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O mundo em ebulição Ed. Março.17

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CAROS AMIGOS – ED. MARÇO/17
O MUNDO EM EBULIÇÃO – ENTREVISTA COM O SOCIÓLOGO SÉRGIO ADORNO
O MUNDO está em ebulição, com profundas transformações sociais, que afetam a política, o trabalho, a vida como um todo. E assombrado, neste momento, por forças retrógradas, acumuladas até mesmo no bojo dessas transformações, que têm também vieses culturais e comportamentais. Ao mesmo tempo que ainda é difícil estabelecer com precisão os elementos que compõem ou fomentam essas transformações, também pode-se apontar alguns indicativos: mudanças nas relações de trabalho, esgarçamento das democracias, que já não inspiram confiança no eleitorado e produzem crises de representação, tecnologias que dominam e dão novo ritmo a nossas vidas e avanço de um pensamento neoliberal, individualista por natureza.
Na entrevista, o sociólogo Sergio Adorno, professor da Universidade de São Paulo (USP), faz análises e busca pistas para tentarmos compreender em que bases estamos e para onde vamos. Não apenas no Brasil, mas em um cenário que é visto por todo o globo. E mesmo que algumas nuvens ainda cubram os horizontes, já é certo dizer que vivemos tempos, como atesta o sociólogo, no qual o fascismo campeia novamente.
Um mundo no qual o que estávamos acostumados está “morrendo”, mas que ainda não viu o novo nascer. Confira abaixo.
Aray Nabuco – O senhor tem uma análise para explicar esse momento de polarização, dos elementos que estão nessa conjuntura de intolerância e tintas fascistas?
Em primeiro lugar, precisamos pensar que não é uma situação exclusivamente brasileira. Se você for olhar, pelo mundo inteiro, esses cenários de polarização, de radicalização e de, vamos dizer, recurso da violência, está se tornando cada vez mais recorrente e frequente. Isso não explica, mas é um sintoma, há um sociólogo francês que eu gosto muito que chama Michel Wieviorka e ele escreveu um livro sobre violência, é um dos temas com que ele trabalha e defende um argumento que eu acho extremamente interessante.
Ele diz mais ou menos o seguinte: se você olhar a história das sociedades que passaram pelos nacionalismos até mais ou menos, vamos dizer, meados dos anos 1960, você tinha, grosso modo, uma certa atitude de certa legitimação da violência. Claro, não a violência ligada à delinquência comum, as agressões à pessoa, aos bens. Mas a violência dos colonizados contra os colonizadores. Era legítima essa violência porque, na verdade, era uma forma de alcançar e manter a liberdade, pela construção da sua soberania, da sua nação. Havia, inclusive, uma certa justificação intelectual. Você olha, por exemplo, o texto de um intelectual africano (Frantz Fanon) que se chama Os Condenados da Terra, em que ele dizia que a descolonização era um processo inevitável, mas com o emprego da força. Ele foi editado com uma apresentação do (Jean-Paul) Sartre, com um texto absolutamente, vamos dizer, muito duro em relação ao significado da violência como uma forma de construção da liberdade. Pelo menos em duas situações – ele cita uma terceira, mas eu vou me limitar às duas –, uma delas é o uso da violência nos processos de descolonização e, segunda, o uso da violência nas lutas entre classes sociais. Então, contra a opressão do capital era legítimo o uso da violência pelos trabalhadores para conquistar os seus direitos. Quer dizer, é como se você dissesse assim: contra a violência do capital, os trabalhadores podiam utilizar legitimamente a violência como uma forma de reação, de luta e de conquistas. Isso ocorre, digamos, até mais ou menos final dos anos 60. O que vai acontecer nesse final dos anos 60? Por um lado, uma grande onda de descolonização, sobretudo nos países do Continente Africano e também em alguns países do Sudeste da Ásia. Mas isso significava o quê? Significava que com a liberdade, agora, ela (a violência) não seria legítima. Você pode usar da violência para destruir uma relação de opressão, mas essa violência não constrói uma nova nação. Aliás, esse é um argumento que está na Hannah Arendt. Não sem razão, nessa mesma época, a Hannah Arendt passa a ser bastante lida, a obra dela tem um impacto sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. Então, a ideia é essa: há uma grande onda de descolonização, assim, a legitimação da violência perde força. Do ponto de vista das relações das lutas de classes, o que aconteceu? Foram também desenvolvendo uma série de mecanismos de intermediação de conflitos, câmeras de negociação, a relação entre os sindicatos e as empresas, uma série de mecanismos que, de alguma maneira, foi também enfraquecendo o recurso da violência como recurso legítimo. Então, o que você tem, no final dos anos 1970? Você tem uma tendência a que o uso da violência fosse perdendo força. O pensamento da Hannah Arendt é muito claro. Nas sociedades onde o poder democrático se instalou, a violência é um recurso praticamente neutralizado. Nas sociedades onde prevalecem as tiranias, os regimes ditatoriais, as ditaduras militares etc., o que acontece? A violência se impõe sobre a democracia. Então, qual era a ideia? A ideia que surge muito entre os intelectuais, e na opinião pública, é que democratizar sociedades era pacificá-las internamente, era tornar essas sociedades, apesar da persistência dos conflitos e das lutas, dentro de regras legítimas, e que o recurso, a negociação, a palavra, o debate viessem a ocupar o lugar que o uso da violência tinha no passado. Esse é um fenômeno. O que nós estamos percebendo hoje? Uma recuperação do recurso da violência como uma forma legítima de luta. Então, esse é um sintoma de que tem uma coisa nova, é o sintoma de que este mundo social, político, essas relações internacionais estão em uma profunda mutação.
