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"" "~ ~ "" "" :: :: :: :: :: ,= = = -- -" 'I iii iii iio ~ 3 _- C " -o _ .. V J- ~ - 2 )- (] l -J !! !! !!( ]l -J -- W ~ = O 'l - - - iiiiiiii - - -( ) :: :o () COLEÇÃO COMUNICAÇÓES Direção: Norval Baitello junior A ColeçãoComunicaçõespretendemostraro amploesedutorleque dehorizontese perspectivascríticasqueseabreparaumajovemciência quenão é apenasciênciasocial,masque tambémsenutre e transita nasciênciasdaculturabemcomonasciênciasdavida.Afinal,apenasso- brevivemos,comoindivíduoe comoespécie,secompartilhamostarefas, funçõesefruições,valedizer,sedesenvolvemosumaeficientecomunicação quenosvinculeaoutraspessoas,aoutrosespaços,aoutrostempos,eatéa outrasdimensõesdenossaprópriasubjetividade. TítulosPublicados: Língua e realidade,deVilém Flusser A ficção cética,deGustavoBerna.rdo Mimesena cultura, deGünterGeba.uereChristophWülf A históriado diabo, deVilémFlusser Arqueologiada mídia, deSiegfriedZielinski Bodenlos,deVilém Flusser O universodas imagenstécnicas,Vilém Flusser A escrita,deVilém Flusser A épocabrasileirade VilémFlusser,deEvaBatlickova Pensarentrelínguas,deRainerGuldin Homem & Mulher, uma comunicaçãoimpossível?,deCiro MarcondesFilho Mediosfera,deMalenaSeguraContrera Filosofia da caixapreta, deVilémFlusser A sair: Par e ímpar: assimetriado cérebroedossistemasdesignos,deV. V. Ivanov NaturaLmente,deVilémFlusser Pós-história,deVilém Flusser Vampyroteuthisinfernalis,deVilémFlussereLouisBec VILÉM FLUSSER A dúvida { ~'ISCj 1/j 11\N~E INFOTHES InformaçãoeTesauro F668 FIusser,ViJém(1920- 1991). A dúvida.! Vilém Flusser. Apresentação de Gustava Bernardo. - São Paulo: Annablume,2011.(ColeçãoComuoicações.) 122p.; 14x21 C111. EdiçãoautorizadaporEdith }1uS,fer. ISBN 978-85·391-0211-2 1.Filosofia. 2. Teoria do Conhecimento.3. Dúvida. I. Título. lI. Série. IIl, Bernardo,Gustava. CDU 165 CDD121 CatalogaçãoelaboradaporWandaLuciaSchmidt- CRB·8·1922 A dúvida Sumário Coordenaçãodeprodução: Diagramação: Revisão: Capa: Finalização: IvanAntunes Vinícius Viana IvanAntunes Cados Clémen Vinícius Viana ApresentaçãodeGustavoBernardo Introdução 7 21 ConselhoEditorial EduardoPefiuelaCanizal Norval Baitellojuniar Maria Odila LeitedaSilvaDias CeliaMaria Marinho deAzevedo Gustava Bernardo Krause Maria deLourdesSekeff(in memoriam) PedroRobertoJacobi Lucrécia D'Alessio Ferrara 1"edição:fevereirode20lI ©Edith FIusser ANNABLUME editora.comunicação RuaM.M.D.C., 217.Bm.mã 05510-021.SãoPaulo. SP. Brasil Tel.eFax.(O lI) 3812-6764- Televendas3031-1754 www.annablume.com.br 1.Do intelecto 2. Da frase 3. Do nome 4.Da proximidade S.Do sacrifício 3S 49 71 91 109 Dois menosum pedacinho " Esteerao títulodoartigopublicadoporVilémFlusser"em 22deoutubrode 1966,n'O EstadodeSãoPaulo: • apenaso sinalde interrogação.Ao pesquisaro signi- ficadodo signo"?", Vilém descobrequeelenãoéobjeto, conceitoou relação,massimum clima:o climada inter- rogação,dadúvida,daprocura.~ando contemplamosa imagemde"?",sentimosumclimaquecontrastacomo cli- maconclusivodosigno"."ecomoclimaimperativodosig- no "!".O signo"?",assimcomoosoutrosdois,nãopodem serpronunciados,nãopodemserfaladosemsi,isolados- torna-sedifícil atélê-Iosporquesequera leiturasilenciosa épossíveLSópodemostraduzi-Ioscomo"pontos":ponto deinterrogação,pontofinal,pontodeexclamação.Os três signos-pontosnãoapenasdefinemo sentidocomoo clima dasfrases;logo,sãosignosexistenciais.Mas,dentretodos, Flusserprefereo signodainterrogação: 8 A dúvida VTLÉM FLUSSER 9 Devoconfessarqueentretodosossig- nosexistenciaisé o "?"aquelequemais significativamentearticula,a meuver, a situaçãonaqualestamos.Creio que podeserelevadoa símboloda nossa épocacomjustificaçãomaiorquequal- queroutro.Maiorinclusivequeacruz,a foiceeomartelo,earochadaestátuada liberdade.Maselevadoassimasímbolo deixadeser,obviamente,o "?"umsigno queocorreemsentençascomsentido. Sofreodestinodetodosossímbolosex- trassentenciais:é equívocoe nebuloso. Contentemo-nospoiscomo "?"como signoqueocorreemsentenças,massai- bamosmanterfidelidadeaoseusignifi- cado.Nãoseráesteo papelmaisnobre da nossapoesia?Formularsentenças comsentidonovoquetenhamumsigni- ficadoquelheéconferidopelo"?"pelo qualacabam?Formulandoestetipode sentenças,rasgaráapoesianovasabertu- rasparaumdiscursoqueameaçaacabar empontofinaL Já no artigo "Ensino", publicadona Folha de São Paulo de 19defevereirode 1972,Flusserdiz queospro- fessorespodem ser meroscanaistransmissoresinertes, comunicandomodelosde comportamentotipo "ame teupai e tuamãe"ou modelosdeconhecimentodo tipo "doismaisdoissãoquatro",massemseengajarememtais modelos.Nessecaso,os professoresseriamsubstituídos em brevepor máquinasde ensinoprogramado.Mas os professorespodemtambémengajar-senosmodelosque transmitem,quandotêmdeenfrentarasdúvidasdo pre- sente,propondo,por exemplo,"ameteupai e tua mãe, masnãoedipicamente"ou "doismaisdoissãoquatrono sistemadecimal,masdesdequezerosejanúmeroe que todo sucessordenúmerosejanúmero". Em tal caso,emergeno professoro conflito: com quedireitotransmitirmodelosaceitospeloprópriopro- fessorjácomgravesreservas?Não seriamelhortransmitir asdúvidasno lugardosmodelos?Para a respostaa esta dúvida,nãotenhoqualquerdúvida:é melhortransmitir asdúvidasno lugardosmodelos.Apenasdessamaneira nãodigoo quepensar,massiminstigocadaum apensar por suaprópriacabeça- emúltimainstância,afilosofar. É precisoduvidar.Paracomeçar,é precisoduvidar da dúvidacartesianaporque,mesmohiperbólica,elase impõeumlimite inaceitável.Descartesdiz quenãopode duvidardequeduvidano instantemesmoemqueduvida, paradessamaneiraafirmaro "ergosum"edefendero seu aterrorizanteobjetivofinal:acabarcomtodasasdúvidas! A dúvidanãoéumestadoporquejáéumnãopoderestar. Descarteserraporqueconfundeadúvidacomanegação erraporquenãovolta a duvidarde si mesmo.A dúvida precisasuporqueum mundoinventadosejamelhordo queo mundorecebido,suposiçãoqueobviamentesecal- canaconsciênciadequetodo o pensamentoéum fingi- mento.Essefingimentonoslevaaolivro-síntesedetoda aobradeVilém Flusser,A dúvida,provavelmenteescrito 10 A dúvida VILÉM FLUSSER 11 no finaldosanos50einício dos60.Nele,Flusserdefine seumaisespinhosotema: A dúvidaéumestadodeespíritopoli- valente.Podesignificaro fim de uma fé,oupodesignificaro começodeuma outra.Podeainda,selevadaaoextremo, instituir-secomo "ceticismo",isto é, comoumaespéciedefé invertida.Em dosemoderadaestimulaopensamento, masemdoseexcessivaparalisatodaati- vidademental.A dúvidacomoexercício intelectualproporcionaumdospoucos prazerespuros,mascomoexperiência moralelaéumatortura.A dúvida,alia- daà curiosidade,éo berçodapesquisa, portanto,detodoconhecimentosiste- mático- masemestadodestiladomata todacuriosidadee é o fim detodoco- nhecimento. Parahaveradúvida,éprecisohaverpelomenosduas perspectivas- tambémemalemãoduvidarsediz"zweifeln", de"zwei",quesignifica"dois".Curiosamente,o signo"?" parecetersidodesenhadoprimeirocomoum "2"do qual setirou apenasumpedacinho... Antecedendoàsduasperspectivas,devidamentedu- bitativas,é precisoqueantestenhahavidoumafé,con- diçãodo movimentode procurada verdadeque levaa encruzilhadasebifurcações.Logo,o ponto departidada dúvidaésempreumafé,quepor suavezgerapelomenos umabifurcação.O estadoprimordialdo espíritoée tem deseracrença;o estadointelectualdo espíritoéetemde seradúvida.No princípio,o espíritocrê:eletemboafé. A dúvidadesfaza ingenuidadee,emborapossaproduzir uma fé novae melhor,nãopodemaisvivenciá-Iacomo boa.A dúvidacriaumanovafé,quedeveserreconhecida comoféenãocerteza,parasetornarmelhordo quea fé primitiva.As certezasoriginaisabaladaspeladúvidasão substituídaspor quasecertezas- maisrefinadasesofisti-cadasdo queasoriginais,écerto,masnemoriginaisnem autênticas,sedaí em dianteexibem"a marcada dúvida quelhesserviudeparteira". O último passodo métodocartesiano,o passoque nemDescartesnemHusserlseatreveramadar,éno en- tanto um passoparatrás:implicaprotegera dúvida.A proteçãodadúvidaaceita,comoaxiomática,aformulação deSchlegel:"afilosofiasemprecomeçano meio,comoa poesiaépica".A filosofianão pode começardo início, quenãohá,nemchegaraofim, quetambémnãohá,as- simcomonãopodemosjamaisteraexperiênciaquerdo nascimento,dequenãopodemoslembrar,querdamor- te,quandojá somosparalembrar.A experiênciadavida assimcomoasuafilosofia,sua"Lebensphilosophie",sóse podemdarin mediares.VilémFlusserarriscaaquelepasso paratráspercebendoadúvidacartesianacomo"umapro- curadecertezaquecomeçapor destruiracertezaautên- ticaparaproduzir a certezainautêntica".ParaDescartes eparao pensamentomoderno,adúvidametódicaéuma espéciedetruquehomeopáticoque,no limite,desejaaca- barcomadúvidaparachegaràcertezafinal,assimcomo 12 A dúvida VILÉM FLUSSER 13 napolítica,maistarde,sepensoua sériona guerra(ena bomba)queterminariacomtodasasguerras.A filosofia flusseriana,entretanto,suspeitado recurso,enxergando inautenticidadena certezaa queelenosconduz.Sema dúvidanãohá pensamento,ciênciaou filosofia- dubito ergosum-, emboracomadúvidaviva-seo perigodaes- quizofrenia.Dividimo-nosàprocuradaunidade,masno fim do caminhoencontramo-nostão-somentedivididos. Seasnossascertezasjánãosãoautênticas,asdúvidaso serão,ouescondemumteatrointelectual?Descartes,ecom eleo pensamentomoderno,aceitaadúvidacomoindubi- tável,tomando-aparadoxalmentepor certezaqueo con- duzàscertezasquenofimdeseja.A paradoxalfénadúvida caracterizaentãoa IdadequeousousechamarModerna paramelhordenegaro tempoeo futuro,tentandofrearo tempopeloconhecimento,valedizer,pelatransformação detudoedetodosemobjeto.Duvida-se,sim,na filosofia comonaciênciaenapedagogia,masapenasparaquenun- camaisseduvide.Pergunta-se,masnãosequerperguntas: apenasas respostas"certas".Destaforma,duvida-se,no limite,daprópriadúvida,produzindocom o tempoum conhecimentodefatoespetacularque,todavia,é também loucura,comoo comprovamabombaatômica- aespécie