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FLUSSER, Vilém. A duvida. 2011.

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COLEÇÃO COMUNICAÇÓES
Direção: Norval Baitello junior
A ColeçãoComunicaçõespretendemostraro amploesedutorleque
dehorizontese perspectivascríticasqueseabreparaumajovemciência
quenão é apenasciênciasocial,masque tambémsenutre e transita
nasciênciasdaculturabemcomonasciênciasdavida.Afinal,apenasso-
brevivemos,comoindivíduoe comoespécie,secompartilhamostarefas,
funçõesefruições,valedizer,sedesenvolvemosumaeficientecomunicação
quenosvinculeaoutraspessoas,aoutrosespaços,aoutrostempos,eatéa
outrasdimensõesdenossaprópriasubjetividade.
TítulosPublicados:
Língua e realidade,deVilém Flusser
A ficção cética,deGustavoBerna.rdo
Mimesena cultura, deGünterGeba.uereChristophWülf
A históriado diabo, deVilémFlusser
Arqueologiada mídia, deSiegfriedZielinski
Bodenlos,deVilém Flusser
O universodas imagenstécnicas,Vilém Flusser
A escrita,deVilém Flusser
A épocabrasileirade VilémFlusser,deEvaBatlickova
Pensarentrelínguas,deRainerGuldin
Homem & Mulher, uma comunicaçãoimpossível?,deCiro MarcondesFilho
Mediosfera,deMalenaSeguraContrera
Filosofia da caixapreta, deVilémFlusser
A sair:
Par e ímpar: assimetriado cérebroedossistemasdesignos,deV. V. Ivanov
NaturaLmente,deVilémFlusser
Pós-história,deVilém Flusser
Vampyroteuthisinfernalis,deVilémFlussereLouisBec
VILÉM FLUSSER
A dúvida
{ ~'ISCj 1/j 11\N~E
INFOTHES InformaçãoeTesauro
F668 FIusser,ViJém(1920- 1991).
A dúvida.! Vilém Flusser. Apresentação de Gustava Bernardo. - São Paulo:
Annablume,2011.(ColeçãoComuoicações.)
122p.; 14x21 C111.
EdiçãoautorizadaporEdith }1uS,fer.
ISBN 978-85·391-0211-2
1.Filosofia. 2. Teoria do Conhecimento.3. Dúvida. I. Título. lI. Série.
IIl, Bernardo,Gustava.
CDU 165
CDD121
CatalogaçãoelaboradaporWandaLuciaSchmidt- CRB·8·1922
A dúvida
Sumário
Coordenaçãodeprodução:
Diagramação:
Revisão:
Capa:
Finalização:
IvanAntunes
Vinícius Viana
IvanAntunes
Cados Clémen
Vinícius Viana
ApresentaçãodeGustavoBernardo
Introdução
7
21
ConselhoEditorial
EduardoPefiuelaCanizal
Norval Baitellojuniar
Maria Odila LeitedaSilvaDias
CeliaMaria Marinho deAzevedo
Gustava Bernardo Krause
Maria deLourdesSekeff(in memoriam)
PedroRobertoJacobi
Lucrécia D'Alessio Ferrara
1"edição:fevereirode20lI
©Edith FIusser
ANNABLUME editora.comunicação
RuaM.M.D.C., 217.Bm.mã
05510-021.SãoPaulo. SP. Brasil
Tel.eFax.(O lI) 3812-6764- Televendas3031-1754
www.annablume.com.br
1.Do intelecto
2. Da frase
3. Do nome
4.Da proximidade
S.Do sacrifício
3S
49
71
91
109
Dois menosum pedacinho
" Esteerao títulodoartigopublicadoporVilémFlusser"em 22deoutubrode 1966,n'O EstadodeSãoPaulo:
• apenaso sinalde interrogação.Ao pesquisaro signi-
ficadodo signo"?", Vilém descobrequeelenãoéobjeto,
conceitoou relação,massimum clima:o climada inter-
rogação,dadúvida,daprocura.~ando contemplamosa
imagemde"?",sentimosumclimaquecontrastacomo cli-
maconclusivodosigno"."ecomoclimaimperativodosig-
no "!".O signo"?",assimcomoosoutrosdois,nãopodem
serpronunciados,nãopodemserfaladosemsi,isolados-
torna-sedifícil atélê-Iosporquesequera leiturasilenciosa
épossíveLSópodemostraduzi-Ioscomo"pontos":ponto
deinterrogação,pontofinal,pontodeexclamação.Os três
signos-pontosnãoapenasdefinemo sentidocomoo clima
dasfrases;logo,sãosignosexistenciais.Mas,dentretodos,
Flusserprefereo signodainterrogação:
8 A dúvida VTLÉM FLUSSER 9
Devoconfessarqueentretodosossig-
nosexistenciaisé o "?"aquelequemais
significativamentearticula,a meuver,
a situaçãonaqualestamos.Creio que
podeserelevadoa símboloda nossa
épocacomjustificaçãomaiorquequal-
queroutro.Maiorinclusivequeacruz,a
foiceeomartelo,earochadaestátuada
liberdade.Maselevadoassimasímbolo
deixadeser,obviamente,o "?"umsigno
queocorreemsentençascomsentido.
Sofreodestinodetodosossímbolosex-
trassentenciais:é equívocoe nebuloso.
Contentemo-nospoiscomo "?"como
signoqueocorreemsentenças,massai-
bamosmanterfidelidadeaoseusignifi-
cado.Nãoseráesteo papelmaisnobre
da nossapoesia?Formularsentenças
comsentidonovoquetenhamumsigni-
ficadoquelheéconferidopelo"?"pelo
qualacabam?Formulandoestetipode
sentenças,rasgaráapoesianovasabertu-
rasparaumdiscursoqueameaçaacabar
empontofinaL
Já no artigo "Ensino", publicadona Folha de São
Paulo de 19defevereirode 1972,Flusserdiz queospro-
fessorespodem ser meroscanaistransmissoresinertes,
comunicandomodelosde comportamentotipo "ame
teupai e tuamãe"ou modelosdeconhecimentodo tipo
"doismaisdoissãoquatro",massemseengajarememtais
modelos.Nessecaso,os professoresseriamsubstituídos
em brevepor máquinasde ensinoprogramado.Mas os
professorespodemtambémengajar-senosmodelosque
transmitem,quandotêmdeenfrentarasdúvidasdo pre-
sente,propondo,por exemplo,"ameteupai e tua mãe,
masnãoedipicamente"ou "doismaisdoissãoquatrono
sistemadecimal,masdesdequezerosejanúmeroe que
todo sucessordenúmerosejanúmero".
Em tal caso,emergeno professoro conflito: com
quedireitotransmitirmodelosaceitospeloprópriopro-
fessorjácomgravesreservas?Não seriamelhortransmitir
asdúvidasno lugardosmodelos?Para a respostaa esta
dúvida,nãotenhoqualquerdúvida:é melhortransmitir
asdúvidasno lugardosmodelos.Apenasdessamaneira
nãodigoo quepensar,massiminstigocadaum apensar
por suaprópriacabeça- emúltimainstância,afilosofar.
É precisoduvidar.Paracomeçar,é precisoduvidar
da dúvidacartesianaporque,mesmohiperbólica,elase
impõeumlimite inaceitável.Descartesdiz quenãopode
duvidardequeduvidano instantemesmoemqueduvida,
paradessamaneiraafirmaro "ergosum"edefendero seu
aterrorizanteobjetivofinal:acabarcomtodasasdúvidas!
A dúvidanãoéumestadoporquejáéumnãopoderestar.
Descarteserraporqueconfundeadúvidacomanegação
erraporquenãovolta a duvidarde si mesmo.A dúvida
precisasuporqueum mundoinventadosejamelhordo
queo mundorecebido,suposiçãoqueobviamentesecal-
canaconsciênciadequetodo o pensamentoéum fingi-
mento.Essefingimentonoslevaaolivro-síntesedetoda
aobradeVilém Flusser,A dúvida,provavelmenteescrito
10 A dúvida VILÉM FLUSSER 11
no finaldosanos50einício dos60.Nele,Flusserdefine
seumaisespinhosotema:
A dúvidaéumestadodeespíritopoli-
valente.Podesignificaro fim de uma
fé,oupodesignificaro começodeuma
outra.Podeainda,selevadaaoextremo,
instituir-secomo "ceticismo",isto é,
comoumaespéciedefé invertida.Em
dosemoderadaestimulaopensamento,
masemdoseexcessivaparalisatodaati-
vidademental.A dúvidacomoexercício
intelectualproporcionaumdospoucos
prazerespuros,mascomoexperiência
moralelaéumatortura.A dúvida,alia-
daà curiosidade,éo berçodapesquisa,
portanto,detodoconhecimentosiste-
mático- masemestadodestiladomata
todacuriosidadee é o fim detodoco-
nhecimento.
Parahaveradúvida,éprecisohaverpelomenosduas
perspectivas- tambémemalemãoduvidarsediz"zweifeln",
de"zwei",quesignifica"dois".Curiosamente,o signo"?"
parecetersidodesenhadoprimeirocomoum "2"do qual
setirou apenasumpedacinho...
Antecedendoàsduasperspectivas,devidamentedu-
bitativas,é precisoqueantestenhahavidoumafé,con-
diçãodo movimentode procurada verdadeque levaa
encruzilhadasebifurcações.Logo,o ponto departidada
dúvidaésempreumafé,quepor suavezgerapelomenos
umabifurcação.O estadoprimordialdo espíritoée tem
deseracrença;o estadointelectualdo espíritoéetemde
seradúvida.No princípio,o espíritocrê:eletemboafé.
A dúvidadesfaza ingenuidadee,emborapossaproduzir
uma fé novae melhor,nãopodemaisvivenciá-Iacomo
boa.A dúvidacriaumanovafé,quedeveserreconhecida
comoféenãocerteza,parasetornarmelhordo quea fé
primitiva.As certezasoriginaisabaladaspeladúvidasão
substituídaspor quasecertezas- maisrefinadasesofisti-cadasdo queasoriginais,écerto,masnemoriginaisnem
autênticas,sedaí em dianteexibem"a marcada dúvida
quelhesserviudeparteira".
O último passodo métodocartesiano,o passoque
nemDescartesnemHusserlseatreveramadar,éno en-
tanto um passoparatrás:implicaprotegera dúvida.A
proteçãodadúvidaaceita,comoaxiomática,aformulação
deSchlegel:"afilosofiasemprecomeçano meio,comoa
poesiaépica".A filosofianão pode começardo início,
quenãohá,nemchegaraofim, quetambémnãohá,as-
simcomonãopodemosjamaisteraexperiênciaquerdo
nascimento,dequenãopodemoslembrar,querdamor-
te,quandojá somosparalembrar.A experiênciadavida
assimcomoasuafilosofia,sua"Lebensphilosophie",sóse
podemdarin mediares.VilémFlusserarriscaaquelepasso
paratráspercebendoadúvidacartesianacomo"umapro-
curadecertezaquecomeçapor destruiracertezaautên-
ticaparaproduzir a certezainautêntica".ParaDescartes
eparao pensamentomoderno,adúvidametódicaéuma
espéciedetruquehomeopáticoque,no limite,desejaaca-
barcomadúvidaparachegaràcertezafinal,assimcomo
12 A dúvida
VILÉM FLUSSER 13
napolítica,maistarde,sepensoua sériona guerra(ena
bomba)queterminariacomtodasasguerras.A filosofia
flusseriana,entretanto,suspeitado recurso,enxergando
inautenticidadena certezaa queelenosconduz.Sema
dúvidanãohá pensamento,ciênciaou filosofia- dubito
ergosum-, emboracomadúvidaviva-seo perigodaes-
quizofrenia.Dividimo-nosàprocuradaunidade,masno
fim do caminhoencontramo-nostão-somentedivididos.
Seasnossascertezasjánãosãoautênticas,asdúvidaso
serão,ouescondemumteatrointelectual?Descartes,ecom
eleo pensamentomoderno,aceitaadúvidacomoindubi-
tável,tomando-aparadoxalmentepor certezaqueo con-
duzàscertezasquenofimdeseja.A paradoxalfénadúvida
caracterizaentãoa IdadequeousousechamarModerna
paramelhordenegaro tempoeo futuro,tentandofrearo
tempopeloconhecimento,valedizer,pelatransformação
detudoedetodosemobjeto.Duvida-se,sim,na filosofia
comonaciênciaenapedagogia,masapenasparaquenun-
camaisseduvide.Pergunta-se,masnãosequerperguntas:
apenasas respostas"certas".Destaforma,duvida-se,no
limite,daprópriadúvida,produzindocom o tempoum
conhecimentodefatoespetacularque,todavia,é também
loucura,comoo comprovamabombaatômica- aespécie
tornando-setãopoderosaquepodeexterminara si mes-
mavintevezes- e o campode concentração- a espécie
tornando-setãoabsurdaquenegaasimesmaenevezes.
