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POZZER, K. M. P. (2008) “A Magia na Mesopotâmia”. In FUNARI, P. P. A. et al. org. (2008) História Antiga contribuições brasileiras. São Paulo Annablume. 175-87. parte 1 de 1

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CAPÍTULO XII
A Magia na Mesopotâmia
KATIA MARIA PAIM POZZER
A Mesopotâmia localiza-se no território do atual Iraque, no valafluvial
do Eufrates e do Tigre (Figura 1). Foi nessa região que surgiram as civilizações
urbanas1 responsáveis pela invenção da primeira escrita da humanidade, a
escrita cuneiforme.2 Na Antiguidade, essa região foi palco de importantes
culturas, como a suméria, a babilónica e a assíria ao longo de três milénios.
Sua estrutura política básica foi a da cidade-Estado, marcada pela pulverização
do poder: cada cidade-Estado disputava a hegemonia política sobre uma
região. E uma das características desta sociedade era o politeísmo: cada
cidade-Estado possuía seu próprio panteão, um verdadeiro mosaico de
divindades e mitologias
A concepção religiosa
O sistema religioso mesopotâmico traduzia as representações coletivas
do sagrado daquela comunidade, que fora formada em uma tradição imemorial.
A estrutura religiosa era composta de hábitos, de regras implícitas, de
orientações adquiridas através da educação familiar; ela não dependia de um
criador, nem perpetuava uma norma rígida (Bottéro & Kramer, 1993: 56).
As divindades mesopotâmicas não eram anónimas, elas possuíam
epítetos e funções, estado civil, atributos específicos e estavam vinculadas
a um território particular, uma cidade onde exerciam seu poder e proteção. No
1. A descoberta e a difusão da agricultura e da pecuária, durante o período neolítico
(7000-4000 a.C.), favoreceram o processo de sedentarização das comunidades
nómades e de formação de novas organizações da sociedade. O desenvolvimento da
agricultura gerou uma elevação das reservas alimentares, possibilitando uma maior
especialização das atividades artesanais e técnicas e uma maior complexidade na
divisão social do trabalho. Esse fenômefio económico acompanhou-se de uma
aceleração do processo de descobertas e invenções decisivas, que marcaram essa época
como a invenção da escrita.
2. A palavra cuneiforme vem do latim cuneus - canto -,' pois a escrita que recebe esse
nome era o resultado da incisão de um estilete na argila mole, tendo três dimensOes:
altura, largura e profundidade (Pozzer, 1998/1999: 62).
176 História Antiga: contribuições brasileiras
Figura 1. Mapa do Antigo Oriente Próximo.
mundo mesopotâmico existem tantos panteões quantas mitologias e cidades
(Glassner,2002:186). E, como todo sistema politeísta, as divindades estavam
organizadas em uma sociedade, onde cada uma tinha seu campo de atuação,
suas competências, seus privilégios, seus saberes e poderes.
Para os antigos habitantes da "região entre rios'1, toda a vida na Terra
era comanda pela vontade dos residentes dos céus e dos infernos, isto é, as
divindades do mundo superior e do mundo inferior. Como resume Bottéro
(Bottéro & Kramer, 1993:78):
Em todos os sentidos e em todas as suas funções essenciais, a
religião na Mesopotâmia foi a transposição, magnificada e
sublimada, das relações de submissão, de admiração, de dependência
e devoção dos sujeitos à seu rei.
A concepção básica dos mesopotâmicos era de que nada ocorria por
si; acreditavam na inexistência da casualidade, em que tudo que acontecia
era resultado de um ato, de uma vontade de alguém. E, como esta infinita
série de vontades meta-humanas era a raiz e a razão de tudo, uma maneira
lógica de evitar o mal seria abortá-lo em sua causa, obtendo acesso aos
escritos do destino a fim de corrigi-lo. Mas, posto que isso era impossível,
Pedro Paulo A. Funari Glaydson José da Silva | Adilton Luís Martins (QRGS.) 177
fazia-se imprescindível conhecer o estado embrionário da História, o que
está entre o já decretado mas ainda não acontecido: o futuro. Esta concepção
de História explica o papel dos adivinhos e de sua importância na sociedade
mesopotâmica.