Aray Nabuco – Quando o senhor diz que algo aconteceu e que começa a retornar, o que o senhor entende...
É isto que é um problema de investigação sociológica. É tentar entender o que aconteceu. Por que, de alguma maneira, esse retorno, essa reivindicação de uma legitimação da violência, que está em algumas lutas sociais, que está nos protestos coletivos, os black blocs, os movimentos de rua?
Aray Nabuco – Os imigrantes, podíamos colocar também ou não?
Exatamente. Você tem o retorno da violência no cenário da vida pública e política, não só nacionais, mas internacionais. Essa questão do terrorismo, das lutas contra o terrorismo. Você tem esse retorno. Eu, como sociólogo, me pergunto: o que significa isso? Significa que alguma coisa está em ruínas, alguma coisa do passado não tem mais sustentação no presente. Uma delas, seguramente tem sido mais discutida, que é a crise das democracias, a democracia representativa, a burocratização dos procedimentos democráticos, que vai tornando cada vez mais distante a relação entre governantes e governados. Quer dizer, em vários pa-íses do mundo, os governados não se reconhecem mais nos governantes. Ainda que muitas vezes você tenha eleições legítimas, reconhecidas como livres.
Então, há uma desconfiança muito grande nessa grande herança do início do século 20, que apostou nas virtudes da democracia representativa e que, sobretudo, era legitimada pelo quê? Por eleições. Agora, o que se verificou é que essa democracia não conseguiu, em muitas sociedades, reduzir desigualdades. Uma democracia social e de sustentação política, está sustentada por uma sociedade em que as desigualdades sociais não são tão extremas. Quer dizer, você não pode ter diferenças salariais entre ocupações tão extremas como as que você tem aqui no Brasil e em algumas sociedades com estruturas sociais muito similares. Esse é um desafio, um problema, que a questão social vira uma questão política fundamental. Ela hoje virou uma questão de relevância tão grande como as questões relativas à liberdade de pensamento, à liberdade de opinião, à liberdade de organização. Tudo isso, que sempre foi pilar da democracia, hoje entra em competição com a questão social, com a ideia de que você, para garantir a liberdade, precisa ter a liberdade do maior número, e para você ter a liberdade do maior número, vocêtem que ter uma sociedade minimamente justa, na qual, vamos dizer, algumas conquistas sociais sejam asseguradas para o maior número, para todos. Vou dar o exemplo que mais gosto de dar, a questão da vida. Estamos, no Brasil, em uma sociedade onde temos taxas muito elevadas de homicídios, que vitimizam sobretudo jovens, pobres, sobretudo pobres negros, moradores dos bairros que compõem a chamada periferia urbana, em geral pessoas com estruturas sociais muito frágeis, baixa escolaridade, não profissionalizadas, quer dizer, essas são as vítimas potenciais da chamada violência fatal. Isso não quer dizer que qualquer cidadão de classe média não possa vir a ser vítima de um homicídio, mas a probabilidade é muito menor em relação aos nossos cidadãos que moram nesses bairros. Isso significa o quê? Isso significa que a proteção do direito à vida, que é fundamental, não é igual para todos. Eu moro num bairro da cidade em que as taxas de homicídios são muito baixas, minha vida está muito protegida. Em compensação, quando eu atravesso o outro lado do rio e que eu começo a me aproximar dos bairros que compõem a, vamos dizer, região metropolitana da cidade, a periferia urbana, você começa a verificar que as taxas de homicídio são muito mais altas
E se eu for classificar por faixa etária, quanto mais jovem, maior a probabilidade de ser vítima. Isso significa o quê? O direito à vida não está assegurado da mesma forma para todo mundo. A base da democracia é o direito à vida. Se esse direito à vida está distribuído desigualmente, isso compromete a democracia social. Então, eu estou tentando dizer é que esses elementos fundamentais da democracia, a garantia de direitos fundamentais, vida e liberdade, o direito de participa-ção, representação estão se desconectando. E, cada vez mais, você está construindo uma sociedade democrática que vai se aproximando de uma sociedade aristocrática, ou seja, as garantias, os direitos etc. estão ficando cada vez mais restritos a um pequeno número de pessoas e a grande maioria...
Aray Nabuco – Se o senhor cruza esse dado de globalização dessa violência com o avanço do neoliberalismo, especialmente após o fim da União Soviética que, querendo ou não, era um freio real aos liberais, e a partir dos governos de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, o que temos é a tentativa constante de destruição do Estado, das garantias sociais…
Eu acho que são forças que tiveram um peso e uma contribuição muito grande para nós entendermos esse mundo atual onde você tem uma espécie de flexibilização de valores que eram considerados absolutos. Por exemplo o direito à vida. Todos, independentemente de serem homens ou mulheres, brancos ou negros, adultos ou crianças etc., todos somos proprietários desse bem, que é universal. Quando você começa a dizer que homens brancos têm mais direitos que homens negros em relação à vida, por exemplo, quando você começa a dizer que profissionalizados, a classe média etc., estão mais protegidos que os demais, você começa a dizer o quê? Que houve uma espécie de flexibilização daquilo que aparecia como um imperativo moral.
