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A Palavra Arquitetonica Renato Leão Rego

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A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
1
R e n a t o L e ã o
R e g o
( O R G A N I Z A Ç Ã O E T R A D U Ç Ã O )
E d i t o r a A r t e & C i e n c i a
1 9 9 9
A palavra
arquitetônica
A palavra
arquitetônica
1999, by Editora Arte & Ciência
A palavra arquitetônica/ Renato Leªo Rego.
(organizaçªo e traduçªo) -- Sªo Paulo:
 Arte & CiŒncia, 1999.
 96p.; 21 cm
 VÆrios autores
ISBN 85-86127-88-4
1. Arquitetura – Ensaios Críticos. 2. Arquitetura contemporânea.
3. Arquitetura Moderna 4.Crítica de Arquitetura I. Rego, Renato Leªo.
 CDD - 720.1
 - 724.9
Coordenação Editorial
Henrique Villibor Flory
Editor e Projeto Gráfico
Aroldo José Abreu Pinto
Diretora Administrativa
Luciana Wolff Zimermann Abreu
 Editoração Eletrônica
Marcela Cristina de Souza
Capa
Jefferson Cortinove
Revisão
Letizia Zini Antunes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca de F.C.L. - Assis - UNESP)
Editora Arte & Ciência
Rua dos Franceses, 91 – Bela Vista
São Paulo – SP - CEP 01329-010
Tel/fax: (011) 253-0746
Na internet: http://www.arteciencia.com.br
Índice para catálogo sistemático:
1. Arquitetura: Ensaios críticos 720.1
2. Arquitetura moderna: SØculo XX: Crítica 724.9
P154
A Ninha
Sumário
Crítica de arquitetura e arquitetura, Renato Leão Rego...........................07
As belas-artes, Alvar Aalto........................................................................17
A responsabilidade do arquiteto, Alvar Aalto ........................................ 19
O espírito novo em arquitetura, Le Corbusier.........................................23
Forma e desenho, Louis Kahn..................................................................47
Sobre um pobre homem rico, Adolf Loos...................................................61
O princípio do revestimento, Adolf Loos.................................................67
Regras para quem constrói nas montanhas, Adolf Loos...........................73
Sobre o significado e a tarefa da crítica, Mies van der Rohe...................75
A arte de construir e o espírito da época, Mies van der Rohe ............... 77
Os novos tempos, Mies van der Rohe.......................................................83
Estamos no ponto crítico dos tempos: a arte de construir como a expressão
de decisões espirituais, Mies van der Rohe..............................................85
Arquitetura e natureza, Frank Lloyd Wrigh ........................................... 87
A destruição da caixa, Frank Lloyd Wright ............................................. 91
8
CRÍTICA DE ARQUITETURA E ARQUITETURA
O tempo em que escrevo estas linhas está marcado pela
pluralidade estética, na ambivalência e tolerância de padrões e va-
lores distintos. A arquitetura, depois da falência ineludível de cânones
até então poderosos, passou a espelhar uma certa incerteza nos
rumos que tomaria aquela contestação já formalizada em alguns
dos seus projetos da segunda metade do nosso século.
No panorama que a produção arquitetônica nos apresenta hoje
vemos, entre a herança do movimento moderno, marca sem dúvi-
da alguma da arquitetura do século XX, negação, inovação e muita
revisão. Pauta-se, a arquitetura contemporânea, pela ausência de
um paradigma comum. Arquiteturas, no plural, apresentam for-
mas e métodos diferentes. Tamanha liberdade não é paralisante? A
menos que a sintonia voluntária com um destes ‘modelos’ ou a
aceitação do ecletismo estabeleçam e fomentem a criação da nova
arquitetura.
Pensar a arquitetura já é julgá-la.
Os textos aqui apresentados com um fim meramente didáti-
co, há muito conhecidos de publicações estrangeiras, trazem, sob
forma variada de manifesto, discurso e crítica, o olhar crítico que
estabeleceu então as bases do projeto.
Resgatar tais posturas é amadurecer a crítica a elas dirigida,
refutar impropriedades, traçar conexões, estabelecer origens e só
assim alumiar o percurso que chega até nossos dias. O que fare-
mos dependerá do nosso juízo com relação às experiências passa-
das. Ou não?
A arquitetura conforma, ou deveria conformar, como nos
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
9
disseram grandes arquitetos, o espírito do seu tempo. A crítica,
por conseguinte, deve ser capaz de sublinhar a conformação
arquitetônica do espírito de cada tempo – não só como memória
mas como projeto. Assim, ela é ora História ora Manifesto: realida-
de e desejo.
Como reconhecemos estar ante critérios do nosso tempo?
Este fim de século inseriu no lugar da expressão ‘espírito do
tempo’, tão cara aos ‘modernos’, o contexto. Debruçada sobre a
cultura e a comunicação, a arquitetura tem buscado outras estraté-
gias, outras dramaturgias, por sobre a funcionalidade vazia, a par-
tir do ‘espírito’ do lugar.
O que é a arquitetura? O que é a arquitetura contemporânea?
O arquiteto ao menos lida com estas questões ao acercar-se do
projeto e, em seguida, força nós, espectadores, visitantes, habi-
tantes, a fazermos as mesmas interrogações com um pronome
relativo: o que é essa arquitetura?, o que é essa arquitetura con-
temporânea?
A posição relativa pode nos trazer a compreensão do está-
gio atual do processo criativo em arquitetura e fornecer parâmetros
à compreensão do que se busca, do objetivo pretendido.
A arquitetura a caminho
Convenho que para se aprender arquitetura se faz necessário
conhecê-la e experimentá-la no corpo e no espírito, se tal divisão
houver. E é necessário apreendê-la, mediata ou imediatamente, em
toda sua amplitude e nos seus diversos paradigmas. A arquitetura
experimentada estará pois aberta à análise, como qualquer outro
aspecto da experiência, e esta análise não deixará de passar funda-
mentalmente pela descomposição da arquitetura em elementos que
a configuram, uma operação presente em qualquer ato de criação e
essencial à compreensão da obra. Associamos, desse modo, ao pro-
cesso cognoscitivo dos meios específicos do labor arquitetônico a
questão do juízo, do julgamento, que, em parceria com a narrativa
historiográfica da arquitetura ao longo da vida do homem, atribui
valores à obra arquitetônica ao considerar, naquela referida análise,
1 0
R e n a t o L e ª o R e g o
a pauta, as instâncias, as razões e a significância que concernem à
obra analisada.
A crítica de arquitetura na cultura moderna tem tido um papel
equivalente ao da crítica de arte, que se tornou intrinsecamente
necessária à produção e afirmação da arte por conta da
‘comunicabilidade não-imediata da obra’: elas desempenham a fun-
ção mediadora entre o discurso do artista e a fruição do seu traba-
lho.1 Sendo da sua competência reinseri-la no sistema geral da
cultura, a crítica, como a professa Giulio Carlo Argan, deverá tra-
çar um prolongamento da obra de arte que, a partir da esfera artís-
tica, vai associá-la a outras atividades não-artísticas e até mesmo
não-estéticas.
Na extensão da definição de Argan, o papel da crítica de ar-
quitetura pode vir a assumir o caráter de instrumento didático, na
medida mesma em que esclarece do objeto construído o ponto de
partida do projetista e o processo genético; da sua construção as
intenções arquitetônicas, os seus meios e o seu funcionamento; da
sua cultura os termos em que ora a reflete, ora a absorve. Desse
modo, e somente desse modo, aportações teóricas da arquitetura
poderão recolher a experiência completa da arquitetura, que há de
conter, inclusive, a experiência do seu projeto. Nesta condição, os
mundos da reflexão teórica e da experiência, paralelos e tangentes,
distantes ou próximos por vazios de correspondência ou confli-
tos, nunca deixariam de estabelecer o “aliciente para modificar a
teoria e ajustar indefinidamente a prática”.2
Já foi dito, numa espécie de ‘psicologia’ do projeto, que o
desejo de transformar o meio com sentido é aliviado por imagens
afetivamenteapreendidas, que atuarão como referentes e
desencadeantes daquela ação. Estas ‘imagens’ mobilizadoras do
fazer arquitetônico advêm do conteúdo sedimentado no imaginário
do homem, de cada homem: são, em geral, instâncias mentais ar-
mazenadas de toda sorte, sensações produzidas por referências
arquitetônicas visuais, reflexivo-verbais e contemplativas, proce-
1
 ARGAN, G. C. Arte e crítica de arte. 2.ed. Lisboa: Estampa, p.128.
2
 SEGUÍ DE LA RIVA, J. Theoretical considerations concerning
architectural design and its basic teaching. Madrid: ETSAM, não publicado.
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
1 1
dentes de figuras ou coisas, absorvidas de situações ou ambientes,
retidas da comunicação e da leitura, que concorrerão no processo
criativo.3
Ativada a ação destas imagens retidas no exercício criativo, o
olho crítico depreenderá de todas as formas experimentadas pela
arquitetura a implicância da sua existência, a validade dos seus
princípios, a prática dos seus meios ao extrair do velho o novo, da
arquitetura uma realização periodicamente moderna, da constru-
ção uma arte.
Até aqui estou tratando de dizer que da arquitetura, por meio
da experiência das suas realizações e da formação do imaginário
do arquiteto, cabe deixar manifestar-se uma postura crítica funda-
mental e, por que não, obrigatória frente ao seu objetivo ulterior: o
projeto da arquitetura.
Percursos
A efetiva validade do pensamento exposto alinha-se com a
abrangência pedagógica do olhar crítico lançado por Lionello Venturi
ao considerar, na régua da sua crítica, fatores que participam da
gênese da obra pelo fomento e constituição do imaginário do artis-
ta, alargando então o universo da crítica da ‘pura visualidade’,
segundo a qual o valor da obra era atributo só do seu dado visual
puro.