Geralmente, os mesopotâmicos utilizavam-se dos adivinhos para
compreender e interpretar as mensagens criptografadas dos deuses, mas
acreditavam também que os deuses poderiam se dirigir diretamente aos
homens através da revelação. Juntamente com o exame das vísceras3 de
animais sacrificados para este fim, a interpretação dos sonhos4 constituiu o
procedimento divinatório mais antigo na Mesopotâmia (Bottéro, 1987:157-
69).
A magia no imaginário mesopotâmico
A magia era um aspecto natural da vida na antiga Mesopotâmia. Em um
mundo ameaçado por demónios sobrenaturais e feiticeiros, onde o passado,
o presente e o futuro estavam inextricavelmente interligados, era comum o
uso da magia para confortar e, se possível, curar.
O eminente assiriólogo francês, Jean Bottéro (1987-1990:201) define
magia na Mesopotâmia como sendo:
Um sistema de fatos sociais fundado na crença de eficácia imediata
de um certo números de comportamentos, procedimentos e de
elementos que se utiliza para criar efeitos essencialmente benéficos,
mas cujas relações com suas causas eram, de nosso ponto de vista,
perfeitamente irracionais. Enquanto que, em virtude dos mesmos
princípios, as operações eram executadas (...) para causar o mal
falava-se em feitiçaria.
Segundo o imaginário mesopotâmico, o homem possui grande
capacidade de intervenção no meio natural que o cerca e, para isso, tinha
dois meios essenciais à sua disposição: o gesto e a palavra. Os conjuros ou
ritos orais repousavam na força da palavra. Segundo a concepção
3. Existe uma grande quantidade de documentos que formam um verdadeiro "tratado
de hepatoscopia" (Blakiston, s/d: 501). Também há evidências da confecção de
réplicas de fígados de animais, em argila, que seriam utilizados no ensino destes
profissionais (López & Sanmartín, 1993: 456, n. 596).
4. Para os mesopotâmicos, os deuses poderiam falar diretamente com os homens
através dos sonhos, como relata um famoso texto literário chamado "O Poema de
Âtrahasis", onde o deus Ea previne o herói da chegada do dilúvio sobre a Terra
(Bottéro & Kramer, 1993: 548-9).
178 História Antiga: ronlribuíçfles brasileiras
mesopotâmica, o verbo era criador, a enunciação de um bem ou de um mal era
o suficiente para garantir sua criação. Os ritos manuais tinham sua origem no
poder do gesto, na capacidade destrutiva ou transformadora dos diversos
produtos naturais ou elementos primordiais como a água e o fogo.
Pelo gesto, pela mão auxiliada por inúmeros objetos e pelos elementos
naturais primordiais: a água para lavar e limpar, para levar, carregar e afogar;
o fogo para purificar e reduzir a cinzas. Apalavra, a ação primeira e fundadora
das coisas, teria uni instrumento para ordenar e comandar (Bottéro, 1987^
1990:206).
Aos olhos dos mesopotâmicos, o sofrimento era tudo o que era
contrário ao desejo de felicidade. Para eles, os males físicos e as doenças
seriam apenas algumas manifestações possíveis do suplício. Eles acreditavam
que seu infortúnio era uma punição divina causada por uma ação
deliberadamente contrária aos princípios éticos da sociedade, ou por alguma
conduta inadequada, ainda que involuntária. Na Mesopotâmia antiga, assim
como em todas as culturas, os homens aprenderam a combater o mal. A
finalidade da literatura mágica babilónica era a eliminação dos males que
acometiam o homem, fossem eles causados pela possessão demoníaca ou
decretados por quem administrava o destino e controlava sua realização,
isto é, os deuses. O objetivo do ritual mágico era desfazer o sofrimento que
impedia o bem-estar e o desfrute normal da vida concedida a cada um.
Os demónios eram seres inferiores aos deuses, mas superiores aos
homens, eram os executores dos castigos ordenados por aqueles e poderiam
causar uma doença específica. A magia tinha um amplo espectro de atuação:
poderia ser usada para se proteger contra esses demónios, para desfazer o
efeito nocivo de algum "pecado", para aumentar a potência sexual, para
assegurar para si a paixão de alguém, para acalmar o choro das crianças,
frustrar as atividades de feiticeiros hostis, além de muitas outras funções.