Eu acho que isso tem a ver com a destruição de alguns pilares da constituição do mundo contemporâneo. Seguramente eu acho que a União Soviética era, em última instância, o território de onde o socialismo de alguma maneira, com os seus vícios e as suas virtudes, tinha um peso muito grande e claro era, de alguma maneira, um contrapeso ao avanço caótico muitas vezes e irresponsável das forças capitalistas. E, claro, o neoliberalismo contribuiu também porque o neoliberalismo acentuou muito o quê?
Aray Nabuco – A concentração de riqueza, por exemplo.
Eu acho que mais do que isso. Ele permitiu, pela flexibilização das fronteiras, decorrentes dos acordos internacionais, decorrentes de acordos comerciais bilaterais etc., ele foi flexibilizando as fronteiras e permitindo um fluxo de circulação de capitais, pessoas, bens, mercadorias sem qualquer controle. Isso gerou novos padrões de riqueza. Que significam os padrões de riqueza? Não significa uma distribuição, significa formas cada vez mais estruturadas de concentração em detrimento de uma grande maioria de pessoas cada vez mais desprovidas de seus direitos mínimos, direito ao trabalho, o direito à moradia, à educação dos filhos. Então, nós estamos vivendo um mundo, na verdade, em que aquelas barreiras legais, institucionais e morais estão se desfazendo. E, quando essas barreiras começam a se desfazer, você tem, vamos dizer, lutas, sob diferentes formas. Lutas pela conquista da cidade, lutas pela conquista do território, lutas que envolvem correntes migratórias, quer dizer, você não consegue mais viver na sua sociedade, você tem de ir buscar lugar em outra sociedade. Só que buscar lugar em outra sociedade não é simplesmente ser recebido, é simplesmente enfrentar outro grande mundo de adversidades.
Aray Nabuco – Sim.
Então, eu acho que tem, seguramente, tem a ver com isso, não é? Agora, é preciso que a gente também avance, porque a atenção que as explicações globalizadas e macroestruturais, também não são suficientes para explicar tudo. Porque você tem, por exemplo, conflitos domésticos que não necessariamente têm uma ligação direta com esses fenômenos. Ou, pelo menos, essa ligação não é tão clara. Um exemplo que para mim também é muito significativo é que, no Brasil, quando você fala em violência, você fala sobretudo da violência ligada a crime, à insegurança pública. É claro, você fala da violência doméstica, da violência contra as mulheres, contra as crianças, da violência decorrente de conflitos raciais e étnicos... É uma dimensão extremamente importante. E ela diz respeito ao fato do quê? Ela diz respeito de que nosso repertório de leis e de instituições são incapazes de pacificar internamente essa sociedade no tocante à ordem pública. Quer dizer, as leis existem, são aplicadas, mas a eficiência delas muito pouco eficazes, outras vezes não são eficazes. Ou, ainda, elas contêm tantos elementos de injustiça que promovem desigualdades, por exemplo, de acesso. A gente costuma dizer algo que, empiricamente, é mais difícil de provar, é que quando você tem bons recursos de assistência judiciá-ria, a chance de você ser punido por um crime cometido é menor do que se você não dispõe. Então, você tem que ver essas questões locais. Na Europa, eu vivi um tempo, eu trazia aqui do Brasil a questão do crime e do criminoso, a ideia de estar sempre me protegendo. Eu morei em um apartamento em um andar térreo e que a janela do quarto dava para a rua. E eu, toda vez que estava trabalhando no quarto e tinha que ir ao banheiro, trancava tudo e aí voltava. Um dia eu estava trabalhando com um amigo meu, francês, e ele me perguntou: “Mas por que você fecha?”. E eu: “Ah, bom, porque alguém pode, enquanto eu estou lá no banheiro fechado, alguém pula aqui dentro e...”. “Nunca vai acontecer”, ele falou assim, “é uma indignidade alguém fazer isso, pular na casa de outra pessoa, não, isso jamais vai acontecer”. Em compensação, eu andava totalmente despreocupado com atos terroristas; meus amigos franceses, todas as vezes que entravam no metrô, ficavam olhando embaixo dos assentos ou então ficavam olhando nas lixeiras e eu nem pensava. Então, existem as circunstâncias locais, certas configurações de violência, por exemplo, que não são necessariamente as mesmas e não têm o mesmo significado. Precisa ser pensada nas suas singularidades, nas suas características. É claro que hoje, quando você pega um fenômeno como a violência contra a mulher, você vai ver que tem características quase universais, estruturais. Mas você vai ver que tem algumas sociedades em que as rea-ções à violência contra a mulher são muito significativas; não erradicam essa violência, mas conseguem criar determinados limites e conseguem muitas vezes colocar no debate público, colocar em políticas públicas questões essenciais de proteção às mulheres. Assim como existem sociedades em que esse assunto é como se fosse assunto da ordem privada.
