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Rafael Braga e as Prisões Racistas Ed. AGO.17

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Caros Amigos – Ed. AGO/17
Controle social
Prisões Racistas
Sistema judicial pune pobreza e cor de pele em casos como os do carioca Rafael Braga que se tornou um emblema
por Lena Azevedo
“Comecei a bater na grade e gritar bem alto: sou trabalhador. E ia bem lá longe a minha voz: sou trabalhador!”. Às lembranças de Rafael Braga, 28 anos, catador de recicláveis, que foi preso e o único condenado das manifestações de 2013 no Rio de Janeiro, juntam-se outras. Quando saía do casarão da Lavradio, na Lapa, onde havia deixado o material recolhido no dia, foi chamado por policiais, que estavam no estacionamento da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA): “Um PM me chamou: ‘vem cá, moleque. Vem cá, neguinho’. Neguinho não era como as pessoas falam da minha comunidade, mas do jeito deles. Deu racismo, mas ele era polícia. Eu fui e ele ficou dizendo: ‘fala verdade, tu tá quebrando tudo, tá roubando’. Pô, meu senhor, sou trabalhador, cato lixo. Se o senhor for ali (no casarão), o senhor vai ver que só tem peça de lixo, peça usada, bem pouquinho. Pode ir lá comigo. E ele falou: ‘vou lá o quê’. Não foi. Me levaram lá pro cantinho da delegacia (DPCA). Me deram tapa, chute, bico mesmo. Aí me colocaram lá no isolamento. Não entendi nada”.
A abordagem violenta, seguida de um flagrante forçado (os militares pegaram duas garrafas — uma com cloro e outra cheia de desinfetante, que Rafael pretendia levar para uma senhora que morava com outras pessoas em uma ocupação perto do Fórum — e simularam um coquetel molotov, incluindo panos nas bocas das garrafas). Esse foi apenas o início de um processo de criminalização, que atinge invariavelmente negros. No Judiciário, a seletividade penal segue seu curso natural. Afinal, como dizem os adeptos da Criminologia Crítica, o Direito é desigual por excelência. “Expliquei tudo certinho pro juiz, não falei nada de errado. Nunca soube o que era molotov, protesto. Nunca soube de nada disso. Não tava roubando ninguém. Não sei se o juiz não entendeu. Ele me condenou”, relatou Rafael, sentenciado a mais de cinco anos de reclusão sob acusação de porte de material explosivo.
Em 2015, foi liberado com uso de uma tornozeleira eletrônica. Menos de dois meses depois, em janeiro de 2016, foi preso pela segunda vez em um novo flagrante forçado e condenado a mais de onze anos de prisão por “tráfico e associação ao tráfico”. O Judiciário, com base na Súmula 70 do Tribunal de Justiça, optou por acolher apenas os depoimentos dos policiais, que apresentaram uma sacola com drogas e um rojão como se fosse do catador alegando que ele era integrante do tráfico de drogas da região. O magistrado desconsiderou testemunhas e o pedido da defesa para que se requisitasse as imagens da viatura da PM, que comprovaria a inocência de Rafael.
O caso Rafael Braga se tornou emblemático por resumir quem é o alvo da polícia e Justiça desde sempre. Embora no Brasil 61,08% dos 622 mil presos (dados do Infopen de 2014) sejam negros, no Rio de Janeiro esse percentual salta para 72,57%. Mais da metade das pessoas privadas de liberdade, assim como Rafael Braga, são jovens negros.
“O Brasil é um país que discrimina pessoas pelo histórico fundamental: ter sido escravizado. Há uma profunda resistência da sociedade em criar mecanismos que superem a situação de discriminação. Convenhamos que é previsível em um País que levou mais de sete décadas para decidir abolir a escravidão e quando o faz resume todo esse instituto de violência, que durou três séculos e meio, em três parágrafos e dois artigos. O que nós temos hoje como herança de República é invadida por fazendeiros descontentes com aquilo que seria eminente, o último país das Américas a abolir a escravidão.
Essa é a nossa República, uma banca de fazendeiros”, analisa a historiadora, pesquisadora de equidade de gênero e raça e ex-secretária de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, Wania Sant’Anna.