Venturi4, fazendo confluir história e crítica da arte, credita à
tarefa de historiador um juízo de valor, e a exerceu servindo-se
dos documentos existentes, do pensamento do artista e de seus
contemporâneos, artistas ou não. A crítica de Venturi tomava en-
tão um sentido de abertura rumo a fatores culturais, sociais e his-
tóricos, em geral excluídos do âmbito puramente estético, como
ocorre com os esquemas ou constantes formais da teoria de
Wölfflin, que reduzem o estudo dos fenômenos artísticos à des-
crição de suas características diferenciais. Haveria então uma dis-
3
 Idem, ibidem.
4
 VENTURI, L. História da crítica de arte. Lisboa: Edições 70, s.d.
1 2
R e n a t o L e ª o R e g o
tinção entre a síntese da obra de arte, operada pela criatividade do
artista, e os seus elementos constitutivos, que podem separar-se
dela, que podem encontrar-se em outras obras e que não se iden-
tificam com a própria arte: de natureza variada, estes elementos,
que compreendem da técnica ao ideal, assumem uma característi-
ca comum frente à criação da obra de arte. Trata-se da historicidade
do fazer artístico, por meio daquilo que unia as personalidades
criadoras de cada período: o sujeito da obra não parte do nada,
mas de um universo experimentado, de uma tradição que seu am-
biente lhe oferece, presente na obra seja pela sua reafirmação, seja
ainda pelo seu avesso, a revolta da negação. A imaginação do artis-
ta não trabalha no vazio, mas de um modo historicamente concre-
to, sobre o reservatório de ‘imagens’ assimiladas.
O ‘gosto’ do artista e do coletivo ao qual pertence, sob a
forma de cultura dada, já histórica, funde-se à cultura que o pró-
prio artista faz fazendo arte. O problema ora levantado por Venturi,
que se torna relevante na produção contemporânea da arte, é o
papel da cultura específica de cada artista: uma cultura que incide
na construção da obra e, em parte, coincide com a da época e do
lugar, a ponto de englobar problemas cognoscitivos, religiosos ou
morais, além dos aspectos e problemas apenas próprios da arte,
uma vez que para ele “a criatividade não está isolada, nem é isolável
da vida do homem”. É, sem dúvida, esta noção que leva Argan a
afirmar que “fazer a história da cultura dos artistas, das suas idéi-
as, preferências, intenções no campo da arte, significava natural-
mente fazer a história daquilo que de ‘crítico’ se reconhecia no
seu procedimento artístico”.5
Para além da pesquisa de Venturi, Erwin Panofsky6 relacio-
nou a investigação no plano das estruturas formais – significantes
– com a ‘Filosofia das formas simbólicas’ de Ernst Cassirer, tra-
balho que se enquadrava no plano dos significados. O procedi-
mento da iconologia em seu envolvimento culturalizante deu va-
zão, pela tradição das imagens, ao sentido que jaz no sistema das
formas que cada artista faz depreender da sua experiência do mundo
5
 ARGAN, op. cit., p.149.
6
 PANOFSKY, E. Estudios sobre iconología. 2. ed. Madri: Alianza, 1976.
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
1 3
real e cristaliza na obra: trata-se de uma história dos sintomas cul-
turais que faz reconhecer os significados dos simbolismos das
imagens, temas e motivos artísticos em face dos contextos parti-
culares de culturas e períodos históricos. As imagens criadas pelo
artista agora pesava também pelo que conotam ou dizem dos valo-
res simbólicos imanentes a uma época. Panofsky devolvia à obra
de arte a unidade desmembrada entre forma, tema e conteúdo.
O significado intrínseco àquelas imagens Panofsky vai
encontrá-lo indagando os pressupostos que revelam a atitude bási-
ca de uma nação, um período, uma classe, uma crença religiosa
ou filosófica, qualificados inconscientemente pela personalidade e
condensados na obra,7 o que faz do trabalho do historiador uma
‘síntese recriativa’ e uma ‘investigação arqueológica’, dois pro-
cessos entrelaçados, simultâneos, recíprocos. Estabelecem-se, des-
se modo, as bases futuras para um estudo estruturalista, como a
crítica de Renato De Fusco, que propõe entender globalmente os
fenômenos arquitetônicos mediante uma ligação entre a arquitetu-
ra e a experiência geral da cultura moderna, estabelecida por uma
‘estético-crítica’.8
Indo ao amontoado de documentos reunidos então pelo his-
toriador, nos vemos no ‘ateliê interior’ do artista e aí encontrare-
mos um pouco de tudo: esboços, anotações, obras já feitas e re-
produções antigas e modernas, material que o artista interessado
reunira e talvez seja utilizado, talvez não. Talvez sirvam não à obra
em curso, mas a outra, em projeto talvez. São, como nos diz Argan,
instrumentos mais que do seu trabalho, da sua poética.9 É o artista
alguém que faz e tem uma técnica, que certamente tem uma or-
dem, porque pressupõe um projeto e uma série de atitudes proces-
suais. A existência prática do fazer chamará de volta ao presente, à
urgência do que se tem de fazer, experiências passadas, distantes,
esquecidas ou quase. A ordem do fazer impõe recuperações
mnemônicas ao movimento da imaginação. Voltamos ao mundo
7
 ARGAN, op. cit., p.17.
8
 Cf. DE FUSCO, R. La idea de arquitectura. Historia de la crítica desde
Viollet-Le-Duc a Persico. 2.ed. Barcelona: GG, 1976.
9
 ARGAN, op. cit., p.57.
1 4
R e n a t o L e ª o R e g o
das imagens experimentadas pelo nosso artista. A imagem, então
citada e recitada até, contaminada por associações ou combina-
ções ingênuas com outras imagens latentes na memória, é o docu-
mento de uma cultura: a de um significante ao qual se podem atri-
buir outros significados, no processo da ‘interpenetração criado-
ra’.10
Mais moderna, a semiologia continuou a revelar dimensões
até então ocultas ou sutilmente inscritas na obra, embora uma bus-
ca ávida de significação – participando o receptor no universo cri-
ado pela obra – tenha superado a busca até então exclusivista dos
seus valores expressivos. Os rumos desta linha de pesquisa certa-
mente se bifurcarão no ponto em que insistir nos signos gravados
pelo artista na obra será crítica da ideologia e explorar o significa-
do que taissignos possuem na vida ulterior da obra será registrar
a interpretação do observador a modo de uma ‘estética da recep-
ção’.
Revendo hoje os vários desdobramentos da metodologia da
historiografia da arte (fenomenologia, estruturalismo, semiologia),
quaisquer que sejam os campos de abrangência da sua pesquisa –
texto, contexto, metatexto – foi ficando cada vez mais claro que a
história da arte é, sim, história da cultura, de uma cultura estruturada
e dirigida pelo empenho operativo, na qual toda experiência passa-
da permanece, adentrando o campo do epistémê foucaultiano, como
uma virtualidade aberta à obra que se faz.
Transpondo a discussão para o campo da arquitetura, é desta
experiência que trata Manfredo Tafuri ao escrever que “qualquer
nova obra de arquitetura nasce em relação – de continuidade ou de
antítese, é indiferente – com um contexto simbólico criado por
obras precedentes, livremente escolhidas pelo arquiteto, como
horizonte de referência de sua temática, pelo que não tem qualquer
importância a continuidade ou afastamento histórico desse hori-
zonte, relativamente ao presente”.11
10
 Ibidem, p.28-34.
11
 TAFURI, M. Teorias e história da arquitetura. 2.ed. Lisboa: Presença,
1988. p. 135.
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
1 5
Se por um lado o que saiu diretamente do forno da fabulação
não se caracteriza propriamente por um nexo lógico límpido, não
sendo discurso mas sim expressão, pelo outro esta obra não se
cifra a um caos de sensações, mas é organização formal onde as
sensações experimentadas se fundiram e se disciplinaram. Enten-
dendo-se a arte como linguagem, sua leitura deve ser entendida
como processo técnico que flagra o sentido colocado mais ou
menos conscientemente no seu texto. No nosso caso, é funda-
mental extrair do objeto arquitetônico todas as instâncias – estéti-
cas e simbólicas, funcionais e materiais – para, na reconstrução da
construção que engendrara o artista, abarcar pela estrutura da qual
a obra é a tecitura, o seu sentido. (Cabe um parêntesis aqui para
incluir o esforço de Jorge Glusberg em propor a crítica de arquite-
tura como um ‘sistema de sistemas’).12
Tendo em mente como referência a crítica operativa
apresentada por Tafuri, concluiremos que a análise da arquitetura
terá como objetivo não um levantamento abstrato prêt-à-porter e
sim a projeção de uma orientação poética precisa, antecipada nas
suas estruturas e resultante de análises históricas. Deparamo-nos
aqui com a tarefa de reencadear circunstância passada – experiên-
cia – e antecipação que a obra, quando realizada, vai fazer presen-
te, recobrando aquela correlação implícita de passado e futuro que
menciona Argan quando afirma que cada invenção nasce da crítica
do passado, à qual se agrega um projeto para o porvir.
A caminho da arquitetura
Reconhecido o golpe contra a ‘estética cartesiana’ desferi-
do em tempos pós-modernos, vemos que aquelas características
formais, de cunho abstrato-geométrico e teor anti-naturalista e anti-
histórico, fomentadas por uma racionalidade supra-individual, abs-
trata e universal, deixam de prevalecer sobre os aspectos sensí-
veis, emocionais e individuais da experiência artística que vêm re-
tratando a socialidade heterogênea, mais complexa, movediça, que
se sobrepôs à demarcação da modernidade.
12
 GLUSBERG, J. Para uma crítica de arquitetura. São Paulo: Projeto, 1986.
1 6
R e n a t o L e ª o R e g o
As teorias do lugar arroladas a partir dos anos 60,
contextualismos de todos os matizes, representaram as tentativas
de superar o utopismo moderno, sem resvalar na redução da ar-
quitetura a mero significante, ainda que teorias da linguagem e
questões de comunicação fossem a ordem do dia. Destacando
Vittorio Gregotti13 e a afirmação do projeto como intenção, balizado
pela fenomenologia via Argan e pelo estruturalismo de Lévy-Strauss,
sobressaía aí a arquitetura como ‘lugar simbólico’ reclamado em
práticas que recorriam à experiência da história (da arquitetura, da
cidade, da cultura), sem esquecer que a ela pertencia também o
episódio do movimento moderno, depurando a racionalidade mo-
derna da sua dimensão instrumental e ideológica. Sua proposição
conciliava modernização e tradição, renovação e preservação.