tornando-setãopoderosaquepodeexterminara si mes- mavintevezes- e o campode concentração- a espécie tornando-setãoabsurdaquenegaasimesmaenevezes. A dúvida que se quer certezaao final bloqueiaa emergênciadadúvidaingênua,dadúvidaprimária,aquela quetransformanomespróprioserenomeiapoeticamente ascoisas.A dúvidaque sequercertezaao final duvida, compreensivelmente,do espanto,e por issomergulhaa conversaçãoocidentalnarepetiçãotediosa.A dúvidaque sequercertezaao final é,emresumo,a antipoesia:"não seprecipitasobre,masdentrodo inarticulado.Emudece. Estemutismoéo abismoqueseabriuànossafrente".Há, no entanto,.umasaída- poética: A saídadessasituaçãoé, ao meuver, nãoareconquistadafénadúvida,masa transformaçãodadúvidaemfénonome própriocomofontededúvida.Em ou- traspalavras:éaaceitaçãodalimitação do intelectocomoamaneirapar excel- lencedechocarmo-noscontrao inarti- culável.Estaaceitaçãoseriaasuperação tantodointelectualismocomodoanti- intelecrualismo,epossibilitariaaconti- nuaçãodaconversaçãoocidental,embora emumclimamaishumilde.Possibilitaria acontinuaçãodotecerdateiamaravilho- saqueéaconversaçãoocidental,embora semesperançadecaptardentrodessateia arochadoinarticulável.Seriaoreconhe- cimentodafunçãodessateia:nãocaptar arocha,masrevestirarocha.Seriaoreco- nhecimentodequeo intelectonãoéum instrumentoparadominaro caos,masé umcantodelouvoraonuncadominável. Alienamo-nosdacoisa,eportantodetodo o resto, quandoduvidamosparanão maisduvidar,e para não 14 A dúvida VILÉM FLUSSER 15 maisduvidarprincipalmentedenósmesmos:"dizerque nóssomosnósédizerqueessaalienaçãoestásedando"; dizer"eupensoergosou"implicasupor-secausasuido pensamento..Menosarroganteseriaafirmar:"pensamen- tosmeocorrem".~ando somoshonestos,sabemosque nossospensamentosnoscontrolam,e nãoo contrário. Sentindoconsumir-sepelosprópriospensamentos,osu- jeitoprecisasairdocentrodarazãoutilitaristapararecu- perar,porparadoxalquepareça,afé,quenãodeixadese constituiremumhorizontededúvida. Sesouporquepenso,entãooquepenso?Pensouma correntedepensamentos:umpensamentoseseguesem- preaoutro,e,porisso,sou.Masporqueumpensamen- tosempresesegueaoutro?Ora,oprimeiropensamento nãosebasta,exigindooutropensamentoparacertificar- sedesi mesmo.Um nãobasta,eleexigesempreo dois, queporsuavezconstituidevoltaadúvida.Ou,buscando umafórmula:1> 2 < ? Um pensamentosegueaoutroporqueo segundo pensamentoduvidado primeiro,umavezqueo pri- meirojáduvidavadesipróprio.Logo,umpensamento segueaoutropelotrilhodadúvida,tornando-meuma correntedepensamentosqueduvidam:só o souen- quantoessacorrenteescoae nãoestanca.Pensamen- tossãoprocessosemdoissentidos:primeiro,porque corremembuscade suaprópriacompletação,este- ticamente,atrásde umaauravivencialde satisfação vulgarmentechamadade "significado",comolembra Flusser;segundo,porque ininterruptamentegeram novospensamentos,autorreproduzindo-see,portan- to,nuncaefetivamentesecompletando. A correntedepensamentostransforma-se,entretan- to,emumredemoinhosemepergunto:porqueduvido? Ora,porquesou,sesósouquandoduvido;seduvidardes- tadúvida,terminareiporduvidardequeeuseja.Parece jogofútildepalavrasouexercíciodelógicaabissal,maso pensamentocontemporâneoreconhecevivencialmenteo dilemasemconseguirestabelecercomomínimodeclare- zainsofismávelo limitedadúvida.Nãohálimite,masa dúvidasemprevaievolta,comoalemniscata,oconheci- dosímbolodoinfinito:00. A problematizaçãoe o esvaziamentodo conceito "realidade"acompanhamo progresso,nessamedidape- rigoso,da dúvida.Duvida-secomonumacompetição, paraverquemvaiconseguiracabarprimeirocomadúvi- da.A dúvidadadúvidaéaintelectualizaçãodointelecto quereRuisobresimesmoapontodeduvidardetodosos outros,masnuncadesi mesmo.Confirmao absurdoo suicídiodointelecto:nocampodaciênciamanipula-sea realidadeproduzindoinstrumentosdestinadosadestrui- remahumanidadeeseusinstrumentos;nocampodaarte produz-seumaartequesesignificaasi mesma,portan- to umaartesemsignificado;no campodarazãoprática grassamooportunismoeo imediatismo,espéciedecarpe diem.Confirmamo absurdo,ainda,asprópriasreações desesperadascontrao absurdo:nafilosofiapululamos neos- neokantismo,neo-hegelianismo,neotomismo;na artepululamosneo-neo-neo-(ufa)-realismos;naciência 16 A dúvi<k VILÉM FLUSSER 17 retormulam-sepremissasembasesmaismodestas- toda- via,nasmesmasbases;noterrenodarazãopráticaressus- citamreligiõesemultiplicam-seseitas;nasciênciassociais 1 h" I I" I dapea-se,semvergona,parao pos-pos- pos- outora- doempós-modernismo,porexemplo;napolíticaressur- gem,inautênticos,conceitosesvaziadoshámuito,como aideiamedievaldesoberania.A proliferaçãodeprefixos quetentamreciclartermosenvelhecidosatestasimulta- neamenteaarrogânciaeaindigênciadateoria. A dúvidanesselimitemostra-se,pordefinição,abis- sal.~ando Vilém Flusserdescreveo intelectocomo camponoqualocorrempensamentos,eleencarao abis- moeultrapassaaafirmativacartesiana,"penso,portanto sou",por pelomenosum passo.Duvidada afirmativa "penso",substituindo-apela asserção:"pensamentos ocorrem".A afirmativa"penso"abreviavaa afirmativa, viciosadoprincípio,"háumEu quepensaeportantohá umEu queé".O métodocartesianoprovouaexistência depensamentos,ok,masnãodeumEuquepensasseou doEuquepensa. Apresentaro intelectocomocampono qualocor- rempensamentos,porém,dispensaapergunta"oqueéo intelecto?",comoaliásdispensatodaasériede"o-que-é- o-que-é".Um camponãoéum"quê",massimmaneiras pelasquaisalgoacontece.O campogravitacionaldonos- soplanetanãoéumalgo,masamaneiracomosecom- portamoscorposquandorelacionadoscomo nossopla- neta- nessesentido,agravidadesimplesmentenãodeve servistaantropomorficamentecomoumaforça,massim comoum efeitodo campo.Analogamente,ointelecto nãoémaisdoqueamaneiracomosecomportamospen·· samentos.Nemhápensamentosforado intelectonem o intelectotemdignidadeontológicaindependentedos pensamentos.Emconsequência,aperguntaqueseimpõe , '" ..•"e: oqueeumpensamentor A investigaçãoflusserianadescobre,primeiro,que o pensamentoéumprocessoembuscadesecompletar emumaforma,ou seja:o pensamentoé umprocesso estético.~ando alcançaasuaforma,o pensamentose rodeiadeumaauradesatisfação.A investigaçãoflusse- rianadescobre,aseguir,queopensamentoéumprocesso autorreprodutivo,gerandoumnovopensamento.Nãoé possívelparardepensar,nãoépossívelesterilizarumpen- samento,anãoserforçando-oaclicherizar-se,ouseja,a repetir-seasimesmocomoolouconocampohospitalar. Um pensamentoindividualesingular,emboracomple- to esteticamentequandosignificativo,é,"nãoobstante, carregadodeumdinamismointernoqueo impededere- pousarsobresimesmo".Essedinamismointernoobriga opensamentoasuperarasimesmo,querdizer,obriga-o aabandonar-se.Esseautoabandonodopensamento,por suavez,éo queentendemospor filosofia,porqueagora precisamosentendero intelectocomoo campo,porex- celência,dadúvida. Nemtudopodeserassimiladoà engrenagemda língua.Nemtudopodesercompreendido.Senemtudo podesercompreendido,nemtudopodeserdito:oenig- maprecisaserprotegido.Em outraspalavras,a poesia 18 A dúvida VILÉM FLUSSER 19 precisaserprotegida,porqueacondiçãodeexpansãodo intelectoe do pensamentoé a poesia,aqueladimensão quecriaa línguae,emconsequência,arealidade.Parase permitir conversar,o intelectoprecisaantes"versar".O versoé a maneiracomoo intelectoseprecipitasobreo caos.O versoé aprópriasituaçãolimítrofedalíngua.O versotantochamaquantoproclama. Semadúvida,nãoháapoesia.Semapoesia,nãohá afilosofia.Semafilosofia,nãoháo espanto.Semo espan- to,nadapresta.~ando algoinesperávelocorre,fazemos de contaque eraesperado.Torneirasjorram anúncios, aparelhosde miero-ondasnaufragampela redevirtual, sérviosmatamalbaneses,albanesesmatamsérvios,polícia ébandidoebandidoétestemunhade]eová,nadanossur- preende.A banalidadeimpera,sentadaàmargemdireita do tédio.Os ídolossãovorazes.O Moloch devoraosfiéis queo adoram-- logo,o Moloch funciona,o queamplifi- caa suaadoração.A bombaH destróia humanidade_ logo,abombaH funciona,justificandoquea adoremos. A bombaH provaqueo homeméDeus,eDeuscontrao mundo,realizandoin limineoprojetoiluministaquenos pôscomosujeitoscontraos objetos,valedizer,contraa coisa,contrares- contraarealidade.Mas esseDeuséum espelho,espelhandoa cobraurobóricamordendoo calca- nhardeSísifoquedeixacairapedraantesdechegaraotopo damontanhaondeZarathustraseperderado Übamensch. Ora,Deuscomoespelhofazsignodo desespero. A poesiae a dúvidasãoascondiçõesde superação dessedesespero.Um pensamentopuxaoutroealínguase expande,maso caosnuncadiminui.A poesiaaumentao territóriodopensávelmasnãodiminuio territóriodo im- pensáveLÉ oquenostornavivos.É o quenostornainfini- tos.