Para ela, negros libertos foram jogados nas ruas sem qualquer direito e perseguidos com leis criadas para isso, para controlar essa população, seja com previsões legais para “vadiagem”, ou bem específicas, no caso de “capoeiras” (também considerados vadios) e a que mirava as religiões afro, com previsão de pena para “curandeirismo”.
A pesquisadora afirma que, por outro lado, o Estado tomou iniciativas para “embranquecer a população”, dando incentivos para entrada de imigrantes europeus no País. Wania cita como exemplo o decreto 528, de 28 de junho de 1890, mesmo ano de criação do Código Penal, que regularizava o serviço de introdução de imigrantes na República. Nos oito capítulos e 43 artigos, é possível perceber que o foco eram europeus. Africanos e asiáticos não eram bem-vindos, conforme explícito no primeiro artigo do decreto: “É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas”.
“Começamos assim. A nossa liberdade começou desse jeito. Três parágrafos para a Lei Áurea e mais de 43 parágrafos no decreto estipulando subsídios para a imigração de europeus. Vai dar certo? Não tem como dar certo. O racismo no Brasil é muito bem organizado, estruturado e é objetivo. O grande problema foi esse momento da transição da escravidão. As elites, o Estado, as instituições apenas perpetuaram aquilo que já faziam antes, a exclusão dessa população específica, o que, convenhamos, não é novidade para um País que consumiu 3 milhões de almas negras escravizadas. A violência com negros e negras só piora com o passar do tempo”, avalia a pesquisadora. Fato é que para a população negra, desde o desembarque em terras brasileiras como pessoas escravizadas e até os dias atuais, foi reservada a exclusão, seja de fato, por práticas genocidas não admitidas, mas praticadas pelo Estado, ou no aprisionamento em cadeias, em instituições psiquiátricas, abrigos e nas ruas. O promotor de Justiça do Rio de Janeiro e integrante do coletivo Transforma MP, que debate também a seletividade penal, Tiago Joffily, fez um levantamento recente em que se constata que quando se diminui o encarceramento por prisões em flagrante, aumentam os autos de resistência. Em ambos os casos, na ampla maioria, o perfil das vítimas é o mesmo: jovem negro. Os dados evidenciam que quando o Estado não prende negros, mata.
“As prisões em flagrante sobem entre 2010 a 2015. A partir do segundo semestre de 2016, com fatores como o final das Olimpíadas e a crise econômica do Rio de Janeiro, há uma queda acentuada de flagrantes. No final de 2016, há uma estabilização no encarceramento. Enquanto as prisões em flagrante caem, por outro lado explodem os homicí-dios decorrentes de intervenção policial, se aproximando rapidamente do recorde de 2007 (com 1.330 pessoas mortas pela polícia no estado do Rio), que foi um ano de extrema letalidade e corrupção policial”, diz Tiago. O Rio de Janeiro fechou o primeiro semestre de 2017 com 581 autos de resistência, um aumento de 45% em relação ao mesmo período do ano passado. Em junho de 2010, havia 25.755 presos no Estado. Seis anos depois, dezembro de 2016, era o dobro, 51.613 detentos, sem que se tivesse qualquer construção ou ampliação de unidades.
“O que se percebe, olhando o orçamento dos últimos anos, é que ocorreu um aumento significativo de recursos na área de Segurança Pública e diminuição de outras, como Educação, por exemplo, e a Administração Penitenciária permaneceu estagnada, com uma superlotação, sem previsão de gastos com alimentação, saúde etc. Significa dizer que o custo do superencarceramento ficou todo nas costas dos presos. São as famílias que têm de levar remédios, alimentos, enfim, prover algo que é obrigação do Estado. Não à toa estamos vendo um número altíssimo de mortes de presos por doenças, sobretudo os alojados nos presídios Plácido Sá Carvalho e no Evaristo de Moraes, onde estãoconcentrados a maior parte de idosos e detentos portadores de deficiências”, critica o promotor.
O artigo de Joffily, “Ainda a política criminal com derramamento de sangue”, em referência ao livro de Nilo Batista, de 1998, sobre a política de segurança pública (Política criminal com derramamento de sangue. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade), lembra ainda que as altas taxas de encarceramento não resultaram em redução da criminalidade. Sobre isso também, Joffily fez um outro artigo, em janeiro deste ano, em que apresenta estudos internacionais que corroboram que a prisão, tanto no exterior como no Brasil, não diminui a incidência de crimes. Em diversos países, as taxas de encarceramento aumentam e a de crimes também. “O aumento de taxas de encarceramento pouco ou nada contribui para a redução de índices de criminalidade. Percebemos que a partir de junho de 2010, o Rio de Janeiro começa a registrar uma curva ascendente de encarceramento. Em treze anos, a população carcerária aumentou 26.420, ou seja 109,8%. Um aumento dez vezes maior do que o crescimento da população em geral, sem que isso significasse melhoria na segurança pública.”