Nem sempre esta atitude dialética se fez valer, daí assistir-
mos uma série de revivalismos indiscriminados, tomados do pas-
sado alheio, numa espécie de ‘memória sem memória’, como ar-
gumenta Otíllia Arantes14. Uma certa ausência de projeto favore-
ceu um repertório eclético de estilos, formas e técnicas, sem cri-
térios seletivos, à disposição do usuário como mercadorias em
equivalência na vitrine. Historicismo romântico, ecletismo como
sincretismo de linguagens, fragmentação alçada à categoria de ele-
mento ritual, a ‘correspondência’ do contexto e formas abertas
são detectados como parte do ‘vitalismo estético polimorfo’ vi-
gente. A ambigüidade, a contradição, o pluralismo, o relativismo
são conceitos que caracterizam o epistema contemporâneo. A frag-
mentação da experiência e sua tradução estética, já ensaiada na
estética das vanguardas, intensifica-se, permeada pelo que Michel
Maffesoli15 chama de placet futile, acantonado nos ângulos, es-
quinas e detalhes que renderão a melhor fotografia. Difrata-se por
entre nossa sociedade narcísica, em busca de si própria, da sua
identidade, um modo de agir animado por e pelo que é intrínseco,
13
 Cf. GREGOTTI, V. Território da arquitetura. 2ed. São Paulo: Perspecti-
va, 1994.
14
 ARANTES, O. Arquitetura no presente, uma questão de história. In:
rquitetura, cidade e natureza. Org.:IABDN. São Paulo: Empresa das artes, 1993
15
 MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
1 7
centrado sobre o que é da ordem da proximidade, uma espécie de
reencantamento, ‘religação’ mística, sem objeto particular. É nes-
sa ambiência (para usar uma palavra da moda) que a construção
do espaço, hoje, recorre à sensação, procede por sedução, dispõe
efeitos. A arquitetura se dá como acontecimento.
A arte de projetar anda se conformando em apreender a frag-
mentação da experiência. Entre descontrução e construção, o ce-
nário atual que se monta é um jogo de formas, fina celebração dos
sentidos, hedonismo consensual.
Nostalgias à parte, estou dizendo aqui que entre realismo e
crítica pode ser possível uma atitude sintônica com o reconheci-
mento da complexidade social deste tempo, que não tento ressus-
citar nenhum tipo de utopia que postulara o expediente do movi-
mento do moderno. Permitam-me, já na conclusão, lançar um ou-
tro argumento, de Valéry, segundo o qual a desordem deve apenas
subjacer à criação, uma vez que esta se define por uma certa ‘or-
dem’, esclarecida na articulação racional dos seus elementos.
Retomando a conclusão deste texto – a consideração da par-
ceria história e crítica como instrumentos projetuais –, sua
contraprova pode vir do programa estabelecido pelo regionalismo
crítico, sabendo ele desviar-se de bricolagens e pastiches primári-
os, apreender as lições do passado e os avanços tecnológicos do
presente, conduzir-se como ordem que dispensa a norma. Menci-
onei no início a compreensão da arte como atividade histórica de
Lionello Venturi porque, ao se tratar de uma construção, como as
de Álvaro Siza, por exemplo, cai-se numa teia que liga o arquiteto,
sujeito que soma as experiências da arquitetura, sua interferência
no sítio, o lugar a ser ocupado por ela, na condição de paisagem
antrópica, histórias portanto, sintetizadas no projeto, lição do pas-
sado a ser experimentada no futuro
Marília, 1998. Renato Leão Rego
1 8
Alvar Aalto
AS BELAS-ARTES1
Nos ambientes mais distintos de uma sociedade não se
conhecem, resumidamente, mais que dois gêneros de arte – de um
lado, se designa como realismo os quadros que representam, com
o máximode exatidão possível, a Natureza, os homens e tudo que
os rodeia. A esta arte se contrapõe a arte não figurativa, ou como
se queira chamá-la, onde as formas surgem de concepções abstra-
tas. Esta distinção é superficial, pois a arte, manifestação humana
por excelência, não pode ser dividida deste modo.
Há milênios a arte tem estado ligada à Natureza e ao homem,
sem jamais separar-se dela, o que não significa que não possa se
libertar e inovar.
Quanto aos arquitetos, seus trabalhos e seus programas se
situam em outros planos, e a inquietude que os atormenta – se são
tradicionais ou modernos – é ociosa e tão vã como a que distingue
a arte realista da abstrata. Em arquitetura a postura é diferente. Os
estilos históricos se opõem à invenção, enquanto que, nas belas-
artes, trata-se de copiar ou não a Natureza.
A arquitetura não pode se livrar das contingências huma-
nas, naturais; não deve fazê-lo jamais, pelo contrário, deve aproxi-
mar-se da Natureza, dando a este termo uma acepção tão ampla
que compreenda a sociedade, a cidade e os costumes. Quanto à
expressão arquitetônica, deve-se desenvolver com a mesma liber-
dade que as belas-artes, permanecendo porém ligada ao homem e
às suas exigências.
1
. Publicado em Fleig, K. (editor). Alvar AAlto, Obras 1963-1970. Barcelo-
na: GG, s.d.
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
1 9
Todas as tendências apontam, em suma, para o mesmo ob-
jetivo, mas não posso me alongar nisto. Na pintura e na escultura,
uma orientação nova surgiu, como na arquitetura. Mas não se deve
considerar somente sua aparência, e sim analisar os fenômenos
profundos que provocaram a renovação das concepções artísti-
cas. As artes devem-se inspirar no princípio da “expressão livre”,
mantendo o homem no centro de suas inquietações.
2 0
Alvar Aalto
A RESPONSABILIDADE DO ARQUITETO1
A organização de um interior depende não só das formas
ou das cores da habitação. É um ato mais complexo, cujas inci-
dências têm origens longínquas e cujas raízes se situam na arte de
construir as cidades, contexto do qual é impossível abstrair-se.
O próprio urbanismo, ainda que a palavra relacione esta ciên-
cia com a cidade, não pode-se resumir ao estudo dela; as zonas
periféricas e a paisagem devem ser incorporadas a ele, como par-
te de um todo maior onde se concentram a vida das pessoas e o
conjunto de suas necessidades vitais.
No norte, esta região meio selvagem onde nasci, a disposição
dos espaços é mais fácil de se tratar que nos países de grande
densidade da Europa central. A Finlândia é tão grande quanto a
Alemanha, mas tem só quatro milhões de habitantes. Há, então,
espaço de sobra e a interferência entre cidade e paisagem não apre-
senta os problemas que existem em outras bandas. No entanto,
não se extrai muita vantagem desta situação. Um país como a Fin-
lândia tem tendência a confinar-se em certo provincianismo, imi-
tando o que se faz em outros lugares; nos nossos dias ainda existe
a moda de imitar Hollywood, a cidade mais mal construída que
conheço, quando se podiam aproveitar estas excelentes ocasiões
para moldar as construções por meio da incorporação racional da
arquitetura numa paisagem organizada.
É verdade que não é fácil construir uma cidade nova no
meio de uma Natureza intacta, como não é freqüente que se pro-
1
. 1957. Publicado em Fleig, K. (editor). Alvar A Alto, Obras 1963-1970.
Barcelona: GG, s.d.
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
2 1
ponha a um arquiteto: eis aqui um bosque e lá um lago – construa
uma cidade para 20.000 habitantes.
Para um país como a Alemanha, uma cidade semelhante pa-
rece muito pequena, mas no norte resulta bastante importante.
Oportunamente nestes dias, me perguntaram se as cidades euro-
péias não caíram de moda, não estão superadas, inabitáveis até, e
se não seria melhor só construir cidades novas. Não acho que se
deva ser tão radical.
A vida humana é feita ao mesmo tempo de tradição e de renova-
ção. Não se podem rechaçar os valores tradicionais com o pretexto de
que se devem substituir as coisas antigas por aquisições novas. Uma
certa continuidade evita os inconvenientes das rupturas muito brus-
cas. Assim, graças a intervenções conscientes, é possível manter nas
cidades vegetação suficiente para que se torne agradável viver nelas,
tarefa sem dúvida difícil, porém realizável.
Perguntaram-me também se cada cidade finlandesa dispunha
de um perito, pelo qual entendiam um arquiteto encarregado ex-
clusivamente do urbanismo. Este funcionário existe, certamente,
mas não é o ideal, pois as cidades implicam tal complexidade de
problemas que se deve excluir a idéia de que possam ser resolvi-
dos por um só funcionário, mesmo sendo ele arquiteto.
Depois de construída uma cidade, é impossível modificá-la
essencialmente. Falo aqui, em Munique, uma região da Europa onde
outrora acamparam as legiões romanas, e não percebemos que a
implantação de certas cidades remonta a esses tempos, que seus
contornos, apesar das numerosas destruições e reconstruções, ain-
da seguem os antigos traçados. Isto demonstra a perenidade da
fisionomia urbana e a continuidade dos estabelecimentos. Poderia
esperar-se, então, que o público se interessasse por estas questões e
que as melhores forças se empregassem em criar as bases para que
as construções se integrassem harmoniosamente no contexto urba-
no. A harmonia da construção é um dos maiores segredos da vida,
quais são, pois, as suas premissas? Por que o ser humano está en-
tregue à servidão de trabalhar, comer e abrigar-se? Os animais, se
bem todos comam, nem todos possuem um abrigo. Mas, para o
homem, a habitação é primordial; sem morada não há civilização.
2 2
R e n a t o L e ª o R e g o
Qual será a verdadeira solução? Uma casinha em um grande
parque, o isolamento de cada família, ou o amontoamento nas ci-
dades? Ninguém sugeriu a solução ideal, e esta questão mal encon-
trará sua resposta.