É o quenostornaimortais,postoqueincertos.Yilém Flusserresisteao apocalipseintelectualizantee àsreifica- çõestotalitáriasquandopartieipadafestadopensamentoe promoveosacrifíciodomesmopensamentonamesmafes- ta: "continuemosagrandeaventuraqueéo pensamento, massacrifiquemosaloucuraorgulhosadequererdominar o detudodiferentecomo nossopensamento". GustavaBernardo Rio deJaneiro, 18/01/11. Introdução A dúvidaéumestadodeespíritopolivalente.Pode significarofimdeumafé,oupodesignificarocomeçode outra.Podeainda,selevadaaoextremo,servistacomo "ceticismo",istoé,comoumaespéciedeféinvertida.Em dosemoderadaestimulao pensamento.Em doseexces- sivaparalisatodaa atividademental.A dúvida,como exercíciointelectual,proporcionaumdospoucospraze- respuros,mascomoexperiênciamoralelaéumatortu- ra.A dúvida,aliadaàcuriosidade,éo berçodapesquisa, portantodetodoconhecimentosistemático.Emestado destilado,noentanto,matatodacuriosidadeeéofimde todoconhecimento. O pontodepartidadadúvidaésempreumafé.Uma fé(uma"certeza")éo estadodeespíritoanteriorà dúvi- da.Comefeito,afééo estadoprimordialdoespírito.O espírito"ingênuo"e"inocente"crê.Eletem"boafé".A 22 A dúvida VILÉM FLUSSER 23 dúvidaacabacomaingenuidadeeinocênciadoespírito e,emborapossaproduzirumafénovaemelhor,estanão maisserá"boa".A ingenuidadeeinocênciadoespíritose dissolvemnoácidocorrosivodadúvida.O climadeau- tenticidadeseperdeirrevogavelmente.O processoéirre- versível.As tentativasdosespíritoscorroídospeladúvida dereconquistaraautenticidade,aféoriginal,nãopassam denostalgiasfrustradas.Sãotentativasdereconquistaro paraíso.As "certezas"originaispostasemdúvidanunca maisserãocertezasautênticas.A dúvidametodicamente aplicadaproduzirá,possivelmente,novascertezas,mais refinadase sofisticadas,masestasnovascertezasnunca serãoautênticas.Conservarãosempreamarcadadúvida quelhesserviudeparteira. A dúvidapodeser,portanto,concebidacomouma procurade certezaquecomeçapor destruira certeza autênticaparaproduzircertezainautêntica.A dúvidaé absurda.Surge,portanto,apergunta:"porqueduvido?" Estaperguntaémaisfundamentalqueaoutra:"deque duvido?"Trata-se,comefeito,do últimopassodo mé- todocartesiano,a saber:trata-sededuvidardadúvida. Trata-se,emoutraspalavras,deduvidardaautenticidade dadúvidaemsi.A pergunta"porqueduvido?"implicaa outra:"duvidomesmo?" Descartes,ecomeletodoopensamentomoderno, parecenãodaresteúltimopasso.Aceitaadúvidacomo indubitável.A últimacertezacartesiana,incorruptível peladúvida,é,asaber:"penso,portantosou".Podeserre- formulada:"duvido,portantosou".A certezacartesiana é,portanto,autêntica,no sentidodeseringênuae ino- cente.É umaféautênticanadúvida.Essafécaracteriza todaaIdadeModerna,essaIdadecujosúltimosinstantes presenciamos.Essafééresponsávelpelocarátercientífico edesesperadamenteotimistadaIdadeModerna,peloseu ceticismoinacabado,aoqualfaltadaroúltimopasso.À fé nadúvidacabe,duranteaIdadeModerna,opapeldesem- penhadopelaféemDeusduranteaIdadeMédia. A dúvidadadúvidaéumestadodeespíritofugaz. Emborapossaserexperimentado,nãopodesermantido. Eleésuapróprianegação.Vibra,indeciso,entreo extre- mo"tudopodeserduvidado,inclusiveadúvida"eo ex- tremo"nadapodeserautenticamenteduvidado".Com o fimdesuperaro absurdodadúvida,levaesseabsurdo aoquadrado.Oscilando,comooscila,entreo ceticismo radical(doqualduvida)eumpositivismoingênuoradi- calíssimo(doqualigualmenteduvida),nãoconcedeao espíritoumpontodeapoioparafixar-se. Kantafirmavaqueoceticismoéumlugardedescan- soparaarazão,emboranãosejaumamoradia.O mesmo podeserafirmadoquantoaopositivismoingênuo.A dú- vidanadúvidaimpedeessedescanso.O espíritotomado pelaquintessênciadadúvidaestá,emsuaindecisãofun- damental,numasituaçãodevaievemqueaanálisede SísifofeitaporCamusilustraapenasvagamente.O Sísifo deCamuséfrustrado,emsuacorreriaabsurda,poraquilo dentrodoqualcorre.Daíoproblemabásicocamusiano: "porquenãomemato?"O espíritotomadopeladúvida dadúvidaéfrustradoporsimesmo.O suicídionãoresol- 24 A dúvida VILÉM FLUSSER 25 veasuasituação,jáquenãoduvidasuficientementedo caráterduvidosodavidaeterna.Camusnutreaindaafé nadúvida,emboraessafépericlitenele. "Penso,portantosou".Penso:souumacorrentede pensamentos.Um pensamentosegueo outro,portanto sou.Um pensamentosegueo outro,porquê?Porqueo primeiropensamentonãobastaasimesmo,seexigeoutro pensamento.Exigeoutroparacertificar-sedesimesmo. Um pensamentosegueoutroporqueo segundoduvida do primeiro,eporqueo primeiroduvidadesi mesmo. Umpensamentosegueo outropelocaminhodadúvida. Souumacorrentedepensamentosqueduvidam.Duvi- do.Duvido,portantosou.Duvidoqueduvido,portanto confirmoquesou.Duvidoqueduvido,portantoduvido quesou.Duvidoqueduvido,portantosou,independen- tementedequalquerduvidar.Assimseafigura,aproxima- damente,o últimopassodadúvidacartesiana.Estamos numbecosemsaída.Estamos,comefeito,nobecoqueos antigosreservaramaSísifo. A mesmasituaçãopodesercaracterizadaporoutra correntedepensamentos:porqueduvido?Porquesou. Duvido,portanto,quesou.Portanto,duvidoqueduvido.É omesmobecovistodeoutroângulo. Esteéoladoteóricodadúvidaradical.Tão teórico, comefeito,queatébempoucotempotemsidodespreza- do,comrazão,comoumjogofútildepalavras.Tratava- sedeumargumentopensável,masnãoexistencialmente visível(erlebbar).Erapossívelduvidarteoricamenteda afirmativa"sou",eerapossívelduvidarteoricamenteda afirmativa"duvidoquesou",masessasdúvidasnãopas- savamdeexercíciosintelectuaisintraduzíveisparaonível devivência.Os poucosindivíduosqueexperimentaram vivencialmenteadúvidadadúvida,queautenticamente duvidaramdasafirmativas"sou"e"duvidoquesou",fo- ramconsideradosloucos. A situaçãoatualédiferente.A dúvidadadúvidase derrama,apartirdointelecto,emdireçãoatodasasde- maiscamadasdamenteeameaçasolaparosúltimospon- tosdeapoiodosensoderealidade.É verdadeque"senso derealidade"éumaexpressãoambígua.Podesignificar simplesmente"fé",podesignificar"sanidademental", epodesignificar"capacidadedeescolha".Entretanto,o presentecontextoprovaqueostrêssignificadossãohm- damentalmenteidênticos.A dúvidadadúvidaameaça destruirosúltimosvestígiosdafé,dasanidadeedaliber- dade,porqueameaçatornaro conceito"realidade"um conceitovazio,istoé,nãovivível. O esvaziamentodoconceito"realidade"acompanha oprogressodadúvidaeé,portanto,umprocessohistóri- co,sevistocoletivamente,eumprocessopsicológico,se vistoindividualmente.Trata-sedeumaintelectualização progressiva.O intelecto,istoé,aquiloquepensa,portan- to,aquiloqueduvida,invadeasdemaisregiõesmentais paraarticulá-Ias,e astorna,por issomesmo,duvidosas. O intelectodesautenticatodasasdemaisregiõesmentais, inclusiveaquelasregiõesdossentidosquechamo,viade regra,de"realidadematerial".A dúvidadadúvidaéain- telectualizaçãodoprópriointelecto;comela,o intelecto 26 A dúvida VILÉM FLUSSER 27 refluisobresimesmo.Torna-seduvidosoparasimesmo, desautenticaasimesmo.A dúvidadadúvidaéosuicídio dointelecto.A dúvidacartesiana,talcomofoipraticada duranteaIdadeModerna,portanto,adúvidaincomple- ta,adúvidalimitadaaonãointelectoacompanhadadefé nointelecto,produziuumacivilizaçãoeumamentalida- dequedeurefugio,dentrodointelecto,à realidade. Trata-sedeumacivilizaçãoeumamentalidadeide- alistas.A dúvidacompleta,adúvidadadúvida,aintelec- tualizaçãodo intelecto,destróiesserefugioe esvaziao conceito"realidade".As frasesaparentementecontradi- tórias,entreasquaisadúvidadadúvidaoscila,asaber, "tudopodeserobjetodedúvida,inclusivea dúvida"e "nadapodeserautenticamenteobjetodedúvida",sere- solvem,nesseestágiododesenvolvimentointelectual,na frase:"tudoénada".O idealismoradical,adúvidacarte- sianaradical,aintelectualizaçãocompleta,desembocam noniilismo. Somosa primeiraou a segundageraçãodaqueles queexperimentamo niilismovivencialmente.Somosa primeiraou asegundageraçãodaquelesparaosquaisa dúvidadadúvidanãoémaisumpassatempoteórico,mas umasituaçãoexistencial.Enfrentamos,naspalavrasde Heidegger,"aclaranoitedonada".Nessesentidosomos osprodutosperfeitoseconsequentesdaIdadeModerna. Conoscoa IdadeModernaalcançouasuameta.Masa dúvidadadúvida,o niilismo,éumasituaçãoexistencial insustentável.A perdatotaldafé,aloucuradonadatodo- envolvente,a absurdidadedeumaescolhadentrodesse nada,sãosituaçõesinsustentáveis.Nessesentidosomosa superaçãodaIdadeModerna:conoscoaIdadeModerna sereduzaoabsurdo. Os sintomasdessaafirmativaabundam.O suicídio do intelecto,frutode suaprópriaintelectualização,se manifestaemtodososterrenos.No campodafilosofia produzo existencialismoeo logicismoformal,duasab- dicaçõesdo intelectoemfavordeumavivênciabrutae inarticulada,portanto,o fimdafilosofia.No campoda ciênciapuraproduzamanipulaçãocomconceitoscons- cientementedivorciadosdetodaarealidade,tendendoa transformaraciênciapuraeminstânciadeproliferaçãode instrumentosconscientementedestinadosadestruírema humanidadeeosseusprópriosinstrumentos(são,por- tanto,instrumentosdestruidoreseautodestrutivos).No campodaarte,produzaartequesesignificaasimesma, portanto,umaartesemsignificado.No campoda"razão prática"produzum climadeoportunismoimediatista, umearpediemtãoindividualquantocoletivo,acompa- nhadodoesvaziamentodetodososvalores. Há,obviamente,reaçõescontraesseprogressorumo aonada.Essasreaçõessão,entretanto,reacionárias,no sentidodetentaremfazerretrocederarodadodesenvol- vimento.Sãodesesperadas,porquetentamreencontrar arealidadenosníveisjáesvaziadospelointelectoemseu avanço.No campodafilosofiacaracterizam-sepeloprefi- xomelhorativoneo(neokantianismo,neo-hegelianismo, neotomismo).No centrodaciênciapuracaracterizam- sepeloesforçodereformularaspremissasdadisciplina 28 A dúvida VrLÉM FLUSSEH 29 científicaembasesmaismodestas.No campodaciência aplicadacaracterizam-seporumaesperançajáagorainau- tênticaemumanovarevoluçãoindustrial,capaz,estasim, deproduziroparaísoterrestre.No campodaarteresul- tamnaquelerealismopatéticochamado"socialista"que nãochamaasi mesmode"neorrealista"porpuraques- tãodepudor.No campoda"razãoprática"assistimosa tentativasdeumaressurreiçãodasreligiõestradicionais: pululamasseitasdereligiõesinventadasad hocoubus- cadasemregiõesgeográficaouhistoricamentedistantes. Nocampodapolíticaedaeconomiaressurgeminauten- ticamenteconceitosesvaziadose superadoshá muito, como,porexemplo,o conceitomedievalde"soberania". Busca-sea realidade,já agoracompletamenteinautênti- ca,noconceitodo"sangue"(nazismo)ouda"liberdade de empreendimento"(neoliberalismo),conceitosesses emprestadosdehipotéticasépocaspassadas.Todasessas reaçõessãocondenadasaomalogro.