Nina Fideles – Agora,professor, hoje, observando o cenário e o senso comum, podemos dizer que a luta do oprimido não é tão legítima quanto uma violência do Estado, por exemplo, a ação policial, que este senso comum legitima…
Eu, como sociólogo, sempre me pergunto: será que é assim mesmo? No Brasil, estamos vivendo um período social e politicamente muito singular, a gente pode dizer que já passamos por momentos de muita tensão, de muito conflito, provavelmente em décadas atrás. Eu vivi a ditadura, eu era adolescente, jovem adulto, e digo uma coisa: viver sob a ditadura é muito pior do que viver em uma democracia com conflitos. Por mais que a gente sinta hoje, eu falo para os meus alunos, você não sabe o que é você dar aula tendo que controlar o que vai falar em sala de aula, você não sabe se está sendo vigiado, a gente não tinha certeza de que todos eram alunos. E claro, você andava na rua, podia ser abordado e colocado dentro de uma viatura policial e podiam sumir com você. É claro que hoje essas coisas acontecem também, mas tem mecanismos de prote-ção, mecanismos de ação, então, de qualquer maneira, eu continuo acreditando que viver numa democracia é sempre mais seguro do que viver numa ditadura.
Agora, democracia também não é o paraíso que muitas vezes se imagina. Eles vão crescer numa sociedade em que os conflitos existem, mas se espera que em uma democracia os conflitos encontrem mecanismos legítimos para sua resolução. O Brasil é um espelho, não só o Brasil, mas no Brasil, singularmente, o que é que aconteceu? Nós, pesquisadores, esperávamos que, com o aprofundamento da democracia, haveria necessariamente uma mudança no sistema de segurança pública, a gente achava que a segurança pública caminharia cada vez mais para um modelo civil, ainda que com guardas, até armadas e tudo, mas com o uso em circunstâncias muito delimitadas; e acreditávamos em uma instância na qual haveria um processo de controle democrático da violência. Não foi o que aconteceu. A gente viu e isso foi parte da nossa pesquisa aqui no Núcleo de Estudo da Violência, em grande medida foi isso, foi mostrar que essas instituições, a polícia, instituições de potencial social, como as chamadas instituições de proteção de jovens e adolescentes, como as antigas Febens, a Fundação Casa hoje, que essas instituições iriam caminhar na mesma sintonia com a democracia, quer dizer, elas iriam progressivamente se adaptar de uma tal maneira que a lei seria um limite imposto às formas abusivas de uso da força. Por exemplo, a polícia em todo o mundo é constitucionalmente investida do poder de usar força, mas esse poder não é indiscriminado, não é um poder arbitrário, e toda vez que a polícia usa força considerada excessiva, tem que prestar contas à sociedade e essa prestação de contas tem que ser transparente. Todos os cidadãos têm que saber que isso não é uma atribuição regular da polícia, sair matando pessoas. Infelizmente, no Brasil, o que acontece? Com esse cenário de que a lei favorece uns, desfavorece outros, de que os direitos não são garantias para todos, o cidadão tem sempre aquela sensação que ele não tem proteção de nada. Aliás, a única instituição que os cidadãos brasileiros, de modo geral, continuam respeitando é a família. Eles acham que a família te protege, o resto nada te protege. Por que você sente isso? Numa hora dessas você foi vítima de um assalto, você foi vítima de uma agressão, você vai como cidadão, registra a ocorrência e não acontece nada.
Aray Nabuco – Já vai descrente pra delegacia…
Já vai descrente. Muitas vezes, nem vai. Isso significa uma desconfiança nas instituições, significa o fato de que você começa a dizer: “olha, contra o uso da força, só o uso da força”. Então, você começa a dar caução à polícia. Legitima esquadrões da morte, esses atos violentos etc. No entanto, essa mesma parte da sociedade que dá caução, é uma atitude sempre muito ambígua, porque, muitas vezes, nos bairros, sobretudo nos bairros onde habitam trabalhadores de baixa renda, mas também nos bairros de classe média, quando acontece isso com o meu vizinho, aquele vizinho cujo filho eu conheço desde que nasceu e que foi morto pela polícia, eu começo a dizer: “olha, também a polícia não pode sair por aí matando”. Quando o cenário fica muito próximo, você começa a perceber que há injustiças, ou seja, a polícia não mata só bandido, que a polícia mata pessoas. E isso, de alguma maneira, começa a mostrar a ambiguidade desses comportamentos (violentos). E, claro, temos que reconhecer que há uma parcela significativa da sociedade brasileira que é radicalmente contra o uso da violência pela polícia, a violência não autorizada, a violência indiscriminada e assim por diante. E essa parte, muitas vezes, são pessoas de maior escolaridade, uma formação que passa de geração para geração etc. e que quando ela vê, por exemplo, as rebeliões nas prisões, diz assim: “Isso acontece porque nada está sendo feito, porque a Justiça não é justa...”. Então, a gente também não pode generalizar, senão vai achar que essa sociedade está irremediavelmente condenada ao fracasso. E eu não acho. Eu acho que nós vivemos, em uma sociedade dinâmicas e as dinâmicas conservadoras se confrontam com as dinâmicas progressistas, ora a gente tem avanço em uma direção, ora tem avanço nas outras. Isso faz parte da democracia.