Lembro-me que um dia a URSS encarregou um arquiteto de
fazer plantas de cidades que correspondessem ao regime. Este
urbanista limitava a extensão das cidades a 150.000 habitantes;
tivesse preferido menos, uns 60.000.
A sorte das cidades européias escapou aos urbanistas e pre-
feitos, que não puderam impedir seu crescimento, além de um
milhão de habitantes. A partir deste momento, elas deixam de ter
alma e de ser governáveis. Qual foi, então, o resultado dos proje-
tos russos Depois de vários anos de discussões, o governo che-
gou à conclusão de que os intercâmbios intelectuais, fontes de
bem-estar, só podiam acontecer em uma grande cidade. E consi-
derou liquidada a idéia de limitá-las a 150.000 habitantes.
Onde estão, portanto, as justas proporções? Devemos viver
junto da vegetação ou temos de nos amontoar para facilitar os
contatos intelectuais? Penso que as duas soluções são necessárias
e viáveis.
Devemos prever vilas ou arranha-céus? O ideal seria viver
em um arranha-céu com as vantagens de uma casa unifamiliar.
Em Berlim, no meu prédio da Interbau, tentei essa experiência,
mas duvido ter sido inteiramente bem sucedido, pois não é fácil
construir um prédio que possua as vantagens da proximidade com
a Natureza. Mas como temos necessidade das duas vantagens,
devemos desenvolver tipos de arranha-céus onde a vida se aproxi-
me ao máximo à da casa unifamiliar. As casas com fachada de
vidro e as sacadas onde se pode ver mexer cada dedo, cada inten-
ção de quem as habita, não oferecem a intimidade que convém à
vida privada. Temos de construir casas nas quais cada um se sinta
em seu lar, independente dos vizinhos. Pois seja qual for o tipo de
vida que nos reserva o futuro, quando centenas de satélites gira-
rem ao nosso redor, a família será sempre a célula humana natural.
É evidente que o homem vive duas vidas distintas: a vida
coletiva e a privada; estas duas instâncias se dão tão mal quanto o
A p a l a v r a ar q u i t e t ô n i c a
2 3
sonho e o trabalho. As casas que construímos têm que garantir, de
todas as formas, a cada um, sua vida privada de um modo absolu-
to. As soluções poderão diferir entre si, mas o princípio se man-
tém. A arquitetura não é uma decoração superficial, deve ser o
invólucro de uma existência moral digna do homem. É assim como
chego ao aspecto exterior da casa. Quando a decoração ou o orna-
mento dominam, isto indica que a casa não mantém o contato
conveniente com a Natureza, comprovação que será endossada
por qualquer pessoa sensata.
Poderia lembrar, com um pouco de “esprit”, que os tecidos,
em nossos interiores, são uma reminiscência da Natureza, pois
simbolizam os prados verdes e as flores de um mundo perdido
pelo homem que vive nas grandes cidades. No princípio, os vege-
tais ofereceram o material para o mobiliário e as instalações das
civilizações primitivas. Os tecidos determinaram as atitudes, re-
cordemos as tendas dos povos nômades.
 Disse há pouco que as formas eram a expressão dos valores
morais, ainda que seja impossível para mim definir o que se deve
fazer ou não fazer, preferir isto, evitar aquilo. Penso que a vida
grata num interior é uma necessidade fundamental baseada mais
na ética que na estética.
As formas, ainda que diversas, são mais o resultado da atitu-
de pessoal que da imitação dos estilos. O esnobismo se distancia
das exigências fundamentais.
A vida é, ao mesmo tempo, tragédia e comédia, e o ambiente
da casa é o seu cenário. Os móveis, sua disposição, os tecidos e as
cores devem ser adaptados ao desenrolar dos acontecimentos co-
tidianos, assim como os trajes e os gestos, expressões da dignida-
de humana.
As formas muito rebuscadas são hipocrisias que ninguém vai
preferir atendo-se aos princípios do bem-estar.
A indústria, com seus produtos racionais e úteis, auxilia o ho-
mem quando quer se instalar convenientemente. Apoiando-se nas
regras da dignidade e da conduta, as pessoas poderão se beneficiar
do bem-estar que, em nossos dias, lhes oferecem o urbanismo, a
arquitetura, o equipamento interior e todas as aquisições do nosso
tempo. A alma do homem só aspira a um pouco mais de luz.
2 4
Le Corbusier
O ESPÍRITO NOVO EM ARQUITETURA1
Senhoras e senhores,
Queria, nesta noite, tentar mostrar que a arquitetura da épo-
ca moderna tem abandonado suas vacilações, que possui a técnica
sã e poderosa capaz de sustentar uma estética, já formulada, por
outra parte, por prescrições profundas; técnica absolutamente nova,
pura e homogênea; estética que é o extrato de uma época total-
mente renovada e que, depois de muitas guinadas e caminhos opos-
tos, tem conseguido alcançar, no mais fundo de nós mesmos, as
bases essenciais de nossa sensibilidade, as bases puramente hu-
manas da emoção.
E talvez será então que tomaremos consciência de que esta
nova arquitetura, assim condicionada, é passível de grandeza e
capaz de acrescentar um novo elo na linha das tradições que funda
no passado.
Vou começar fazendo desfilar diante de seus olhos uma série
de fatos.
1. Surgem objetos novos, assombrosos, temerários, anima-
dos de grandeza, comovendo-nos, perturbando nossos cos-
tumes.
2. Reina a precisão. A economia manda. Invencivelmente so-
mos atraídos a um novo eixo. Começou outra época.Na at-
mosfera pura do cálculo voltamos a encontrar certo espírito
de clareza que animou o passado imortal. No entanto, a pre-
guiça domina nossos atos e nossos pensamentos: pesadumes,
recordações, desconfiança, timidez, medo,inércia.
1
. Conferencia na Sorbonne em 12 de junho de 1924.
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
2 5
3. Um século de ciência conquistou meios poderosos e desco-
nhecidos até então. A matéria está em nossas mãos. Este sé-
culo do aço é novo, diante dos milênios. Em todos os conti-
nentes começa um imenso trabalho. Este espírito se comuni-
ca de povo em povo e o progresso desencadeia suas conse-
qüências.
4. Por todas as partes surgem interrogações. Sinais de inquie-
tação. Testemunhos do desejo de conhecer. Presságios de
atos que querem ser concisos e claros.
5. O homem está desejando. Seu coração, sempre um coração
de homem, busca a emoção muito além da obra utilitária,
aspira a satisfações desinteressadas. Dos novos fatos se des-
prende uma poesia violenta e radiante. O coração tenta con-
ciliar os fatos brutais com os padrões profundos e íntimos da
emoção.
Vocês acabam de ver na tela uma série heteróclita de ima-
gens; esta série, chocante ao extremo, surpreendente em todo caso,
constitui o espetáculo quase cotidiano de nossa experiência; e
estamos em um momento em que a cada dia se propõem tais ino-
vações perturbadoras, contrastes tão surpreendentes que ficamos
transtornados e, no mínimo, sempre fortemente comovidos.
Vocês viram antes o navio “Paris”, por exemplo, que lhes
deve ter parecido algo notável, magnífico; depois viram o salão
deste mesmo navio que, sem dúvida, lhes doeu na alma: parece, de
fato, assombroso encontrar, no coração de uma obra tão perfeita-
mente ordenada, uma tal antinomia, um tal contrário, uma falta de
união, a bem dizer uma tal contradição: divergência total entre as
linhas mestres do navio e sua decoração interior; as primeiras são
a obra científica dos engenheiros, a outra, dos chamados
decoradores especialistas.
Também viram, na seqüência, as salas dos castelos de
Fontainebleau e Compiègne, assim como a galeria Colonna de Roma
obras célebres, cheias de valores diversos, que pertencem a outra
época: comparem-nas com o que, no nosso tempo, constitui o
marco de nossa vida; parecem chocantes, deslocadas, e levam
nosso espírito a admitir, com toda naturalidade, que é em outra
parte onde devemos buscar o aprendizado.
2 6
R e n a t o L e ª o R e g o
Mas em nossas escolas só se dá aos alunos um ensino base-
ado nestas obras de outro tempo: assim se compreende facilmente
o mal-estar que reina nos espíritos e o absoluto estado de crise em
que nos encontramos.
A seguir, lhes mostrei interiores de bancos americanos: são
de tal pureza, de tal precisão, de tal conveniência que estamos
perto de achá-los belos. Foram projetados por um arquiteto, cer-
tamente muito talentoso, que parece estar animado pela lógica e
por uma grande clareza de espírito: no entanto, na “Bankers Ma-
gazine”, que publica suas obras, este senhor acrescentou um con-
vite aos leitores para que o visitassem e, a fim de atraí-los, não
achou nada melhor que publicar o interior do seu escritório de
trabalho. E nesta foto se vê uma ambiente mobiliado com baús
Renascimento e, num canto, até uma armadura de guerreiro,
alabarda em punho, uma imensa mesa Luís XIII com enormes pés
torneados e esculpidos, tapeçarias... O homem que mobília assim
seu escritório é o mesmo que concebeu estes interiores de bancos,
obras de lógica pura! Aí está o desacordo.
Mais uma coisa. No ano passado visitei, nos Alpes, os traba-
lhos de um dique imenso; este dique será, certamente, uma das
obras mais belas da técnica moderna, uma das coisas mais
subjugantes para quem tem a possibilidade de se entusiasmar: sem
dúvida o lugar é grandioso, mas o efeito produzido se deve, sobre-
tudo, ao esforço combinado da razão, da invenção, do talento e da
ousadia. Um amigo me acompanhava, um poeta; tivemos o azar de
comunicar nosso entusiasmo aos engenheiros que nos acompa-
nhavam pela obra: tudo o que conseguimos foi riso e piadas, diria
até inquietação. Aqueles homens não nos levaram a sério, talvez
dissessem que estávamos loucos. Tentamos explicar que, se achá-
vamos maravilhoso seu dique, era porque compreendíamos o que
a envergadura de tais trabalhos, trasladada às cidades, por exem-
plo, poderia trazer como transformações radicais. E, de repente,
estes homens, que manuseiam o positivo, o lógico e o prático,
exclamaram: “Mas vocês estão querendo destruir as grandes cida-
des!, são uns bárbaros!, seesquecem das regras da estética!” Eram
totalmente diferentes de nós dois, pelo seu próprio estado de espíri-
to: acostumados a conceber e executar obras de puro cálculo, reve-
laram-se incapazes de imaginar, num campo diferente do seu, as
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
2 7
conseqüências de sua própria atividade; transformaram-se em ho-
mens de outro tempo.