Magiae medicina: duas formas de curar
Juntamente com a prática da magia, a medicina dita científica também
existiu. A origem da medicina mesopotâmica é atestada em documentos do
período de Fará, na metade do III milénio a.C. A medicina terapêutica e a
medicina mágica co-existiram e foram utilizadas complementarmente, como
indica a documentação epistolar da cidade-reino de Mari que relata o
tratamento realizado pelo médico5 (asú) e pelo exorcista6 (ââipu) (Biggs,
1987-1990:623).
5. CAD A/II 344, em sumério chamado de a.zu, e em acádico de asu.
6. CAD A/II 431, em sumério chamados de lú.maS.masYIú.ka.pirig ou Iú.mu7.mu7, e em
acádico de maSmaSSu/(w)ãSipu.
4
l
Pedra Paulo A, Funari | Giaydson José da Silva | Adilton Luís Martins (ORGS.) 179
Sabemos que b médico7 (asú) era formado por um mestre que praticava
a medicina ou por uma escola, como a famosa "Faculdade da cidade de Isin"
e que alguns se tornavam especialistas, como "médico dos olhos".8 O Código
de Hammu-rabi, em seus parágrafos 215a 223, regula a profissão de médico
e prevê o pagamento de honorários (Bouzon, 2000). Já o mágico (ââipu) era
um integrante do corpo de funcionários do templo e estava ligado ao clero.
A documentação sobre a magia atesta a utilização de remédios extraídos
da natureza, sobretudo de plantas, de produtos minerais (sais e pedras) e
animais (sangue, carne, couro, ossos, excrementos) com o uso de decocção,
cataplasmas, enemas, ungilentos, pomadas, etc.
O conhecimento prático de remédios a partir de ervas, bem como o
conhecimento cirúrgico existiu na antiga Mesopotâmia, mas as causas das
doenças (dimítu, em acádico) do corpo, do espírito e do "coração" - dores,
tristezas, privações e desgraças - eram imputadas à ação divina ou demoníaca,
sendo os demónios apenas agentes das decisões dos deuses na punição
dos pecados (Bottéro, 1992:206).
Dentre a documentação existente, podemos citar igualmente textos de
caráter profilático, nos quais a ação mágica é preventiva. Nestes rituais, que
incluíam a elaboração e uso de poções e unguentos, fazia-se oferendas de
água e/ou queima de perfumes. Além de remédios elaborados a partir de
ervas naturais, a cerveja, bebida comum na Mesopotâmia, era utilizada como
medicação. Uma oração à SamaS9 exemplifica esta prática: "SamaS: levo à
minha boca a erva tarmus, na minha mão esquerda a erva imhuresra,10 na
minha direita o deus Cerveja" (López & Sanmartín, 1993:443).
Encantamentos e rituais mágicos
A prática mágica era fundada na ideia de que os homens podiam agir
sobre as forças sobrenaturais, sobre os seres vivos e as coisas que
constituíam seu ambiente natural. A magia babilónica sobreviveu até nós
através de diversas formas: encantamentos e fórmulas mágicas em sumério,
acádico e algumas outras línguas, como o elamita ou o hurrita, descrevendo
os rituais endereçados ao mágico, as ações que ele deveria fazer, incluindo a
7. O CAD A/ÍI 344 apresenta a palavra asâtu como o feminino de asQ, demonstrando
a existência de mulheres médicas. ;
8. CAD A/II 347.
9. SamaS é o deus da justiça na Babilónia, é o ;deus-sol,-aquele que ilumina (Black &
Green, 1998: 182-4).
10. As ervas ditas tarmuS e imhureSra não possuem tradução.
tea História Anlíga: cortríbjiçfias brasileiras
lísla dos encantamentos a sarem usados para cada caso, o que deveria ser
dito pelo mágico ou pelo paciente, e amuletos contendo excertos de magia.
Os rituais mágicos eram realizados através de gestos e de palavras, os
chamados conjuros. Estes eram recitados por técnicos em curandeirismo e
magia, os exorcistas (âôipu\s também de levar a cabo as ações
ritualísticas mágicas que poderiam ser feitas em domicílios privados ou no
templo e receitar os ingredientes e os fármacos.
