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O Estado entre a lei e a norma sobre a governamentabilidade em Michel Foucault. Fernandes, R.J.

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O Estado entre a lei e a norma: sobre a governamentabilidade em Michel Foucault
Reginaldo Junior Fernandes
	Michel Foucault, em seu último capítulo de A Microfísica do Poder, discorreu sobre os problemas da relação entre o Estado e a sua população, o que denominou “governamentabilidade”. Ao modo de governo predominante no regime feudal, fundado sobretudo na figura do Rei, identificado com o conjunto dos súditos, sucedeu um processo de concentração estatal, dando origem aos grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais, e com ele, novos problemas na articulação entre este Estado e os seus nacionais, ou de outro modo, de aprofundamento da unificação nacional.
	Para Foucault, pensando sobre Maquiavel (1469-1527), o Príncipe estaria em uma relação de exterioridade e de transcendência em relação ao seu principado – são unidos pela força e pela tradição, sem uma relação de continuidade fundamental entre este e aqueles. E é nesse sentido que “O Príncipe” seria um tratado sobre a habilidade de conservação de seu principado.
	Haveria, contudo, em determinada literatura anti-maquiavel, uma perspectiva diferente dessa relação problemática, contemplada por exemplo, em Miroir politique contenant diverses manières de gouverner, de Guillaume de La Perriére, do séc. XVI, onde, segundo Foucault, o autor propõe o princípio da “arte de governar” como a chave da sabedoria política. Para La Perriére, contrariamente à posição de exterioridade do Príncipe em Maquiavel, as práticas de governo são múltiplas, entendidas no pai de família, no superior hierárquico, no pedagogo, etc; de modo que, em conseqüência, existem diversos governos, do qual o Governo do Estado é “apenas uma modalidade (...) Portanto, pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de governo com relação ao Estado; multiplicidade e imanência que se opõem radicalmente à singularidade transcendente do príncipe em Maquiavel”.�
	No que diz respeito ao governo propriamente de Estado, Focault recorre a um outro escritor de “espelhos de príncipe”, � La Mothe Le Vayer, do século XVII, para quem existem basicamente três tipos de governo, cada qual remetendo a uma forma específica de ciência, sendo o primeiro o governo de si mesmo, respeitante ao âmbito da moral, um outro que trata da arte de governar uma família, relativo à economia, e finalmente, a ciência de bem governar o Estado, com sua peculiaridade atinente à política. O que Foucault quer demonstrar com La Mothe Le Vayer é o fato de que, enquanto a perspectiva da doutrina do príncipe ou a teoria jurídica do soberano postula uma descontinuidade entre o poder do Estado, personificado no Príncipe e demais formas de poder, as teorias da “arte de governar” buscam identificar “uma continuidade ascendente e descendente”.�
	A continuidade ascendente a que se refere Foucault remete à pedagogia do príncipe fundada nos princípios domésticos de governo de família, onde deve se governar de modo semelhante àquele que se prepara para a assunção do Estado, ou seja, deve primeiro saber se governar, governar sua família, bens e patrimônios. A relação descendente por sua vez, diz do Estado que, sendo bem governado, reflete-se no governo dos pais em seu âmbito familiar. E é nessa subsunção das condutas dos indivíduos e na gestão da família ao governo do Estado que Foucault vai identificar o que denomina de “poder de polícia” – “A pedagogia do príncipe assegura a continuidade ascendente da forma de governo; a polícia, a continuidade descendente”�, cujo elemento de ligação é o governo da família, e cuja lógica deve ser regida pela economia.
	A “arte de governar” transmuta-se então, no século XVIII, na “economia política” – os modos de gerir o Estado, retratado, segundo Foucault, no artigo “Economia Política” de Jean Jacques Rosseau, preocupado que estava em efetivar a transposição da noção originária de economia, enquanto o sábio governo da casa, para a gestão ao nível do Estado. O próprio significado do conceito de economia adquire outra conotação de modo que, “a palavra economia designava no século XVI uma forma de governo; no sécuo XVIII, designará um nível de realidade, um campo de intervenção do governo através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história. Eis portanto o que significa governar e ser governado.” �
	Uma vez nesse contexto, o objeto do “bem governar” já não é apenas um território e seus habitantes, de acordo com a definição jurídica consagrada no século de Maquiavel. Ao contrário, La Perriére constata que o governo não se restringe à sua materialidade territorial e sua população, mas governam-se “coisas”, que são “os homens, mas em suas relações com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios de subsistência, o território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade, etc; os homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as formas de agir ou de pensar, etc; finalmente, os homens em suas relações com outras coisas ainda que podem ser os acidentes ou as desgraças como a fome, a epidemia, a morte, etc”�.