Nina Fideles – O senhor, como outros pesquisadores estão dizendo, também acha que vivemos em um momento com características fascistas?
Eu acho que tem. Eu, por interesse de pesquisa, acompanho muito a literatura sobre a ascensão do fascismo. O que aconteceu no nazismo é que a adesão de massas foi em uma escala absurda. Foi criando uma sociedade sem mediações tradicionais, era a relação da massa com o líder, é como se fosse uma relação em que você não tem autocrítica porque a relação é tão umbilical que é como se o líder fosse o próprio integrante da massa. Eu fiz um estudo sobre o livro da Hannah Arendt, o Eichmann em Jerusalém, e a coisa mais importante que eu percebi ali, era a coisa da mentira, de você transformar mentira em verdade. É você tirar a capacidade do cidadão de ter uma reflexão crítica sobre o mundo, sobre a experiência de vida, sobre a possibilidade de você achar que o governante está mentindo, que o que você lê não é necessariamente verdade. Que tem traços de comportamentos fascistas tem. Quando você começa a encontrar no outro as razões pelas quais o mundo, a minha sociedade, a minha rua, a minha família, a minha proximidade não vai bem, é porque alguma coisa não está funcionando. Quer dizer, uma sociedade democrática é aquela que reconhece no outro a dignidade. Se eu reconheço que as mulheres têm os mesmos direitos que eu tenho que ter ou que os meus direitos têm que ser os direitos das mulheres também, isso significa que eu estou em uma sociedade que reconhece diferenças e que eu estou aprendendo, muitas vezes isso é vivido com muito sofrimento, mas aprendendo a reconhecer que viver numa sociedade dividida, múltipla é uma operação complexa. Agora, tem traços de comportamento. Quando você começa a ver, por exemplo, alguns debates que aparecem nas redes sociais, tem traços muito claros de comportamento (fascista). Quer dizer, quando você acha que a sua visão é a única verdadeira e os seus valores...
Aray Nabuco – O Trump, não?
Exatamente.
Aray Nabuco – Mas um traço do fascismo é o falseamento mesmo, não é?
Quando você continua achando que a única forma de associação afetiva é o casamento heterossexual, quando você começa a acreditar que o mérito é o único elemento estruturante do mercado, da ascensão social, da mobilidade social, isso passa a ser traço de comportamento fascista, porque você começa a, de alguma maneira, achar que uma sociedade só funciona se ela for inteiramente homogênea. E se ela é inteiramente homogênea porque os valores absolutos se impõem a todos de uma maneira sem questionamento, sem resistência...
Aray Nabuco – Sobre isso, professor, a gente estava falando dessa ascensão no mundo todo do discurso da violência, do ódio e foi daíque eu trouxe o neoliberalismo, porque o neoliberalismo tem uma cultura, não são só elementos econômicos, são elementos simbólicos, de valores culturais e também impõe uma homogeneização de comportamentos no mundo todo. Dentro desses elementos, está, resumidamente, o tal “fim da história”, o “fim da esquerda”, toda aquela narrativa que surge com o desmonte da União Soviética. Hoje, um coxinha brasileiro repete as mesmas coisas que um coxinha lá dos Estados Unidos, da Europa, enfim…
Acho que teria de estudar melhor, que é como eu sempre falo, são temas tão complexos e, voltando ao Wieviorka, a análise sociológica dele, ele trabalha em quatro níveis. O que ele chamaria de um nível global, um nível internacional, o fenômeno que ocorre no âmbito das relações internacionais etc. O outro, o âmbito das relações nacionais, que ocorre no interior dos estados-nação, com as suas singularidades, com as suas especificidades. O terceiro nível é o que se dá no nível das relações sociais, por exemplo, relações entre classes. Então, por exemplo, houve um desmonte do mundo do trabalho tal qual nós conhecemos na nossa tradição do século 18, 19 e boa parte do século 20.
Aray Nabuco – E vai piorar agora.
Aquela sociedade construída como uma sociedade contratual, ela se esgotou. Não é que acabou o trabalho, mas acabou a forma contratual do trabalho. Uma vez num debate com uma colega, ela explicou uma coisa muito interessante: não é que acabou o trabalho, o trabalho continua sendo fonte de produção da riqueza, o que acabou foi a forma contratual.