Os encantamentos são ritos orais complementares às operações e
gestos mágico-religiosos, realizados pelos habitantes da Mesopotâmia, para
combater o mal que os afligia. Os mais antigos encantamentos sumérios que
conhecemos datam do Período Dinástico Antigo, por volta de 2400 a.C., são
provenientes das cidades de Abu Salabih, Suruppak e LagaS e são destinados
a curar doenças. Alguns servem contra a picada de serpentes e escorpiões,
para ajudar no parto ou para consagrar objetos usados nos rituais mágicos
(Joannès,2003:408-10).
Os escribas mesopotâmicos compilaram duas grandes séries de ritos
corporais e encantamentos. Trata-se das séries Maqlú e Surpu, grandes
clássicos da literatura mágica. O Maqlú, a queima, possui oito tabletes
cuneiformes com encantamentos e um tablete que descreve um complexo
ritual noturno, no qual o exorcista invoca os deuses que conhecem a
identidade da feiticeira e expulsa o mal do corpo da vítima, após a queima de
certos objetos e a pronúncia de encantamentos para conjurar e destruir o
.poder maléfico da feiticeira. Já o èurpn, a cremação, se propõe a purificar a
vítima. Ele reúne encantamentos e rituais contra todo o tipo de má conduta
familiar e/ou social que o indivíduo possa ter. Nele, o exorcista queima os
objetos sobre os quais foram transferidos os pecados do paciente.
Dentre as coleções mágicas mesopotâmicas com melhor preservação
está a chamada de Surpu, que significa literalmente queima ou combustão. O
Surpu era realizado quando os clientes/pacientes do mágico não conheciam
as causas de seus males, isto é, não sabiam por quais atos ou omissões eles
teriam ofendido aos deuses e perturbado a ordem do mundo. O paciente ia
ao mágico num estado crítico, atormentado, com insónia, doente, algumas
vezes em convulsão, espumando pela boca, acometido de mutismo ou
sofrendo de enxaquecas. No ritual, todos os pecados possíveis são
exaustivamente enumerados, incluindo os efeitos do juramento: um perjúrio
, poderia causar uma maldição.
A combustão é a parte do ritual na qual o paciente descasca uma
cebola, corta tâmaras em lâminas, desfaz nós de fios de linho ou lã e os joga
no fogo. Todo o processo do surpu era realizado enquanto se recitava os
encantamentos e através dele os pecados eram "desfeitos", sendo que a
"performance" do paciente no ritual também era avaliada pelos deuses. Para
finalizar, o mágico apaga o fogo e com ele os pecados.
Pedro Paulo A, Furiari \n José da Silva j Adilton Luís Martins (ORGS.) 181
A documentação da época paleobabilônica apresenta um conjunto de
textos que formam uma série canónica e classificam-se em quatro tipos
fundamentais (López& Sanmartín, 1993:427-30):
• Aqueles nos quais o mágico dirige-se diretamente aos demónios,
ele próprio representando os deuses associados à magia branca (Enki/Ea,11
sua esposa Damkina e Asarluhi, considerado seu último filho) com a ordem
de proteger a si mesmo contra os demónios enquanto durar o ritual. Este
termina-se, geralmente, pela expressão "É conjurado pelo céu. É conjurado
pelo inferno";
• Conjuros profiláticos, onde a ação mágica é meramente preventiva,
usada para proteger as pessoas dos ataques dos demónios;
« O terceiro grupo, chamado "do tipo Marduk-Ea" começa com a
descrição detalhada dos demónios e o que eles têm feito. Apresenta esta
pequena narrativa: Marduk12 observa e vai até seu pai (o deus Enki) para
consultá-lo. Enki diz a seguinte fórmula: "Meu filho, o que é que você não
sabe? Eu posso ajudá-lo? Tudo o que eu sei, você também iabe". Depois ele
dá um conselho e indica um ritual apropriado a ser realizado. A ação inclui
uma representação na qual o médico conjurador assume o papel do poderoso
deus Marduk e fica encarregado de liberar o paciente de seus males;
• O último tipo não é endereçado aos demónios ou aos deuses de
magia branca, mas aos objetos de cultos que seriam usados em rituais. O
encantamento dos objetos tornará mais efetiva sua função mágica. A maioria
destes objetos são produtos naturais, tais como cebola, flocos de lã, farinha,
sal, incenso, água do mar, cinzas ou brasas, pêlo de cabra, etc.