A dúvida que se quer certezaao final bloqueiaa
emergênciadadúvidaingênua,dadúvidaprimária,aquela
quetransformanomespróprioserenomeiapoeticamente
ascoisas.A dúvidaque sequercertezaao final duvida,
compreensivelmente,do espanto,e por issomergulhaa
conversaçãoocidentalnarepetiçãotediosa.A dúvidaque
sequercertezaao final é,emresumo,a antipoesia:"não
seprecipitasobre,masdentrodo inarticulado.Emudece.
Estemutismoéo abismoqueseabriuànossafrente".Há,
no entanto,.umasaída- poética:
A saídadessasituaçãoé, ao meuver,
nãoareconquistadafénadúvida,masa
transformaçãodadúvidaemfénonome
própriocomofontededúvida.Em ou-
traspalavras:éaaceitaçãodalimitação
do intelectocomoamaneirapar excel-
lencedechocarmo-noscontrao inarti-
culável.Estaaceitaçãoseriaasuperação
tantodointelectualismocomodoanti-
intelecrualismo,epossibilitariaaconti-
nuaçãodaconversaçãoocidental,embora
emumclimamaishumilde.Possibilitaria
acontinuaçãodotecerdateiamaravilho-
saqueéaconversaçãoocidental,embora
semesperançadecaptardentrodessateia
arochadoinarticulável.Seriaoreconhe-
cimentodafunçãodessateia:nãocaptar
arocha,masrevestirarocha.Seriaoreco-
nhecimentodequeo intelectonãoéum
instrumentoparadominaro caos,masé
umcantodelouvoraonuncadominável.
Alienamo-nosdacoisa,eportantodetodo o resto,
quandoduvidamosparanão maisduvidar,e para não
14 A dúvida VILÉM FLUSSER 15
maisduvidarprincipalmentedenósmesmos:"dizerque
nóssomosnósédizerqueessaalienaçãoestásedando";
dizer"eupensoergosou"implicasupor-secausasuido
pensamento..Menosarroganteseriaafirmar:"pensamen-
tosmeocorrem".~ando somoshonestos,sabemosque
nossospensamentosnoscontrolam,e nãoo contrário.
Sentindoconsumir-sepelosprópriospensamentos,osu-
jeitoprecisasairdocentrodarazãoutilitaristapararecu-
perar,porparadoxalquepareça,afé,quenãodeixadese
constituiremumhorizontededúvida.
Sesouporquepenso,entãooquepenso?Pensouma
correntedepensamentos:umpensamentoseseguesem-
preaoutro,e,porisso,sou.Masporqueumpensamen-
tosempresesegueaoutro?Ora,oprimeiropensamento
nãosebasta,exigindooutropensamentoparacertificar-
sedesi mesmo.Um nãobasta,eleexigesempreo dois,
queporsuavezconstituidevoltaadúvida.Ou,buscando
umafórmula:1> 2 < ?
Um pensamentosegueaoutroporqueo segundo
pensamentoduvidado primeiro,umavezqueo pri-
meirojáduvidavadesipróprio.Logo,umpensamento
segueaoutropelotrilhodadúvida,tornando-meuma
correntedepensamentosqueduvidam:só o souen-
quantoessacorrenteescoae nãoestanca.Pensamen-
tossãoprocessosemdoissentidos:primeiro,porque
corremembuscade suaprópriacompletação,este-
ticamente,atrásde umaauravivencialde satisfação
vulgarmentechamadade "significado",comolembra
Flusser;segundo,porque ininterruptamentegeram
novospensamentos,autorreproduzindo-see,portan-
to,nuncaefetivamentesecompletando.
A correntedepensamentostransforma-se,entretan-
to,emumredemoinhosemepergunto:porqueduvido?
Ora,porquesou,sesósouquandoduvido;seduvidardes-
tadúvida,terminareiporduvidardequeeuseja.Parece
jogofútildepalavrasouexercíciodelógicaabissal,maso
pensamentocontemporâneoreconhecevivencialmenteo
dilemasemconseguirestabelecercomomínimodeclare-
zainsofismávelo limitedadúvida.Nãohálimite,masa
dúvidasemprevaievolta,comoalemniscata,oconheci-
dosímbolodoinfinito:00.
A problematizaçãoe o esvaziamentodo conceito
"realidade"acompanhamo progresso,nessamedidape-
rigoso,da dúvida.Duvida-secomonumacompetição,
paraverquemvaiconseguiracabarprimeirocomadúvi-
da.A dúvidadadúvidaéaintelectualizaçãodointelecto
quereRuisobresimesmoapontodeduvidardetodosos
outros,masnuncadesi mesmo.Confirmao absurdoo
suicídiodointelecto:nocampodaciênciamanipula-sea
realidadeproduzindoinstrumentosdestinadosadestrui-
remahumanidadeeseusinstrumentos;nocampodaarte
produz-seumaartequesesignificaasi mesma,portan-
to umaartesemsignificado;no campodarazãoprática
grassamooportunismoeo imediatismo,espéciedecarpe
diem.Confirmamo absurdo,ainda,asprópriasreações
desesperadascontrao absurdo:nafilosofiapululamos
neos- neokantismo,neo-hegelianismo,neotomismo;na
artepululamosneo-neo-neo-(ufa)-realismos;naciência
16 A dúvi<k
VILÉM FLUSSER 17
retormulam-sepremissasembasesmaismodestas- toda-
via,nasmesmasbases;noterrenodarazãopráticaressus-
citamreligiõesemultiplicam-seseitas;nasciênciassociais
1 h" I I" I dapea-se,semvergona,parao pos-pos- pos- outora-
doempós-modernismo,porexemplo;napolíticaressur-
gem,inautênticos,conceitosesvaziadoshámuito,como
aideiamedievaldesoberania.A proliferaçãodeprefixos
quetentamreciclartermosenvelhecidosatestasimulta-
neamenteaarrogânciaeaindigênciadateoria.
A dúvidanesselimitemostra-se,pordefinição,abis-
sal.~ando Vilém Flusserdescreveo intelectocomo
camponoqualocorrempensamentos,eleencarao abis-
moeultrapassaaafirmativacartesiana,"penso,portanto
sou",por pelomenosum passo.Duvidada afirmativa
"penso",substituindo-apela asserção:"pensamentos
ocorrem".A afirmativa"penso"abreviavaa afirmativa,
viciosadoprincípio,"háumEu quepensaeportantohá
umEu queé".O métodocartesianoprovouaexistência
depensamentos,ok,masnãodeumEuquepensasseou
doEuquepensa.
Apresentaro intelectocomocampono qualocor-
rempensamentos,porém,dispensaapergunta"oqueéo
intelecto?",comoaliásdispensatodaasériede"o-que-é-
o-que-é".Um camponãoéum"quê",massimmaneiras
pelasquaisalgoacontece.O campogravitacionaldonos-
soplanetanãoéumalgo,masamaneiracomosecom-
portamoscorposquandorelacionadoscomo nossopla-
neta- nessesentido,agravidadesimplesmentenãodeve
servistaantropomorficamentecomoumaforça,massim
comoum efeitodo campo.Analogamente,ointelecto
nãoémaisdoqueamaneiracomosecomportamospen··
samentos.Nemhápensamentosforado intelectonem
o intelectotemdignidadeontológicaindependentedos
pensamentos.Emconsequência,aperguntaqueseimpõe
, '" ..•"e: oqueeumpensamentor
A investigaçãoflusserianadescobre,primeiro,que
o pensamentoéumprocessoembuscadesecompletar
emumaforma,ou seja:o pensamentoé umprocesso
estético.~ando alcançaasuaforma,o pensamentose
rodeiadeumaauradesatisfação.A investigaçãoflusse-
rianadescobre,aseguir,queopensamentoéumprocesso
autorreprodutivo,gerandoumnovopensamento.Nãoé
possívelparardepensar,nãoépossívelesterilizarumpen-
samento,anãoserforçando-oaclicherizar-se,ouseja,a
repetir-seasimesmocomoolouconocampohospitalar.
Um pensamentoindividualesingular,emboracomple-
to esteticamentequandosignificativo,é,"nãoobstante,
carregadodeumdinamismointernoqueo impededere-
pousarsobresimesmo".Essedinamismointernoobriga
opensamentoasuperarasimesmo,querdizer,obriga-o
aabandonar-se.Esseautoabandonodopensamento,por
suavez,éo queentendemospor filosofia,porqueagora
precisamosentendero intelectocomoo campo,porex-
celência,dadúvida.
Nemtudopodeserassimiladoà engrenagemda
língua.Nemtudopodesercompreendido.Senemtudo
podesercompreendido,nemtudopodeserdito:oenig-
maprecisaserprotegido.Em outraspalavras,a poesia
18 A dúvida VILÉM FLUSSER 19
precisaserprotegida,porqueacondiçãodeexpansãodo
intelectoe do pensamentoé a poesia,aqueladimensão
quecriaa línguae,emconsequência,arealidade.Parase
permitir conversar,o intelectoprecisaantes"versar".O
versoé a maneiracomoo intelectoseprecipitasobreo
caos.O versoé aprópriasituaçãolimítrofedalíngua.O
versotantochamaquantoproclama.
Semadúvida,nãoháapoesia.Semapoesia,nãohá
afilosofia.Semafilosofia,nãoháo espanto.Semo espan-
to,nadapresta.~ando algoinesperávelocorre,fazemos
de contaque eraesperado.Torneirasjorram anúncios,
aparelhosde miero-ondasnaufragampela redevirtual,
sérviosmatamalbaneses,albanesesmatamsérvios,polícia
ébandidoebandidoétestemunhade]eová,nadanossur-
preende.A banalidadeimpera,sentadaàmargemdireita
do tédio.Os ídolossãovorazes.O Moloch devoraosfiéis
queo adoram-- logo,o Moloch funciona,o queamplifi-
caa suaadoração.A bombaH destróia humanidade_
logo,abombaH funciona,justificandoquea adoremos.
A bombaH provaqueo homeméDeus,eDeuscontrao
mundo,realizandoin limineoprojetoiluministaquenos
pôscomosujeitoscontraos objetos,valedizer,contraa
coisa,contrares- contraarealidade.Mas esseDeuséum
espelho,espelhandoa cobraurobóricamordendoo calca-
nhardeSísifoquedeixacairapedraantesdechegaraotopo
damontanhaondeZarathustraseperderado Übamensch.
Ora,Deuscomoespelhofazsignodo desespero.
A poesiae a dúvidasãoascondiçõesde superação
dessedesespero.Um pensamentopuxaoutroealínguase
expande,maso caosnuncadiminui.A poesiaaumentao
territóriodopensávelmasnãodiminuio territóriodo im-
pensáveLÉ oquenostornavivos.É o quenostornainfini-
tos.É o quenostornaimortais,postoqueincertos.Yilém
Flusserresisteao apocalipseintelectualizantee àsreifica-
çõestotalitáriasquandopartieipadafestadopensamentoe
promoveosacrifíciodomesmopensamentonamesmafes-
ta: "continuemosagrandeaventuraqueéo pensamento,
massacrifiquemosaloucuraorgulhosadequererdominar
o detudodiferentecomo nossopensamento".
GustavaBernardo
Rio deJaneiro, 18/01/11.
Introdução
A dúvidaéumestadodeespíritopolivalente.Pode
significarofimdeumafé,oupodesignificarocomeçode
outra.Podeainda,selevadaaoextremo,servistacomo
"ceticismo",istoé,comoumaespéciedeféinvertida.Em
dosemoderadaestimulao pensamento.Em doseexces-
sivaparalisatodaa atividademental.A dúvida,como
exercíciointelectual,proporcionaumdospoucospraze-
respuros,mascomoexperiênciamoralelaéumatortu-
ra.A dúvida,aliadaàcuriosidade,éo berçodapesquisa,
portantodetodoconhecimentosistemático.Emestado
destilado,noentanto,matatodacuriosidadeeéofimde
todoconhecimento.