Qual é a forma contratual? É aquela que transformava o trabalho em emprego, relação formal entre trabalhadores e empregadores, entre o capital e o trabalho. Isso teve um impacto muito grande tanto do ponto de vista da sociedade no seu conjunto, mas sobretudo do ponto de vista das relações micro e cotidianas. Você imagine o que era a moral dos trabalhadores. Eu ia, há trinta, vinte anos atrás, conversar com trabalhadores, moradores dos chamados bairros operários em São Paulo. O que é que era a vida operária? Era a vida da fábrica, mas era a fábrica e a vizinhança. Então, quando você falava de uma cultura operária, você falava uma cultura do bairro, falava da Mooca, do Brás. As pessoas circulavam entre a fábrica e o comércio, as habitações, as festas, os casamentos, praticamente as coisas aconteciam nesse universo, todos se conheciam, os filhos cresciam juntos. Era um universo em certo sentido conservador, tinha valores conservadores, mas também tinha muitas esperanças, esperanças de vida melhor. Então, o que é a destruição do mundo do trabalho? É a destruição dessa ordem social, é o descosimento disso tudo. Então, por exemplo, hoje, quando você vai à periferia, essa referência do mundo do trabalho tal como vinha dos antigos trabalhadores desapareceu. É uma coisa interessante, você chegava para uma família operária e sempre, era muito forte o discurso de “eu sou pobre, mas eu não roubo”, “eu sou pobre, mas eu sou trabalhador”. Então, a dignidade do trabalho tinha uma força fantástica e ai se algum filho se envolvesse com o mundo do crime, aquilo era de uma vergonha, uma vergonha pessoal. Hoje, tem toda uma mudança das relações familiares, quer dizer, a possibilidade de você fazer várias recomposições familiares. Muitas vezes os pais casam muito cedo, os filhos casam muito cedo, vão tendo filhos muito cedo, e então também tem uma proximidade geracional que provavelmente não tinha no passado. Mas essa ausência de um mundo contratual faz com que os jovens, mesmo que tenham mais acesso à escola etc., eles não têm a garantia do trabalho. Seu trabalho é um trabalho de migalhas. Hoje você tem trabalho, amanhã você não tem. Então, você imagina, do ponto de vista da reorganização, vamos dizer, afetiva, psíquica da sua vida, o que é que isso significa. E, fora disso, você começa a relativizar os valores. Por exemplo, pessoas que, vamos dizer, têm trabalho fixo durante a semana, mas no final de semana vão para a rua vender mercadoria contrabandeada, até drogas… Mas aí, se você pergunta: “Mas isso não é ilegal?”, respondem: “É, mas se todo mundo faz...”
Aray Nabuco – É uma relativização.
É uma relativização. Então, isso que eu estou querendo dizer, você tem o nível das relações e o nível pessoal, porque tem uma dimensão psíquica que você não tem controle. Você tem, vamos dizer, a desconstrução de um mundo que parecia ser sólido, que parecia ser um mundo capaz de previsibilidade. Ainda que tivesse problema de pobreza etc. Mas a sensação que eu tenho é que os meus avós foram muito pobres, os avós, sobretudo, os paternos; os meus pais foram menos pobres, tinham alguma profissão, eu... E meus pais, meus tios etc., todos eles fizeram tudo para que os filhos estudassem, então a maioria dos meus primos todos têm nível superior. Tinha essa dinâmica para a geração futura. Isso se desmontou.
Nina Fideles – Hoje, para a geração futura, o que é que a gente pode imaginar?
Isso pode não ser causa, mas é sintoma de alguma coisa, alguma coisa aconteceu. Acho que este descosimento do mundo do trabalho tem um impacto muito grande. A outra coisa é que isso também foi fragmentando a vida social. Por exemplo, hoje, essa proliferação de diferentes seitas religiosas. Não quer dizer que elas não existissem, mas a intensidade das disputas entre elas, da competição pelo mercado religioso, era uma coisa muito discreta. Hoje a coisa está acirrada. Muda padrão de comportamento, por exemplo, eu moro em um prédio e um dia um vizinho que eu nem conheço me liga me chamando para ler a Bíblia. Eu fiquei chocado, é um bairro classe média, não vou dizer alta, Perdizes. Então, você começa a se perguntar: nós estamos vivendo em um mundo onde também se perdeu o respeito à liberdade do outro. Você tem que se salvar, tem que salvar o outro. Então, você tem um mundo no qual você tem missões e essas missões têm que ser concretizadas. É cruzada. E cruzada é fonte de fascismo. Quando você acha que os seus valores estão certos e os outros estão errados, você acha que você tem que partir das ideias para a ação e, portanto, você tem que expandir o seu universo de adeptos. Nós estamos em uma sociedade com traços fascistas bastante acentuados.
Nina Fideles – E isso tudo de desconstrução, desconexão, tudo esvaindo, podemos dizer que é um novo mundo?
É um novo mundo. É difícil, difícil... Também gosto muito de ler o fim do século 18, começo do século 19. Quando começo a ler os depoimentos, a cabeça das pessoas, se você imaginar, você também tinha um embate muito grande entre fé e razão. Você tinha uma desconfiança muito maior da ciência do que você tem hoje. Hoje, a ciência se mostrou eficaz nos seus avanços, mas também nos seus gadgets, nos seus objetos. Mas, naquela época, você imagine quando alguém descobre que pode voar, alguém descobre que você pode falar, vamos dizer, de um lugar para o outro mediante uma corrente elétrica telefônica ou coisa parecida. Num mundo em que não tem nada, isso é coisa do diabo. Então, eu acho que nós estamos vivendo à beira de um mundo novo. Outro traço desse mundo novo, ele se expressa por uma coisa que não é nova, mas a forma como ela está se dando talvez seja nova: individualismo. Individualismo é um traço que vem com as sociedades liberais, com a ideia de liberdade individual, quer dizer, nada pode cercear a liberdade individual, a sua autonomia, a sua liberdade, suas ideias, os seus desejos. A única coisa que limita é quando a expansão do seu eu interfere no outro. Então, é preciso ter um arranjo social que de alguma maneira estabelece limites a essa expansão. Ora, nós estamos vivendo uma era de um individualismo jamais, talvez jamais pensado, a ponto de você poder manipular o corpo. Hoje você pode se reconfigurar por meio das cirurgias, dos medicamentos, da ginástica etc. É uma relação com a natureza que é completamente diferente. A outra coisa é que você pode planejar a concepção…
Nina Fideles – Até para daqui dez anos.