Na verdade, vivemos um transtorno, e somos obrigados a
fazer uma revisão total de valores se quisermos tentar ver claro na
atual situação e chegar a constatar que alcançamos um conceito
diferente daquele que podiam ter nossos pais e nossos avós; se
quisermos chegar a apreciar que a vida que levamos é radicalmen-
te oposta, distinta em todo caso, do que foi a vida das gerações
que nos precederam.
Estamos diante de um acontecimento novo, de um espírito
novo, mais forte que tudo, que passa por cima de todos os costu-
mes e tradições e que se difunde pelo mundo inteiro; as caracterís-
ticas precisas e unitárias deste espírito novo são o mais universais
e humanas que podem e, no entanto, jamais foi tão grande o abis-
mo que separa a antiga sociedade da sociedade maquinista em que
vivemos.
O nosso século e o século anterior opõem-se a 400 séculos
anteriores: a máquina, baseada no cálculo, que nascera das leis do
universo, erigiu, frente às divagações possíveis do nosso espírito,
o sistema coerente das leis da física; impondo suas conseqüências
à nossa existência e forçando nosso espírito a um determinado
sistema de pureza, modificou o marco de nossa vida: abriu-se um
fosso entre duas gerações.
Diante deste fosso, devemos refletir, parar e tentar ver o que
nos cabe resolver para começarmos a criar o mecanismo verda-
deiramente atual da nossa existência.
Sem medir muito exatamente os feitos, somos, neste mo-
mento, indivíduos revolucionados. Mal o percebemos. Participa-
mos de uma vida rápida, apressada, dura, penosa, muitas vezes
estressante, temos a impressão de que isto pode ser sempre as-
sim, que cada dia se torna talvez um pouco mais difícil, mas não
temos a sensação, repito, de que estamos completamente revolu-
cionados com respeito ao período anterior.
Somente um olhar lançado à história vai nos permitir captar
tal mudança. De fato, se vêem, na vida dos povos, certos momen-
tos em que a curva espiritual encontra seu ponto de inflexão, mar-
cando a transição de uma forma de pensar a outra, de uma deter-
2 8
R e n a t o L e ª o R e g o
minada cultura a outra totalmente diferente.
Permitam-me, para confirmar o que digo, tomar como exem-
plo a Idade Média, que se seguiu ao período românico, por sua vez
conseqüência de toda a cultura antiga. A transição aconteceu –
não se pode dizer bem a data precisa – deu-se entre o ano 1000 e
o 1200: homens vindos de todas as partes, novos povos, acaba-
vam de misturar-se com povos antigos, um caos geral... mais tar-
de, quando passa o tempo, com os séculos de distância necessári-
os, nos damos conta, num belo dia, que intervieram modos de
pensar e atuar, modificando radicalmente tudo o que havia existido
até então.
Se há um campo onde este fato é flagrante é o da arquitetura,
pois oferece testemunhos característicos que escaparam aos rigo-
res do tempo.
A arquitetura românica caracteriza-se, como sabem, por aber-
turas de meio ponto, denotando o uso de formas de geometria
primária, tradição de cultura antiga. Três séculos depois, eis que
se passou, sem alardes, a um sistema bem distinto, de formas
muito complicadas, revelando uma estética completamente dife-
rente. Foi uma revolução considerável, contudo, no momento em
que se produzia, ninguém mediu a reviravolta.
E esta mudança atingiu muito mais do que geralmente se ima-
gina.
Na época românica, a cidade era composta por prismas sim-
ples; entre as formas desenvolvidas nas casas, dominava a hori-
zontal: a geometria mais pura se afirmava em todas as partes, até
chegar a conferir à paisagem uma atitude muito precisa. Mal pas-
sado um século, a cidade e a paisagem tinham se transformado,
oferecendo ao olhar um aspecto radicalmente oposto.
Estamos no outono, plantam-se jardins: nos últimos dias plantei
dois. Vocês poderão constatar que o espírito humano age não só
sobre as obras puramente humanas, como a arquitetura, mas in-
clusive no que se vem chamando de natureza, moldando as paisa-
gens, escolhendo as essências das árvores cujas características
plásticas estejam dentro de num determinado sistema do espírito.
A natureza moldada pelo homem alia-se às casas que ele cons-
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
2 9
trói. Viajando por vários países, nota-se que os modos de cultivo
determinam aspectos profundamente diferentes da paisagem; as
casas no campo unem-se num mesmo espírito. E não são só os
climas que ditam a forma do lugar.
O que quis mostrar é que se estabelece uma hierarquia entre
os diferentes estados de espírito, entre os distintos sistemas do
espírito, e que alguns talvez sejam superiores a outros. Isto, em
todo caso, permito-me afirmá-lo, porque para mim é uma certeza
(e demonstrarei) que o espírito se manifesta pela geometria. Daí
deduzirei que, quando a geometria é todo-poderosa, é que o espí-
rito progrediu com relação ao tempo de barbárie anterior.
Não quero dizer com isto que a cultura da Idade Média fosse
bárbara, mas que estava arraigada em fatos ainda bárbaros, em
um passado turvo e que se encontrava nos começos do seu desen-
volvimento, enquanto que a cultura antiga, pelo contrário, havia
chegado a importantes conclusões, manifestadas pelas geometria.
Mostrarei que a ascensão até a geometria se traduz no aspec-
to desta obra humana que se estende desde a casa até o lugar. Você
conhecem a casa tal como ela nasceu, mais ou menos normalmen-
te, com o telhado sobre o muro primitivo: pouco a pouco, evolui
numa busca cada vez mais declarada da horizontal, até que, num
período de claridade intelectual como o Renascimento, alcança a
todo-poderosa horizontal, a horizontal que no alto arremata a com-
posição com uma linha categórica, enquanto que até este momen-
to a composição se perdia nos pedaços oblíquos dos telhados,
mansardas, etc. Aí, os telhados se escondem atrás de um ático
cuja missão é mascarar uma obliqüidade que inoportunamente con-
tradizia o princípio ortogonal da composição. Esta situação no
Renascimento denota, inclusive contra as justas reivindicações da
razão, esta aspiração do espírito rumo ao definido e à pureza.
Pois este é o surpreendente exemplo de um espírito que se
cultiva pouco a pouco e que se depura até o ponto de buscar os
procedimentos que lhe permitam realizar obras de pura geometria
ou, pelo menos, obras onde a geometria possa realizar tudo o que
é capaz de realizar, ou seja as proporções, que são a linguagem da
arquitetura e que se expressam em sua maior perfeição no sistema
ortogonal.
3 0
R e n a t o L e ª o R e g o
Mas hoje dispomos dos meios para continuar magnificamente
esta ascensão à geometria, graças à invenção do concreto armado,
que nos traz o mecanismo ortogonal mais puro, estamos de posse
de um meio ortogonal nunca possuído por época alguma, um meio
que nos permitirá utilizar a geometria como elemento capital da
arquitetura. Esta noite devo precisar, sobretudo, o valor e a impor-
tância inigualável da geometria.
Acontece que, através de sucessivas etapas da arquitetura, o
espírito se cultiva e se depura; por outra parte, os meios desenvol-
vem-se e tornam-se cada vez mais precisos e poderosos: detecta-
mos um meio que nos dá o ortogonal e a geometria pura, e deve-
mos ressaltar com entusiasmo esta aquisição, pois ela nos permi-
tirá abordar obras de alta arquitetura. Este espírito de geometria é
certamente a coisa mais preciosa que hoje pode nos interessar.
Mas, no momento atual da evolução, o reconhecimento deste es-
pírito é um fato bastante novo.
Em 1920, quando fundamosa Esprit Nouveau com dois
amigos – Ozenfant e Dermeé – , estávamos diante do fenômeno
cubista, então em plena potência: fonte de profundas invenções,
ato violento de revolta e novo contato com os elementos da plásti-
ca. Junto ao cubismo, o futurismo se entregava a estados de âni-
mo insensatos, entusiastas, desbordantes, sem medida. Por últi-
mo, o dadaismo, movimento de jovens, representava com esplen-
dor este período da vida entre os 20 e 30 anos, quando se nega
tudo, quando não se acredita em nada que não se tenha comprova-
do.
A Espírito Novo, neste momento, tinha por programa atuali-
zar, se possível, um sistema construtivo. Não podíamos fazer mais
que nos ocupar do maquinismo, estimando que era este o fenôme-
no novo, o acontecimento da época. Agora nos atacam, e estes
ataques se acentuam. “Maquinismo – dizem – você sempre fala da
mesma coisa, já a conhecemos, você nos fere os ouvidos, você
nos chateia!”
Se já estão cansados de ouvir falar do maquinismo, é prova
da fabulosa rapidez com que as idéias se implantam: quando em-
preendemos, num meio tumultuoso, nossas tentativas de depura-
ção de idéias e de construção de um sistema coerente do espírito,
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
3 1
baseando-nos na atual transformação da sociedade, do estado so-
cial, éramos novos; somente podíamos encontrar gente que grita-
va de satisfação ou de indignação diante do tumulto da máquina,
diante da máquina metralhadora, do martelo pilão, da máquina fu-
megante, da máquina devoradora de homens; nós, ao contrário,
queríamos chegar a aprender a lição da máquina, a fim de abandoná-
la depois ao seu simples papel, o de servir. Não queríamos admirá-
la mais, e sim, estimá-la; queríamos classificar os acontecimentos
para oferecer ao nosso coração, depois desta vitória da razão, os
elementos pelos quais pode se emocionar.