Punição
A teoria da Criminologia Crítica afirma que o Direito esconde, sob a pretensa ideia de igualdade jurídica, uma imensa e violenta desigualdade social. O controle penal, nesses termos, impede a inclusão social, como já afirmava Nilo Batista em 1999. Mais do que isso, pelos dados avaliados, percebe-se que o racismo estrutura o sistema de justiça criminal, perpassado por agências de criminalização como polícia, Ministério Público, chegando ao Judiciário. Levantamento feito em 1907 para o Anuário Estatístico do Brasil 1908-1912, que consta na publicação Estatísticas do Século XX, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstrava que 65% dos presos eram negros/pardos, 70% analfabetos e os condenados somavam 44%, com idades entre 25 a 40 anos. Ou seja, a prisão provisória já era uma realidade para a maioria.
Ao se observar dados do IBGE de 1990, o aprisionamento de maioria negra se mantém, mas com diminuição da faixa etária: 24,3% tinham de 30 a 39 anos e outros 22% entre 18 e 21 anos. Somados a esses dados, a exclusão dessa parcela da população que é maioria no País se faz também por outros processos, como falta de oportunidade de empregos, de remoções forçadas, por exemplo, e mortes. Levantamentos diversos, entre eles o Atlas da Violência 2017, mostram que pelo menos 77% das vítimas de homicídios são negras e jovens. Significa dizer que nos trinta anos entre 1980 e 2010, dos mais de um milhão de assassinados nesse período, segundo dados do Mapa da Violência 2012, 770 mil eram afrodescendentes. Um número que deixa evidenciado o genocídio como projeto de Estado. Wania Sant’Anna lembra o quanto o Judiciário serve para controlar e não preservar direitos. “Eu tenho um certo horror ao termo adolescente em conflito com a lei, porque a lei é que andou em conflito com esse menino o tempo inteiro. Não lhe deram habita-ção, educação, saúde, emprego. Há um erro de concepção no termo, mas que desnuda a intenção de se usar a legislação para manutenção de privilégios dessa elite”, diz.
Súmula 70
A Súmula 70 foi editada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 4 de agosto de 2003, e tem sido largamente utilizada como justificativa para condenar pessoas no Rio de Janeiro. O entendimento do Judiciário carioca de que “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação” é mais um ingrediente na já conhecida seletividade penal. Uma pesquisa rápida no site do TJ mostra o quanto sua utilização tem sido banalizada. Em um ano de levantamento o sistema de busca exibe nos resultados pelo menos trezentos acórdãos relacionados à súmula.
Via de regra, depoimentos de policiais viraram prova e uma total inversão da presunção de inocência. Se antes, cabia ao Estado provar de forma inequívoca que o denunciado havia cometido determinado crime, hoje é o réu que tem de demonstrar que agentes públicos estão mentindo.EoJudiciário não tem dado espaço para que os acusados se defendam. O caso Rafael Braga é exemplar nesse sentido, mas muito mais comum do que se imagina. Rafael foi condenado duas vezes apenas com depoimentos feitos por policiais que o prenderam. “O juiz, na segunda prisão, nem aceitou o depoimento de pessoas que relatavam a arbitrariedade e a tortura a que foi submetido. Um magistrado não pode declarar, como o fez, suspeição de testemunha por ser conhecida de bairro. Até para isso, teria que ter feito uma audiência com manifestação do Ministério Público. O policial que prende é o Estado acusador, portanto é muito grave tudo isso”, afirma Felipe da Silva Freitas, doutorando e mestre em direito pela Universidade de Brasília. “Do ponto de vista normativo, especialmente a Lei de Drogas (de 2006) tem sido usada para condenação de pessoas negras e absolvição de brancos. Juízes têm aí um instrumento de veiculação de sentenças com teor racista.”