Daqui dez anos eu vou lá e pego o esperma, o óvulo... É como se a ciênciativesse tomando o lugar de Deus.
Aray Nabuco – Desconectando totalmente, inclusive na medição de tempo. O Sol já não é usado mais nem para medir o tempo. Estamos totalmente desconectados.
Exatamente, exatamente. Então, você tem uma... Eu trabalho muito com o pensamento do Michel Foucault e uma das coisas que o Foucault mostra lá, principalmente naquele livro As Palavras e as Coisas, é que vida é uma invenção. Não quer dizer que a vida não existisse, mas vida enquanto conceito. Você dizer que todos temos vida, que a vida tem que ser preservada, que a vida... A vida é um conceito, e como tal, na verdade, você construiu todas as ciências voltadas para a preservação da vida, seja a vida corpórea, seja a vida do espírito, seja a vida pensada em termos sociais. As ciências de alguma maneira foram construídas, todas, um pouco em cima disso. Eu acho que nós estamos no limiar de reinventar o conceito de vida. Quando você, por exemplo, começa a atribuir o mesmo significado de vida, vida humana, vida dos não humanos, começa a dizer assim: “Bom, qual é de fato o limite?”. Veja a proliferação de vídeos nas redes sociais de gatos tocando piano, de não sei o que lá... E você começa a dizer: “Gente, não é possível que eles não estejam entendendo o que está acontecendo”. Então, você começa a colocar em dúvida certos preceitos que para você eram fundamentais. O que é que é? A linha divisória entre natureza e cultura começa a se esfacelar.
Aray Nabuco – O senhor diz que as democracias hoje não dão conta mais, essa democracia que é o modelo que a gente tinha e suas instituições. Mas isso também não é porque os poderes econômicos fizeram as democracias e os governos reféns? Os lobbies, as pressões... 
É, acho que sim. Vamos pensar em dois ou três cenários. O que aconteceu? Mudaram as bases demográficas das sociedades. Se você olhar o que eram as sociedades no começo do século 20 e hoje, você vai ver que não só as bases demográficas cresceram, mas há uma diversidade muito maior. Antigamente você poderia dizer, tem duas grandes classes, burgueses e operários. O que é isso hoje? As frações de classe, os sentidos de classe são completamente contrários. Inclusive, uma questão que para nós era muito fundamental que era a ideia de que cada classe tem a sua ideologia e, portanto, você reconhece alguém da classe pela ideologia. Burguês pensa como burguês, operário pensa como operário.
Aray Nabuco – Sim, um dado cultural. Mas tem operário mais conservador do que o burguês hoje em dia…
Tem essas coisas. E, quando você imagina que você tem burgueses que tiveram a oportunidade de uma educação etc. podiam ter um papel de liderança civilizatória muito maior do que têm. Você fica dizendo, “Bom, alguma coisa deu tudo errado”. Então, eu acho que a gente tem de olhar isso. Houve uma mudança, tem uma mudança no mundo do trabalho, acho que a gente não pode ignorar realmente as tecnologias, que são produtos de relações econômicas, de mercado etc. e têm um impacto enorme na vida das pessoas. Agora, o que acontece é o seguinte: boa parte da democracia era uma democracia em que você legitimava os governos democráticos pelas eleições. Se os governos democráticos frustrassem as expectativas, você tinha daqui a quatro anos ou daqui a dois anos a possibilidade de renovar os governantes e você tinha líderes capazes de substituir, ora mais à direita, ora mais à esquerda, e assim por diante. Então, o mecanismo eleitoral era um mecanismo de fortalecimento da vida e da experiência democrática. O que aconteceu? Bom, aconteceu que os poderes foram ficando cada vez mais concentrados. O poder, por exemplo... O que é o poder central no Brasil hoje? Ele não só tem o poder, vamos dizer, governamental, mas o papel que eles têm nessas construtoras, no mercado, é poderosíssimo. Assim como as empresas têm o poder de Estado quase. O que eu estou querendo dizer? Eu estou querendo dizer o seguinte: o processo de legitimação eleitoral passou a não ser suficiente para conferir legitimidade aos governos. Então, o que acontece? Isso foi gerando várias coisas num processo de burocratização excessiva do poder governamental. Aqui no Brasil, infelizmente, nós estudamos muito pouco, mas estudar as grandes burocracias estatais e civis é fundamental para entender como esses pequenos poderes geram todas essas redes de relações que vão se conectar em centros de poder determinados e hoje cada vez mais conhecidos. Eu acho que isso tem a ver. A segunda coisa que eu acho que tem a ver é que – isso já se via nos Estados Unidos desde os anos 20 do século passado –, na verdade, que as eleições se transformaram em máquinas plebiscitárias. Lá nos Estados Unidos o boss é o responsável por ganhar as eleições. Então, você tem uma máquina poderosa para arrecadar dinheiro para financiar as campanhas e as campanhas cada vez mais caras. Você tem um mecanismo de autorreprodução que é enorme. Ora, quando você tem esse mecanismo, você tem mecanismos poderosos de influenciar a decisão do eleitor.