Esta classificação que havíamos empreendido foi útil, penso
eu, para toda uma série de investigações que se seguiu, depois.
Naquele momento, também chegamos a precisar as condi-
ções em que se desenvolvia o maquinismo, a lei da economia que é
o meio pelo qual se guia todo trabalho moderno. Constatamos que
o maquinismo está baseado na geometria e, finalmente, estabele-
cemos que o homem vive, de fato, só de geometria, que esta geo-
metria é, falando com propriedade, sua própria linguagem, que-
rendo dizer com isto que a ordem é uma modalidade da geometria
e que o homem só se manifesta pela ordem.
O que um homem faz primeiro é estabelecer o ortogonal di-
ante de si, ajustar, pôr em ordem, ver claro; encontrou o modo de
medir o espaço por meio de coordenadas sobre três eixos perpen-
diculares. Este fenômeno de ordem é tão inato que podemos até
estranhar ter que falar dele. Mas não nos esqueçamos que saímos
de um período – o final do século XIX – de reação contra a or-
dem, de medo ante esta violenta instigação à ordem que trazia a
máquina, e de reação terrível: não se queria ordem; o fato de orga-
nizar a nova vida sobre o fenômeno da ordem é uma criação que
remonta a alguns poucos anos.
O homem, afirmo, manifesta-se pela ordem: quando vocês
saem de trem de Paris, o que vêem aparecer aos seus olhos senão
um imenso pôr-em-ordem? Luta contra a natureza para dominá-
la, para classificar, para se acomodar, em uma palavra, para insta-
lar-se num mundo humano que não seja o meio da natureza anta-
gonista, um mundo nosso, de ordem geométrica. O homem só
trabalha sobre geometria. Os trilhos são de um paralelismo absolu-
3 2
R e n a t o L e ª o R e g o
to, os taludes são a realização de desenhos geométricos, as pon-
tes, os viadutos, as barragens, os canais, toda esta criação urbana
e suburbana que se desenvolve ao longo dos campos mostra que,
quando o homem atua e quer fazer segundo sua vontade, conver-
te-se em um geômetra e cria sobre a geometria. Sua presença se
traduz no fato de que, apresentando-se sob um aspecto acidental,
numa paisagem que é ato da natureza, o trabalho humano somente
existe sob a forma de retas, verticais, horizontais, etc. E é assim
como se traçam as cidades e como se fazem as casas, sob o reina-
do do ângulo reto.
O fato de reconhecer neste ângulo um valor decisivo e capi-
tal já é uma afirmação de ordem geral muito importante,
determinante na estética e, conseqüentemente, na arquitetura.
Não obstante, a este respeito persiste a confusão. Em um
livro intitulado Eupalinos ou o arquiteto, Paul Valéry conseguiu,
como poeta, dizer coisas sobre a arquitetura que um profissional
não saberia formular, porque sua lira não está afinada neste tom:
sentiu e traduziu admiravelmente muitas das coisas muito profun-
das e muito puras que o arquiteto sente ao criar; no entanto, em
um diálogo entre Sócrates e Fedro, Valéry segue um pensamento
bastante desconcertante.
“Se te dissesse que pegasses um pedaço de giz ou carvão –
disse Sócrates – e desenhasses na parede, o que desenharias? Qual
seria teu gesto inicial?”
E Fedro pega um pedaço de carvão e risca no muro, respon-
dendo:
“Parece-me que tracei uma linha de fumaça, vai, volta, une-
se, enrola-se em si mesma, e me dá a impressão de um capricho
sem objetivo, sem princípio, sem fim, sem mais significação que a
liberdade do meu gesto no raio do meu braço.”
Não se admitirá sem estranheza que tal seja o gesto inicial de
um homem. Para mim, que não sou filósofo, que sou simplesmen-
te um ser ativo, parece que este gesto primeiro não pode ser vago,
que no próprio nascimento, no momento em que os olhos se abrem
à luz, surge imediatamente uma vontade: se tivessem-me dito que
traçasse algo numa parede, parece-me que teria traçado uma cruz,
que está feita de quatro ângulos retos, que é uma perfeição que
A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a
3 3
traz em si algo divino e que é, ao mesmo tempo, um ato de posse
do meu universo, porque nos quatro ângulos retos tenho dois ei-
xos, apoio das coordenadas com as quais posso representar e medir
o espaço.
Paul Valéry também parece chegar a esta conclusão. Um pouco
mais adiante, de fato, Sócrates diz da geometria: “Não conheço
nada mais divino, mais humano, mais simples, mais poderoso...”
Elie Faure dizia-me certo dia: “Por que uma ponte é tão
emotiva?” Reconhecemos então que, entre as obras humanas de
todos os tempos, a ponte era a única feita totalmente de geometria,
tão pura que se mostrava nítida aos nossos olhos. Lançada sobre a
caprichosa sinuosidade do rio, dos desprendimentos de terra ou
das encrespadas massas de rochas, por entre a suavidade das matas,
a ponte, como um cristal, cintila firme e voluntária entre o tumulto
que a cerca. É a vontade humana escrita numa obra humana.
Mostrei-lhes, através das imagens desenhadas na lousa, que
o homem, adquirindo pouco a pouco um instrumental formidável,
descobre inconscientemente, encontra depois conscientemente, pelo
cálculo, o princípio essencial de suas atuações, encontra seus ‘pa-
drões’: a lei da geometria.
Chega a sentir tanto mais o divino quanto mais renuncia ao
trabalho de suas mãos pesadas, delegando-o à máquina que, base-
ada na geometria, pode executar com toda a eficácia as concep-
ções do seu espírito. O homem que pratica a geometria e que tra-
balha segundo a geometria pode então atingir este nível de satisfa-
ções superiores, chamadas de satisfações de ordem matemática, e
chegamos assim a admitir que, numa humanidade ocupada quase
exclusivamente com a geometria, como é o caso atual, as artes e o
pensamento não podem manter-se distantes deste fenômeno geo-
métrico e matemático.
Acredito que, até agora, nunca tínhamos vivido um período
de tal geometria; se pensamos no passado, se tentamos imaginar o
que era, nos surpreenderá ver que vivemos num mundo de geo-
metria quase pura, de geometria humanamente pura, suficiente-
mente pura a nossos olhos: tudo, ao nosso redor, é geometria;
jamais vimos tão claramente formas, círculos, discos,retângulos,
ângulos, francamente traçados com uma nitidez tão grande, tão
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categórica: cilindros, esferas puras. O maquinismo nos deu um
imagem absolutamente nova do nosso mundo, imagem que os
outros séculos não podiam adotar. Os próprios grandes matemáti-
cos, Pitágoras, Copérnico e tantos outros, se viram obrigados a
dar-se mentalmente estes deleites, enquanto que nós os temos co-
tidianamente ao alcance das mãos.
Desde então, pode-se dizer que estamos preparados para ad-
mitir uma arte formada, em grande parte, por elementos geométri-
cos e orientada aos deleites matemáticos. A pintura, precedendo as
demais artes porque é um ofício mais facilmente realizável – não
digo em concepção, e sim materialmente – e porque sua evolução
é mais rápida que a da arquitetura, que só pode ser conseqüência
de meios definitivamente adquiridos, a pintura já havia expressado
através do cubismo esta tendência ao espírito geométrico e às sa-
tisfações de ordem matemática; os esforços que continuam o cubismo
empurram cada vez mais neste sentido.
Não diria que o público acompanhou o movimento; ao con-
trário, estamos diante de uma reação violenta, choque com retro-
cesso, última onda como a reação romântica do final do século
XIX, oposição, ódio e protesto contra a máquina. Hoje, estamos
de novo em estado de protesto contra coisas que serão fatalmente
nossas; estas queixas não têm outro efeito que fazer-nos perder
tempo – as coisas seguem seu rumo. No campo das artes, no
campo da pintura, o fenômeno da geometria intervirá cada vez
mais; a pintura até agora considerada normal, permitida, a de imi-
tação, não poderá reinar exclusivamente. Será substituída por um
conjunto de realizações plásticas novas que, por uma parte, vão
livrá-la do interesse que podia ter desde o ponto de vista represen-
tativo – aludo ao cinema e à fotografia, que absorvem por si só
todas as curiosidades de ordem representativa – e que, pela outra,
farão que só possa viver das relações existentes entre suas cores,
suas massas, suas linhas, conseqüentemente, da proporção e das
qualidades de ordem matemática que aí se encontrarem. E, bem
entendido, por um indispensável nexo de união sensível com nos-
so meio ambiente.
Chegamos, pois, ao fenômeno da geometria na arquitetura,
em tempos que, estou convencido, já nos permitem começar a
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formulá-lo porque os meios existem.
Coisa que não teria acontecido há quinze ou vinte anos por-
que não dispúnhamos, de maneira indiscutível, deste meio que é o
concreto armado.
Certo, o concreto armado existe há uns sessenta anos, mas
somente há pouco tempo é utilizado e admitido correntemente por
todos. Este meio, convertido em usual e à disposição de todos, é,
repito, de base ortogonal; logicamente, procede elementarmente
do ângulo reto; está, pois, feito para nos seduzir, porque contém
um princípio fundamental do nosso prazer estético.
(Peço desculpas pelo que vou dizer, por tomar exemplos dos
meus trabalhos e de meu sócio, Pierre Jeanneret, na intenção de
falar somente de coisas que conheço bem e, assim, evitar possí-
veis erros.)
Estamos acostumados a buscar o fenômeno arquitetônico
exclusivamente no estudo dos palácios, que, evidentemente, re-
presentam uma certa proposição. Mas vou falar meramente da
casa, que é um pretexto mais que suficiente para formular leis e
regras da arquitetura. A arquitetura atual se ocupa da casa, da casa
normal e corrente, para homens normais e correntes. Abandona o
palácio. Estudar a casa para o homem comum, ‘plano’, é recupe-
rar as bases humanas, a escala humana, a necessidade tipo, a fun-
ção tipo, a emoção tipo.