	Assim, nas concepções que se opõem a Maquiavel no que tange à relação entre governo e soberania, governar é tratar de dispor corretamente as coisas para conduzi-las a um fim conveniente. No modelo “jurídico” de Estado, o governo deve ter um objetivo, para afirmar uma soberania. O bom soberano deve ter, pois, por finalidade, propiciar o “bem comum”, o que será atingido pela obediência à lei. Por corolário, temos uma tautalogia – governa-se para obter-se o bem-comum, este por sua vez, define-se pela obediência às leis emanadas do governo. 
	Para La Perriére, contudo, a arte de governar implica uma multiplicidade de objetivos específicos, que, se grosso modo, resume-se a promover a prosperidade da população, mais que buscar a soberania na perspectiva jurídica, o governo deve “dispor” as coisas, segundo Foucault – “utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas”�. A diferença reside no fato de que a ênfase jurídica de soberania é deslocada para uma racionalidade do governo na sua relação com a “população”, tendo subsumida e como núcleo celular, a família, outrora arquétipo do Estado. É assim que Foucault, com La Perriére, opõe soberania e a arte de governar.
	Essa mutação na estratégia de governo teria se processado na medida em que emergiu o problema da população como alvo da lógica da economia política, instrumentalizada pelas nascentes ciências humanas, sobretudo a estatística, que busca revelar as características supra-familiares, medida pelo escopo da gestão econômica (em seu sentido amplo de economia de poder) através da qual os governos das modernas sociedades ocidentais passarão a gerir o Estado. A família passa então da função de arquétipo à unidade instrumental no interior da população, objeto das campanhas diversas direcionadas à população, essa constituída no novo objeto do saber.
	Para Foucault, doravante a compreensão do problema da soberania passa pelo aspecto disciplinar da população, materializada por sua vez em uma sociedade de governo que tem em dispositivos� de segurança suas estratégias essenciais. Apenas que a lei, essencialmente transcendente e heterônima, passa a ser pensada em termos de norma, que possui um alcance muito mais amplo, como produto simbólico das instâncias de saber, e hipostasiada à condição de verdade. A norma, segundo François Ewald, seria como algo aparentemente auto-evidente, e que tem a força de uma medida comum compartilhada como pertinente pela população:
A medida comum é uma realidade eminentemente política. É aquilo a partir do qual um grupo se institui como sociedade, aquilo que define os seus códigos, que a pacifica e lhe fornece os instrumentos da sua regulação. É também aquilo pelo qual nos batemos, discutimos e nos dilaceramos, aquilo que é preciso controlar se quisermos deter o poder e tornar-nos senhores da norma. (...) Se esses combates têm uma dimensão ideológica, não deixam igualmentede ter uma base prática porque são as práticas econômicas e sociais, as transformações tecnológicas, em particular, que geram a necessidade de novas medidas. Sendo da ordem técnica, as práticas da medida comum são susceptíveis de descrição positiva. Nelas vêm articular-se regimes de saber e dispositivos materiais. Entendida como um estudo das práticas da medida, à filosofia política caberia pensar como é que, através de que lutas e segundo que processos, técnicas de saber e de poder vêm a produzir algo como uma regra ou um conjunto de regras que hão de valer para uma sociedade dada e para um certo período da sua história, como código comum, princípio de federação e de associação.�
	Nessa perspectiva, à representação do Estado Leviatan hobbesiano, tomado enquanto entidade opressora em oposição aos sujeitos, ou reduzido a um organismo dotado de funções correspondentes ao estágio das forças produtivas, o que o torna a instância essencialmente privilegiada de exercício do poder, Foucault propõe o que denomina de “governamentalização” do Estado, onde “as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o espaço real da luta política”�.