~erem ressuscitar fésmortasouinautênticasab initio. Emborasejao niilismoumasituaçãoexistencialin- sustentável,precisasertomadocomopontodepartida paratodatentativadesuperação.A inautenticidadedas reaçõesacimaesboçadasresidenasuaignorância(autên- ticaou fingida)dasituaçãoatualdafilosofia,daciência puraeaplicada,daarte,doindivíduodentrodasociedade edasociedadeemfacedoindivíduo.Residenaignorân- ciadoproblemafundamental:emtodosessesterrenos, já agoraaltamenteintelectualizados,adúvidadesalojou aféeperdeuo sensodarealidade.Essasitua~;ãodeveser aceitacomoumfato,emboratalveznãoaindacomoum fatototalmenteconsumado.Resíduosdefépodemser encontradosemtodosessesterrenos,menosnocampoda filosofia,maisnocampodasociedade,masresíduoscon- denados.Não é apartirdelesquesairemosdasituação absurdadoniilismo,masapartirdopróprioniilismo,se équesairemos.Trata-se,emoutraspalavras,datentati- vadeencontrarumnovosensoderealidade.O presente trabalhoéumacontribuiçãomodestaparaessabuscano campodafilosofia. Vistocoletivamente,é o progressodaintelectuali- zação,portanto,o progressodadúvida,comseuconse- quenteesvaziamentodo conceito"realidade",umpro- cessohistórico.Por suapróprianaturezamanifesta-se comprecedênciano campodafilosofia,emboraesteja acompanhado,surdamente,por desenvolvimentopara- leloemtodososdemaiscamposdasituaçãohumana.O adventodoniilismofoi,portanto,adivinhadoeprevisto por filósofosantesdequalqueroutracamada.A palavra "niilismo"foi amplamenteutilizada,numsentidomuito próximodopresente,porNietzsche.A buscadeumnovo sensoderealidadenocampodafilosofianãoé,portanto, umanovidade.Não podemos,entretanto,afirmarque temsidoacompanhada,atéagora,deumêxitoretum- bante.Surgiu,istosim,umanovamaneiradefilosofar,e novascategoriasdepensamento.Foi introduzidoo con- ceito"vontade"eo conceitoaliado"vivência",ambosde cunhoanti-intelectual.A especulaçãofilosóficadeslocou- separaocampoda"ontologia"(sinônimopudicodame- 30 A dúvida VILÉM FLUSSER 31 tafísicaostensivamentedesprezada),fatoque,por si só, provaaprocuradeumanovarealidade.Por outrolado aprofundaram-seestudoslógicosa pontode invadira lógicao campodaprópria"ontologia",fatoqueprovaa preocupaçãodafilosofiacomumanovainterpretaçãodo intelectoe suafunçãodeprodutoredestruidorderea- lidade.Entretanto,por revolucionáriose criadoresque sejamestespensamentos,nãochegarama "convencer", nosentidodeprovocarumnovosensoderealidade,uma novafé.Muitopelocontrário,contribuíramparao alas- tramentodo niilismoquepretendiamcombater,jáque eramintelectualizações,emboraanti-intelectuais.A sua influênciadecisivasobreaarteeaciência(maisespeci- ficamentesobreapsicologia)conduziaaumaderradeira intelectualizaçãodecamadasatéagoranãoinvadidaspelo intelecto.Talvezporteremsidodestruidoresdavelhare- alidade,contribuíramparao surgirdanova,pelomenos negativamente. Vistoindividualmente,éoprogressodaintelectuali- zação,portanto,oprogressodadúvida,oabandonodafé original,da"boafé",emproldeumafémelhor,asaberde umafémenosingênuaeinocente.A progressivaperdade sensoderealidadequeacompanhaoprogressointelectu- aléexperimentada,inicialmente,comolibertação,como superaçãodepreconceitos,eé,portanto,umaexperiência exuberante.Entretanto,acompanha-se,desdeo início, porumsentimentoinarticuladoe,portanto,inconscien- tedeculpa.Essesentimentodeculpaécompensadonas "fésmelhores"queo intelectocriaparasi no cursodo seuavanço.~ando, por fim,o intelectoseviracontra simesmo,quandoduvidadesimesmo,o sentimentode culpasetornaconscientee articuladoe,acompanhado dahesitaçãocaracterísticadadúvidasuprema,dominaa cena.Esseclimadehesitaçãoedeculpa,ouseuladoaves- so,oclimadoengagementsemcompromissoeescrúpulo, são,portamo,ossintomasdosfilósofosacimamenciona- dos.Emboraahesitaçãoeo sentimentodeculpasejam maishonestos,intelectualmente,doqueoengagementeo fanatismo,sãoambosbasicamenteatitudesdedesespero. Atestamaperdadafénointelecto,semcontribuir,positi- vamente,paraumasuperaçãodasituaçãoniilistanaqual seencontram.Estaéacenadafilosofiaatual. apresentetrabalhonãonutrea ilusãodecontri- buirgrandementeparamodificaressacena.Nasceu,ele próprio,daperdadaféno intelectoenãoresultaráem nenhumaféautênticanova.Tem,no entanto,avanta- gemdenascermaistarde.Em consequênciaperdeuos restosde ingenuidadee inocênciaqueaindacaracteri- zamospensamentosdosseusantecessores,ingenuidade einocênciaestasrelativasaoalcancedo intelecto.ain- telecto,istoé,aquiloquepensaeportantoduvida,tem sidosuperdimensionadoinclusivepor aquelesquenele perderamasuafé.Emboramuitostenhamultimamente compreendidoo caráterpuramenteformaldo intelecto (como,aliás,o compreenderamjá osempiristasdossé- culosXVII eXVIII), estacompreensãonuncasetornou partedavivênciaautênticadessespensadores.Nunca, conformecreio,temsidoapreciadae sorvidavivencial- 32 A dúvida VILÉM FLUSSER 33 menteaesterilidadedointelecto.Nunca,bementendido, porpensadores,istoé,peloprópriointelecto.O desprezo fácilebaratodointelecto,nutridopelossentimentais,pe- losmísticosprimitivoseporaquelesquedepositamtoda asuafénossentidos,nadatemavercomavivênciaaqui descrita,queéavivênciaintelectualdafutilidadedoin- telecto.Nãoé,portanto,umabandonodointelecto,mas podeser,muitopelocontrário,asuperaçãodointelecto porsipróprio. O anti-intelectualismodegrandepartedafilosofia atualéumerroeumperigo.É umerro,porqueconfunde afénointelecto(abandonadaacertadamente)comoen- quadrardointelectonumaféemumarealidadenovaaser encontrada.E éumperigo,porquepropagaeaprofunda o niilismoquepretendecombater.A vivênciaintelectu- aldaesterilidadedointelecto,vivênciaessaqueestetra- balhosepropõeaelaborar,tornao anti-intelectualismo umaatitudesuperada.Aquelequeexperimentouautenti- camenteemseuintelectoafutilidadedointelectonunca maisseráanti-intelectual.Pelocontrário,essavivência intelectualproduziráneleumaatitudepositivaparacom o intelecto,agoraintelectualmentesuperado.Estánuma situaçãocomparávelàquelaquesurgeapóso desencan- to comumagrandesomadedinheiro:o acumularda somaeraacompanhadodeumafénopodersalvadordo dinheiro,masapossedodinheirodissipouafé.Nãosur- giuaindaumaféparasubstituiraféperdida.Entretanto, o dinheiroestádisponívelparaserviraessanovafé,see quandoencontrada.O anti-intelectu;Jismoé provada persistênciaderestosdefénointelecto,eésuperadocom odesaparecimentodessesrestos. A vivênciadaesterilidadedointelectotornaexperi- mentáveis,emboranãocompreensíveis,osfundamentos dosquaisointelectobrotouecontinuabrotando.Funda- mentosextraintelectuaisquepordefiniçãonãosãoalcan- çáveisintelectualmente.Nãopodemser,portanto,auten- ticamenteincluídosnadisciplinadefilosofia,queéuma disciplinaintelectual.A tentativadefilosofara respeito dessesfundamentosémaisumerrodemuitafilosofiada atualidade.Entretanto,justamentenasuaeliminaçãodo campodafilosofiaresideapossibilidadedesuainclusão numcampomaisapropriado.Estaeliminaçãoéumadas tarefasdestetrabalho. Embora,portanto,o intuitodessacorrentedepen- samentonãopossaserasuperaçãodasituaçãoexistencial absurdanaqualnosencontramos,emboranãopossaes- perarultrapassaroniilismodentrodoqualnosprecipita- mos,pretendeiluminaralgunsaspectosparatornaruma superaçãoposteriormaisviável.Esteintuito,emsisó,já provaa existênciade algoparecidoremotamentecom umafé:asaberdeumaesperança,emboraprecária,na possibilidadedeumasuperaçãoe,portanto,nasobrevi- vênciadaquiloquechamamos,muitoinadequadamente, decivilizaçãoocidental.A essaesperançao presentees- forçoestádedicado. I. Do intelecto Osexercíciosmentaisquefazempartedadisciplina doYogacomeçampelaconcentração.Aqueleque,mo- vidoporcuriosidadeoupordescrençanosmétodosoci- dentaisdo conhecimento,compraumaIntroduçãoaos segredosdo Yogaeensaiaesseprimeiroexercíciomental, sofreumchoquecurioso.O livro recomenda,emsín- tese,a eliminaçãodetodosospensamentossalvoum únicoarbitrariamenteescolhido.Parecetratar-se,por- tanto,deumarecomendaçãodefácilexecução.O cho- quedesurpresaresidenaincrível,ridículaedegradante ginásticamentalqueestaexecuçãoexige.Trata-se,com efeito,deumaginásticaequivalenteemtudoàsconvul- sões,repulsivasaosolhosocidentais,queresultamdos exercícioscorporaisdosYogui.A nossamentesedestor- cetodanesseesforço,comosedestorcemosmembros docorpodoYogui.Já nãosabemos,quaseliteralmente, 36 A dúvida VILÉM FLUSSER 37 aondetemosa cabeça.Via de regraabandonamoseste primeiro estágiodosexercíciosmentais,porqueofende osnossoscânonesestéticoseo nossosensodedignidade depessoasinteligentes. ~al é a razãoda nossarevolta?~al é a razãodo nossosentimentodo inapropriado,do ridículo e do de- gradanteque acompanhaesseexercícioaparentemente simples?É que o exercícioda concentraçãodesvenda, imediataevivencialmente,alutaentrevontadeeintelec- to dentrodanossamente,epretendefortaleceravontade contrao intelecto.A concentraçãoéainvasãodavontade no territóriodo intelecto:éavontadequeeliminatodos ospensamentossalvoum único.É o primeiropassopara aconquistaedestruiçãodo intelectopelavontade,meta dadisciplinado Yoga.Estamos,entretanto,por todasas nossastradições,ligadosàsupremaciado intelecto,esta- mosprofundamenteempenhadosafavordo intelectoem sualutacontraavontade.A subordinaçãodavontadeao intelectoé,aosnossosolhos,o estado"natural"dascoisas, portanto,o estadobom,beloe certo.A luta davontade contrao intelecto,a qual seafiguracomo uma r~volta, representa,paranós, individualmente,a luta dasforças dasanidadecontraaloucura,e coletivamente,aluta das forçascivilizadorascontraairrupçãoverticaldabarbárie. A vitóriadavontade,por inimaginávelquesejaparanós, seria,a nossosolhos,um acontecimentoapocalíptico,a vitóriadasforçasdastrevas.Seriaa inversãototaldahie- rarquiadosnossosvalores,ademênciaindividualeo fim dasociedadecivilizada. o simplesexercícioda concentraçãonos põe em contato imediatoe vivencialcom uma civilizaçãodife- rentedanossa,comumahierarquiadevaloresdiferente. O exercíciodaconcentraçãonãoéum atobárbaroe in- disciplinado.Pelocontrário,éumprocedimentobemor- ganizado,detécnicaapuradaedeêxitopragmaticamente verificável,parecendofazerpartedeumacivilizaçãoequi- valenteànossa,masumacivilização,porém,empenhada afavordeforçasquesãobárbarasaosnossosolhos. O nossochoquee a nossarevoltasãoexistenciais, nãoespeculativos.Especulativamenteestamos,hámuito, acostumadosa encarara luta entreintelectoe vontade comequanimidade.Já o romantismoexaltaavontadeem detrimentodo intelecto.Schopenhauer,influenciado, por certo,pelacivilizaçãoindiana(emborasejaduvido-so quejamaistenhatido sequero choqueexistencialda concentraçãodo Yoga), concede,nassuasespeculações, umpapelontologicamenteprimordialàvontade.Toda a correntedaespeculaçãofilosóficadosséculosXIX eXX, quiçáacorrentemaiscaracterística,desertadafrenteoci- dentalparajuntar-seàsforçasda vontade,mastrata-se, emtodosestesfenômenos,dealgoartificialeinautêntico. Trata-sedeesforçosintelectuaisdeabandonaro intelec- to, masfaltavontadeatodosessesesforçosdejuntar-seà vontade.Do ponto devistaexistencial,umúnicoesforço deconcentrar-sepelasregrasdoYogavalemil tratadosde NietzscheoudeBergson.Ilumina,numraiodeexperiên- cia imediata,aquiloqueNietzschee Bergson,interalia, pretendem,talvezsemsabê-Io.O exercíciodaconcentra- 38 A dúvida VILÉM FLUSSER 39 ção,justamentepor sertãocontrárioao funcionamento "normal",isto é, tradicional,da nossamente,revelade maneiraquasepalpávelalgunsaspectosdo intelectoeda vontade. Creio queprecisorecorrerà alegoriapara descre- veruma situaçãoqueultrapassao intelecto.A situação é a seguinte:no centroestáo Eu. EsteEu semanifesta de duasformas:pensae quer.