O pontodepartidadadúvidaésempreumafé.Uma
fé(uma"certeza")éo estadodeespíritoanteriorà dúvi-
da.Comefeito,afééo estadoprimordialdoespírito.O
espírito"ingênuo"e"inocente"crê.Eletem"boafé".A
22 A dúvida VILÉM FLUSSER 23
dúvidaacabacomaingenuidadeeinocênciadoespírito
e,emborapossaproduzirumafénovaemelhor,estanão
maisserá"boa".A ingenuidadeeinocênciadoespíritose
dissolvemnoácidocorrosivodadúvida.O climadeau-
tenticidadeseperdeirrevogavelmente.O processoéirre-
versível.As tentativasdosespíritoscorroídospeladúvida
dereconquistaraautenticidade,aféoriginal,nãopassam
denostalgiasfrustradas.Sãotentativasdereconquistaro
paraíso.As "certezas"originaispostasemdúvidanunca
maisserãocertezasautênticas.A dúvidametodicamente
aplicadaproduzirá,possivelmente,novascertezas,mais
refinadase sofisticadas,masestasnovascertezasnunca
serãoautênticas.Conservarãosempreamarcadadúvida
quelhesserviudeparteira.
A dúvidapodeser,portanto,concebidacomouma
procurade certezaquecomeçapor destruira certeza
autênticaparaproduzircertezainautêntica.A dúvidaé
absurda.Surge,portanto,apergunta:"porqueduvido?"
Estaperguntaémaisfundamentalqueaoutra:"deque
duvido?"Trata-se,comefeito,do últimopassodo mé-
todocartesiano,a saber:trata-sededuvidardadúvida.
Trata-se,emoutraspalavras,deduvidardaautenticidade
dadúvidaemsi.A pergunta"porqueduvido?"implicaa
outra:"duvidomesmo?"
Descartes,ecomeletodoopensamentomoderno,
parecenãodaresteúltimopasso.Aceitaadúvidacomo
indubitável.A últimacertezacartesiana,incorruptível
peladúvida,é,asaber:"penso,portantosou".Podeserre-
formulada:"duvido,portantosou".A certezacartesiana
é,portanto,autêntica,no sentidodeseringênuae ino-
cente.É umaféautênticanadúvida.Essafécaracteriza
todaaIdadeModerna,essaIdadecujosúltimosinstantes
presenciamos.Essafééresponsávelpelocarátercientífico
edesesperadamenteotimistadaIdadeModerna,peloseu
ceticismoinacabado,aoqualfaltadaroúltimopasso.À fé
nadúvidacabe,duranteaIdadeModerna,opapeldesem-
penhadopelaféemDeusduranteaIdadeMédia.
A dúvidadadúvidaéumestadodeespíritofugaz.
Emborapossaserexperimentado,nãopodesermantido.
Eleésuapróprianegação.Vibra,indeciso,entreo extre-
mo"tudopodeserduvidado,inclusiveadúvida"eo ex-
tremo"nadapodeserautenticamenteduvidado".Com
o fimdesuperaro absurdodadúvida,levaesseabsurdo
aoquadrado.Oscilando,comooscila,entreo ceticismo
radical(doqualduvida)eumpositivismoingênuoradi-
calíssimo(doqualigualmenteduvida),nãoconcedeao
espíritoumpontodeapoioparafixar-se.
Kantafirmavaqueoceticismoéumlugardedescan-
soparaarazão,emboranãosejaumamoradia.O mesmo
podeserafirmadoquantoaopositivismoingênuo.A dú-
vidanadúvidaimpedeessedescanso.O espíritotomado
pelaquintessênciadadúvidaestá,emsuaindecisãofun-
damental,numasituaçãodevaievemqueaanálisede
SísifofeitaporCamusilustraapenasvagamente.O Sísifo
deCamuséfrustrado,emsuacorreriaabsurda,poraquilo
dentrodoqualcorre.Daíoproblemabásicocamusiano:
"porquenãomemato?"O espíritotomadopeladúvida
dadúvidaéfrustradoporsimesmo.O suicídionãoresol-
24 A dúvida VILÉM FLUSSER 25
veasuasituação,jáquenãoduvidasuficientementedo
caráterduvidosodavidaeterna.Camusnutreaindaafé
nadúvida,emboraessafépericlitenele.
"Penso,portantosou".Penso:souumacorrentede
pensamentos.Um pensamentosegueo outro,portanto
sou.Um pensamentosegueo outro,porquê?Porqueo
primeiropensamentonãobastaasimesmo,seexigeoutro
pensamento.Exigeoutroparacertificar-sedesimesmo.
Um pensamentosegueoutroporqueo segundoduvida
do primeiro,eporqueo primeiroduvidadesi mesmo.
Umpensamentosegueo outropelocaminhodadúvida.
Souumacorrentedepensamentosqueduvidam.Duvi-
do.Duvido,portantosou.Duvidoqueduvido,portanto
confirmoquesou.Duvidoqueduvido,portantoduvido
quesou.Duvidoqueduvido,portantosou,independen-
tementedequalquerduvidar.Assimseafigura,aproxima-
damente,o últimopassodadúvidacartesiana.Estamos
numbecosemsaída.Estamos,comefeito,nobecoqueos
antigosreservaramaSísifo.
A mesmasituaçãopodesercaracterizadaporoutra
correntedepensamentos:porqueduvido?Porquesou.
Duvido,portanto,quesou.Portanto,duvidoqueduvido.É omesmobecovistodeoutroângulo.
Esteéoladoteóricodadúvidaradical.Tão teórico,
comefeito,queatébempoucotempotemsidodespreza-
do,comrazão,comoumjogofútildepalavras.Tratava-
sedeumargumentopensável,masnãoexistencialmente
visível(erlebbar).Erapossívelduvidarteoricamenteda
afirmativa"sou",eerapossívelduvidarteoricamenteda
afirmativa"duvidoquesou",masessasdúvidasnãopas-
savamdeexercíciosintelectuaisintraduzíveisparaonível
devivência.Os poucosindivíduosqueexperimentaram
vivencialmenteadúvidadadúvida,queautenticamente
duvidaramdasafirmativas"sou"e"duvidoquesou",fo-
ramconsideradosloucos.
A situaçãoatualédiferente.A dúvidadadúvidase
derrama,apartirdointelecto,emdireçãoatodasasde-
maiscamadasdamenteeameaçasolaparosúltimospon-
tosdeapoiodosensoderealidade.É verdadeque"senso
derealidade"éumaexpressãoambígua.Podesignificar
simplesmente"fé",podesignificar"sanidademental",
epodesignificar"capacidadedeescolha".Entretanto,o
presentecontextoprovaqueostrêssignificadossãohm-
damentalmenteidênticos.A dúvidadadúvidaameaça
destruirosúltimosvestígiosdafé,dasanidadeedaliber-
dade,porqueameaçatornaro conceito"realidade"um
conceitovazio,istoé,nãovivível.
O esvaziamentodoconceito"realidade"acompanha
oprogressodadúvidaeé,portanto,umprocessohistóri-
co,sevistocoletivamente,eumprocessopsicológico,se
vistoindividualmente.Trata-sedeumaintelectualização
progressiva.O intelecto,istoé,aquiloquepensa,portan-
to,aquiloqueduvida,invadeasdemaisregiõesmentais
paraarticulá-Ias,e astorna,por issomesmo,duvidosas.
O intelectodesautenticatodasasdemaisregiõesmentais,
inclusiveaquelasregiõesdossentidosquechamo,viade
regra,de"realidadematerial".A dúvidadadúvidaéain-
telectualizaçãodoprópriointelecto;comela,o intelecto
26 A dúvida VILÉM FLUSSER 27
refluisobresimesmo.Torna-seduvidosoparasimesmo,
desautenticaasimesmo.A dúvidadadúvidaéosuicídio
dointelecto.A dúvidacartesiana,talcomofoipraticada
duranteaIdadeModerna,portanto,adúvidaincomple-
ta,adúvidalimitadaaonãointelectoacompanhadadefé
nointelecto,produziuumacivilizaçãoeumamentalida-
dequedeurefugio,dentrodointelecto,à realidade.
Trata-sedeumacivilizaçãoeumamentalidadeide-
alistas.A dúvidacompleta,adúvidadadúvida,aintelec-
tualizaçãodo intelecto,destróiesserefugioe esvaziao
conceito"realidade".As frasesaparentementecontradi-
tórias,entreasquaisadúvidadadúvidaoscila,asaber,
"tudopodeserobjetodedúvida,inclusivea dúvida"e
"nadapodeserautenticamenteobjetodedúvida",sere-
solvem,nesseestágiododesenvolvimentointelectual,na
frase:"tudoénada".O idealismoradical,adúvidacarte-
sianaradical,aintelectualizaçãocompleta,desembocam
noniilismo.
Somosa primeiraou a segundageraçãodaqueles
queexperimentamo niilismovivencialmente.Somosa
primeiraou asegundageraçãodaquelesparaosquaisa
dúvidadadúvidanãoémaisumpassatempoteórico,mas
umasituaçãoexistencial.Enfrentamos,naspalavrasde
Heidegger,"aclaranoitedonada".Nessesentidosomos
osprodutosperfeitoseconsequentesdaIdadeModerna.
Conoscoa IdadeModernaalcançouasuameta.Masa
dúvidadadúvida,o niilismo,éumasituaçãoexistencial
insustentável.A perdatotaldafé,aloucuradonadatodo-
envolvente,a absurdidadedeumaescolhadentrodesse
nada,sãosituaçõesinsustentáveis.Nessesentidosomosa
superaçãodaIdadeModerna:conoscoaIdadeModerna
sereduzaoabsurdo.
Os sintomasdessaafirmativaabundam.O suicídio
do intelecto,frutode suaprópriaintelectualização,se
manifestaemtodososterrenos.No campodafilosofia
produzo existencialismoeo logicismoformal,duasab-
dicaçõesdo intelectoemfavordeumavivênciabrutae
inarticulada,portanto,o fimdafilosofia.No campoda
ciênciapuraproduzamanipulaçãocomconceitoscons-
cientementedivorciadosdetodaarealidade,tendendoa
transformaraciênciapuraeminstânciadeproliferaçãode
instrumentosconscientementedestinadosadestruírema
humanidadeeosseusprópriosinstrumentos(são,por-
tanto,instrumentosdestruidoreseautodestrutivos).No
campodaarte,produzaartequesesignificaasimesma,
portanto,umaartesemsignificado.No campoda"razão
prática"produzum climadeoportunismoimediatista,
umearpediemtãoindividualquantocoletivo,acompa-
nhadodoesvaziamentodetodososvalores.
Há,obviamente,reaçõescontraesseprogressorumo
aonada.Essasreaçõessão,entretanto,reacionárias,no
sentidodetentaremfazerretrocederarodadodesenvol-
vimento.Sãodesesperadas,porquetentamreencontrar
arealidadenosníveisjáesvaziadospelointelectoemseu
avanço.No campodafilosofiacaracterizam-sepeloprefi-
xomelhorativoneo(neokantianismo,neo-hegelianismo,
neotomismo).No centrodaciênciapuracaracterizam-
sepeloesforçodereformularaspremissasdadisciplina
28 A dúvida VrLÉM FLUSSEH 29
científicaembasesmaismodestas.No campodaciência
aplicadacaracterizam-seporumaesperançajáagorainau-
tênticaemumanovarevoluçãoindustrial,capaz,estasim,
deproduziroparaísoterrestre.No campodaarteresul-
tamnaquelerealismopatéticochamado"socialista"que
nãochamaasi mesmode"neorrealista"porpuraques-
tãodepudor.No campoda"razãoprática"assistimosa
tentativasdeumaressurreiçãodasreligiõestradicionais:
pululamasseitasdereligiõesinventadasad hocoubus-
cadasemregiõesgeográficaouhistoricamentedistantes.
Nocampodapolíticaedaeconomiaressurgeminauten-
ticamenteconceitosesvaziadose superadoshá muito,
como,porexemplo,o conceitomedievalde"soberania".
Busca-sea realidade,já agoracompletamenteinautênti-
ca,noconceitodo"sangue"(nazismo)ouda"liberdade
de empreendimento"(neoliberalismo),conceitosesses
emprestadosdehipotéticasépocaspassadas.Todasessas
reaçõessãocondenadasaomalogro.~erem ressuscitar
fésmortasouinautênticasab initio.