A casa tem duas finalidades. É, em primeiro lugar, uma
machine à habiter, ou seja, uma máquina destinada a dar-nos uma
ajuda eficaz para a rapidez e a exatidão no trabalho, uma máquina
diligente e atenta para satisfazer as exigências do corpo: comodi-
dade. Depois, é o lugar útil à meditação, e finalmente o lugar onde
a beleza existe e aporta ao espírito a calma indispensável; não pre-
tendo que a arte seja um prato para todo o mundo, simplesmente
digo que, para certos espíritos, a casa deve oferecer o sentimento
da beleza. Tudo o que concerne às finalidades práticas da casa o
engenheiro já o proporciona; o que diz respeito à meditação, ao
espírito de beleza, à ordem reinante (e que será o suporte daquela
beleza), será da arquitetura. Trabalho do engenheiro por um lado,
arquitetura pelo outro.
A casa procede diretamente do fenômeno do
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antropocentrismo, ou seja, que tudo se remete ao homem, e isto
pela razão bem simples de que a casa, fatalmente, só interessa a
nós mesmos e mais que qualquer outra coisa; a casa se adapta a
nossos gestos: é a concha do caracol. É necessário, portanto, que
seja feita à nossa medida.
Remeter tudo à escala humana constitui, assim, uma neces-
sidade; é a única solução que se pode adotar; é, sobretudo, o único
meio de se ver claro no problema atual da arquitetura e que permi-
te uma revisão total dos valores, revisão indispensável depois de
um período que é, em suma, a última onda do Renascimento, a
culminação de quase seis séculos de cultura pré-maquinista, perí-
odo brilhante que veio a se romper ante o maquinismo, e que,
contrariamente ao nosso, consagrou-se à magnificência exterior,
palácios dos senhores, igrejas dos papas.
Mas, como já disse, nos encontramos frente a um fenômeno
novo, o maquinismo; os meios para se construir uma casa à escala
humana estão totalmente mudados, prodigiosamente enriquecidos,
opostos aos costumes, até o ponto em que nada do que nos che-
gou do passado é de alguma utilidade e uma estética nova está se
experimentando. Estamos no começo de uma nova forma: é ela o
que vamos tentar expressar.
O antropocentrismo, ou seja, o novo contato com a escala
humana, é, em uma palavra, brutal; estudar portas, estudar jane-
las; a casa é uma caixa na qual abrem-se portas e janelas; portas e
janelas são elementos da arquitetura. Chegou-se a construir edifí-
cios com portas de 12 e de 3 metros de altura – são tão inadequa-
das umas quanto outras; relaxaram-se as medidas legais, criou-se
pouco a pouco um código de medidas arbitrárias, enquanto con-
servamos imutável nosso tamanho de 1,80m. Há que se fazer, pois,
uma revisão das medidas, uma revisão dos elementos da arquite-
tura.
Acabo de afirmar que portas e janelas são determinantes da
arquitetura – não é um paradoxo e podemos comprová-lo estudan-
do a história da janela.
Nos tempos dos romanos, as casas de Pompéia nos mos-
tram que não havia, ou quase, janelas, somente grandes vãos aber-
tos a jardins ou a pátios internos. O grande vão era a passagem de
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luz e, para a passagem do homem, havia também a porta.
Nos nossos países, o clima e um conceito diferente da vida
doméstica reclamavam outra coisa; mas fazer um buraco em um
muro era de uma grande dificuldade: era preciso construir sobre
este buraco, salvar a abertura; como o arco não podia ser muito
grande, as janelas eram pequenas.
Com o descobrimento do arco ogival e dos sistemas de
arcobotante, realizou-se mais tarde a janela gótica, que permitiu
ganhar largura, como se vê nas catedrais; mas, na casa, ficava
impossível superar determinada largura porque seria necessário
elevar demais o arco – os pés-direitos acabariam desmedidos. As-
sim as janelas continuaram pequenas, porém multiplicaram-se. O
Renascimento viu surgir as janelas com montantes de pedras que
permaneceram integralmente iguais até nossos dias; é de se desta-
car, no entanto, o desaparecimento dos montantes, que já não se
encontram nas construções desde Luís XIV; estas janelas se tor-
nam, a cada dia, a melhor escala humana; no reinado de Luís XVI,
fazem-se casas tipo em série, bastante adequadasà escala huma-
na; e, finalmente, Haussmann, em suas obras de Paris, fixa a for-
ma e a dimensão de uma janela que tem direito de cidadania em
qualquer parte, que parece perfeita, ao ponto de permitir supor
que já não se alterará mais. Não me detenho na janela pós 1900,
falta de razões sérias, conseqüência de uma arquitetura de gesso e
papelão surgida dos palácios da Grande Exposição.
Assim pois, toda estética arquitetônica deriva de um simples
ato prático, a altura de uma planta, e vai se ver modificada por um
novo fenômeno técnico, o concreto armado.
As janelas, até este momento, não podiam alargar-se de modo
útil porque seria necessário fazer vergas muitos longas, de difícil
realização, ou arcos que acabariam levantando demais os tetos.
Mas agora a casa pode ser construída com estes pilares de con-
creto armado que vocês já conhecem, de 15 a 20cm de seção e
separados uns 5m em média, deixando-se entre eles um certo va-
zio e a casa construída antes com paredes de pedras já não se
constrói mais do que com estes pilares. A seguir, a nova casa de
várias plantas apresentará uma fachada com aspecto de uma enor-
me malha, constituída pelos pilares e pelas vigas de concreto ar-
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mado, que deixam entre si vazios totais.
Neste momento, fatalmente surgiu um problema, que passei
a investigar, ainda sem conclusões, e que coloco em discussão, de
modo que se possa chegar a um sistema lógico e defensável.
Para que, pergunto, encher este espaço, posto que foi dado
vazio? Para que serve uma janela, senão para iluminar as paredes?
E isto não é uma obviedade, é uma realidade arquitetônica profun-
da. Se uma janela normal ilumina a parede em frente, ilumina me-
nos as paredes laterais e não ilumina, em absoluto, o plano no qual
foi aberta: duas zonas de sombra inundam a metade do cômodo.
Pelo contrário, se conservo vazio todo o espaço disponível, obte-
nho a sensação arquitetônica primordial, fisiológica, capital, a da
luz – se está a gosto na luz. Foi assim que cheguei a admitir que
uma janela corrida, igual em área a uma grande janela vertical, lhe
é superior, já que permite iluminar as paredes laterais. (E, diga-se
de passagem, tem também outras conseqüências práticas na dis-
posição das habitações.)
Daí pode-se deduzir todo tipo de conseqüências, mas o que
tento ressaltar é a força de um fenômeno antropocêntrico. Colo-
co, antes de tudo, o homem em seu meio, perguntando-me o que
ele necessita para ter sensações agradáveis. Deduzo, então, que
esta janela tem, fisiologicamente, uma vantagem. E é assim que
me posiciono diante de um quadro arquitetônico singularmente
transtornado. (Aplausos)
Até 1900, quando se falava de casas, entendia-se pelo termo
umas paredes e um telhado – eram as partes determinantes da
casa. Sem dizer uma sagacidade, podemos afirmar que as paredes
e os telhados já não existem, já não têm razão de existir. Tentarei
explicar o que vocês poderão tomar como uma piada.
Antes, uma parede tinha diferentes funções: servia para se
defender dos malfeitores; muros de cidades, de fortalezas, de ca-
sas, tudo isto repousava sobre uma noção de defesa. Uma vez
desaparecida esta primeira finalidade, as paredes permaneceram,
porque tinham outra função, a de suportar os pavimentos. Tinham
de ser grossas, já que eram feitas com pedras que dificilmente se
uniam, sobretudo porque não se dispunha de aglomerante de forte
aderência, quer dizer de argamassa; a argamassa não apareceu até
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o final do século XIX; não se dispunha mais que de barro, argila
ou cal magra para juntar bem ou mal as pedras ou as lascas: era
preciso, pois, fazer paredes grossas para faze-las suficientemente
sólidas.
Quando surgem os cimentos artificiais, aglomerantes mais
duros que a pedra, em seguida se pensa em fazer paredes menos
grossas. Mas esta tentativa, que levou à criação do concreto ar-
mado, logo fez considerar a própria supressão dos muros portantes.
Com os pilares empregados hoje em dia, tenho o direito de dizer
que a parede está suprimida. Não tenho mais que tampar o interva-
lo entre dois pilares para defender-me do frio, do calor ou dos
intrusos, atentando que uma parede fina, porém dupla, é mais efi-
caz que uma parede única e grossa.
Graças aos materiais modernos, a parede já está constituída
só por uma fina membrana de tijolos ou qualquer outro produto
que forme um fechamento, duplicada por uma segunda membrana
no interior; o que antes era um elemento portante converteu-se em
um simples recheio; levando as coisas ao absurdo, poderia fazer,
sem dificuldade e sem perigo, paredes de papel: a solidez do edifí-
cio não se importaria.
Eis aí um fenômeno novo em arquitetura; já não tenho que
utilizar espessuras enormes e grandes áreas de parede, que acarre-
tavam um sistema estético determinado.
A técnica moderna nos conduz ainda a outras conseqüênci-
as. O telhado inclinado era, antes, o único meio de evacuar as
águas da chuva. No entanto, desde o final do século XIX, o ci-
mento Portland permite fazer coberturas planas, em terraço, abso-
lutamente impermeáveis.
Sei que fazendo esta afirmação vou suscitar dúvidas, mas a
mantenho categoricamente. Se muitos construtores têm falhado
nas coberturas em terraço é porque o abordaram mal, misturando
velhos princípios com novos procedimentos.
Antes, os telhados eram constituídos por uma armação de
madeira, as chuvas eram captadas por calhas: não havia outro sis-
tema. Mas hoje, uma superfície de concreto pode evacuar as águas
da chuva já não ao exterior, mas ao interior da casa; há que se
construir a cobertura em forma de concha.