~ando a concentração começa,o Eu pensauma multiplicidadede pensamen- tos,e todoselescorremcomofiosnum tear.No centro correo fio-mestre,fortementeiluminadopela atenção, aparentementeirradiadapeloEu.Ao redordo fio-mestre corremfios auxiliares,àsvezesacompanhando,àsvezes cruzando,àsvezessustentandoo fio-mestre.Estesfiosau- xiliaresvêmdaescuridãoalémdoconeluminosodaaten- ção,passam,fugazes,pelapenumbradaperiferiado cone, paraperderem-sena escuridãonovamente.Entretanto, estãosemprepresentes,porqueo coneda atençãopode desviar-sedo fio-mestreparailuminá-Iosetorná-Ios,des- tarte,novosfios-mestres.Simultaneamente,e por assim dizerno outro lado,o Eu querfazerpararo fio-mestree destruirtodososfiosauxiliares.Em outraspalavras,o Eu querpensarum únicopensamento.No final daconcen- tração,seestafor bemsucedida,a situaçãomudou radi- calmente.O Eu continuano centro,e tem,à suafrente, umúnicopensamento,rígido,paradoemorto.Não seria exatodizerqueo Eu pensa.O pensamentoqueo Eu tem agoraestámorto.Em redordestepensamentomortoestá avontadedoEu,agoracompletamentelivre,tão-somente ancoradadentrodopensamentomorto.A sensaçãoéade umaforçadevontadequaseilimitadaquenãotemobjeti- vo. Essavontadecomeçaa girarem redordo pensamen- to morto,girandoo própriopensamentonesseprocesso. Surge,dessamaneira,umprocessoparecidoaopensar,mas governadopelavontadeenãopelointelecto.O Eu medita. Paraquemtevea experiênciavivencialda concen- traçãoe da meditaçãoincipiente,a descriçãoé satisfa- tória.Transmiteempalavras,isto é, intelectualiza,uma situaçãoa rigor inarticulável,por inintelectualizável.As palavrasdessadescriçãonãosãosimbólicas,comoemum discursoestritamenteintelectual,mas alegóricas.Não significam,masevocamasituaçãodescrita.Graçasaessa evocaçãotornamasituaçãointeligível.Paraquem,entre- tanto,nuncateveessaexperiência,a descriçãosemostra cheiadedificuldadese,portanto,profundamenteinsatis- fatória.Não tendopassadopelaexperiênciainarticulada ebruta,devetomaraspalavrasdadescriçãocomosímbo- losunívocosdesignificadoexato.Do pontodevistadeste alguém,éforçosoadmitir,semelhanteesforçodeintelec- tualizarumasituaçãoinarticulada,deveserconsiderado comoumfracasso.Essaconsideraçãorevelaatéqueponto o intelectoestáencarceradoemsimesmo. A descriçãoéintelectualmenteinsatisfatóriaporque, comotodaalegoria,caino antropomorfismo.Vemostrês personagens,por assimdizertrêsdeuses:o Eu,o Intelecto eaVontade.Aproximamo-nosperigosamentedamitolo- gia.É verdadequea própriaciência,aparentementetão afastadadamitologia,nãopodedispensaraspersonifica- 40 A dúvida VILÉM FLUSSER 4] çõesalegóricas,comoo provamconceitosdo tipode"a Lei","aHeredidade","oConsumidor",masnãoémenos verdadequeadesmitologizaçãocontinuasendoumideal dadisciplinaintelectual.Devemos,então,confessarque, arigor,anossasituaçãoéintelectualmenteimpenetrável einarticulável. Issonãoimpedequecertosaspectosdessasituação sejamarticuláveis.Emboranãopossamosdizernadain- telectualmentesatisfatórioquantoàspersonagensalegó- ricasdoEuedaVontade,devendo,portanto,expulsá-Ias doterritóriodadiscussão,istonãoseaplicaaointelecto. Estesimpodeserperfeitamentedesmitologizado.Com efeito,naprópriaalegorianãotemsidotantopersonifi- cadoquanto"coisificado",comparadocomumtearcujos fiosfossempensamentos.É preciso,tão-somente,abrira mãodaimagemdotearedosfios,éprecisotão-somente desmaterializaraimagem,eaalegoriadesaparece.A des- criçãodo intelectotorna-sesimbólica,istoé,comsigni- ficadoexato.Essadescriçãoéaseguinte:o intelectoéo campono qualocorrempensamentos.O puristapode objetarqueoconceito"campo"é,eletambém,alegórico. Entretanto,éumconceitoempregado,emoutronívelde significado,pelaciênciaexata.Comonãonecessitamos sermaisrealistasqueorei,manteremosanossadescrição dointelectocomohipóteseoperante. Sedescrevemoso intelectocomoo campono qual ocorrempensamentos,ultrapassamosa afirmativacar- tesiana"penso,portantosou"pelomenosporumpasso. Consideramosadúvidacartesianaumpassoadiantedela. A nossadescriçãodo intelectoautoriza-nosaduvidarda afirmativa"penso"e substituí-Iapelaafirmativa"pensa- mentosocorrem".A afirmativa"penso"éaabreviaçãoda afirmativa"háumEu quepensa".O métodocartesiano prova,apenas,aexistênciadepensamentos,nuncadeum Euquepensa.Nãoautorizaaafirmativa"penso".A afirma- tiva"penso,portantosou"éaabreviaçãodaafirmativa"há umEuquepensa,portantoháumEuqueé".Ora,éuma afirmativapleonástica,alémde,naturalmente,duvidosa. O intelecto,descritocomocamponoqualocorrem pensamentos,éumconceitoaurntempomaisrestritoe maisamploqueo conceitoduvidosodoEu.É umcon- ceitomaisrestrito,porqueo Eu (qualquerquesejaasua realidade,já agorabastanteesvaziadapornossadúvida) nãoseesgotapensando.Porexemplo:oEutambémquer. O intelectoéumconceitomaisamplo,porqueoEunão abrangetodoo campono qualocorrempensamentos. Mesmoseestendermoso âmbitodo conceitoEu para incluirneletodososEusindividuais,comofazemalguns psicólogosatuais,mesmoesseSuperEusuperduvidoso nãoabrangetodoo camponoqualocorrempensamen- tos.Ocorrem,por exemplo,pensamentosproduzidos mecanicamenteporinstrumentoseletrônicos.O Eu,sen- doumconceitoaumtempomaisamploemaisrestrito queo intelecto,é umconceitodispensávelnaconside- raçãodo intelecto.Devesereliminadodadiscussãodo intelecto,nãosomenteporsuadubiedadeepelasrazões expostasduranteadiscussãodaconcentração,masainda peloprincípiodaeconomiadeconceitos,peloprincípio 42 A dúvida VILÉM FJ"USSER 43 danavalhadeGccam.Essaeliminaçãoé,entretanto,ideal dificilmenterealizávelnopresenteestágiododesenvolvi- mentodadiscussãofilosófica.Todosnós,inclusiveopre- sentetrabalho,estamosdemasiadamentepresosaocon- ceitodoEu,parapodermosautenticamenteabandoná-Io. Entretanto,alibertaçãodoEunãoémais,comohápouco tempo,umobjetivoreservadoaosmísticos:elaé alcan- çávelpelaespeculaçãointelectual,comoo demonstrao presenteargumento. O intelecto,descritocomocamponoqualocorrem pensamentos,dispensaapergunta:"oqueéo intelecto?" Umcamponãoéumquê,masamaneiracomoalgoocor- re.O campogravitacionaldaTerranãoéumalgo,masa maneiracomosecomportamcorposrelacionadoscoma Terra.Damesmaforma,o intelectoéamaneiracomose comportampensamentos,aestruturadentrodaqualede acordocomaqualospensamentosocorrem.O intelecto nãotemdignidadeontológicaforadospensamentos,não éumSeremsi.Inversamente,nãohápensamentossol- tosnointelecto.Paraocorrerem,ospensamentosdevem ocorrerdealgumamaneira,eestamaneiraéo intelecto. Embreve:apergunta"oqueéo intelecto?"careceráde sentido.É umaperguntaingênuaemetafísica,nosentido pejorativodapalavra,dotipodeperguntascomo"oque éBeleza?"ou"oqueéBondade?".Osintelectualistaseos anti-intelectualistassão,ambos,prisioneirosdestetipode metafÍsicaingênua.A perguntaqueseimpõe,estasim,é aseguinte:"oqueéumpensamento?"Darespostaaesta perguntadependeráanossacompreensãoounãodocon-ceito"intelecto";é,portanto,aelequedevemosdedicara nossaatençãonoquesesegue. Paratanto,voltemosà consideraçãodo exercício daconcentraçãodoYoga.Secontemplamosaquiloque chamamos"pensamento"a partirdo nossopontode vista"natural","normal",istoé, tradicionalmenteoci- dental,estesenosafiguracomofenômenopsicológico, comoalgodadoÍntimae imediatamente.Entretanto, secontemplamoso pensamentodentrodoexercícioda concentração,esteseapresentacomofenômenoexterno, comoumacoisaentreascoisasqueperfazemoambiente chamado"mundo".Dessepontodevistaospensamentos sãovistoscomoumateiadensaeopacaquebloqueiaa nossavisãodarealidade,masatravésdaqualseinfiltra, refratadaepeneirada,a luz dessarealidade.A teiados pensamentosseafiguracomoumacamadaqueseinter- põeentreoEuearealidade,tapandoavisãodarealidade, apresentandoindiretamenteessarealidadeeo Eu,e re- presentandoessarealidadeparaoEu.Aspalavras"tapar", "presentear"e"representar"sãohomônimasemalemão, asaber,vorstellen.A teiadospensamentoséaquiloque Schopenhauerchamade Vorstellung.A teiadospensa- mentosé,então,aquelevéutecidodeilusõesquedeveser rasgadodeacordocomo ensinamentohindu,equeláé chamadodemaia. Tal pontodevistasobreo pensamento,porassim dizerumpontodevistadedentroparafora,proporcio- naapossibilidadedeumaapreciação"objetiva",poisnele o pensamentoévistocomosendoobjeto,enãosujeito, 44 A dúvida VILÉM FLUSSER 45 dacontemplação.Assimtorna-sefenômenono sentido dafenomenologiahusserliana,istoé,torna-sealgoaser entendido.Podemos,apartirdaí,investircontraopensa- mentoparainvestigá-Io.Descobriremosqueopensamen- to, longedeserumfenômenosimples,é umcomplexo deelementosorganizadosentresideacordocomregras fixas.Chamamosesseselementosde"conceitos"easre- grasde"lógica":opensamentoéumaorganizaçãológica deconceitos. Descobriremos,emsegundolugar,queopensamen- to éumprocesso,e isroemdoissentidos.No primeiro sentidoo pensamentoéumprocessoquecorreembus- cadesuaprópriacompletação.Podemosconceberpen- samentosinterrompidose incompletos,e o pensamen- to comoumprocessoembuscadeumaforma,deuma Gestalt;éumprocessoestético.Alcançadaessaforma,o pensamentoadquireumaauravivencialdesatisfação,um climadeobradeartecompletaeperfeita.Essaaurasecha- ma"significado".O pensamentocompletoésignificativo. No segundosentidoéopensamentoumprocessoautor- reprodutivo,segeraautomaticamenteum novopensa- mento.Podemosdistinguircadeiasdepensamentos,den- tro dasquaisospensamentosindividuaisformamelos; essascadeiasestãounidasentresicomoqueporganchos paraformaro tecidodopensamento.Um pensamento individual,emboracompletoesteticamente,por sersig- nificativo,é,nãoobstante,carregadodeumdinamismo internoqueo impedederepousarsobresi mesmo.Esse dinamismoinerenteaopensamentosemanifestanuma tendênciadopensamentoasuperar-seasimesmo,aban- donando-senessasuperação.Esteabandonodo pensa- mentoporsimesmopodeassumirdiversasformas,mas aquelaqueconduzà formaçãodenovospensamentos, portanto,aúnicaqueinteressanopresentecontexto,é, elatambém,chamada"lógica".A lógicaé,portanto,um conceitoambivalente.