ímã da vida diária era a Igreja Católica. Tudo girava em torno dela — batismo, primeira comunhão, crisma, casamento, unção dos enfermos, velórios. No domingo, dia especial, os pais iam à missa de manhã cedo, e os filhos assistiam à missa das crianças, às 9h30. A interação de religião e política era natural: às vezes, um dos primeiros passos para a vida pública era passar o chapéu de vez em quando pelos assentos, trabalho de alta visibilidade. Como a própria Irlanda, Southie era um ótimo lugar — contanto que você tivesse emprego. A Depressão passou como uma bola de demolição pela falange interdependente de família e igreja. A rede que funcionara tão bem entrou em colapso quando o chefe da casa ficou sem trabalho. Uma implacável taxa de desemprego de 30% prejudicou gravemente a visão de que era possível assegurar o futuro com trabalho duro e ficha limpa. Mudou o estado de espírito de um lugar aprazível, e o entusiasmo deu lugar ao desespero. E não foi apenas em Southie: a economia de Boston estagnara, e, já em meados da década de 1940, anos de formação para os irmãos Bulger e John Connolly, a cidade se tornou um malfadado rincão atrasado. Os prédios de escritórios eram baixos e tristes, e as perspectivas, sombrias. A renda estava lá embaixo, os impostos lá em cima, e os negócios enfrentavam uma letargia. A cidade era afligida pelo legado de uma oligarquia governante da elite tradicional que perdera a verve. Os dinâmicos ianques do século XIX tinham dado lugar a banqueiros suburbanos indiferentes ao centro da cidade, uma geração de unhas de fome que cultivava fundos fiduciários em vez de forjar negócios. Ao mesmo tempo, imigrantes esperançosos tornavam-se deprimentes burocratas. Pouco mudou até a renovação urbana da década de 1960. Foi nessa época e nesse lugar austeros que James e Jean Bulger chegaram em 1938, à procura de um terceiro dormitório para sua família cada vez maior no primeiro conjunto habitacional de Boston. James tinha 9 anos, Billy, 4. Os Bulger pretendiam criar três meninos num quarto e três meninas no outro. Embora o condomínio Old Harbor fosse um imenso playground para as crianças, os pais precisavam estar praticamente falidos para acabar ali, e os Bulger preenchiam esse critério com facilidade. Quando novo, James Joseph Bulger perdera boaparte do braço, preso entre dois vagões de trem. Embora trabalhasse vez ou outra como escriturário no estaleiro da marinha em Charlestown, pegando o último turno aos feriados como tapa-buraco, ele nunca mais conseguiu um emprego em período integral. Baixinho, de óculos e cabelo louro-claro, liso e penteado para trás, James Bulger andava por praias e parques de South Boston fumando charuto, com o paletó pendurado no ombro do braço amputado. A vida dura começara nos prédios populares do North End, no exato momento em que a vizinhança irlandesa da era da fome dava lugar a outra onda imigratória, dessa vez vinda do sul da Itália, na década de 1880. Ele era muito interessado em atualidades; um dos amigos de infância de Billy lembrava- se de ter topado com ele numa caminhada e ser alugado numa longa conversa sobre “política, filosofia, todo esse negócio”. Mas o pai era um solitário que ficava no apartamento a maior parte do tempo, sobretudo quando o rádio transmitia jogos dos Red Sox. Por outro lado, era fácil encontrar a falante Jean na varanda de fundos que dava para a Logan Way, conversando com os vizinhos, mesmo após um duro dia de trabalho. Muitos deles se lembravam de Jean Bulger como uma mulher alegre, inteligente, fácil de gostar e difícil de tapear. Diziam que Billy era como ela, amistoso e extrovertido, correndo para a biblioteca com uma mochila carregada de livros ou indo à igreja para um casamento ou enterro, a sotaina de coroinha esvoaçando sobre o ombro. Mas Billy também partilhava do apreço paterno por privacidade e solidão. Numa rara entrevista sobre a família, Bulger falou saudosamente do pai, seus modos estoicos e seu destino ingrato, desejando que tivessem conversado mais e passado mais tempo juntos. Ele recordou o dia em que foi para o exército, perto do fim da Guerra da Coreia, com os pais tensos de preocupação porque o genro fora morto em ação dois anos antes. James e Jean levaram Billy a South Station, para pegar o trem até Fort Dix, em Nova Jersey. Seu pai, então com quase 70 anos, o seguiu pelo corredor do trem até seu assento. “Eu pensei: ‘Qual é?’ Você sabe como são os jovens. Meu pai pegou minha mão e disse: ‘Bom, Deus te abençoe, Bill.’ E isso era incomum vindo dele. Eu lembro porque foi bem mais do que meu pai costumava dizer.” * * * Billy Bulger concorreu a um cargo público em 1960 porque precisava de emprego, uma vez que estava perto de se formar na Faculdade de Direito da Universidade de Boston e ia se casar com a namorada de infância, Mary Foley. John Connolly foi um dos que trabalharam na campanha. Originalmente, Bulger pretendia permanecer alguns mandatos na Câmara dos Representantes e depois deixar o cargo para se tornar advogado de defesa criminal. Mas não saiu, equilibrando um pouco da prática legal com a vida pública e uma família cada vez maior. Os Bulger teriam nove filhos, quase um por ano ao longo da década de 1960. Billy chegou ao Senado Estadual em 1970 e se tornaria o presidente da câmara que permaneceu por mais tempo no cargo na história de Massachusetts. Com o passar do tempo, exercendo a legislatura, Billy passou a ser o exemplo perfeito de South Boston, com seu queixo erguido e sua agenda conservadora. Ele se tornou uma figura provocativa conhecida em todo o estado, e se regozijava em emendar liberais suburbanos que julgavam a imposição do transporte escolar uma boa ideia para o bairro dele, mas não para o bairro em que moravam. Tinha paixão por voltar a disputar antigas batalhas perdidas, a mais emblemática de todas sendo a dos plebiscitos estaduais que impingiu a um eleitorado indiferente na década de 1980 para corrigir um antigo erro que encontrou na constituição do estado. Uma cláusula anticatólica de 1855 proibia a ajuda às escolas paroquianas, e, embora Bulger fosse o primeiro a admitir que isso não causara nenhum mal duradouro, ele queria vê-la removida por causa da intenção original. Que a emenda corretiva fosse esmagadoramente rejeitada duas vezes nas urnas não fez diferença. O importante era brigar. Tudo isso era parte do que fazia dele um dos políticos dominantes de seu tempo, um personagem paradoxal que combinava a rara mistura de educação formal e sabedoria das ruas. Ele era ao mesmo tempo um pequeno déspota e um conciliador prodigioso, um homem reservado que adorava uma audiência, uma figura pública brincalhona com um lado negro que o fazia levar qualquer acinte para o lado pessoal. Sua metade ruim continua sendo uma faceta não muito agradável de se presenciar. Embora Billy Bulger fosse notório pelo estilo douto e magnânimo, ele era capaz de mostrar outro lado. Em 1974, quando manifestantes contrários ao transporte escolar forçado foram presos diante de uma escola do bairro, Bulger estava no local e denunciou a polícia por agir com força desmedida. Confrontou o comissário de polícia da cidade, Robert diGrazia, pondo-lhe o dedo na cara e acusando-o de chefiar tropas da “Gestapo”, para em seguida se afastar, enfurecido. DiGrazia retrucou algo sobre os políticos não terem tido “colhões” para lidar com a dessegregação antes, quando as coisas poderiam ter sido diferentes. Bulger girou nos calcanhares para o segundo round, aproximando-se outra vez de diGrazia, que era bem mais alto. “Vai se foder”, disse raivosamente o senador na cara do comissário. Quando a questão do transporte escolar deixou Southie de pernas para o ar, até Whitey Bulger entrou em cena, mas no incongruente papel de apaziguador. Ele agiu nos bastidores para tentar levar um pouco de calma às ruas, entre seus asseclas. Mas suas exortações dificilmente podiam ser consideradas fruto de altruísmo cívico. Ao trazer a perspectiva de uma presença prolongada da polícia em South Boston, a lei do transporte simplesmente era ruim para os negócios. Whitey instruiu os comparsas a não exacerbar as tensões que cresciam nas escolas. A despeito dos turbulentos anos 1970, Billy progrediu rapidamente no Senado Estadual e o presidiu com mão de ferro até o fim da década, mas lutaria contra uma imagem entranhada no folclore de Southie, a do bom e do mau. Isso fez dele um herói na cidade e um anátema num estado democrático liberal. Seu dilema foi capturado no fim da década de 1980, quando combateu o mais recente movimento reformista para levar o debate e a democracia ao Senado Estadual. Um colega tentou convencê-lo de que poderia ser visto como herói caso relaxasse um pouco o controle na câmara. Mas Bulger apenas fez que não: “Não, caras como eu, nunca. Eu sempre vou ser o irlandesinho atrasado e reacionário de South Boston.” * * * Criado no conjunto habitacional, Connolly conhecia os dois irmãos Bulger. Ficou bastante amigo de Billy, atraído pela maturidade e pelo humor que o tornavam tão distinto quanto Whitey era notório. Era com Billy que Connolly voltava para casa após a missa na Santa Monica e foi Billy quem o levou a gostar de livros, embora, de modo geral, Connolly e seus amigos considerassem isso uma maluquice num ambiente tão fanático por esportes. Connolly também conheceu o infame Whitey como o encrenqueiro do Old Harbor que tumultuava o condomínio com brigas de rua e palhaçadas ousadas. Na verdade, todo mundo o conhecia, até os garotos de 8 anos, como Connolly, que certa vez estava numa partida de beisebol em que a coisa ficou feia. Um menino mais velho decidiu que ele estava levando tempo demais para recuperar a bola e mandou outra com toda força no meio de suas costas. Bem menor
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