Emborasejao niilismoumasituaçãoexistencialin-
sustentável,precisasertomadocomopontodepartida
paratodatentativadesuperação.A inautenticidadedas
reaçõesacimaesboçadasresidenasuaignorância(autên-
ticaou fingida)dasituaçãoatualdafilosofia,daciência
puraeaplicada,daarte,doindivíduodentrodasociedade
edasociedadeemfacedoindivíduo.Residenaignorân-
ciadoproblemafundamental:emtodosessesterrenos,
já agoraaltamenteintelectualizados,adúvidadesalojou
aféeperdeuo sensodarealidade.Essasitua~;ãodeveser
aceitacomoumfato,emboratalveznãoaindacomoum
fatototalmenteconsumado.Resíduosdefépodemser
encontradosemtodosessesterrenos,menosnocampoda
filosofia,maisnocampodasociedade,masresíduoscon-
denados.Não é apartirdelesquesairemosdasituação
absurdadoniilismo,masapartirdopróprioniilismo,se
équesairemos.Trata-se,emoutraspalavras,datentati-
vadeencontrarumnovosensoderealidade.O presente
trabalhoéumacontribuiçãomodestaparaessabuscano
campodafilosofia.
Vistocoletivamente,é o progressodaintelectuali-
zação,portanto,o progressodadúvida,comseuconse-
quenteesvaziamentodo conceito"realidade",umpro-
cessohistórico.Por suapróprianaturezamanifesta-se
comprecedênciano campodafilosofia,emboraesteja
acompanhado,surdamente,por desenvolvimentopara-
leloemtodososdemaiscamposdasituaçãohumana.O
adventodoniilismofoi,portanto,adivinhadoeprevisto
por filósofosantesdequalqueroutracamada.A palavra
"niilismo"foi amplamenteutilizada,numsentidomuito
próximodopresente,porNietzsche.A buscadeumnovo
sensoderealidadenocampodafilosofianãoé,portanto,
umanovidade.Não podemos,entretanto,afirmarque
temsidoacompanhada,atéagora,deumêxitoretum-
bante.Surgiu,istosim,umanovamaneiradefilosofar,e
novascategoriasdepensamento.Foi introduzidoo con-
ceito"vontade"eo conceitoaliado"vivência",ambosde
cunhoanti-intelectual.A especulaçãofilosóficadeslocou-
separaocampoda"ontologia"(sinônimopudicodame-
30 A dúvida VILÉM FLUSSER 31
tafísicaostensivamentedesprezada),fatoque,por si só,
provaaprocuradeumanovarealidade.Por outrolado
aprofundaram-seestudoslógicosa pontode invadira
lógicao campodaprópria"ontologia",fatoqueprovaa
preocupaçãodafilosofiacomumanovainterpretaçãodo
intelectoe suafunçãodeprodutoredestruidorderea-
lidade.Entretanto,por revolucionáriose criadoresque
sejamestespensamentos,nãochegarama "convencer",
nosentidodeprovocarumnovosensoderealidade,uma
novafé.Muitopelocontrário,contribuíramparao alas-
tramentodo niilismoquepretendiamcombater,jáque
eramintelectualizações,emboraanti-intelectuais.A sua
influênciadecisivasobreaarteeaciência(maisespeci-
ficamentesobreapsicologia)conduziaaumaderradeira
intelectualizaçãodecamadasatéagoranãoinvadidaspelo
intelecto.Talvezporteremsidodestruidoresdavelhare-
alidade,contribuíramparao surgirdanova,pelomenos
negativamente.
Vistoindividualmente,éoprogressodaintelectuali-
zação,portanto,oprogressodadúvida,oabandonodafé
original,da"boafé",emproldeumafémelhor,asaberde
umafémenosingênuaeinocente.A progressivaperdade
sensoderealidadequeacompanhaoprogressointelectu-
aléexperimentada,inicialmente,comolibertação,como
superaçãodepreconceitos,eé,portanto,umaexperiência
exuberante.Entretanto,acompanha-se,desdeo início,
porumsentimentoinarticuladoe,portanto,inconscien-
tedeculpa.Essesentimentodeculpaécompensadonas
"fésmelhores"queo intelectocriaparasi no cursodo
seuavanço.~ando, por fim,o intelectoseviracontra
simesmo,quandoduvidadesimesmo,o sentimentode
culpasetornaconscientee articuladoe,acompanhado
dahesitaçãocaracterísticadadúvidasuprema,dominaa
cena.Esseclimadehesitaçãoedeculpa,ouseuladoaves-
so,oclimadoengagementsemcompromissoeescrúpulo,
são,portamo,ossintomasdosfilósofosacimamenciona-
dos.Emboraahesitaçãoeo sentimentodeculpasejam
maishonestos,intelectualmente,doqueoengagementeo
fanatismo,sãoambosbasicamenteatitudesdedesespero.
Atestamaperdadafénointelecto,semcontribuir,positi-
vamente,paraumasuperaçãodasituaçãoniilistanaqual
seencontram.Estaéacenadafilosofiaatual.
apresentetrabalhonãonutrea ilusãodecontri-
buirgrandementeparamodificaressacena.Nasceu,ele
próprio,daperdadaféno intelectoenãoresultaráem
nenhumaféautênticanova.Tem,no entanto,avanta-
gemdenascermaistarde.Em consequênciaperdeuos
restosde ingenuidadee inocênciaqueaindacaracteri-
zamospensamentosdosseusantecessores,ingenuidade
einocênciaestasrelativasaoalcancedo intelecto.ain-
telecto,istoé,aquiloquepensaeportantoduvida,tem
sidosuperdimensionadoinclusivepor aquelesquenele
perderamasuafé.Emboramuitostenhamultimamente
compreendidoo caráterpuramenteformaldo intelecto
(como,aliás,o compreenderamjá osempiristasdossé-
culosXVII eXVIII), estacompreensãonuncasetornou
partedavivênciaautênticadessespensadores.Nunca,
conformecreio,temsidoapreciadae sorvidavivencial-
32 A dúvida VILÉM FLUSSER 33
menteaesterilidadedointelecto.Nunca,bementendido,
porpensadores,istoé,peloprópriointelecto.O desprezo
fácilebaratodointelecto,nutridopelossentimentais,pe-
losmísticosprimitivoseporaquelesquedepositamtoda
asuafénossentidos,nadatemavercomavivênciaaqui
descrita,queéavivênciaintelectualdafutilidadedoin-
telecto.Nãoé,portanto,umabandonodointelecto,mas
podeser,muitopelocontrário,asuperaçãodointelecto
porsipróprio.
O anti-intelectualismodegrandepartedafilosofia
atualéumerroeumperigo.É umerro,porqueconfunde
afénointelecto(abandonadaacertadamente)comoen-
quadrardointelectonumaféemumarealidadenovaaser
encontrada.E éumperigo,porquepropagaeaprofunda
o niilismoquepretendecombater.A vivênciaintelectu-
aldaesterilidadedointelecto,vivênciaessaqueestetra-
balhosepropõeaelaborar,tornao anti-intelectualismo
umaatitudesuperada.Aquelequeexperimentouautenti-
camenteemseuintelectoafutilidadedointelectonunca
maisseráanti-intelectual.Pelocontrário,essavivência
intelectualproduziráneleumaatitudepositivaparacom
o intelecto,agoraintelectualmentesuperado.Estánuma
situaçãocomparávelàquelaquesurgeapóso desencan-
to comumagrandesomadedinheiro:o acumularda
somaeraacompanhadodeumafénopodersalvadordo
dinheiro,masapossedodinheirodissipouafé.Nãosur-
giuaindaumaféparasubstituiraféperdida.Entretanto,
o dinheiroestádisponívelparaserviraessanovafé,see
quandoencontrada.O anti-intelectu;Jismoé provada
persistênciaderestosdefénointelecto,eésuperadocom
odesaparecimentodessesrestos.
A vivênciadaesterilidadedointelectotornaexperi-
mentáveis,emboranãocompreensíveis,osfundamentos
dosquaisointelectobrotouecontinuabrotando.Funda-
mentosextraintelectuaisquepordefiniçãonãosãoalcan-
çáveisintelectualmente.Nãopodemser,portanto,auten-
ticamenteincluídosnadisciplinadefilosofia,queéuma
disciplinaintelectual.A tentativadefilosofara respeito
dessesfundamentosémaisumerrodemuitafilosofiada
atualidade.Entretanto,justamentenasuaeliminaçãodo
campodafilosofiaresideapossibilidadedesuainclusão
numcampomaisapropriado.Estaeliminaçãoéumadas
tarefasdestetrabalho.
Embora,portanto,o intuitodessacorrentedepen-
samentonãopossaserasuperaçãodasituaçãoexistencial
absurdanaqualnosencontramos,emboranãopossaes-
perarultrapassaroniilismodentrodoqualnosprecipita-
mos,pretendeiluminaralgunsaspectosparatornaruma
superaçãoposteriormaisviável.Esteintuito,emsisó,já
provaa existênciade algoparecidoremotamentecom
umafé:asaberdeumaesperança,emboraprecária,na
possibilidadedeumasuperaçãoe,portanto,nasobrevi-
vênciadaquiloquechamamos,muitoinadequadamente,
decivilizaçãoocidental.A essaesperançao presentees-
forçoestádedicado.
I. Do intelecto
Osexercíciosmentaisquefazempartedadisciplina
doYogacomeçampelaconcentração.Aqueleque,mo-
vidoporcuriosidadeoupordescrençanosmétodosoci-
dentaisdo conhecimento,compraumaIntroduçãoaos
segredosdo Yogaeensaiaesseprimeiroexercíciomental,
sofreumchoquecurioso.O livro recomenda,emsín-
tese,a eliminaçãodetodosospensamentossalvoum
únicoarbitrariamenteescolhido.Parecetratar-se,por-
tanto,deumarecomendaçãodefácilexecução.O cho-
quedesurpresaresidenaincrível,ridículaedegradante
ginásticamentalqueestaexecuçãoexige.Trata-se,com
efeito,deumaginásticaequivalenteemtudoàsconvul-
sões,repulsivasaosolhosocidentais,queresultamdos
exercícioscorporaisdosYogui.A nossamentesedestor-
cetodanesseesforço,comosedestorcemosmembros
docorpodoYogui.Já nãosabemos,quaseliteralmente,
36 A dúvida
VILÉM FLUSSER 37
aondetemosa cabeça.Via de regraabandonamoseste
primeiro estágiodosexercíciosmentais,porqueofende
osnossoscânonesestéticoseo nossosensodedignidade
depessoasinteligentes.
~al é a razãoda nossarevolta?~al é a razãodo
nossosentimentodo inapropriado,do ridículo e do de-
gradanteque acompanhaesseexercícioaparentemente
simples?É que o exercícioda concentraçãodesvenda,
imediataevivencialmente,alutaentrevontadeeintelec-
to dentrodanossamente,epretendefortaleceravontade
contrao intelecto.A concentraçãoéainvasãodavontade
no territóriodo intelecto:éavontadequeeliminatodos
ospensamentossalvoum único.É o primeiropassopara
aconquistaedestruiçãodo intelectopelavontade,meta
dadisciplinado Yoga.Estamos,entretanto,por todasas
nossastradições,ligadosàsupremaciado intelecto,esta-
mosprofundamenteempenhadosafavordo intelectoem
sualutacontraavontade.A subordinaçãodavontadeao
intelectoé,aosnossosolhos,o estado"natural"dascoisas,
portanto,o estadobom,beloe certo.A luta davontade
contrao intelecto,a qual seafiguracomo uma r~volta,
representa,paranós, individualmente,a luta dasforças
dasanidadecontraaloucura,e coletivamente,aluta das
forçascivilizadorascontraairrupçãoverticaldabarbárie.
A vitóriadavontade,por inimaginávelquesejaparanós,
seria,a nossosolhos,um acontecimentoapocalíptico,a
vitóriadasforçasdastrevas.Seriaa inversãototaldahie-
rarquiadosnossosvalores,ademênciaindividualeo fim
dasociedadecivilizada.
o simplesexercícioda concentraçãonos põe em
contato imediatoe vivencialcom uma civilizaçãodife-
rentedanossa,comumahierarquiadevaloresdiferente.
O exercíciodaconcentraçãonãoéum atobárbaroe in-
disciplinado.Pelocontrário,éumprocedimentobemor-
ganizado,detécnicaapuradaedeêxitopragmaticamente
verificável,parecendofazerpartedeumacivilizaçãoequi-
valenteànossa,masumacivilização,porém,empenhada
afavordeforçasquesãobárbarasaosnossosolhos.
O nossochoquee a nossarevoltasãoexistenciais,
nãoespeculativos.Especulativamenteestamos,hámuito,
acostumadosa encarara luta entreintelectoe vontade
comequanimidade.Já o romantismoexaltaavontadeem
detrimentodo intelecto.Schopenhauer,influenciado,
por certo,pelacivilizaçãoindiana(emborasejaduvido-so quejamaistenhatido sequero choqueexistencialda
concentraçãodo Yoga), concede,nassuasespeculações,
umpapelontologicamenteprimordialàvontade.Toda a
correntedaespeculaçãofilosóficadosséculosXIX eXX,
quiçáacorrentemaiscaracterística,desertadafrenteoci-
dentalparajuntar-seàsforçasda vontade,mastrata-se,
emtodosestesfenômenos,dealgoartificialeinautêntico.