Segundo Felipe Freitas, nem quando as pessoas demonstraram indignação, como no caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo, sequestrado, torturado por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, em 2013, e cujo corpo nunca foi localizado, ou das perversidades cometidas pela Marinha com quilombolas no Rio dos Macacos, na região metropolitana de Salvador, ou mesmo o de Rafael Braga, há uma mudança. “A comoção pública em torno desses e de outros casos em que se têm uma mobilização intensa não são suficientes para deslocar as estrutura de poder, inclusive do Judiciário, eoracismo já entendeu isso.
“Racistas Covardes”
PRIMEIRO VEIO um choro. Muita gente estranha em uma sala em que só a mãe, dona Adriana, e os dois advogados pareciam boias de segurança. Deputados, assessores e máquinas a filmar e fotografar sua entrada no lugar reservado para uma conversa no presídio Alfredo Trajano, Bangu 2, no Rio, na tarde de 6 de julho. Rafael Braga, com seus 29 anos, um corpo miúdo que parecia se encolher mais ainda de constrangimento, chorou encolhido, escondendo o rosto com as mãos. Palavras de consolo, compreensão foram pouco a pouco acalmando o rapaz que virou símbolo de prisões arbitrárias, da seletividade penal que arrasta para as cadeias brasileiras milhares, mais de 600 mil jovens negros como ele. Aos poucos se solta, responde a questões rotineiras sobre a vida na prisão. Não tem colchão. Dormia no chão com o cobertor emprestado por um colega. Foi pra comarca (como chamam a cama de alvenaria), mas continua sem colchão. Conta que o presídio é superlotado, por isso, muitos forram o piso de cimento com papelão, uma “caixinha de Guaravita”. Lembrança dos dias que dormia na rua, no casarão abandonado, quando passava a semana recolhendo recicláveis.
Tem  uma tosse que não passa há mais de um ano. “O médico diz que meu pulmão tá limpinho.” Não tem três dentes na parte superior. Sofreu no dentista e prefere ficar assim a encarar de novo a dor. Tem acesso a coisas básicas, como pasta de dente, sabonete, chinelo e a “sucata” (comida), essas coisas que a mãe leva em dias de visita com dinheiro arrecadado pela Campanha Libertem Rafael Braga.
Nasceu perto da Vila Cruzeiro, onde a mãe, Adriana Braga ainda vive. Um ano de nascido, a família mudou para Aracaju, em busca de uma vida melhor. A miséria não abandonou os Braga. Rafael, aos 8 anos, engraxava sapatos nas ruas da capital sergipana, vendeu limão na feira. A fome era tanta, lembra Adriana, que ela chorava ao sentir o cheiro do café coado no vizinho.
De volta para o Rio com a avó, catadora de recicláveis, Rafael ajudava no garimpo no lixo e pedia dinheiro nas portas de mercado. “E assim ele se criou, trabalhando desde pequeno”, lembra a mãe. O menino que não quis estudar quando estava em Aracaju, para poder ajudar a família, conseguiu terminar a terceira série, sabe ler e escrever. Um alívio para Adriana, cujo anafalbetismo e a vergonha lhe fizeram errar muito trem para Bangu, logo que Rafaelfoi mandado para lá. “Tinha vergonha de perguntar. Uma vez entrei num trem e ele foi tão longe (em Gramacho) que tive que voltar e perdi o horário da visita”, recorda.
Enquanto fala, Rafael alisa um guardanapo em cima da mesa, como se quisesse pegar algo. Os dedos fazem um movimento lento, em forma de pinça. Quase não levanta o olhar. Tem uma timidez que lembra dona Adriana. Os dois são de poucas palavras. Mas naquele dia falou e muito. Até coisas que a matriarca não sabia. A vida marcada pelo racismo vai sendo remontada na voz do mais velho da família Braga. Para conseguir ajudar em casa, Rafael ficava a semana na rua, ou em casarões no centro do Rio. “Já morei na hospedaria. Era R$ 7 a diária, pra trabalhador mesmo. Mas aconteceu algum negócio lá, que tiraram todo mundo. Eu garimpava e guardava as coisas num casarão na Lavradio, em frente a DPCA (Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente). No sábado, tinha a feira de coisas usadas na Praça XV e eu ia lá vender. Vi um estabelecimento que tava aberto e comecei a morar lá. Já tinha um tempinho que eu dormia nesse lugar”, lembra Rafael.