	É essa mobilidade tática do governo que permitiu ao Estado produzir o moderno espaço do público e do privado e, no caso das ameaças de transgressão (efetivadas ou não) à soberania, o apagamento das fronteiras entre segurança interna e externa, possibilitando o “descolamento” do conceito de soberania da materialidade territorial, para o domínio descendente, mas também ascendente, em uma palavra – policial – sobre a população. É esta desterritorialização que vai permitir que suas atenções se voltem para a população enquanto objeto privilegiado do exame, da vigilância e do efeito da pregnância das normas. É o recalcitrante que se transforma em caso, um coadjuvante incômodo no discurso sobre a felicidade da nação, triturado na classificação dos dossiês e das burocracias, cuja “superfície social”�, deve ser aplainada, “O alvo da sociedade de controle “não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições.”�
É assim que, pensando a figura jurídica da soberania e a tensão entre a lei e a norma, Foucault propõe que tal relação deve ser admitida não apenas em seu aspecto jurídico e repressivo, mas do ponto de vista da afirmação e da produção da subjetividade do indivíduo, como meio de torná-la factível e conformá-la à função ortopédica do discurso jurídico no plano da normalização social�, admitindo que o poder instituído não se esgota apenas em suas práticas explícitas de exigência do cumprimento de determinadas leis ou de seus procedimentos visíveis de repressão aos considerados “perigosos”�, pois ainda que particularmente em regimes autoritários estes se façam sentir de maneira contundente, a positivação de um determinado modo de ser, dá-se mormente através de formas de dominação muito mais sutis que a mera repressão explícita dos emissários do Estado:
 “O controle dos indivíduos, essa espécie de controle penal punitivo ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção – a polícia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para a correção (...) Toda esse rede de um poder que não é judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades. Entramos assim na idade do que eu chamaria de ortopedia social. Trata-se de uma forma de poder, de um tipo de sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente. É a idade de controle social” �.
Como nos diz Foucault, dentre as práticas sociais onde é possível localizar a irrupção de novas formas de subjetividade, as práticas judiciárias figuram entre as mais importantes. É nessa “materialidade discursiva” que se constitui o processo de efetivação de um determinado modo de ser e agir, enquanto substratos da tensão no processo de construção dos sujeitos, engendrada por um conjunto de “verdades” que confronta e busca destruir os modos particulares� do indivíduo nessa relação dessimétrica dos instrumentos de poder e saber pulverizados por todo o tecido social, lá onde o conceito de dominação dissocia-se do de repressão�.
� FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998. p.165.
�Literatura de cunho prescritivo quanto aos modos de se conduzir dos príncipes do medievo europeu, “Na cultura cristã ocidental, os espelhos de príncipes foram tradicionalmente livros de moral, que usavam a história para ensinar o comportamento adequado aos reis, tanto em seu ofício público quanto em sua vida privada (...). Essa literatura fazia parte da educação dos príncipes em toda a Europa. Desde a infância, eles ouviam as leituras de livros dessa natureza, feitas por seus preceptores ou por pessoas designadas por estes para essa tarefa.” (LOPES, Marcos Antônio.Voltaire político: espelhos para príncipes de um novo tempo. São Paulo: Editora Unesp, 2004, p. 50-51)
� FOUCAULT, opus cit, p.165.
� Idem, p.165.
� ibidem, p.166.
� ibidem.
� Ibidem, p.167.
� Utilizo o conceito de “dispositivo” conforme citado por Rabinow e Dreyfus: “Foucault define dispositivo afirmando que, quando conseguimos isolar “estratégias de relações de força que suportam tipos de saber e vice-versa”, então, temos um dispositivo”. RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. “Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1995.
p.134.
� EWALD, F. Foucault, a Norma e o Direito. Lisboa: Vega, 1993, p.124.
� FOUCAULT, opus cit, p.171.
� BOURDIEU, P. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, M. de M. & AMADO, J. Usos e abusos da História Oral. 2ª ed. RJ: FGV, 1998. P.190
� Michel Foucault. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1977, p.20-21.
� FOUCAULT, Michel. A Verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002, p.85.
� O conceito de “periculosidade” aqui utilizado, nos remete à “escandalosa noção em termos de teoria penal” que indica que o indivíduo deva ser julgado ao nível de seu potencial e não de seus atos, não em função de uma infração efetiva, mais do virtual comportamento que poderá assumir. (conf. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002, p.85)
� Idem, p.86.
� “Particular” é tomado aqui em oposição à “específico”; enquanto a história procura uma espécie de generalidade, ou mais precisamente de especificidade, para além da individualidade dos acontecimentos, passa-se da singularidade individual à especificidade, isto é, ao indivíduo como ser inteligente (é por isso que “específico” quer dizer ao mesmo tempo “geral” e “particular”). O indivíduo, seja como papel principal da história ou figurante entre milhões de outros, só conta historicamente pela sua especificidade; daí ser importante a distinção entre o singular e o específico. “É histórico tudo o que for específico” . conforme VEYNE, Paul. “Como se Escreve a História”. 1982. 
� FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998, p.85.

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