É oconjuntodasregrasdeacordo comasquaisopensamentosecompleta,eé,ainda,ocon- juntodasregrasdeacordocomasquaisopensamentose multiplica. A teiadospensamentospodeserconcebidacomo conjuntodinâmicodeorganizaçõesdeconceitosquees- condeerevelaa realidade,ouseja,queintroduzo Eu à realidadedemaneiradistorcidaporsuasprópriasregras, ouqueapresentaarealidadeaoEudistorcidapelasregras do pensamento.A realidadeseapresentatão-somente atravésdopensamento;a"realidadeemsi"nãopodeser captadapelateiadospensamentos,porqueessateiaobe- decearegrasquelhesãoinerentes.Nessaconcepçãocor- respondeateiadepensamentosà"razãopura"deKant, e asregrasàskantianas"categoriasdarazãopura".É a concepçãoàqualestamosacostumadospeladiscussãofi- losóficaclássica;emborapareçaserumaconcepçãocrítica dopensamento,emborapareçaadmitirlimitaçõesdoin- telecto,opera,nãoobstante,comoconceitodoconheci- mentocomosendoadequatioíntellectuad rem,adequa- çãoessaquenegaemsuaspremissas.Admite,movidapor féingênuanointelecto,quearealidadeemsitransparece pelateiadospensamentos,aindaquedistorcida;muito 46 A dúvida VILÊM FLUSSER 47 emboraadmita,simultaneamente,a impossibilidadede qualquerafirmativaemrelaçãoà realidadeemsi.Essaé umaconcepçãoqueprecisaserabandonada. Abandonandotalconcepçãoclássicateremos,possi- velmente,aprimeiravisãodaforçaqueimpeleateiados pensamentos.Essateiapodeserconcebidacomosendo umúnicopensamentoenormeembuscadesuacomple- tação.Tal comosenosapresentaagora,incompletoe interrompidopornossacontemplação,nãotemsignifi- cado,comonãoo temnenhumpensamentoincompleto einterrompido.A forçaqueimpeleateiadospensamen- toséabuscadosignificado;éessabuscaqueseapresen- ta comosendoabsurda,frustradapeloprópriocaráter dopensamento,quandoo significadodospensamentos individuaisadquirepapelsecundárioe parasitário.Os pensamentosindividuaissãosignificativosà medidaque contribuemparao significadogeralemcujabuscaateia dospensamentosseexpande.Sãosignificativosdentrodo contextodateiadospensamentos.O fatodeseremassim significativoscontribuiparaaexpansãodateia.A soma dossignificadosdospensamentosindividuaisé a força deexpansãodateia.Sendo,entretanto,inalcançávelesse últimosignificadoemdireçãoaoqualospensamentos tendem,são,nessesentido,tambéminsignificativosos significadosdospensamentosindividuais.Continuam sendo,entretanto,significativosdentrodeseucontexto. O abandonodafénoúltimosignificadodopensamento nãoacarreta,necessariamente,o abandonodousoprag- máticodos significadosdospensamentosindividuais. Nesteabandonodousoprático,nessareaçãodo"rudoou nada",resideoerroeoprimitivismodosanti-intelectua- listas. Formulemos,àluzdasconsideraçõesprecedentes,a nossaconcepçãodateiadospensamentos.É umconjun- todinâmicodeorganizaçõesdeconceitosqueabscondea realidadenoesforçoderevelá-Ia:éumabuscadarealida·· dequecomeçapeloabandonodarealidade.É umesforço absurdo.A teiadospensamentosé,portanto,idênticaà dúvida,talqualadiscutimosnaintroduçãodopresente trabalho.Sedescrevemoso intelectocomosendoo cam- podentrodaqualocorrempensamentos,istoé,comoo campodentrodoqualateiadospensamentosseexpande, podemosagoracondensara nossadescriçãodizendo:o intelectoéocampodadúvida. 2. Da frase oponto devistaqueassumimosno capítuloante- rior revela,por assimdizer,a anatomiae a fisiologiado pensamento.Revelao pensamentocomoorganizaçãode conceitos,erevelao funcionamentodo pensamento. Consideremoso pensamentocomoorganizaçãode conceitos.A nossainvestigaçãonosconduzàpróximaper- gunta:"o queé conceito?"Emborasetratedo elemento do pensamento,não dispomosde umadefiniçãoclarae unívocado conceito"conceito".Essacircunstânciaéreve- ladorada fé inconfessadosnossospensadoresdo intelec- to.Essafémandaqueo conceitosejaalgoqueacompanhe (oudevaacompanhar)apalavra.O estudanteingênuoem Faustodiz: "Doch ein BegriffmussbeidemWorte sein" ("no entanto,um conceitodeveacompanharapalavra"). Goethecompartilhada ingenuidadedo estudantee dis- tingue palavrasacompanhadase desacompanhadasde 50 A dúvida VILÉM FLUSSER 51 conceitos.Acha-seemexcelentecompanhia.Todos os es- forçosdedefinir"conceito"sãotentativasdeparafrasearo seguinteartigodefé:"conceitoéo fundamentoinarticula- do do qualsurgeumapalavralegítima".Por outro lado,o conceitonãoéalgo,masdealgo;parafalarmosemtermos simples,conceitoé o traçoqueumacoisadeixano inte- lecto.Estamos,portanto,diantedeumasituaçãocuriosa. N aprimeiraconcepçãoéapalavrao símbolodo conceito. Na segundaconcepçãoéo conceitoo símbolodacoisa.O conceitoé,portanto,algoentrepalavraecoisa- algocom- pletamentesupérfluo,comefeito,introduzidosomenteno esforçodesuperaro abismoentrepalavraecoisa.Não há conceitosempalavra,assimcomodizerquehápalavrasem conceitonãopassadeumamaneirasuperficialdefalar.O quesequerdizeréquehápalavrassemumacoisacorres- pondente(qualquerquesejao significadode afirmativa metaflsicacomoesta).Nãohá,portanto,a rigor,palavra semconceito.Há, istosim,palavrasincompreensíveis,que nãosãolegítimaspalavras,nosentidodenãofazeremparte deumafrasesignificativa- masesteé um problemaque surgirámaistarde.Basta,parao momento,constatarque nãohápalavrassemconceitos,nemconceitossempalavras, eque,emconsequência"conceito"e "palavra"sãosinôni- mosno sentidológico.Emocionalmentediferem,cabendo ao"conceito"opapeldeconciliadorentreaféeo intelecto, maslogicamentecoincidem.Podemos,portanto,porques- tãodeeconomia,abandonaro usodapalavra"conceito" emprol dapalavra"palavra".O pensamentoé,portanto, umaorganizaçãodepalavras. Com essareformulaçãodeslocamostodaconsidera- çãodopensamento,ecomelaaconsideraçãodointelecto, paraumterrenocompletamentediferente- parao terre- no adequado,comefeito.O queantespodetersidointer- pretadocomoexercíciopsicológicoouespeculaçãometa- física,adquireagorao seulugarprecisono conjuntodas disciplinasdepesquisa:apreocupaçãocomopensamento eaconsideraçãodo intelectofazempartedadisciplinada língua.Seo elementodopensamentoéapalavra,entãoo pensamentopassaa serumaorganizaçãolinguística,e o intelectopassaasero campoondeocorremorganizações linguísticas.Sedescrevemoso pensamentocomoproces- so,podemos,jáagora,precisarquetipodeprocessosetra- ta:éaarticulaçãodepalavras.Essaarticulaçãonãoneces- sitadeórgãosou instrumentosparaprocessar-se;órgãos e instrumentospodemserempregadosa posterioripara produziressaarticulaçãosecundáriaqueéalínguafalada ouescrita.A articulaçãoprimária,alínguanãoexpressa,o "falarbaixo",éidênticaàteiadospensamentos.As regras de acordocom asquaisos pensamentosseformulame sepropagamsãoasregrasda língua."Lógica"e "gramá- tica" passama ser sinônimosno mesmosentidoque o são"conceito"e "palavra".Sedefinirmos"língua"como "camponoqualsedãoorganizaçõesdepalavras","língua" passaasersinônimode"intelecto".O estudodo intelec- to,estudodalínguaqueé,torna-sedisciplinarigorosa. Nesseponto do argumento,é preciso fazeruma ressalva.Os estudoslinguísticos,como os conhecemos no presente,nãosabemdistinguirentrea línguaprimá- 52 A dúvida VILÉM FLUSSER 53 riae asecundária,entrealínguapuraealínguaexpressa aplicada.Misturam-se,emconsequência,aspectospuros, formaiseestruturaisdalínguacomaspectosprópriosda línguaaplicada.Consideram,por exemplo,apalavraora comosímbolo(aspectopuro), oracomogruposdefone- mas(aspectoaplicado).Consideramahistóriadapalavra oracomoo conjuntodesuasmodificaçõesquantoaosig- nificado(aspectopuro),oracomoconjuntodesuasmo- dificaçõesquantoasuaformasensível(aspectoaplicado). Tratamdedescobrirleisdeacordocomasquaisasregras gramaticaissedesenvolvem(aspectopuro), e tratamde descobrirleis de acordocom as quaisse desenvolvem novasformasdepalavras(aspectoaplicado).Em conse- quência,reina uma confusãofundamentalnos estudos linguísticosatuais. Emboranãosejasemprefácildistinguirentrelíngua purae aplicada,pelaíntima relaçãoqueexisteentream- bas,essadistinçãoésemprepossível.Ela precisaserfeita, e o estudoda línguaprecisaserdividido de acordocom ela.A partequeseocupacom a línguaaplicadaprecisa serrelegadaaoterrenodasciênciasnaturais,epouco ou nadateráavercomosproblemasdo pensamento.A ou- traparteformaráaquiloqueDilthey chamavade"ciência do espírito" (Geisteswissenscha:fi),com a diferençaque seráumaciênciadespsicologizada.Seráumaciênciatão exata,ou tãopoucoexata,quantoo sãoasciênciasnatu- rais.Essaciênciadalínguapuraestá,por ora,somentein statunascendi.Os estudosdos logicistasformais,como Carnap e Wittgenstein,e as experiênciasverbaisdos existencialistas,comoHeideggereSartre,nãopassamde primeirasaproximaçõesdeumainstituiçãodessaciência. Devemoscontinuar,portanto,coma nossainvestigação dopensamentosemo apoiodecisivodessadisciplinaaser instalada. Definimoso pensamentocomoumaorganizaçãode palavras.As ciênciaslinguísticaschamamorganizaçõesde I d "f "('p " "r ,,--pa avras e rases. ensamentoe nase sao,portan- to, sinônimoscomoo são"conceito"e "palavra".O inte- lectoéo campono qualocorremfrases.A análisedafrase edasrelaçõesentreasfrasesequivaleàanálisedo intelec- to.Esbocemosaanálisedafrase:agrossomodo,podemos distinguirnafrase-padrãocincoórgãos:(1) o sujeito,(2) o objeto,(3) o predicado,(4) o atributoe (5) o advérbio. (4) e (5) sãocomplementosde(1),e (2), respectivamen- te,de(3).Podemosdizerque,basicamente,afrase-padrão consistedesujeito,objetoepredicado.O sujeitoéaquele grupodepalavrasdentrodafrasearespeitodoqualafrase vai falar.O objetoéaquelegrupodepalavrasemdireção ao quala frasesedirige.O predicadoé aquelegrupode palavrasqueuneo sujeitoe o objeto.Essadescriçãoda fraseé,semdúvida,umaexcessivasimplificaçãodesitua- ção.Há frasesenormementecomplexasqueconsistemde umasériede frasese subfrasesinterligadas,com riqueza de complementose aditivosde análisedifícil. E há fra- sesdefectivas,nasquaisfaltaaparentementeo sujeito,o objeto,eatéo predicado.Entretanto,mesmoassim,sim- plificandoa frase-padrão,suaanáliserevelaráo aspecto fundamentaldoprocessochamado"pensamento". 