Racismo
O trabalhar desde cedo, ter pouco tempo de estudo e uma vida de sacrifícios. O racismo já estava ali antes de nascer. Na mãe que não sabe ler, que passou muita fome com os filhos. Em 2013, no auge das manifestações de junho no Rio de Janeiro, Rafael Braga sentiu mais ainda o peso do racismo, ao ser preso, acusado de portar materiais explosivos (cloro e desinfetante).
Segunda prisão
Rafael saiu para comprar pão, com R$ 3. Foi abordado por policiais da UPP da Penha, provavelmente por estar de tornozeleira eletrônica. Levado para um beco, foi pressionado a falar sobre o tráfico na comunidade: “dá um papo reto. Tu é bandido, uma mulher já te denunciou. E eu comecei a explicar: ‘meu senhor, eu não sou bandido, sou trabalhador, tô pagando aqui com essa tornozeleira por uma prisão injusta. Se o senhor quiser confirmar é só olhar aí no seu celular e procurar no YouTube “Rafael Braga virou o único condenado no Brasil pelas manifestações”’. ‘Que nada, rapaz, fala pra nós onde estão os caras com as drogas e as armas’. Eu não sei de nada, meu senhor, eu só moro aqui. Aí, eles mostraram uma sacola, que tinha pó em um vidrinho, fogos e um pouco de maconha. Se não falar nada... (ameaçaram, mostrando a sacola). Eles devem ter pensado que eu era bandido por causa da tornozeleira e falaram: ‘vamos apertar que ele fala’. Não sabia de nada”, relata.
Apanhou da polícia. Foi levado para a UPP e de lá para a delegacia. Ainda dentro da viatura, os PMs apareceram com cocaína já dentro de plásticos. “No carro, eles me amostraram um outro tipo de pó, diferente do que tinham me mostrado lá em cima”, lembra. Os PMs apresentaram uma sacola como se fosse dele. Dentro, um kit flagrante com 6 gramas de maconha, um morteiro, cocaína... “Me bateram... uns caras covardes. Uma tia viu eles me pressionando no beco, mas eles olharam pra ela e ela com medo fechou a janela”. Antes de ser levado para audiência de custódia, ficou mais de 24 horas sem comer.
Rafael contou sua história. No braço uma tatuagem em homenagem à mãe e a avó. Impossível não lembrar da antropóloga norte-americana Christen Smith e sua afirmação de que mesmo quando prendem ou matam um jovem negro são as mulheres que o Estado genocida quer atingir.
Os dedos finos de Rafael ainda alisavam o vento enquanto falava e escutava o som ao redor. De sua boca saíam palavras, mas duas ficaram marcadas, entoadas por alguém que entendeu a regra do jogo: “racistas... covardes”. Adjetivo, substantivo complementados por uma rara fala da mãe: “injusto”. Ecos da escravidão que insistem em perpassar séculos. Mas a resistência muda o rumo das coisas. Quem sobreviveu à fome, aos cárceres, à tortura, ausência de direitos e tem a liberdade no pensamento, movimenta o vento com os dedos, sabe que a natureza ensina, como ensinou capoeiristas em seu gingado de defesa e ataque. O imponderável não cabe nas leis.
Libertem Rafael
Desde a prisão de Rafael, negros, moradores de favelas e grupos autônomos se reuniram para denunciar as condenações injustas e ajudar a família, moradora da Vila Cruzeiro. Desde 2013, o movimento #LibertemRafaelBraga realiza semanalmente atividades no Centro do Rio, com venda de camisas e outros produtos que se revertem em dinheiro para a mãe conseguir comprar material de higiene, alimentos, coisas que Rafael precisa dentro do presídio e também para a própria família. Rafael é o filho mais velho de Adriana Braga e era responsável por boa parte do dinheiro que sustentava ela e os quatro filhos. “Nosso entendimento sobre o racismo genocida passa por aí. Os integrantes da campanha, como são também do movimento social, participam na luta pela moradia e outras atividades. É uma forma de resistência, de politizar a questão. Agora, vamos fazer uma mobilização para tentarmos comprar uma casa para a mãe do Rafael”, diz Leonardo Souza, um dos que participam da campanha Libertem Rafael Braga, que teve mais um pedido de habeas corpus negado no início deste agosto.
Lena Azevedo é jornalista.

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