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4 Turistas e vagabundos Hoje em dia estamos todos em movimento. Muitos mudam de lugar — de casa ou viajando entre locais que não são o da residência. Alguns não precisam sair para viajar: podem se atirar à Web, percorrê- la, inserindo e mesclando na tela do computador mensagens provenientes de todos os cantos do globo. Mas a maioria está em movimento mesmo se fisicamente parada — quando, como é hábito, estamos grudados na poltrona e passando na tela os canais de TV via satélite ou a cabo, saltando para dentro e para fora de espaços estrangeiros com uma velocidade muito superior à dos jatos supersônicos e foguetes interplanetários, sem ficar em lugar algum tempo suficiente para ser mais do que visitantes, para nos sentirmos em casa. No mundo que habitamos, a distância não parece importar muito. Às vezes parece que só existe para ser anulada, como se o espaço não passasse de um convite contínuo a ser desrespeitado, refutado, negado. O espaço deixou de ser um obstáculo — basta uma fração de segundo para conquistá-lo. Não há mais “fronteiras naturais” nem lugares óbvios a ocupar. Onde quer que estejamos em determinado momento, não podemos evitar de saber que poderíamos estar em outra parte, de modo que há cada vez menos razão para ficar em algum lugar específico (e por isso muitas vezes sentimos uma ânsia premente de encontrar — de inventar — uma razão). O espirituoso adágio de Pascal revelou-se uma profecia confirmada: de fato vivemos num estranho círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma (ou, quem sabe, exatamente o contrário?). E assim, pelo menos espiritualmente, somos todos viajantes. Ou, como diz Michael Benedikt, “a importância mesma da localização em todas as escalas começa a ser questionada. Tornamo-nos nômades que estão sempre em contato.”1 Mas estamos também nos movendo em outro sentido mais profundo, seja com o pé na estrada ou saltando entre os canais e quer gostemos ou não disso. A idéia do “estado de repouso”, da imobilidade, só faz sentido num mundo que fica parado ou que assim fosse percebido: num lugar com paredes sólidas, estradas fixas e placas de sinalização bastante firmes para enferrujar com o tempo. Não se pode “ficar parado” em areia movediça. Nem nesse nosso mundo moderno final ou pós-moderno — um mundo com pontos de referência sobre rodas, os quais têm o irritante hábito de sumir de vista antes que se possa ler toda a sua instrução, examiná-la e agir de acordo. O professor Ricardo Petrella, da Universidade Católica de Louvain, recentemente resumiu isso muito bem: “A globalização arrasta as economias para a produção do efêmero, do volátil (por meio de uma redução em massa e universal da durabilidade dos produtos e serviços) e do precário (empregos temporários, flexíveis, de meio expediente).”2 Para abrir caminho na mata densa, escura, espalhada e “des-regulamentada” da competitividade global e chegar à ribalta da atenção pública, os bens, serviços e sinais devem despertar desejo e, para isso, devem seduzir os possíveis consumidores e afastar seus competidores. Mas, assim que o conseguirem, devem abrir espaço rapidamente para outros objetos de desejo, do contrário a caça global de lucros e mais lucros (rebatizada de “crescimento econômico”) irá parar. A indústria atual funciona cada vez mais para a produção de atrações e tentações. E é da natureza das atrações tentar e seduzir apenas quando acenam daquela distância que chamamos de futuro, uma vez que a tentação não pode sobreviver muito tempo à rendição do tentado, assim como o desejo nunca sobrevive a sua satisfação. Não há linha de chegada óbvia para essa corrida atrás de novos desejos, muito menos de sua satisfação. A própria noção de “limite” precisa de dimensões espaço-temporais. O efeito de “tirar a espera do desejo” é tirar o desejo da espera. Uma vez que toda demora pode em princípio ser nivelada na instantaneidade, de forma que uma infinidade de eventos temporais possa se comprimir na duração de uma vida humana, e uma vez que toda distância parece ajustar-se à compressão em co-presença, de modo que nenhuma escala espacial é em princípio grande demais para o explorador de novas sensações, que significado possível poderia ter a idéia de “limite”? E sem sentido, sem um significado expresso, não há como a roda mágica da tentação e do desejo perder o impulso. As conseqüências, para os altivos e para os humildes, são enormes — como expressou Jeremy Seabrook de forma convincente: A pobreza não pode ser “curada”, pois não é um sintoma da doença do capitalismo. Bem ao contrário: é evidência da sua saúde e robustez, do seu ímpeto para uma acumulação e esforço sempre maiores ... Mesmo os mais ricos do mundo se queixam sobretudo de todas as coisas de que se devem privar ... Mesmo os mais privilegiados são compelidos a carregar dentro de si a urgência de lutar para adquirir ...3 Ser consumidor numa sociedade de consumo Nossa sociedade é uma sociedade de consumo. Quando falamos de uma sociedade de consumo, temos em mente algo mais que a observação trivial de que todos os membros dessa sociedade consomem; todos os seres humanos, ou melhor, todas as criaturas vivas “consomem” desde tempos imemoriais. O que temos em mente é que a nossa é uma “sociedade de consumo” no sentido, similarmente profundo e fundamental, de que a sociedade dos nossos predecessores, a sociedade moderna nas suas camadas fundadoras, na sua fase industrial, era uma “sociedade de produtores”. Aquela velha sociedade moderna engajava seus membros primordialmente como produtores e soldados; a maneira como moldava seus membros, a “norma” que colocava diante de seus olhos e os instava a observar, era ditada pelo dever de desempenhar esses dois papéis. A norma que aquela sociedade colocava para seus membros era a capacidade e a vontade de desempenhá-los. Mas no seu atual estágio final moderno (Giddens), segundo estágio moderno (Beck), supramoderno (Balandier) ou pós-moderno, a sociedade moderna tem pouca necessidade de mão-de-obra industrial em massa e de exércitos recrutados; em vez disso, precisa engajar seus membros pela
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