54 A dúvida VILÉM FLVSSER 55 A frasetemdoishorizontes:osujeitoeoobjeto.Ela éumprocessoqueseprojetadeumhorizonterumoao outro.Maisexatamente:algoseprojetanafrasedeum horizonte,queéosujeito,rumoaooutrohorizonte,que éoobjeto,eestealgoéopredicado.A fraseéumprojeto dentrodoqualoprojétil(opredicado)seprojetadosu- jeitoemdemandadoobjeto.Sujeitoeobjeto,horizontes quesãodoprojeto,nãoparticipampropriamentedesua dinâmica.Sãoaspartesestáticasdoprojeto.O predica- do,amissiva,o missilequeseprojetaaolongodotrajeto queuneumsujeitoeobjetoparaformaro projeto,é a verdadeiramensagemdafrase.Neledevemosprocurar o significadodafrase.Dadaaimportânciadaanáliseda fraseparaa compreensãodo intelecto,seránecessário considerarmoscadaumdosseusórgãosumpoucomais atenciosamente. Consideremosprimeiroasimplicaçõesde termos definidoafrasecomosendoumprojeto.Istofacilitaráa compreensãodafunçãodosórgãosdentrodoorganismo dafrase.A palavra"projeto"éumconceitocomo quala filosofiaexistencialopera(EntwurfJ; deacordocomessa escoladepensamentosestamosaqui,existimos,porque paracáfomosjogados(gewoifen).Duassituaçõespodem resultardessenossoestarmosjogadosparacá:podemos continuarcaindopassivamenteparadentrodo mundo dascoisasquenosenvolveeoprime,caindoemdireção à morte,oupodemosvirar-noscontraasnossasorigens dasquaisfomosjogados,transformandocoisasquenos envolvememinstrumentosquetestemunhamnossapas- sagem- podemosprojetar-nos.A primeirasituação,ada decadência,osexistencialistaschamamdeinautêntica;a segundasituação,adoprojeto,chamamdeautêntica.Não cabeaquiadiscussãodoméritodessavisãodaexistência. Cabe,istosim,aconsideraçãoque,tendodefinidoafrase (istoé,opensamento)comoprojeto,enquadreorganica- menteoconceito"pensamento"dentrodessavisão.Com efeito,nãosomenteenquadramoso pensamentodentro davisãoexistencialista,comoaindalibertamosoexisten- cialismodo opróbriodeanti-intelectualismoquesobre elepaira.O pensamento(a frase)nãoé simplesmente umentreosprojetospelosquaisnosprojetamoscontra o nossoestarmosjogadosparacá;o pensamentoé,com efeito,o nossoprojeto-mestre,o padrãodeacordocom o qualtodososdemaisprojetossecundáriosserealizam. O pensamentoéumprojeto,porseramaneirapelaqual aexistênciaseprojetacontraassuasorigens.Vemosaqui, soboutroprisma,o aspectodaabsurdidade,daantifé, dadúvidaqueéo pensamento.Masapalavra"projeto" adquire,nessecontexto,umaqualidadequenãotemnas discussõesexistencialistas.Torna-seanalisável.Paraos existencialistaséoprojetoumavivênciaacompanhadade um clima(Stimmung).No presentecontextocontinua sendovivência(todosatemosaotermospensamento),e é,nãoobstante,acessívelà análise.Prossigamoscomela. O sujeito,pontodepartidadoprojetoqueéafrase, éconsiderado,porsisó,o detritodeumafraseanterior. É oquerestoudeumpensamentojáperfeitoerealizado. É o eloqueuneafraseaserprojetadacomafrasequeo56 A dúvida VILÊM FLUSSER 57 antecedeu,imediataou mediatamente.Emboratenha sidopredicadocomosujeitoemumafraseanterior,ou emboratenhasidoalcançadocomoobjetoemumafrase anterior,nãoestáesgotado.Faltaalgomaisaserpredi- cadoaseurespeito,ou faltaalgomaisasernelealcan- çado:estealgodeveserpredicadononovoprojetoque estásendoprojetado.A fraseé,portanto,um projeto quepretendepredicarsucessivamentetudoa respeito doseusujeito,atéesgotá-Io.Somenteseforconseguido esseesgotamentocompletodo sujeito,somentesefor predicadotudoa seurespeito,poderáserconsiderada umacadeiadepensamentoscomosendocompleta.É umatarefaabsurda,tantopráticacomoteoricamente. O objeto,metadoprojetoqueéafrase,éaquilocontra o qualoprojetoinveste,o queoprojetoprocura,o que investiga.Sealcançadoemcheio,serácomoqueengoli- dopelosujeito,podendofigurarcomoatributodo su- jeitonumafrasesubsequente.O predicado,centrodo projetoqueéafrase,unedentrodesi,numasíntesedia- lética,atesedosujeitocomaantítesedoobjeto,eesta sínteseéjustamentea frase.Essauniãoentresujeitoe objetoalcançadapelopredicadoéchamada"significado dafrase".Parapodermoscompreendermelhorafunção decadaumdosórgãosdafrase,comofoiesboçada,visu- alizemosasituação: Tomemoscomoexemploafrase:"ohomemlavao carro".Nessafrase"ohomem"ésujeito,"ocarro"éob- jeto,e"lava"épredicado.O sujeito"ohomem"irradiao predicado"lava"emdireçãoaoobjeto"ocarro".A frase tem,portanto,aforma(Cestalt)deumtiroaoalvo:osu- jeito("ohomem")éofuzil,opredicado("lava")éabala,e oobjeto("ocarro")éo alvo.Podemos,ainda,visualizara situação,comparando-aaumaprojeçãocinematográfica: o sujeito("ohomem")éoprojetor,opredicado("lava") éaimagemprojetada,oobjeto("ocarro")éateladepro- jeção.Creioserdesumaimportânciaparaacompreensão do intelectoavisualizaçãodaforma,daCestaltdafrase. Os psicólogoscomparativosafirmam,aotentarexplicar o mundoefetivodasaranhas,queessemundosereduz aacontecimentosquesedãonosfiosdateia.Aconteci- mentosquesedãonosintervalosentreosfiosdateianão participamdomundoefetivo(real=wirklich)daaranha, masnãopotencialidades,sãoo vir-a-serdaaranha.São o fundoinarticulado,caótico,"metafísico",deumaara- nhafilosofante.A aranha-filósofoafirma,negaouduvida dosacontecimentosmetateicos,aaranha-poetaosintui, aaranha-criadoraseesforçaporprecipitartudosobreos fiosdateia,paratudocompreenderedevorar,eaaranha- místicaseprecipitaparadentrodosintervalosda teia para,numauniãomística,fundir-senotodoelibertar-se daslimitaçõesdateia.A aranhaéumanimalsumamen- tegratoàpsicologiacomparativa,porquedispõedeuma teiavisível;osdemaisanimais,inclusiveohomem,devem contentar-secomteiasinvisíveis.A teiadohomemcon- sistedefrases,aforma(Cestalt)dateiahumanaéafra- se.Visualizandoafraseestaremosvisualizandoateiado mundoefetivo,real,wirklichparao homem,estaremos visualizandoaestruturada"realidade". 58 A dúvida VILÉM FLUSSER 59 Detenhamo-nos,maisum instante,na aranha.O queacontecenosfiosdateia?Acontecemmoscas,outras aranhas,ascatástrofesquerasgamosfios.E, no centroda teia,acontecimentoinalcançávelteicamente,acontecea própriaaranhasecretadoradateiaedonadateia,livrede deslocar-seaolongodosfiosparadevorarmoscas,copular comoutrasaranhas,combateroutrasaranhaseconsertar estragosintroduzidosna teiapor catástrofes.Podemos, então,distinguir,basicamente,asseguintesmodalidades ontológicas,asseguintesformasdo Ser:mosca,outraara- nha,catástrofedestruidora,e,comtodaasuaproblemáti- cateica,aprópriaaranha.A aranhacivilizada,no sentido ocidentaldo termo,tenderáa menosprezara diferença entremoscaeoutraaranha,considerandoaoutraaranha comoumaespéciedemosca;elatenderáaexplicarasca- tástrofesdestruidorasda teia como sendosupermoscas quenãopodemsersuportadaspelateia(provisoriamen- te,já quea teiacresceesefortificae acabarásuportando moscasdetodo tamanho);enfim,tenderáaconsideraro mundometateicocomoum reservatório,umvir-a-serde moscas.A aranhamaterialistaensinaráquea moscaé a teseeaprópriaaranhaaantítesedoprocessodialéticoque sedesenvolvenosfiosdateia,tendosidoalcançadaaúlti- masíntesequandoaprópriaaranhativerdevoradotodas asmoscas.A aranhahegelianaafirmaráqueaaranhapres- supõeamoscaequeoprocessodialéticoéumaprogressi- vaaranhanizaçãodomundo-mosca,portantofenomenal, eque,consequentemente,o devorardamoscaequivaleà realizaçãodamosca.A moscadevoradacomomoscarea- lizada:eisaúltimasíntese,atotalrealização,por aranha- nização,dasmoscas.A aranhaheideggerianaconsiderará amoscaaserdevoradacomoacondição(Bedingung)da situaçãoaranhal,eo cadáverdamoscajá chupadacomo testemunha(Zeug)da passagemda aranhapelo mundo mosca!..Estestrêstiposdeespeculaçãoocidental,eoutros semelhantes,sãocaracterizadospor um aranhismoextre- mo,já queaceitamateiacomofundamentodarealidade semdiscutiraprópriateia.O aranhismoéinevitávelpara asaranhas,masadiscussãoda teiaé aranhamentepossí- vel.Essadiscussãotornaviávelumavisãomaisapropriada nãosomentedamosca,masdaprópriaaranha. Voltemos à teia humana,exemplificadana frase "o homemlavao carro".Indiscutivelmentea situaçãoé maiscomplicadado que na teiada aranha.Acontecem nelapalavras(moscas)detiposdiversos,asaber,sujeito, predicadoe objeto.Não obstante,o paralelopode ser mantido.O nossomundoefetivo,real,wirklich,seesgota em palavrasde um daquelestiposdiversos.O restoé o mundo caótico,inarticuladodo vir-a-ser,que nos esca- pa pelasmalhasda nossateia,intuível talvezpoéticaou misticamente,masrealizáveltão-somenteempalavrasor- ganizadasdeacordocomasregrasdanossateia.Paraser real,tudoprecisaaceitaraformadesujeito,ou objeto,ou predicadodeumafrase.Aquilo queWittgensteinchama deSachverhalt,istoé,o comportamentodascoisasentre si,eaquiloqueHeideggerchamadeBewandtnis,istoé,o acordoexistenteentreascoisas,nãopassadarelaçãoen- tresujeito,objetoepredicado.O nossomundodascoisas 60 A dúvida VILÉM FLUSSER 61 reais,istoé, a teiadasnossasfrases,é organizado,é um cosmos,é umSachverhalte temumaBewandtnis,por- quesãoassimconstruídasasnossasfrases.