Outro elemento da prática de magia de natureza diversa era chamado
em acádieo de nambitrbú,que significa literalmente "para sua dissolução", e
era realizado para "desfazer ou evitar" o efeito de um mal futuro, já detectado
por um mau presságio. O ritual mágico namburbú típico consistia numa série
de instruções destinadas ao exorcista:
• A primeira prevê a realização de cerimónias fechadas (em espécies
de cabanas de palha) a fim de separar o lugar ritualístico do mundo exterior,
às vezes, pela performance dentro de uma área delimitada com um círculo
mágico;13
11. Ea, nome acádieo do seu equivalente em sumério, Enki, o deus responsável pela
criação do Homem, segundo a mitologia mesopotâmica (Black & Green, 1998: 75).
12. Marduk era o delis principal da cidade de Babilónia.
13. O círculo mágico era feito no chEo, com farinha e o doente deveria ficar em seu
interior.
162 História Antiga ccitribuiçáes brasileiras
• Os ritos de purificação: o paciente é lavado, banhado, depilado, O
tamarindo14 era usado para borrifar e o incenso para fumegar. A área era
varrida e provavelmente uma cabra era sacrificada. Um sino de cobre era
soado e um tambor era batido;
• No terceiro rito, alimentos e aromáticos eram oferecidos aos deuses
e à divindade "Rio",ls pois ele carregava todos os males para longe do
paciente;
• Os ritos finais envolvem atos de purificação, como desfiar plantas,
trazendo o paciente de volta ao mundo exterior, com prescrições mágicas
estritas, como evitar alho e usar um colar especial por sete dias.
Os amuletos não tinham somente a função de proteção contra as forças
maléficas, eles também tinham um valor mágico para influenciar benefícamente
a vida cotidiana, como a composição de um colar-amuleto que continha 31
pedras: sete se destinavam "a conciliar seu deus com sua deusa"; seis outras
visavam "reconciliar um deus irritado com um homem", nove para "obter a
benevolência de altos funcionários do palácio" e nove para "obter ganhos,
opulência e riqueza".
Excertos documentais mágicos
Um ritual de exorcismo para aplacar uma dor física terrível, a dor de
dente, incluía uni verdadeiro mito. O texto a seguir era recitado três vezes
antes da aplicação de um emplastro medicamentoso.
Mito do Verme da Dor de Dente
Quando Ami16 criou o Céu, o Céu criou a Terra, a Terra criou os
Rios, os Rios criaram os Arroios, os Arroios criaram o Lodo, e que
o Lodo criou o Verme,17 o Verme veio chorar diante de Samas, e as
suas lágrimas rolaram diante de Ea: "O que me dás para comer?, o
que me dás para sugar?". "Eu te dou o Figo maduro, ou o fruto do
Pessegueiro!". "E o que me importa o Figo maduro, ou o fruto do
14. Arvore da família das leguminosas, originária da África tropical. No interior de seus
frutos há uma polpa ácida bastante apreciada.
15. Segundo a crença mesopotâmica, os rios eram tidos como divindades capazes de
expiar e julgar os pecados dos homens.
16. Anu, divindade mesopotâmica líder dos deuses, é também o nome sumério para céu
(Black & Green, 1998: 30).
17. Acredita-se que o verme identificado no texto seria na verdade o nervo exposto
do dente.
Pedro Paulo A. Funari | GlaydsoivJosé da Silva | Milton Luís Martins (ORGS.) 183
Pessegueiro? Coloque-me antes e instale-me entre o Dente e a
Gengiva para que eu sugue o sangue do Dente e que eu roa a
Gengiva!". Penetrar uma agulha e apertar a extremidade do Verme
(dizendo): "Posto que assim falaste, oh! Verme, queEate bata com
toda a sua força!" (Bottéro, 1993:483-5).
huppani kustipanní pitespinir zana buna pitespinir,18 conjuro contra
o verme: caça uma rã, corta-a e abra-a, tira-lhe as tripas e as peles,
cozinha-a no fogo. Estando o paciente acordado, ponha sobre o
dente doente; emprega logo o conjuro e ele se curará (López &
Sanmartín, 1993:425).