Aray Nabuco – E governamental depois.
E depois a decisão governamental. São coisas casadas. Então, eu acho que a democracia foi-se; essa democracia tradicional, que hoje está em crise, ela foi de alguma maneira sendo capturada. A democracia deveria ser um instrumento de poder, de fortalecer os grupos sociais contra os centros hegemônicos de poder.
Eu, como cidadão, se for entrar num pleito com uma empresa como a Odebrecht, vou perder. A democracia teria quer ter mecanismos de criar condições para que eu não estivesse tão desprotegido num pleito dessa natureza e o outro não tivesse tão fortalecido. Você tem de ter balanços, você tem de ter um jogo de equilíbrio de poderes. Isso se rompeu na democracia. As democracias, formalmente são democráticas. Em que sentido? Aparentemente, você tem liberdade, você tem um monte de direitos. Mas a capacidade desses direitos se converterem em forças de proteção social para um maior número é muito limitada. Isso não significa um discurso antidemocrático. Acho que tem de deixar isso muito claro. Eu acho que tem de haver um processo aí de invenção democrática.
Aray Nabuco – Dizem que o velho mundo morreu e o novo ainda não nasceu.
É. Acho que está, acho que vai nascer. Eu não sei como… Mas você tem os conselhos de bairro, você tem algumas iniciativas, movimentos sociais etc., que de alguma maneira estão acenando para a reinvenção da política. Mas acho que é tudo muito incipiente ainda. O Foucault fala uma coisa muito importante e aí que eu queria arrematar com isso, é que nós precisamos entender que liberalismo não é só uma política econômica, o liberalismo é uma política de gestão de populações, é uma biopolítica, é uma forma de você controlar comportamentos, controlar decisões, controlar o eleitor, e com diferentes mecanismos. É complexo porque em alguns momentos você não tem muitas saídas. A saída é saber como é que você se apropria desses mecanismos e inverte o sinal, ou seja, transforma esses mecanismos em mecanismos favoráveis? É muito difícil. Hoje nós estamos em uma democracia que reivindica o direito à diferença, para as mulheres, para os gays, para os negros, para as pessoas portadoras de incapacidades físicas, por exemplo. Isso, no limite, lembra muito o direito aristocrático ao privilégio. Quem reivindicava a diferença na Revolução Francesa era a aristocracia, “Eu não quero ser burguês, eu não quero ser massa, nós temos uma história…”. Então, você veja o que nós passamos, a democracia transferiu uma reivindicação aristocrática e a retraduziu em reivindicação popular.
É como se você dissesse assim: o que é uma sociedade democrática? É um mix de corporações, cada uma defendendo o seu território, o seu interesse, a sua identidade. Isto não se sustenta. Como é que você constrói o espaço público? Aí a gente diz, bom, tem as redes sociais, que é o espaço público contemporâneo. Mas o espaço público que os gregos pensavam, era o espaço onde você ouvia, emitia e em algum momento você construía um consenso. Agora...
Nina Fideles – A rede só polariza.Só polariza.
Nina Fideles – Professor, eu tenho uma última, mudando de assunto. A violência é inerente ao ser humano?
Olha, eu não sou filósofo. Filósofos, em geral, costumam trabalhar essa questão da natureza humana. Como eu sou sociólogo, eu gosto de entender que a violência é uma construção social, ou seja, é uma modalidade de ação construída em sociedades em determinados momentos com significados de alcances distintos. Eu não acho que ela é inerente.
Acho que, vamos dizer, os homens enquanto natureza, têm comportamentos agressivos etc., mas traduzir a agressão em violência é outra coisa. Quer dizer, o que é que é a violência? A violência é quando você, deliberadamente, usa de um poder ou de uma força com interesse de reduzir a vontade do outro, o direito do outro, de hierarquizá-lo, de sujeitá-lo, de dominá-lo e neutralizá-lo pelo uso da força. A agressão é um comportamento que pode ser contido ou não. Está no mundo da natureza. Eu tendo a pensar mais que as sociedades podem lidar com a violência. A violência é uma linguagem, não podemos ignorar isso. Mas as sociedades podem cada vez mais inventar formas de lidar com a violência sem que a violência comprometa a vida e a liberdade do maior número. Então eu penso que são fenômenos socialmente construídos e eu penso que é possível você chegar a sociedades onde a violência não está erradicada, mas que ela pode estar contida dentro de marcos onde a vida esteja compreendida. Hoje no Brasil, você tem quase 60 mil mortes por ano. É uma guerra.

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