É evidenteque cadalínguaparticular,sefordo tipoflexional,temuma construçãodefrasesligeiramentediferente,oumuitodi- ferente.Portanto,a cadalínguaparticularcorresponde um5JachverhalteumaBewandtnisdiferente,umcosmos diferente.O queestamosdiscutindonocursodestascon- sideraçõesé,sensustricto,ocosmosquecorrespondeàlín- guaportuguesaque,dadooparentescoestruturalentreas línguasflexionais,podeseraplicado,comcertasreservas, atodososcosmosdaslínguasflexionais. Tentandovisualizaraformadafrase,estamos,com efeito,tentandovisualizaro cosmosdanossarealidade, estamosinvestigandooSachverhaltrealeprocurandosa- berqueBewandtnistem.Sevisualizarmosa frasecomo umtiroaoalvooucomoumaprojeçãocinematográfica, estamos,comefeito,visualizandoassimo nossocosmos. Ao dizerqueafraseconsistedesujeito,objetoepredicado organizadosentresiemformadeumprojetocomparável aotiroouà projeção,estamosdizendo,comefeito,quea nossarealidadeconsistedesujeitos,objetosepredicados assimorganizados.A análiselógicadafraseéumaanálise ontológica.Assimcomosecomportamaspalavrasdentro dafrase"ohomemlavao carro",comportam-seascoi- sasnarealidade.Logo,todainvestigaçãoontológicadeve partirdaanálisedafrase.Comoaaranhadeveconsiderar asuateiaantesdequalquerconsideraçãodemoscas,se quiserevitarumaranhismoingênuo,assimdevemoscon- siderar,antesdemaisnada,aestruturadafrase,sequi- sermosevitaraatitudeingênuachamada,emnossosdias, de"humanismo".Essaestruturanosé dadapelalíngua dentrodaqualpensamostãoirrevogavelmentequantoé dadaateianocasodaaranha.(Q:ererfugirdaestrutura darealidadeemsujeito,objetoepredicadoéquererpre- cipitar-se,numsuicídiometafísico,paradentrodasma- lhasdanossateia.Umarealidadeconsistentesomentede sujeitos(loucuraparmediniana)ou somentedeobjetos (loucuraplatônica)ou somentedepredicados(loucura heraclitiana)sãoexemplosdessafugasuicida.Por incô- modaquepossaser,devemosaceitaratrípliceontologia comoumdadoimpostopelalíngua.O restoémetafísica,portanto,silêncio. Sujeito,objetoe predicadosãoasformasdo Ser queperfazemanossarealidade.Consideremoso sujeito. Eleé o detonadordafrase.Não bastaasi mesmo,pre- cisadafraseparaenquadrar-senarealidade.O sujeito, no nossoexemplo"ohomem",carecedesignificado,se consideradoisoladamente.É umdetritodeumafrasean- terior,porexemplodafrase"istoé umhomem".É um detrito,entretanto,carregadodeforçaexplosiva;devido aestacargaestásetornandosujeito.Essacargaexplosiva éasuaprocuradesignificado.Procurandosignificar,isto é,procurandoumlugardentrodaestruturadarealida- de,apalavra"ohomem"torna-sesujeitodeumafrase: procuraumSachverhalquetenhaumaBewandtnis.Em outraspalavras:procuraserpredicadoemdireçãoaum objeto."O homem",consideradoisoladamente,forade 62 A dúvida VILÉM FLUSSER 63 umafrase,éumaprocura,umainterrogação,edeveriaser escrito,arigor,"ohomem?".O sujeito,o fundamentoda frase,aquiloqueAristóteleseosescolásticoschamavam desubstantia,éumserembuscadeumobjetoparareali- zar-se.Carecedealgocontraoquesepossaprojetarnum predicado. Consideremosessealgo,istoé,o objeto- nonosso exemploapalavra"ocarro":éaquiloquebarraoprojeto dosujeito,éo obstáculoquedáasuaprocuraportermi- nada.Opõe-seàprocuradosujeito,enessaoposiçãodá sentidoà procura.Defineo sujeitodentrodeumasitu- ação,dentrodeumSachverhalt,queé a frase.Limitao sujeito,dando-lhe,porissomesmo,umlugardentrodo esquemadarealidade.Realizaosujeito,mas,pelomesmo processo,torna-serealizado.Consideradoisoladamente, foradafrase,é o objetoalgoaindanãoencontrado,mas quedeveserencontrado.O objetodentrodafraseéum imperativo,umdeverdosujeito,edeveriaserescrito,no nossoexemplo,a rigor,"o carro!".~ando alcançado pelosujeito,oimperativodoobjetosefundecomointer- rogativodosujeitonoindicativodoSachverhaltqueé a frase.O projetodafrase,interrogativosevistosubjetiva- mente,imperativosevistoobjetivamente,é umaindica- çãosevistocomoSachverhalt,istoé,comoumtodo. Seconsiderarmosanossarealidadedopontodevis- tadosujeito,daquelepontodevistaquepodemoscha- marde "excentricidadesubjetivista",elaseapresentará comoumaúnicaeenormeprocuraeinterrogação,como umabuscadosignificado.Essaexcentricidadesubjetivis- ta caracteriza,por exemplo,o pensamentoromântico. Seconsiderarmosanossarealidadedopontodevistado objeto,digamos,da "excentricidadeobjetivista",elase apresentarácomoum únicoe enormeobstáculo,uma barreiracategóricaquenosdeterminaesobrenósimpe- ra.Essaexcentricidadeobjetivistacaracteriza,confessaou inconfessadamente,porexemplo,opensamentomarxis- ta.A aparentedicotomiaentreasduasexcentricidades sedissolvenavisãodafraseinteira,naqualtantosujeito comoobjetotemBewandtnis.A realidadeseapresenta, destepontodevista,comoumaindicação,istoé, como umaarticulação,umaorganizaçãolinguísticaquesupe- ra,noSachverhaltentresujeitoeobjeto,o interrogativo eo imperativo.O objetoalcançadopelosujeitonafrase desvendaaeternaquerelaentredeterministaseindeter- ministascomosendoumaquerelaentreexcêntricos,ou seja,comoumaquerelanascidadeumafalsagramática. Aspalavras"sujeito"e"objeto",seconsideradaseti- mologicamenteno sentidode"línguapura",nãodeve- riamdarmargemamuitaconfusão."Sujeito"éaquiloque estánofundodoprojeto(subjectum)."Objeto"éaquilo queobstao projeto(objectum).Entretanto,ambasas palavrasfazemparte,hámilharesdeanos,daconversa- çãofilosóficaetêmsidoutilizadasforadoseucontexto autêntico,queé agramática.Dessaformaderamorigem amúltiplasespeculaçõesmetafísicasquedevemsercon- duzidasaoabsurdo,seaspalavrasforemrecolocadasno seucontexto.Porexemplo:adistinçãoentre"objetoreal" e"objetoideal",ouaidentificaçãode"sujeito"com"Eu" 64 A dúvida VILÉM FLUSSER 65 oucom"Deus".Trata-se,nosexemploscitadoseemou- tros,desimpleserrosdesintaxe.Esperoqueapresente discussãopossacontribuirparaaeliminaçãodesteserros eparaarecolocaçãodeambasaspalavrasemseucontex- toestruturalmentecerto,istoé,nocontextodaestrutura daslínguasflexionais. A oposiçãoentresujeitoeobjetodentrodafraseé superadapelopredicado.O predicadoestabeleceo Sa- chverhaltentresujeitoeobjeto.O predicadoocupaapo- siçãocentraldentrodoprojetoqueéafrase.A própria palavra"predicado"exigeumainvestigaçãoontológica pacientequeultrapassadelongeoescopodestetrabalho. Surgiudapalavra"dizer"etemparentescopróximocom aspalavras"predizer"(istoé,profetizar)e "prédica".É umapalavraintimamenteligadacomtodososproblemas ontológicosqueseagrupamaoredordaspalavras"dizer", "falar",e"língua".A consideraçãodopredicadonoscon- duzaopróprioâmagodalíngua.Sujeitoeobjetosãoos horizontesdafrase,portantodalíngua,masopredicado éo centro,a essênciadafrase,portantodalíngua.Em- boraestejamoscondenados,pelaestruturadalíngua,à ontologiatríplicedesujeito,objetoepredicado,cabeao predicadoumaimportânciamaior.O predicado,nonos- soexemplo"lava",esforça-seporunir,dentrodafrase,o sujeitocomo objetonumSachverhalt,istoé,esforça-se porintegrarosujeitoeoobjetonaestruturadarealidade. Trata-se,entretanto,deumesforçopordefiniçãoabsur- do.O sujeitoeo objetonãosãointegráveisnaestrutura darealidade.Exemplifiquemosesseabsurdo:"ohomem" érealporque"lava"é,portanto,realsomenteenquanto "lava"."O carro"é realporque"ohomemo lava",por- tanto,somenteenquanto"ohomemlava".A realidadedo "homem"edo"carro"estáno"lava"."O homem"éolado subjetivoenquanto"ocarro"éoladoobjetivodarealida- de,queporsuavezéo predicado"lava".Entretanto,"o homem"e"ocarro"transcendemarealidadequeéopre- dicado"lava";podemosverificaressatranscendênciaesta- belecendoumoutroSachverhaltentreomesmosujeitoe o mesmoobjeto,istoé,predicandoumoutropredicado, porexemplo,"ohomemguiao carro".Agorao mesmo "homem"eomesmo"carro"serealizamnumarealidade diferente,queéopredicado"guia".O quenosautorizaa dizerquesetratanessasduasrealidadesdo"mesmo"su- jeitoouobjeto?Eisumaperguntatipicamenteeternada filosofiaclássicaequetemdadoorigemainúmerasmeta- físicaseepistemologias.Entretanto,dentrodopresente contexto,arespostaésimplesenadatemdemisterioso.É umaperguntapuramenteformaledizrespeitoà sintaxe dalínguaemqueestamospensando.Estamosautoriza- dosafalarem"mesmo"sujeitoe"mesmo"objeto,porque emambasasfrasesservemasmesmaspalavrasdesujei- toeobjeto.Resumindo,podemosdizerqueo sujeitoeo objeto,porpoderemparticipardediferentesSachverhalt, transcendemtodoseles,emais:jáqueosujeitoeoobjeto podemparticipardeinúmerasSachverhalt,transcendem inúmerosSachverhalt.A realidadeé o conjuntodos Sachverhalt,istoé,oconjuntodasfrases.Logo,podemos dizerqueo sujeitoe o objetotranscendema realidade, 66 A dúvida VILÉM FLUSSER 67 emboraparticipandodeinúmerosSachverhalt.A realida- dedosSachverhaltestánosseuspredicados. A filosofiaclássicaconheceo conceitodo "pensar predicativo".Reconhecealimitaçãodointelectodepoder "captar"(eifàssen)somenteospredicadosdeum sujeito, e jamaiso próprio sujeito.Como nãocoloca,entretan- to, o problemadentrodo contextogramatical,perde-se a filosofiaclássicaemespeculaçõesestéreis.A limitação do intelectoé dadapelaestruturada língua,nestecaso específicodaestruturadafrasenaslínguasflexionais.Essa estruturasendotal qualé,resume-sea realidadedecada Sachverhaltno predicadodecadafrase.Estritamentefa- lando,podemosdizerquearealidadeéasomadospredi- cadosdetodasasfrasesarticuláveis. Sujeitoeobjeto,horizontesquesãodafrase,formam oselosentrefrasesegarantem,dessamaneira,acontinui- dadedarealidade.Por exemplo:"O homemlavao carro. Mais tarde,o homemguiao carro".EstesdoisSachverhalt participamdo mesmocontinuumderealidade,porqueas duasfrasescontêmos mesmossujeitoe objeto.Encara- do o problemado fluxodarealidadedesteponto devista gramático,aeternaquerelaentreParmênidese Herácli- to ficasuperada.Sujeitoeobjeto,os "onta"imutáveisda especulaçãopré-socrática,transcendemo rio heraclitiano no sentidodeparticipardelesomenteparagarantir-lheo fluxo.Não fazem,arigor,partedo rio, nãosão"reais"no sentidopré-socrático.Justamentepor seremimutáveis, istoé,nãototalmentepredicáveis,nãosãopropriamente
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