Este conjuro contém elementos de conhecimento medicinal, como
colocar calor em uma região inflamada, acelerando o processo inflamatório e,
com isto, antecipando a cura.
O texto abaixo relata sintomas de doenças, como a própria febre, um
mal bastante comum, ou ainda a icterícia e a lepra, doenças que acometiam os
mesopotâmicos na época.
Encantamento contra a febre
Fogo, fogo! O fogo tomou um só Homem. Ele se propaga
consumindo suas entranhas. O estoque da raça humana está
diminuindo. Bêlet-ili197 tornou-se (rainha) antes de Ea, o rei, Oh,
Ea, a humanidade foi criada pela tua palavra, depois tu removeste a
argila do céu das profundezas,20 por tua grande ordem, tu
determinaste suas capacidades, eu lanço uma palavra no (...) -
doenças, febre, furúnculos, lepra, icterícia. Chova como o orvalho,
corra como a lágrima, vá para o inferno (Foster, 1995: 416).
Algumas situações não chegavam a configurar-se em doença, mas
mereciam um pequeno encantamento demonstrando que a magia poderia ser
usada para situações bastante simples.
18. Estes termos não possuem significado algum, sSo uma espécie de "abracadabra",
imitando o som de uma língua estrangeira.
19. Bêlet-ili é a deusa da maternidade e da fertilidade (Black & Green, 1998: 132-3).
20. Isto é, do solo, da Terra.
184 História Antiga: contribuí coes brasileiras
Conjuro contra a flatulência
Vento, oh ventol Vento, tu és o fogo dos deuses. Tu estás entre as
fezes e a urina. Ta tens saído e tomado teu lugar entre os deuses,
teus companheiros (Póster, 1995: 4,17).
Mas, como vimos, a magia era usada para aliviar o sofrimento de
diversos tipos de males, entre eles o "mal de amor".
Conjuro amoroso swnéria
A jovem que presta na rua seus serviços, a jovem, a prostituta, a
filha de Inanna,21 a jovem, a filha de Inanna que presta seus serviços
nas pousadas é toda manteiga, é toda nata, é a vaca, a suprema
mulher Inanna, o armazém de Enki. A jovem, quando se senta, é
um pomar de maçãs florido, quando se encosta é a alegria do varão.
Estendo a ela meu querer, o querer do carinho, estendo a ela a mão,
a mão do carinho, dirijo até ela meu pé, o pé do carinho (...).
Quando tiveres vertido nata de uma vaca pura, leite de uma vaca-
mãe, nata de uma vaca, nata de uma vaca branca em uma taça verde
e tiveres tocado com eles (o leite e a nata) os peitos da jovem (...).
Que a jovem não me feche a porta aberta, nem descuide de seu filho
que chora, e que venha atrás de mim! (López & Sanmartín, 1993:
421-2).
O texto emprega uma linguagem figurada, fazendo alusão à alimentação
(pomar de maçãs, armazém de Enki, isto é, o lugar onde o deus criador dos
homens busca os alimentos), e à mulher como provedora de alimento e de
vida, associando a pureza à cor branca com as expressões "vaca pura/vaca
branca, nata e leite brancos".
O encantamento refere-se à divindade feminina mais importante do
panteão mesopotâmico, Inanna, considerada, segundo a tradição principal,
como filha de Anu e irmã de Ereãkigal, a poderosa rainha do inferno. Inanna
é a deusa da guerra, mas também do amor e do comportamento sexual. Na
maioria dos inúmeros textos que contam as aventuras sentimentais da deusa
IStar/Inaima ela é retratada como fácil, lasciva e dotada de um comportamento
difícil. Os mitos sublinham seu caráter principal: ela é a deusa do amor livre,
e, precisamente por esta razão, ela não estabelece ligações duradouras com
ninguém, pois seu destino, sua vocação, sua natureza, não é a fidelidade, o
21. A deusa Inanna, em sumário, IStar em acádico, é a deusa do amor e da guerra (Black
&Green, 1998: 108-9).