Trata-sedeesforçosintelectuaisdeabandonaro intelec-
to, masfaltavontadeatodosessesesforçosdejuntar-seà
vontade.Do ponto devistaexistencial,umúnicoesforço
deconcentrar-sepelasregrasdoYogavalemil tratadosde
NietzscheoudeBergson.Ilumina,numraiodeexperiên-
cia imediata,aquiloqueNietzschee Bergson,interalia,
pretendem,talvezsemsabê-Io.O exercíciodaconcentra-
38 A dúvida VILÉM FLUSSER 39
ção,justamentepor sertãocontrárioao funcionamento
"normal",isto é, tradicional,da nossamente,revelade
maneiraquasepalpávelalgunsaspectosdo intelectoeda
vontade.
Creio queprecisorecorrerà alegoriapara descre-
veruma situaçãoqueultrapassao intelecto.A situação
é a seguinte:no centroestáo Eu. EsteEu semanifesta
de duasformas:pensae quer.~ando a concentração
começa,o Eu pensauma multiplicidadede pensamen-
tos,e todoselescorremcomofiosnum tear.No centro
correo fio-mestre,fortementeiluminadopela atenção,
aparentementeirradiadapeloEu.Ao redordo fio-mestre
corremfios auxiliares,àsvezesacompanhando,àsvezes
cruzando,àsvezessustentandoo fio-mestre.Estesfiosau-
xiliaresvêmdaescuridãoalémdoconeluminosodaaten-
ção,passam,fugazes,pelapenumbradaperiferiado cone,
paraperderem-sena escuridãonovamente.Entretanto,
estãosemprepresentes,porqueo coneda atençãopode
desviar-sedo fio-mestreparailuminá-Iosetorná-Ios,des-
tarte,novosfios-mestres.Simultaneamente,e por assim
dizerno outro lado,o Eu querfazerpararo fio-mestree
destruirtodososfiosauxiliares.Em outraspalavras,o Eu
querpensarum únicopensamento.No final daconcen-
tração,seestafor bemsucedida,a situaçãomudou radi-
calmente.O Eu continuano centro,e tem,à suafrente,
umúnicopensamento,rígido,paradoemorto.Não seria
exatodizerqueo Eu pensa.O pensamentoqueo Eu tem
agoraestámorto.Em redordestepensamentomortoestá
avontadedoEu,agoracompletamentelivre,tão-somente
ancoradadentrodopensamentomorto.A sensaçãoéade
umaforçadevontadequaseilimitadaquenãotemobjeti-
vo. Essavontadecomeçaa girarem redordo pensamen-
to morto,girandoo própriopensamentonesseprocesso.
Surge,dessamaneira,umprocessoparecidoaopensar,mas
governadopelavontadeenãopelointelecto.O Eu medita.
Paraquemtevea experiênciavivencialda concen-
traçãoe da meditaçãoincipiente,a descriçãoé satisfa-
tória.Transmiteempalavras,isto é, intelectualiza,uma
situaçãoa rigor inarticulável,por inintelectualizável.As
palavrasdessadescriçãonãosãosimbólicas,comoemum
discursoestritamenteintelectual,mas alegóricas.Não
significam,masevocamasituaçãodescrita.Graçasaessa
evocaçãotornamasituaçãointeligível.Paraquem,entre-
tanto,nuncateveessaexperiência,a descriçãosemostra
cheiadedificuldadese,portanto,profundamenteinsatis-
fatória.Não tendopassadopelaexperiênciainarticulada
ebruta,devetomaraspalavrasdadescriçãocomosímbo-
losunívocosdesignificadoexato.Do pontodevistadeste
alguém,éforçosoadmitir,semelhanteesforçodeintelec-
tualizarumasituaçãoinarticulada,deveserconsiderado
comoumfracasso.Essaconsideraçãorevelaatéqueponto
o intelectoestáencarceradoemsimesmo.
A descriçãoéintelectualmenteinsatisfatóriaporque,
comotodaalegoria,caino antropomorfismo.Vemostrês
personagens,por assimdizertrêsdeuses:o Eu,o Intelecto
eaVontade.Aproximamo-nosperigosamentedamitolo-
gia.É verdadequea própriaciência,aparentementetão
afastadadamitologia,nãopodedispensaraspersonifica-
40 A dúvida VILÉM FLUSSER 4]
çõesalegóricas,comoo provamconceitosdo tipode"a
Lei","aHeredidade","oConsumidor",masnãoémenos
verdadequeadesmitologizaçãocontinuasendoumideal
dadisciplinaintelectual.Devemos,então,confessarque,
arigor,anossasituaçãoéintelectualmenteimpenetrável
einarticulável.
Issonãoimpedequecertosaspectosdessasituação
sejamarticuláveis.Emboranãopossamosdizernadain-
telectualmentesatisfatórioquantoàspersonagensalegó-
ricasdoEuedaVontade,devendo,portanto,expulsá-Ias
doterritóriodadiscussão,istonãoseaplicaaointelecto.
Estesimpodeserperfeitamentedesmitologizado.Com
efeito,naprópriaalegorianãotemsidotantopersonifi-
cadoquanto"coisificado",comparadocomumtearcujos
fiosfossempensamentos.É preciso,tão-somente,abrira
mãodaimagemdotearedosfios,éprecisotão-somente
desmaterializaraimagem,eaalegoriadesaparece.A des-
criçãodo intelectotorna-sesimbólica,istoé,comsigni-
ficadoexato.Essadescriçãoéaseguinte:o intelectoéo
campono qualocorrempensamentos.O puristapode
objetarqueoconceito"campo"é,eletambém,alegórico.
Entretanto,éumconceitoempregado,emoutronívelde
significado,pelaciênciaexata.Comonãonecessitamos
sermaisrealistasqueorei,manteremosanossadescrição
dointelectocomohipóteseoperante.
Sedescrevemoso intelectocomoo campono qual
ocorrempensamentos,ultrapassamosa afirmativacar-
tesiana"penso,portantosou"pelomenosporumpasso.
Consideramosadúvidacartesianaumpassoadiantedela.
A nossadescriçãodo intelectoautoriza-nosaduvidarda
afirmativa"penso"e substituí-Iapelaafirmativa"pensa-
mentosocorrem".A afirmativa"penso"éaabreviaçãoda
afirmativa"háumEu quepensa".O métodocartesiano
prova,apenas,aexistênciadepensamentos,nuncadeum
Euquepensa.Nãoautorizaaafirmativa"penso".A afirma-
tiva"penso,portantosou"éaabreviaçãodaafirmativa"há
umEuquepensa,portantoháumEuqueé".Ora,éuma
afirmativapleonástica,alémde,naturalmente,duvidosa.
O intelecto,descritocomocamponoqualocorrem
pensamentos,éumconceitoaurntempomaisrestritoe
maisamploqueo conceitoduvidosodoEu.É umcon-
ceitomaisrestrito,porqueo Eu (qualquerquesejaasua
realidade,já agorabastanteesvaziadapornossadúvida)
nãoseesgotapensando.Porexemplo:oEutambémquer.
O intelectoéumconceitomaisamplo,porqueoEunão
abrangetodoo campono qualocorrempensamentos.
Mesmoseestendermoso âmbitodo conceitoEu para
incluirneletodososEusindividuais,comofazemalguns
psicólogosatuais,mesmoesseSuperEusuperduvidoso
nãoabrangetodoo camponoqualocorrempensamen-
tos.Ocorrem,por exemplo,pensamentosproduzidos
mecanicamenteporinstrumentoseletrônicos.O Eu,sen-
doumconceitoaumtempomaisamploemaisrestrito
queo intelecto,é umconceitodispensávelnaconside-
raçãodo intelecto.Devesereliminadodadiscussãodo
intelecto,nãosomenteporsuadubiedadeepelasrazões
expostasduranteadiscussãodaconcentração,masainda
peloprincípiodaeconomiadeconceitos,peloprincípio
42 A dúvida VILÉM FJ"USSER 43
danavalhadeGccam.Essaeliminaçãoé,entretanto,ideal
dificilmenterealizávelnopresenteestágiododesenvolvi-
mentodadiscussãofilosófica.Todosnós,inclusiveopre-
sentetrabalho,estamosdemasiadamentepresosaocon-
ceitodoEu,parapodermosautenticamenteabandoná-Io.
Entretanto,alibertaçãodoEunãoémais,comohápouco
tempo,umobjetivoreservadoaosmísticos:elaé alcan-
çávelpelaespeculaçãointelectual,comoo demonstrao
presenteargumento.
O intelecto,descritocomocamponoqualocorrem
pensamentos,dispensaapergunta:"oqueéo intelecto?"
Umcamponãoéumquê,masamaneiracomoalgoocor-
re.O campogravitacionaldaTerranãoéumalgo,masa
maneiracomosecomportamcorposrelacionadoscoma
Terra.Damesmaforma,o intelectoéamaneiracomose
comportampensamentos,aestruturadentrodaqualede
acordocomaqualospensamentosocorrem.O intelecto
nãotemdignidadeontológicaforadospensamentos,não
éumSeremsi.Inversamente,nãohápensamentossol-
tosnointelecto.Paraocorrerem,ospensamentosdevem
ocorrerdealgumamaneira,eestamaneiraéo intelecto.
Embreve:apergunta"oqueéo intelecto?"careceráde
sentido.É umaperguntaingênuaemetafísica,nosentido
pejorativodapalavra,dotipodeperguntascomo"oque
éBeleza?"ou"oqueéBondade?".Osintelectualistaseos
anti-intelectualistassão,ambos,prisioneirosdestetipode
metafÍsicaingênua.A perguntaqueseimpõe,estasim,é
aseguinte:"oqueéumpensamento?"Darespostaaesta
perguntadependeráanossacompreensãoounãodocon-ceito"intelecto";é,portanto,aelequedevemosdedicara
nossaatençãonoquesesegue.
Paratanto,voltemosà consideraçãodo exercício
daconcentraçãodoYoga.Secontemplamosaquiloque
chamamos"pensamento"a partirdo nossopontode
vista"natural","normal",istoé, tradicionalmenteoci-
dental,estesenosafiguracomofenômenopsicológico,
comoalgodadoÍntimae imediatamente.Entretanto,
secontemplamoso pensamentodentrodoexercícioda
concentração,esteseapresentacomofenômenoexterno,
comoumacoisaentreascoisasqueperfazemoambiente
chamado"mundo".Dessepontodevistaospensamentos
sãovistoscomoumateiadensaeopacaquebloqueiaa
nossavisãodarealidade,masatravésdaqualseinfiltra,
refratadaepeneirada,a luz dessarealidade.A teiados
pensamentosseafiguracomoumacamadaqueseinter-
põeentreoEuearealidade,tapandoavisãodarealidade,
apresentandoindiretamenteessarealidadeeo Eu,e re-
presentandoessarealidadeparaoEu.Aspalavras"tapar",
"presentear"e"representar"sãohomônimasemalemão,
asaber,vorstellen.A teiadospensamentoséaquiloque
Schopenhauerchamade Vorstellung.A teiadospensa-
mentosé,então,aquelevéutecidodeilusõesquedeveser
rasgadodeacordocomo ensinamentohindu,equeláé
chamadodemaia.
Tal pontodevistasobreo pensamento,porassim
dizerumpontodevistadedentroparafora,proporcio-
naapossibilidadedeumaapreciação"objetiva",poisnele
o pensamentoévistocomosendoobjeto,enãosujeito,
44 A dúvida VILÉM FLUSSER 45
dacontemplação.Assimtorna-sefenômenono sentido
dafenomenologiahusserliana,istoé,torna-sealgoaser
entendido.Podemos,apartirdaí,investircontraopensa-
mentoparainvestigá-Io.Descobriremosqueopensamen-
to, longedeserumfenômenosimples,é umcomplexo
deelementosorganizadosentresideacordocomregras
fixas.Chamamosesseselementosde"conceitos"easre-
grasde"lógica":opensamentoéumaorganizaçãológica
deconceitos.
Descobriremos,emsegundolugar,queopensamen-
to éumprocesso,e isroemdoissentidos.No primeiro
sentidoo pensamentoéumprocessoquecorreembus-
cadesuaprópriacompletação.Podemosconceberpen-
samentosinterrompidose incompletos,e o pensamen-
to comoumprocessoembuscadeumaforma,deuma
Gestalt;éumprocessoestético.Alcançadaessaforma,o
pensamentoadquireumaauravivencialdesatisfação,um
climadeobradeartecompletaeperfeita.Essaaurasecha-
ma"significado".O pensamentocompletoésignificativo.
