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Resenha - Azul é a Cor Mais Quente

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Um espectro ronda o cinema – o espectro da homossexualidade. Cineastas de vanguarda se unem para evidenciar aquilo que a relação entre pessoas do mesmo gênero sempre foi: natural. Que cidadão de bem nunca acusou os seus desafetos de serem homossexuais? Que homossexual nunca acusou um homofóbico com a infamante alcunha de enrustido? Duas conclusões decorrem desse fato:
1) A liberdade sexual já é reconhecida como um fato por todas as forças reacionárias;
2) É tempo dos homossexuais (ou não) exporem, à face do mundo inteiro, o seu modo de ver, seus fins e suas tendências, opondo roteiros cinematográficos à lenda do espectro da homossexualidade.
Não há outra introdução possível que revele a minha satisfação com um movimento esparso, mas assemelhado, de cineastas de filmes como Tatuagem, Um Estranho no Lago e Azul é a Cor Mais Quente de trazer o naturalismo ou a super-exposição do sexo entre casais homossexuais para construir narrativas que revelam a natureza humana, ou normal, se assim preferir, destes relacionamentos.
Por certo tempo, imaginei que chegaria um momento em que veríamos fórmulas comuns de romances com casais homo, que esse seria o movimento mais lógico como tentativa pedagógica de ratificar a naturalidade destes relacionamentos. Porém, esses três filmes citados revelam um panorama muito mais rico e ousado. Eles apresentam uma nova estrutura do romance no cinema, há uma perspectiva realista que se sustenta em quatro pilares: sensualização, naturalismo e exposição sexual, estudo de personagem para explorar os percalços de relacionamentos, e camadas de análise e contextualização histórico-sociais.
Em Azul é a Cor Mais Quente, temos a clara sensação que o realizador Abdellatife Kechiche está hipnotizado pela sua musa Adèle Exarchopoulos (Adèle), o plano fechado compõe quase todo o filme, e, somado à movimentação da câmera, revela que aquele é o olhar do diretor, quase sempre como um voyeur, descendo o olhar para a cintura da atriz, ou subindo para o seu cabelo e boca em plano detalhe. O figurino dela é sempre um pouco mais curto, mesmo o casaco deixa a sua bunda e pernas à vista, não são poucas as tomadas em que ela está de costas. Cada vez que arruma o cabelo, a câmera sobe; quando dorme, há planos de cinco ou seis segundos detalham sua boca infantil, ou sua silhueta sensual – a depender do momento da narrativa. Todo o primeiro ato do filme é dedicado às descobertas de Adèle, e o que é encenado se complementa com o diálogo: à marteladas, o roteiro de Kechiche e Ghalia Lacroix nos informa que a garota está experimentando e refletindo ao mesmo tempo sobre o quanto seu desejo pela estranha de cabelo azul é natural, intrínseco e predestinado. Contudo, no desenrolar da fita, vemos que Adèle é apenas a predileta: Kechiche busca a sensualidade em vários outros personagens, principalmente na sequência em que todos se deliciam chupando fios da macarronada, lambendo pedaços de carne em seus dedos e conversando ao pé do ouvido.
À marteladas também somos introduzidos a um outro nível da narrativa: o uso das cores. Como o próprio nome da produção sugere, o azul banha os cenários, luzes, olhos e figurinos quando Adèle aproxima-se emocionalmente de Emma (Lea Seydoux), a tal mulher de cabelos azuis que exala sensualidade e obstinação com o olhar e as palavras. Contudo, Kechiche também sabe ser sutil quando borra o azul ou mistura-o a outras cores, notadamente o vermelho. E tal mistura pode ocorrer desde numa fachada de prédio à roupa que se veste: as listras vermelhas que recortam o azul podem ser grossas ou tênues a depender do desenvolvimento da nossa heroína. Mas, sem dúvida, duas passagens são emocionantes neste esquema: a primeira quando Adèle chega num carro e luzes vermelhas se projetam sobre ele na medida em que um pequeno foco de luz azul pulsa na parte de trás do carro e fica cada vez menor; a segunda ocorre após uma briga entre o casal, quando Emma bate a porta contra a sua companheira, vemos o rosto dela dividido por um vitral laranja e azul.
E se a mão do diretor pesa na narrativa, o que torna o trabalho do elenco sensacional é exatamente o oposto, é a sutileza dos movimentos, dos pequenos desvios de olhares, e do tom de voz sempre muito bem empregado, seja numa voz clara e segura após o sexo, ou num pigarreio que faz ganhar tempo numa discussão. Para o público, a fama da cena de sexo de seis minutos tem precedido o próprio filme, e, de fato, a cena é tórrida, é explícita e de tão bem coreografada, sabemos que foi exaustivamente executada. Há, sem dúvida, o prazer de ver aquelas duas belas mulheres transando, mas, a medida em que a cena se prolonga, saímos da hipnose para contemplar o trabalho magnífico e a entrega das duas atrizes. Além disso, a cena não se perde, pois o seu significado permanece como parte da narrativa, e será explorado quando o relacionamento vai se corroendo, no auge de sua crise, e no momento em que Adèle barganha chupando os dedos de Emma.
Kechiche acerta na dose poética em todos os atos do filme, do ardor dos encontros às complicações dos desencontros. Um dos exemplos desses desencontros está num diálogo travado pelo casal na cama onde Emma deseja que Adèle invista em seu talento como escritora e, num ato de genialidade possível apenas para ótimos roteiristas, somos envolvidos numa série de comunicações atravessadas que revelam a guerra entre o egoísmo e a entrega em que seus espíritos estão mergulhados: o que quer Emma? Que Adèle deixe para trás a singeleza de sua origem da classe operária, ou realmente identifica traços de infelicidade em Adèle? E, se há infelicidade, a garantia do acesso ao seu mundo sofisticado é mesmo a solução? 
Eis mais uma camada da narrativa de Azul é a Cor Mais Quente: a investigação das mentalidades da classe operária francesa e da classe média alta. A partir dos jantares nas casas das famílias dessas duas mulheres vimos vir à tona pontos de vista diversificados sobre homossexualidade, expectativas e sonhos, e sobre o que é imprescindível na vida. Aqui não há julgamentos ou proposições, Kechiche apenas deseja encher sua história com os mais diversos tons e matizes que estão presentes na sua visão subjetiva da França. Prova ainda mais incontestável disso está na diversidade de etnias presente em seu elenco, e nas escolhas de uma trilha sonora pulsante com ritmos latinos e africanos.
Sem dúvida nenhuma, Azul é a Cor Mais Quente terá presença na lista de melhores do ano deste site, com sua temática contundente e uma técnica ambiciosa e cheia de autoralidade. E se for ver, e eu espero que vá, não invente de ficar chocadinho(a) e sair no meio da sessão, pois atrapalhará a experiência alheia, além do que, não há nada mais vergonhoso do que falso moralismo.

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