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Este é um aperfeiçoamento importante. Chamado para cons-
truir uma casa a 1.000m de altitude, num clima muito duro com
fortes nevadas, tive que chegar a estudar o encadeamento dos
fenômenos e constatar que uma inovação técnica traz consigo uma
série de conseqüências consideráveis e inesperadas.
As casas do Alto Jura têm estufas de cerâmica que expan-
dem um suave calor em cada pavimento: se, por desgraça, intro-
duzimos a calefação central, o calor se expandirá em todo o imó-
vel, até a cobertura; a parte inferior da camada de neve em contato
com o telhado começará a derreter-se e a água escorrerá sobre as
telhas, sob a capa de neve.
No entanto, no alto da parede, na parte baixa do telhado o
efeito do calor cessa (pensem que o frio alcança às vezes –18o);
imediatamente a água que escorria sobre a telha ou a ardósia se
congela, formando estalactites de gelo penduradas nas calhas e
arrancando-as.
Mas, a introdução da calefação central tem conseqüências
muito mais graves, e eu as experimentei, às minhas custas, cons-
truindo, na mesma altitude, um grande cinema de 1.200 lugares.
Penso que esta experiência é uma experiência tipo, uma verdadeira
experiência de laboratório, pois raramente as condições são tão
limpas. Minha sala de projeção, de área grande, estava coberta por
um telhado sobre o qual se acumulava, em um dia, uma camada de
neve de mais de meio metro de espessura. Sob as telhas, a calefa-
ção central expelia do interior uma massa de ar quente. A este calor
acrescentava-se, por volta de meia noite, o calor desprendido por
1.200 espectadores. Fora, 20o de frio, no interior, 20 ou 30o de
calor. Minha cobertura à noite fumaçava, como um enorme ebulidor:
o vapor subia em nuvens até o céu! Entre a camada de neve e as
telhas, escorriam milhares de litros de água...
Mas no ângulo da parede exterior com o telhado, a calefação
cessava seus efeitos. Só o frio reinava, -20o! Sob a camada de
neve, a água tinha impregnado as telhas, e também a neve. A calha,
fora da parede, estava cheia de gelo; por cima, quer dizer, no beiral
do telhado, as telhas, a água e a neve formavam um bloco com-
pacto de gelo. Ou seja, uma muralha de gelo, portanto uma borda
intransponívelpara a água que jorrava deste imenso telhado: os
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milhares de litros de água, seguindo a lei dos vasos comunicantes,
encontraram sua saída mais além da primeira linha de telhas, em
direção ao interior, e passaram à sala de cinema! Dilúvio ao longo
das paredes, no interior.
Conclusão lógica desta experiência tipo: o telhado deve ser
em côncavo, não convexo; a água deve ser evacuada ao interior
por meio de condutores situados sob a influência do calor da casa
e, por conseguinte, com a impossibilidade de congelar. A neve per-
manece tranqüilamente amontoada sobre o terraço, formando um
excelente isolante contra o frio.
Se esta é a única solução nos casos mais difíceis, estamos
certos de que esta solução é a solução tipo para todos os casos. A
cobertura submetida à intempérie deve ser côncava e evacuar suas
águas no interior, desde que a calefação central tenha sido instala-
da na casa.
A partir daí, tentem perceber as implicâncias estético-
arquitetônicas que teria, num país inteiro, a supressão dos telha-
dos e sua substituição por terraços.
Há uns quinze anos fundou-se na Alemanha um liga para a
difusão das coberturas de terraço: as achavam bonitas, estetica-
mente falando. Mas não se afrontara o problema pelo lado justo,
não se deu a razão técnica que satisfaz o espírito, que tranqüiliza a
consciência e permite seguir adiante: com uma razão técnica que
confirma o espírito em seus direitos e o tranqüiliza, podemos en-
tão admitir as belezas da geometria, do ortogonal, posto que aí
estão, autorizadas a partir de agora, impulsionadas inclusive pelas
condições técnicas essenciais do problema.
Por conseguinte, quando digo que já não há telhados, nem
paredes, e que estes fatores atuam profundamente sobre a estéti-
ca, me vejo obrigado a buscar uma nova estética.
Para poder ser formulada, esta estética precisa se acomodar
em bases seguras: quais podem ser?
A fisiologia das sensações nos dá um ponto de partida útil.
Esta fisiologia das sensações é a reação de nossos sentidos
frente a um fenômeno ótico. Meus olhos transmitem aos meus
sentidos o espetáculo que lhes é oferecido. Diante destas várias
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linhas que traço na lousa, nascem outras tantas sensações diferen-
tes: diante de uma linha quebrada ou contínua, até o sistema cardí-
aco se vê influenciado; sentimos as sacudidas ou a suavidade da
linhas que observamos.
Acompanhemos as repercussões sobre nossa sensibilidade
destas sensações fisiológicas; chegaremos a fazer uma seleção: tal
linha quebrada é desagradável, tal linha contínua é agradável, tal
sistema de linhas incoerentes nos afeta, tal sistema de linhas rítmi-
cas nos equilibra, logo perceberão que se faz uma escolha, que se
estabelece uma preferência e que se retorna, irremediavelmente,
ao que os artistas têm feito e escolhido sempre, a umas linhas e a
umas formas que satisfazem nossos sentidos.
Neste campo de linhas e formas que satisfazem nossos sen-
tidos, verificamos uma vez mais que a geometria é onipotente.
A conseqüência será o emprego de formas de geometria pura;
estas formas terão para nós um atrativo considerável, e isto por
duas razões: em primeiro lugar, atuam claramente sobre nosso sis-
tema sensorial; segundo, desde o ponto de vista espiritual, trazem
em si a perfeição. São formas que foram geradas pela geometria,
formas que chamamos de perfeitas, e cada vez que encontramos
uma forma perfeita experimentamos uma grande satisfação. Sai-
bamos que estamos numa época em que, pela primeira vez, graças
ao maquinismo, vivemos em coabitação efetiva com as formas
puras da geometria.
Queria que aferissem como se concretiza a composição da
obra arquitetônica e como o fenômeno geométrico da arquitetura
desemboca na precisão.
Disse que a questão técnica precede e é a condicionante de
tudo, que traz conseqüências plásticas imperativas e que leva, às
vezes, a transformações estéticas radicais: depois, trata-se de re-
solver o problema da unidade, que é a chave da harmonia e da
proporção.
Os traçados reguladores servem para resolver o problema da
unidade.
Diz-se que pela garra se reconhece o leão; em outros termos,
um leão tem todos os seus órgãos feitos de tal maneira que existe
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nele uma harmonia. Uma obra arquitetônica deve possuir os mes-
mos níveis de harmonia, pela garra deve-se reconhecer o leão.
Quais são os fatores emotivos de uma arquitetura? O que o
olho vê. O que vê o nosso olho? Vê superfícies, formas, linhas.
Trata-se, pois, de criar a todo custo na obra arquitetônica o
determinante essencial da emoção, quer dizer, as formas excitan-
tes que a constituem, que a animam, que estabelecem entre si re-
lações apreciáveis, que proporcionem as sensações.
Aí exatamente está a invenção arquitetônica: relações, ritmos,
proporções, condições da emoção, máquina de emocionar. Só o
talento atua aqui.
Eis aqui como se estabelece o caráter emotivo da arquitetura:
primeiro, o cubo geral do edifício lhes toca básica e definitivamen-
te, é a sensação primeira e forte. Vocês abrem nele uma janela ou
uma porta: imediatamente surgem relações entre os espaços assim
determinados; a matemática está na obra. Pronto, isto é arquitetu-
ra. Falta polir o trabalho introduzindo a unidade mais perfeita, ajus-
tando a obra, regulando os diversos elementos: intervêm os traça-
dos reguladores.
O traçado regulador foi muito empregado em certas grandes
épocas, ao menos pelo que dizem excelentes historiadores da arte;
isto é o que tenho lido, em particular, na admirável história da
arquitetura de Choisy, que diz o suficiente para despertar em nós o
gosto pela unidade.
Os traçados reguladores haviam caído em desuso neste últi-
mo período: trata-se pois de tornar a lançar mão deste meio tão útil
e de ver por que caminho se chega ao traçado regulador.
Certa vez escrevi um capítulo sobre o traçado regulador: um
ano mais tarde recebia uma carta de um colega de Amsterdam,
homem de grande valor, que tinha pelas costas uma carreira glori-
osa de precursor. Em sua carta me dizia que sempre fizera traça-
dos reguladores; ao mesmo tempo, me enviava seu livro. Aí en-
contrei traçados contra os quais, pelo que me diz respeito, sou
obrigado a levantar-me.
Dá, por exemplo, uma fachada com torres acopladas; seu
traçado regulador está formado por uma rede de diagonais pelas
quais chega a fazer passar (não é difícil) todos os pontos da sua
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R e n a t o L e ª o R e g o
construção: já não se trata de um traçado regulador, é uma tela; de
acordo com este pensamento, todos os bordados de ponto cruz
estariam feitos com traçado regulador; o verdadeiro traçado regu-
lador é o que chega a unificar, em suas características, tal elemen-
to em relação ao conjunto, uns fragmentos em relação aos outros,
que chega a revelar a relação matemática suscetível de animar re-
gularmente todos os elementos da obra.
Indicarei rapidamente um ou dois, para tentar objetivar este
método que deve, de fato, conservar o máximo realismo e não cair
nunca no palavrório nem, sobretudo, na ilusão dos gráficos erudi-
tos.
(Demonstração na lousa, impossível de reproduzir sem a fi-
gura.)
Vocês vêm como chego a enlaçar os elementos principais
com os elementos secundários mediante uma relação geométrica
sensível e autêntica.
Para se chegar a estes traçados reguladores não existe uma
fórmula única, fácil de se aplicar; a bem dizer, é uma questão de
inspiração, de verdadeira criação; tem que se encontrar a lei geo-
métrica que está em potência em uma composição, que a regula e
determina; em um dado momento revela-se ao espírito e unifica
tudo; então acontecem alguns deslocamentos, algumas retifica-
ções; uma harmonia perfeita reina, no fim, em toda a composição.
Para terminar, deixem-me dizer ainda algumas palavras

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