No segundosentidoéopensamentoumprocessoautor-
reprodutivo,segeraautomaticamenteum novopensa-
mento.Podemosdistinguircadeiasdepensamentos,den-
tro dasquaisospensamentosindividuaisformamelos;
essascadeiasestãounidasentresicomoqueporganchos
paraformaro tecidodopensamento.Um pensamento
individual,emboracompletoesteticamente,por sersig-
nificativo,é,nãoobstante,carregadodeumdinamismo
internoqueo impedederepousarsobresi mesmo.Esse
dinamismoinerenteaopensamentosemanifestanuma
tendênciadopensamentoasuperar-seasimesmo,aban-
donando-senessasuperação.Esteabandonodo pensa-
mentoporsimesmopodeassumirdiversasformas,mas
aquelaqueconduzà formaçãodenovospensamentos,
portanto,aúnicaqueinteressanopresentecontexto,é,
elatambém,chamada"lógica".A lógicaé,portanto,um
conceitoambivalente.É oconjuntodasregrasdeacordo
comasquaisopensamentosecompleta,eé,ainda,ocon-
juntodasregrasdeacordocomasquaisopensamentose
multiplica.
A teiadospensamentospodeserconcebidacomo
conjuntodinâmicodeorganizaçõesdeconceitosquees-
condeerevelaa realidade,ouseja,queintroduzo Eu à
realidadedemaneiradistorcidaporsuasprópriasregras,
ouqueapresentaarealidadeaoEudistorcidapelasregras
do pensamento.A realidadeseapresentatão-somente
atravésdopensamento;a"realidadeemsi"nãopodeser
captadapelateiadospensamentos,porqueessateiaobe-
decearegrasquelhesãoinerentes.Nessaconcepçãocor-
respondeateiadepensamentosà"razãopura"deKant,
e asregrasàskantianas"categoriasdarazãopura".É a
concepçãoàqualestamosacostumadospeladiscussãofi-
losóficaclássica;emborapareçaserumaconcepçãocrítica
dopensamento,emborapareçaadmitirlimitaçõesdoin-
telecto,opera,nãoobstante,comoconceitodoconheci-
mentocomosendoadequatioíntellectuad rem,adequa-
çãoessaquenegaemsuaspremissas.Admite,movidapor
féingênuanointelecto,quearealidadeemsitransparece
pelateiadospensamentos,aindaquedistorcida;muito
46 A dúvida VILÊM FLUSSER 47
emboraadmita,simultaneamente,a impossibilidadede
qualquerafirmativaemrelaçãoà realidadeemsi.Essaé
umaconcepçãoqueprecisaserabandonada.
Abandonandotalconcepçãoclássicateremos,possi-
velmente,aprimeiravisãodaforçaqueimpeleateiados
pensamentos.Essateiapodeserconcebidacomosendo
umúnicopensamentoenormeembuscadesuacomple-
tação.Tal comosenosapresentaagora,incompletoe
interrompidopornossacontemplação,nãotemsignifi-
cado,comonãoo temnenhumpensamentoincompleto
einterrompido.A forçaqueimpeleateiadospensamen-
toséabuscadosignificado;éessabuscaqueseapresen-
ta comosendoabsurda,frustradapeloprópriocaráter
dopensamento,quandoo significadodospensamentos
individuaisadquirepapelsecundárioe parasitário.Os
pensamentosindividuaissãosignificativosà medidaque
contribuemparao significadogeralemcujabuscaateia
dospensamentosseexpande.Sãosignificativosdentrodo
contextodateiadospensamentos.O fatodeseremassim
significativoscontribuiparaaexpansãodateia.A soma
dossignificadosdospensamentosindividuaisé a força
deexpansãodateia.Sendo,entretanto,inalcançávelesse
últimosignificadoemdireçãoaoqualospensamentos
tendem,são,nessesentido,tambéminsignificativosos
significadosdospensamentosindividuais.Continuam
sendo,entretanto,significativosdentrodeseucontexto.
O abandonodafénoúltimosignificadodopensamento
nãoacarreta,necessariamente,o abandonodousoprag-
máticodos significadosdospensamentosindividuais.
Nesteabandonodousoprático,nessareaçãodo"rudoou
nada",resideoerroeoprimitivismodosanti-intelectua-
listas.
Formulemos,àluzdasconsideraçõesprecedentes,a
nossaconcepçãodateiadospensamentos.É umconjun-
todinâmicodeorganizaçõesdeconceitosqueabscondea
realidadenoesforçoderevelá-Ia:éumabuscadarealida··
dequecomeçapeloabandonodarealidade.É umesforço
absurdo.A teiadospensamentosé,portanto,idênticaà
dúvida,talqualadiscutimosnaintroduçãodopresente
trabalho.Sedescrevemoso intelectocomosendoo cam-
podentrodaqualocorrempensamentos,istoé,comoo
campodentrodoqualateiadospensamentosseexpande,
podemosagoracondensara nossadescriçãodizendo:o
intelectoéocampodadúvida.
2. Da frase
oponto devistaqueassumimosno capítuloante-
rior revela,por assimdizer,a anatomiae a fisiologiado
pensamento.Revelao pensamentocomoorganizaçãode
conceitos,erevelao funcionamentodo pensamento.
Consideremoso pensamentocomoorganizaçãode
conceitos.A nossainvestigaçãonosconduzàpróximaper-
gunta:"o queé conceito?"Emborasetratedo elemento
do pensamento,não dispomosde umadefiniçãoclarae
unívocado conceito"conceito".Essacircunstânciaéreve-
ladorada fé inconfessadosnossospensadoresdo intelec-
to.Essafémandaqueo conceitosejaalgoqueacompanhe
(oudevaacompanhar)apalavra.O estudanteingênuoem
Faustodiz: "Doch ein BegriffmussbeidemWorte sein"
("no entanto,um conceitodeveacompanharapalavra").
Goethecompartilhada ingenuidadedo estudantee dis-
tingue palavrasacompanhadase desacompanhadasde
50 A dúvida VILÉM FLUSSER 51
conceitos.Acha-seemexcelentecompanhia.Todos os es-
forçosdedefinir"conceito"sãotentativasdeparafrasearo
seguinteartigodefé:"conceitoéo fundamentoinarticula-
do do qualsurgeumapalavralegítima".Por outro lado,o
conceitonãoéalgo,masdealgo;parafalarmosemtermos
simples,conceitoé o traçoqueumacoisadeixano inte-
lecto.Estamos,portanto,diantedeumasituaçãocuriosa.
N aprimeiraconcepçãoéapalavrao símbolodo conceito.
Na segundaconcepçãoéo conceitoo símbolodacoisa.O
conceitoé,portanto,algoentrepalavraecoisa- algocom-
pletamentesupérfluo,comefeito,introduzidosomenteno
esforçodesuperaro abismoentrepalavraecoisa.Não há
conceitosempalavra,assimcomodizerquehápalavrasem
conceitonãopassadeumamaneirasuperficialdefalar.O
quesequerdizeréquehápalavrassemumacoisacorres-
pondente(qualquerquesejao significadode afirmativa
metaflsicacomoesta).Nãohá,portanto,a rigor,palavra
semconceito.Há, istosim,palavrasincompreensíveis,que
nãosãolegítimaspalavras,nosentidodenãofazeremparte
deumafrasesignificativa- masesteé um problemaque
surgirámaistarde.Basta,parao momento,constatarque
nãohápalavrassemconceitos,nemconceitossempalavras,
eque,emconsequência"conceito"e "palavra"sãosinôni-
mosno sentidológico.Emocionalmentediferem,cabendo
ao"conceito"opapeldeconciliadorentreaféeo intelecto,
maslogicamentecoincidem.Podemos,portanto,porques-
tãodeeconomia,abandonaro usodapalavra"conceito"
emprol dapalavra"palavra".O pensamentoé,portanto,
umaorganizaçãodepalavras.
Com essareformulaçãodeslocamostodaconsidera-
çãodopensamento,ecomelaaconsideraçãodointelecto,
paraumterrenocompletamentediferente- parao terre-
no adequado,comefeito.O queantespodetersidointer-
pretadocomoexercíciopsicológicoouespeculaçãometa-
física,adquireagorao seulugarprecisono conjuntodas
disciplinasdepesquisa:apreocupaçãocomopensamento
eaconsideraçãodo intelectofazempartedadisciplinada
língua.Seo elementodopensamentoéapalavra,entãoo
pensamentopassaa serumaorganizaçãolinguística,e o
intelectopassaasero campoondeocorremorganizações
linguísticas.Sedescrevemoso pensamentocomoproces-
so,podemos,jáagora,precisarquetipodeprocessosetra-
ta:éaarticulaçãodepalavras.Essaarticulaçãonãoneces-
sitadeórgãosou instrumentosparaprocessar-se;órgãos
e instrumentospodemserempregadosa posterioripara
produziressaarticulaçãosecundáriaqueéalínguafalada
ouescrita.A articulaçãoprimária,alínguanãoexpressa,o
"falarbaixo",éidênticaàteiadospensamentos.As regras
de acordocom asquaisos pensamentosseformulame
sepropagamsãoasregrasda língua."Lógica"e "gramá-
tica" passama ser sinônimosno mesmosentidoque o
são"conceito"e "palavra".Sedefinirmos"língua"como
"camponoqualsedãoorganizaçõesdepalavras","língua"
passaasersinônimode"intelecto".O estudodo intelec-
to,estudodalínguaqueé,torna-sedisciplinarigorosa.
Nesseponto do argumento,é preciso fazeruma
ressalva.Os estudoslinguísticos,como os conhecemos
no presente,nãosabemdistinguirentrea línguaprimá-
52 A dúvida VILÉM FLUSSER 53
riae asecundária,entrealínguapuraealínguaexpressa
aplicada.Misturam-se,emconsequência,aspectospuros,
formaiseestruturaisdalínguacomaspectosprópriosda
línguaaplicada.Consideram,por exemplo,apalavraora
comosímbolo(aspectopuro), oracomogruposdefone-
mas(aspectoaplicado).Consideramahistóriadapalavra
oracomoo conjuntodesuasmodificaçõesquantoaosig-
nificado(aspectopuro),oracomoconjuntodesuasmo-
dificaçõesquantoasuaformasensível(aspectoaplicado).
Tratamdedescobrirleisdeacordocomasquaisasregras
gramaticaissedesenvolvem(aspectopuro), e tratamde
descobrirleis de acordocom as quaisse desenvolvem
novasformasdepalavras(aspectoaplicado).Em conse-
quência,reina uma confusãofundamentalnos estudos
linguísticosatuais.
Emboranãosejasemprefácildistinguirentrelíngua
purae aplicada,pelaíntima relaçãoqueexisteentream-
bas,essadistinçãoésemprepossível.Ela precisaserfeita,
e o estudoda línguaprecisaserdividido de acordocom
ela.A partequeseocupacom a línguaaplicadaprecisa
serrelegadaaoterrenodasciênciasnaturais,epouco ou
nadateráavercomosproblemasdo pensamento.A ou-
traparteformaráaquiloqueDilthey chamavade"ciência
do espírito" (Geisteswissenscha:fi),com a diferençaque
seráumaciênciadespsicologizada.Seráumaciênciatão
exata,ou tãopoucoexata,quantoo sãoasciênciasnatu-
rais.Essaciênciadalínguapuraestá,por ora,somentein
statunascendi.Os estudosdos logicistasformais,como
Carnap e Wittgenstein,e as experiênciasverbaisdos
existencialistas,comoHeideggereSartre,nãopassamde
primeirasaproximaçõesdeumainstituiçãodessaciência.
Devemoscontinuar,portanto,coma nossainvestigação
dopensamentosemo apoiodecisivodessadisciplinaaser
instalada.
Definimoso pensamentocomoumaorganizaçãode
palavras.As ciênciaslinguísticaschamamorganizaçõesde
I d "f "('p " "r ,,--pa avras e rases. ensamentoe nase sao,portan-
to, sinônimoscomoo são"conceito"e "palavra".O inte-
lectoéo campono qualocorremfrases.A análisedafrase
edasrelaçõesentreasfrasesequivaleàanálisedo intelec-
to.Esbocemosaanálisedafrase:agrossomodo,podemos
distinguirnafrase-padrãocincoórgãos:(1) o sujeito,(2)
o objeto,(3) o predicado,(4) o atributoe (5) o advérbio.
(4) e (5) sãocomplementosde(1),e (2), respectivamen-
te,de(3).Podemosdizerque,basicamente,afrase-padrão
consistedesujeito,objetoepredicado.O sujeitoéaquele
grupodepalavrasdentrodafrasearespeitodoqualafrase
vai falar.O objetoéaquelegrupodepalavrasemdireção
ao quala frasesedirige.O predicadoé aquelegrupode
palavrasqueuneo sujeitoe o objeto.Essadescriçãoda
fraseé,semdúvida,umaexcessivasimplificaçãodesitua-
ção.Há frasesenormementecomplexasqueconsistemde
umasériede frasese subfrasesinterligadas,com riqueza
de complementose aditivosde análisedifícil. E há fra-
sesdefectivas,nasquaisfaltaaparentementeo sujeito,o
objeto,eatéo predicado.Entretanto,mesmoassim,sim-
plificandoa frase-padrão,suaanáliserevelaráo aspecto
fundamentaldoprocessochamado"pensamento".
54 A dúvida VILÉM FLVSSER 55
A frasetemdoishorizontes:osujeitoeoobjeto.Ela
éumprocessoqueseprojetadeumhorizonterumoao
outro.Maisexatamente:algoseprojetanafrasedeum
horizonte,queéosujeito,rumoaooutrohorizonte,que
éoobjeto,eestealgoéopredicado.A fraseéumprojeto
dentrodoqualoprojétil(opredicado)seprojetadosu-
jeitoemdemandadoobjeto.Sujeitoeobjeto,horizontes
quesãodoprojeto,nãoparticipampropriamentedesua
dinâmica.Sãoaspartesestáticasdoprojeto.O predica-
do,amissiva,o missilequeseprojetaaolongodotrajeto
queuneumsujeitoeobjetoparaformaro projeto,é a
verdadeiramensagemdafrase.Neledevemosprocurar
o significadodafrase.Dadaaimportânciadaanáliseda
fraseparaa compreensãodo intelecto,seránecessário
considerarmoscadaumdosseusórgãosumpoucomais
atenciosamente.
Consideremosprimeiroasimplicaçõesde termos
definidoafrasecomosendoumprojeto.Istofacilitaráa
compreensãodafunçãodosórgãosdentrodoorganismo
dafrase.A palavra"projeto"éumconceitocomo quala
filosofiaexistencialopera(EntwurfJ; deacordocomessa
escoladepensamentosestamosaqui,existimos,porque
paracáfomosjogados(gewoifen).Duassituaçõespodem
resultardessenossoestarmosjogadosparacá:podemos
continuarcaindopassivamenteparadentrodo mundo
dascoisasquenosenvolveeoprime,caindoemdireção
à morte,oupodemosvirar-noscontraasnossasorigens
dasquaisfomosjogados,transformandocoisasquenos
envolvememinstrumentosquetestemunhamnossapas-
sagem- podemosprojetar-nos.A primeirasituação,ada
decadência,osexistencialistaschamamdeinautêntica;a
segundasituação,adoprojeto,chamamdeautêntica.Não
cabeaquiadiscussãodoméritodessavisãodaexistência.
Cabe,istosim,aconsideraçãoque,tendodefinidoafrase
(istoé,opensamento)comoprojeto,enquadreorganica-
menteoconceito"pensamento"dentrodessavisão.Com
efeito,nãosomenteenquadramoso pensamentodentro
davisãoexistencialista,comoaindalibertamosoexisten-
cialismodo opróbriodeanti-intelectualismoquesobre
elepaira.O pensamento(a frase)nãoé simplesmente
umentreosprojetospelosquaisnosprojetamoscontra
o nossoestarmosjogadosparacá;o pensamentoé,com
efeito,o nossoprojeto-mestre,o padrãodeacordocom
o qualtodososdemaisprojetossecundáriosserealizam.
O pensamentoéumprojeto,porseramaneirapelaqual
aexistênciaseprojetacontraassuasorigens.Vemosaqui,
soboutroprisma,o aspectodaabsurdidade,daantifé,
dadúvidaqueéo pensamento.Masapalavra"projeto"
adquire,nessecontexto,umaqualidadequenãotemnas
discussõesexistencialistas.Torna-seanalisável.Paraos
existencialistaséoprojetoumavivênciaacompanhadade
um clima(Stimmung).No presentecontextocontinua
sendovivência(todosatemosaotermospensamento),e
é,nãoobstante,acessívelà análise.Prossigamoscomela.
O sujeito,pontodepartidadoprojetoqueéafrase,
éconsiderado,porsisó,o detritodeumafraseanterior.
É oquerestoudeumpensamentojáperfeitoerealizado.
É o eloqueuneafraseaserprojetadacomafrasequeo56 A dúvida VILÊM FLUSSER 57
antecedeu,imediataou mediatamente.Emboratenha
sidopredicadocomosujeitoemumafraseanterior,ou
emboratenhasidoalcançadocomoobjetoemumafrase
anterior,nãoestáesgotado.Faltaalgomaisaserpredi-
cadoaseurespeito,ou faltaalgomaisasernelealcan-
çado:estealgodeveserpredicadononovoprojetoque
estásendoprojetado.A fraseé,portanto,um projeto
quepretendepredicarsucessivamentetudoa respeito
doseusujeito,atéesgotá-Io.Somenteseforconseguido
esseesgotamentocompletodo sujeito,somentesefor
predicadotudoa seurespeito,poderáserconsiderada
umacadeiadepensamentoscomosendocompleta.É
umatarefaabsurda,tantopráticacomoteoricamente.
O objeto,metadoprojetoqueéafrase,éaquilocontra
o qualoprojetoinveste,o queoprojetoprocura,o que
investiga.Sealcançadoemcheio,serácomoqueengoli-
dopelosujeito,podendofigurarcomoatributodo su-
jeitonumafrasesubsequente.O predicado,centrodo
projetoqueéafrase,unedentrodesi,numasíntesedia-
lética,atesedosujeitocomaantítesedoobjeto,eesta
sínteseéjustamentea frase.Essauniãoentresujeitoe
objetoalcançadapelopredicadoéchamada"significado
dafrase".Parapodermoscompreendermelhorafunção
decadaumdosórgãosdafrase,comofoiesboçada,visu-
alizemosasituação:
Tomemoscomoexemploafrase:"ohomemlavao
carro".Nessafrase"ohomem"ésujeito,"ocarro"éob-
jeto,e"lava"épredicado.O sujeito"ohomem"irradiao
predicado"lava"emdireçãoaoobjeto"ocarro".A frase
tem,portanto,aforma(Cestalt)deumtiroaoalvo:osu-
jeito("ohomem")éofuzil,opredicado("lava")éabala,e
oobjeto("ocarro")éo alvo.Podemos,ainda,visualizara
situação,comparando-aaumaprojeçãocinematográfica:
o sujeito("ohomem")éoprojetor,opredicado("lava")
éaimagemprojetada,oobjeto("ocarro")éateladepro-
jeção.Creioserdesumaimportânciaparaacompreensão
do intelectoavisualizaçãodaforma,daCestaltdafrase.
Os psicólogoscomparativosafirmam,aotentarexplicar
o mundoefetivodasaranhas,queessemundosereduz
aacontecimentosquesedãonosfiosdateia.Aconteci-
mentosquesedãonosintervalosentreosfiosdateianão
participamdomundoefetivo(real=wirklich)daaranha,
masnãopotencialidades,sãoo vir-a-serdaaranha.São
o fundoinarticulado,caótico,"metafísico",deumaara-
nhafilosofante.A aranha-filósofoafirma,negaouduvida
dosacontecimentosmetateicos,aaranha-poetaosintui,
aaranha-criadoraseesforçaporprecipitartudosobreos
fiosdateia,paratudocompreenderedevorar,eaaranha-
místicaseprecipitaparadentrodosintervalosda teia
para,numauniãomística,fundir-senotodoelibertar-se
daslimitaçõesdateia.A aranhaéumanimalsumamen-
tegratoàpsicologiacomparativa,porquedispõedeuma
teiavisível;osdemaisanimais,inclusiveohomem,devem
contentar-secomteiasinvisíveis.A teiadohomemcon-
sistedefrases,aforma(Cestalt)dateiahumanaéafra-
se.Visualizandoafraseestaremosvisualizandoateiado
mundoefetivo,real,wirklichparao homem,estaremos
visualizandoaestruturada"realidade".
58 A dúvida VILÉM FLUSSER 59
Detenhamo-nos,maisum instante,na aranha.O
queacontecenosfiosdateia?Acontecemmoscas,outras
aranhas,ascatástrofesquerasgamosfios.E, no centroda
teia,acontecimentoinalcançávelteicamente,acontecea
própriaaranhasecretadoradateiaedonadateia,livrede
deslocar-seaolongodosfiosparadevorarmoscas,copular
comoutrasaranhas,combateroutrasaranhaseconsertar
estragosintroduzidosna teiapor catástrofes.Podemos,
então,distinguir,basicamente,asseguintesmodalidades
ontológicas,asseguintesformasdo Ser:mosca,outraara-
nha,catástrofedestruidora,e,comtodaasuaproblemáti-
cateica,aprópriaaranha.A aranhacivilizada,no sentido
ocidentaldo termo,tenderáa menosprezara diferença
entremoscaeoutraaranha,considerandoaoutraaranha
comoumaespéciedemosca;elatenderáaexplicarasca-
tástrofesdestruidorasda teia como sendosupermoscas
quenãopodemsersuportadaspelateia(provisoriamen-
te,já quea teiacresceesefortificae acabarásuportando
moscasdetodo tamanho);enfim,tenderáaconsideraro
mundometateicocomoum reservatório,umvir-a-serde
moscas.A aranhamaterialistaensinaráquea moscaé a
teseeaprópriaaranhaaantítesedoprocessodialéticoque
sedesenvolvenosfiosdateia,tendosidoalcançadaaúlti-
masíntesequandoaprópriaaranhativerdevoradotodas
asmoscas.A aranhahegelianaafirmaráqueaaranhapres-
supõeamoscaequeoprocessodialéticoéumaprogressi-
vaaranhanizaçãodomundo-mosca,portantofenomenal,
eque,consequentemente,o devorardamoscaequivaleà
realizaçãodamosca.A moscadevoradacomomoscarea-
lizada:eisaúltimasíntese,atotalrealização,por aranha-
nização,dasmoscas.A aranhaheideggerianaconsiderará
amoscaaserdevoradacomoacondição(Bedingung)da
situaçãoaranhal,eo cadáverdamoscajá chupadacomo
testemunha(Zeug)da passagemda aranhapelo mundo
mosca!..Estestrêstiposdeespeculaçãoocidental,eoutros
semelhantes,sãocaracterizadospor um aranhismoextre-
mo,já queaceitamateiacomofundamentodarealidade
semdiscutiraprópriateia.O aranhismoéinevitávelpara
asaranhas,masadiscussãoda teiaé aranhamentepossí-
vel.Essadiscussãotornaviávelumavisãomaisapropriada
nãosomentedamosca,masdaprópriaaranha.
Voltemos à teia humana,exemplificadana frase
"o homemlavao carro".Indiscutivelmentea situaçãoé
maiscomplicadado que na teiada aranha.Acontecem
nelapalavras(moscas)detiposdiversos,asaber,sujeito,
predicadoe objeto.Não obstante,o paralelopode ser
mantido.O nossomundoefetivo,real,wirklich,seesgota
em palavrasde um daquelestiposdiversos.O restoé o
mundo caótico,inarticuladodo vir-a-ser,que nos esca-
pa pelasmalhasda nossateia,intuível talvezpoéticaou
misticamente,masrealizáveltão-somenteempalavrasor-
ganizadasdeacordocomasregrasdanossateia.Paraser
real,tudoprecisaaceitaraformadesujeito,ou objeto,ou
predicadodeumafrase.Aquilo queWittgensteinchama
deSachverhalt,istoé,o comportamentodascoisasentre
si,eaquiloqueHeideggerchamadeBewandtnis,istoé,o
acordoexistenteentreascoisas,nãopassadarelaçãoen-
tresujeito,objetoepredicado.O nossomundodascoisas
60 A dúvida VILÉM FLUSSER 61
reais,istoé, a teiadasnossasfrases,é organizado,é um
cosmos,é umSachverhalte temumaBewandtnis,por-
quesãoassimconstruídasasnossasfrases.É evidenteque
cadalínguaparticular,sefordo tipoflexional,temuma
construçãodefrasesligeiramentediferente,oumuitodi-
ferente.Portanto,a cadalínguaparticularcorresponde
um5JachverhalteumaBewandtnisdiferente,umcosmos
diferente.O queestamosdiscutindonocursodestascon-
sideraçõesé,sensustricto,ocosmosquecorrespondeàlín-
guaportuguesaque,dadooparentescoestruturalentreas
línguasflexionais,podeseraplicado,comcertasreservas,
atodososcosmosdaslínguasflexionais.
Tentandovisualizaraformadafrase,estamos,com
efeito,tentandovisualizaro cosmosdanossarealidade,
estamosinvestigandooSachverhaltrealeprocurandosa-
berqueBewandtnistem.Sevisualizarmosa frasecomo
umtiroaoalvooucomoumaprojeçãocinematográfica,
estamos,comefeito,visualizandoassimo nossocosmos.
Ao dizerqueafraseconsistedesujeito,objetoepredicado
organizadosentresiemformadeumprojetocomparável
aotiroouà projeção,estamosdizendo,comefeito,quea
nossarealidadeconsistedesujeitos,objetosepredicados
assimorganizados.A análiselógicadafraseéumaanálise
ontológica.Assimcomosecomportamaspalavrasdentro
dafrase"ohomemlavao carro",comportam-seascoi-
sasnarealidade.Logo,todainvestigaçãoontológicadeve
partirdaanálisedafrase.Comoaaranhadeveconsiderar
asuateiaantesdequalquerconsideraçãodemoscas,se
quiserevitarumaranhismoingênuo,assimdevemoscon-
siderar,antesdemaisnada,aestruturadafrase,sequi-
sermosevitaraatitudeingênuachamada,emnossosdias,
de"humanismo".Essaestruturanosé dadapelalíngua
dentrodaqualpensamostãoirrevogavelmentequantoé
dadaateianocasodaaranha.(Q:ererfugirdaestrutura
darealidadeemsujeito,objetoepredicadoéquererpre-
cipitar-se,numsuicídiometafísico,paradentrodasma-
lhasdanossateia.Umarealidadeconsistentesomentede
sujeitos(loucuraparmediniana)ou somentedeobjetos
(loucuraplatônica)ou somentedepredicados(loucura
heraclitiana)sãoexemplosdessafugasuicida.Por incô-
modaquepossaser,devemosaceitaratrípliceontologia
comoumdadoimpostopelalíngua.O restoémetafísica,portanto,silêncio.
Sujeito,objetoe predicadosãoasformasdo Ser
queperfazemanossarealidade.Consideremoso sujeito.
Eleé o detonadordafrase.Não bastaasi mesmo,pre-
cisadafraseparaenquadrar-senarealidade.O sujeito,
no nossoexemplo"ohomem",carecedesignificado,se
consideradoisoladamente.É umdetritodeumafrasean-
terior,porexemplodafrase"istoé umhomem".É um
detrito,entretanto,carregadodeforçaexplosiva;devido
aestacargaestásetornandosujeito.Essacargaexplosiva
éasuaprocuradesignificado.Procurandosignificar,isto
é,procurandoumlugardentrodaestruturadarealida-
de,apalavra"ohomem"torna-sesujeitodeumafrase:
procuraumSachverhalquetenhaumaBewandtnis.Em
outraspalavras:procuraserpredicadoemdireçãoaum
objeto."O homem",consideradoisoladamente,forade
62 A dúvida VILÉM FLUSSER 63
umafrase,éumaprocura,umainterrogação,edeveriaser
escrito,arigor,"ohomem?".O sujeito,o fundamentoda
frase,aquiloqueAristóteleseosescolásticoschamavam
desubstantia,éumserembuscadeumobjetoparareali-
zar-se.Carecedealgocontraoquesepossaprojetarnum
predicado.
Consideremosessealgo,istoé,o objeto- nonosso
exemploapalavra"ocarro":éaquiloquebarraoprojeto
dosujeito,éo obstáculoquedáasuaprocuraportermi-
nada.Opõe-seàprocuradosujeito,enessaoposiçãodá
sentidoà procura.Defineo sujeitodentrodeumasitu-
ação,dentrodeumSachverhalt,queé a frase.Limitao
sujeito,dando-lhe,porissomesmo,umlugardentrodo
esquemadarealidade.Realizaosujeito,mas,pelomesmo
processo,torna-serealizado.Consideradoisoladamente,
foradafrase,é o objetoalgoaindanãoencontrado,mas
quedeveserencontrado.O objetodentrodafraseéum
imperativo,umdeverdosujeito,edeveriaserescrito,no
nossoexemplo,a rigor,"o carro!".~ando alcançado
pelosujeito,oimperativodoobjetosefundecomointer-
rogativodosujeitonoindicativodoSachverhaltqueé a
frase.O projetodafrase,interrogativosevistosubjetiva-
mente,imperativosevistoobjetivamente,é umaindica-
çãosevistocomoSachverhalt,istoé,comoumtodo.
Seconsiderarmosanossarealidadedopontodevis-
tadosujeito,daquelepontodevistaquepodemoscha-
marde "excentricidadesubjetivista",elaseapresentará
comoumaúnicaeenormeprocuraeinterrogação,como
umabuscadosignificado.Essaexcentricidadesubjetivis-
ta caracteriza,por exemplo,o pensamentoromântico.
Seconsiderarmosanossarealidadedopontodevistado
objeto,digamos,da "excentricidadeobjetivista",elase
apresentarácomoum únicoe enormeobstáculo,uma
barreiracategóricaquenosdeterminaesobrenósimpe-
ra.Essaexcentricidadeobjetivistacaracteriza,confessaou
inconfessadamente,porexemplo,opensamentomarxis-
ta.A aparentedicotomiaentreasduasexcentricidades
sedissolvenavisãodafraseinteira,naqualtantosujeito
comoobjetotemBewandtnis.A realidadeseapresenta,
destepontodevista,comoumaindicação,istoé, como
umaarticulação,umaorganizaçãolinguísticaquesupe-
ra,noSachverhaltentresujeitoeobjeto,o interrogativo
eo imperativo.O objetoalcançadopelosujeitonafrase
desvendaaeternaquerelaentredeterministaseindeter-
ministascomosendoumaquerelaentreexcêntricos,ou
seja,comoumaquerelanascidadeumafalsagramática.
Aspalavras"sujeito"e"objeto",seconsideradaseti-
mologicamenteno sentidode"línguapura",nãodeve-
riamdarmargemamuitaconfusão."Sujeito"éaquiloque
estánofundodoprojeto(subjectum)."Objeto"éaquilo
queobstao projeto(objectum).Entretanto,ambasas
palavrasfazemparte,hámilharesdeanos,daconversa-
çãofilosóficaetêmsidoutilizadasforadoseucontexto
autêntico,queé agramática.Dessaformaderamorigem
amúltiplasespeculaçõesmetafísicasquedevemsercon-
duzidasaoabsurdo,seaspalavrasforemrecolocadasno
seucontexto.Porexemplo:adistinçãoentre"objetoreal"
e"objetoideal",ouaidentificaçãode"sujeito"com"Eu"
64 A dúvida VILÉM FLUSSER 65
oucom"Deus".Trata-se,nosexemploscitadoseemou-
tros,desimpleserrosdesintaxe.Esperoqueapresente
discussãopossacontribuirparaaeliminaçãodesteserros
eparaarecolocaçãodeambasaspalavrasemseucontex-
toestruturalmentecerto,istoé,nocontextodaestrutura
daslínguasflexionais.
A oposiçãoentresujeitoeobjetodentrodafraseé
superadapelopredicado.O predicadoestabeleceo Sa-
chverhaltentresujeitoeobjeto.O predicadoocupaapo-
siçãocentraldentrodoprojetoqueéafrase.A própria
palavra"predicado"exigeumainvestigaçãoontológica
pacientequeultrapassadelongeoescopodestetrabalho.
Surgiudapalavra"dizer"etemparentescopróximocom
aspalavras"predizer"(istoé,profetizar)e "prédica".É
umapalavraintimamenteligadacomtodososproblemas
ontológicosqueseagrupamaoredordaspalavras"dizer",
"falar",e"língua".A consideraçãodopredicadonoscon-
duzaopróprioâmagodalíngua.Sujeitoeobjetosãoos
horizontesdafrase,portantodalíngua,masopredicado
éo centro,a essênciadafrase,portantodalíngua.Em-
boraestejamoscondenados,pelaestruturadalíngua,à
ontologiatríplicedesujeito,objetoepredicado,cabeao
predicadoumaimportânciamaior.O predicado,nonos-
soexemplo"lava",esforça-seporunir,dentrodafrase,o
sujeitocomo objetonumSachverhalt,istoé,esforça-se
porintegrarosujeitoeoobjetonaestruturadarealidade.
Trata-se,entretanto,deumesforçopordefiniçãoabsur-
do.O sujeitoeo objetonãosãointegráveisnaestrutura
darealidade.Exemplifiquemosesseabsurdo:"ohomem"
érealporque"lava"é,portanto,realsomenteenquanto
"lava"."O carro"é realporque"ohomemo lava",por-
tanto,somenteenquanto"ohomemlava".A realidadedo
"homem"edo"carro"estáno"lava"."O homem"éolado
subjetivoenquanto"ocarro"éoladoobjetivodarealida-
de,queporsuavezéo predicado"lava".Entretanto,"o
homem"e"ocarro"transcendemarealidadequeéopre-
dicado"lava";podemosverificaressatranscendênciaesta-
belecendoumoutroSachverhaltentreomesmosujeitoe
o mesmoobjeto,istoé,predicandoumoutropredicado,
porexemplo,"ohomemguiao carro".Agorao mesmo
"homem"eomesmo"carro"serealizamnumarealidade
diferente,queéopredicado"guia".O quenosautorizaa
dizerquesetratanessasduasrealidadesdo"mesmo"su-
jeitoouobjeto?Eisumaperguntatipicamenteeternada
filosofiaclássicaequetemdadoorigemainúmerasmeta-
físicaseepistemologias.Entretanto,dentrodopresente
contexto,arespostaésimplesenadatemdemisterioso.É
umaperguntapuramenteformaledizrespeitoà sintaxe
dalínguaemqueestamospensando.Estamosautoriza-
dosafalarem"mesmo"sujeitoe"mesmo"objeto,porque
emambasasfrasesservemasmesmaspalavrasdesujei-
toeobjeto.Resumindo,podemosdizerqueo sujeitoeo
objeto,porpoderemparticipardediferentesSachverhalt,
transcendemtodoseles,emais:jáqueosujeitoeoobjeto
podemparticipardeinúmerasSachverhalt,transcendem
inúmerosSachverhalt.A realidadeé o conjuntodos
Sachverhalt,istoé,oconjuntodasfrases.Logo,podemos
dizerqueo sujeitoe o objetotranscendema realidade,
66 A dúvida VILÉM FLUSSER 67
emboraparticipandodeinúmerosSachverhalt.A realida-
dedosSachverhaltestánosseuspredicados.
A filosofiaclássicaconheceo conceitodo "pensar
predicativo".Reconhecealimitaçãodointelectodepoder
"captar"(eifàssen)somenteospredicadosdeum sujeito,
e jamaiso próprio sujeito.Como nãocoloca,entretan-
to, o problemadentrodo contextogramatical,perde-se
a filosofiaclássicaemespeculaçõesestéreis.A limitação
do intelectoé dadapelaestruturada língua,nestecaso
específicodaestruturadafrasenaslínguasflexionais.Essa
estruturasendotal qualé,resume-sea realidadedecada
Sachverhaltno predicadodecadafrase.Estritamentefa-
lando,podemosdizerquearealidadeéasomadospredi-
cadosdetodasasfrasesarticuláveis.
Sujeitoeobjeto,horizontesquesãodafrase,formam
oselosentrefrasesegarantem,dessamaneira,acontinui-
dadedarealidade.Por exemplo:"O homemlavao carro.
Mais tarde,o homemguiao carro".EstesdoisSachverhalt
participamdo mesmocontinuumderealidade,porqueas
duasfrasescontêmos mesmossujeitoe objeto.Encara-
do o problemado fluxodarealidadedesteponto devista
gramático,aeternaquerelaentreParmênidese Herácli-
to ficasuperada.Sujeitoeobjeto,os "onta"imutáveisda
especulaçãopré-socrática,transcendemo rio heraclitiano
no sentidodeparticipardelesomenteparagarantir-lheo
fluxo.Não fazem,arigor,partedo rio, nãosão"reais"no
sentidopré-socrático.Justamentepor seremimutáveis,
istoé,nãototalmentepredicáveis,nãosãopropriamente

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