Pedro Paulo A. Funari Glaydson José da Silva | Adilton Luís Martins (ORGS.) 185
casamento ou a maternidade, mas tão somente o prazer do amor. Ainda
segundo a mitologia, Inanna teve como principal amante Dumuzi,22 o deus
do pastoreio, e, apesar disso, ela foi responsável pela sua morte (Bottéro,
1993:275).
Outros males que afligiam os antigos mesopotâmicos estavam
relacionados com a sexualidade. Tanto que alguns destes problemas ou
patologias foram objeto de uma série específica de conjuros denominados,
em sumério, Sà.zi.ga, em acádico, mó libbi, elevação do coração, que podemos
traduzir simplesmente por orgasmo.Conjuro contra a impotência sexual
Que sopre o vento, que tremam os montes, que as nuvens se
amontoem, que se derrame a chuva. Erija-se o pênis do asno e
monte a burra, entre no cio o bode e monte uma cabra atrás da
outra. Tenho um bode preso a minha cabeceira e um carneiro preso
aos pés da cama. Tu, com a cabeça na minha cama, tenha uma
ereção, faça amor comigo! Tu, com os pés na minha cama, tenha
uma ereção, acaricie-me! Minha vagina é a vagina de uma cadela,
seu pênis é o pênis de um cachorro. Como a vagina de uma cadela
retém ereto o pênis do cachorro, que minha vagina retenha ereto teu
pênis! Que teu pênis cresça como um bastão. Estou sentada na teia
de aranha do prazer, que eu não perca minha presa (Foster, 1995:
340).
Segundo as regras da prática da magia na Mesopotâmia, certos
encantamentos eram acompanhados de um ritual específico, como o que
acompanhava o conjuro acima descrito:
Colocas pó de imãs, pó de ferro em uma taça com azeite. Recitas o
conjuro sobre ela sete vezes. O homem se untará o pênis com ele e
a mulher a vagina: assim ele poderá dormir com ela várias vezes
(López & Sanmartín, 1993: 426).
Ainda sobre o mesmo tema, a impotência sexual, existe um
encantamento diferente, que faz referência a outras divindades meso-
potâmicas.
. t
Eu fiz uma cama: Potência, potência! Eu fiz uma cama para a
potência! Que IStar faça para t)umuzi, que Nartaya faça para seu
22. Em hebreu, Tammuz.
166 História Anliga: contribuições brasileiras
amante, que Rara faça para seu cônjuge, permita-me fazer para
meu amante! Permita que acame {,..) vibre, que seu pênis permaneça
ereto! Possa seu ardor não enfraquecer, noite e dia! Pela ordem da
Senhora Poderosa, IStar, Nanava, Gazbaba, Kara (Póster, 1995:
339).
Igara, divindade de tradição semita, era esposa do deus Dagan,23 ele
também de origem oeste semítica. Igara exerceu mais influência na região do
Médio Eufrates e, como uma deusa do amor, foi comparada à IStar,
diferenciando-se desta por sua característica específica que era a de ser a
deusa da maternidade (Black & Green, 1998:110).
Considerações finais .
Uma das características da civilização mesopotâmica estava baseada
na crença em divindades celestes que seriam responsáveis pelos
acontecimentos na vida dos homens na Terra. Para poder explicar estas
relações, escribas e sacerdotes criaram mitos e narrativas literárias que tratam
das mais variadas questões (Roux, 1995: 111). Esta documentação inclui
desde mitos cosmogônicos até textos que relatam a fundação de cidades,
passando por composições mágico-medicinais.
A magia repousa na crença que os seres vivos e o mundo material à sua
volta estavam unidos por fortes relações e que estas possibilitavam todo o
tipo de interações entre eles. Acreditavam que o contato físico entre as
pessoas e entre pessoas e coisas permitia a transferência de certas
propriedades, o que explica a prática do uso de amuletos a partir de plantas
e minerais, assim como a utilização da saliva, que cuspida poderia espantar
um demónio, ou, se "trocada" entre duas pessoas (num beijo na boca),
criaria uma ligação mágica entre elas. A capacidade mágica da saliva é expressa
na linguagem, pois o ideograma da saliva (Uáu) está presente no termo que
designa o feiticeiro (U§n.ZU) e que, literalmente, significa "aquele que
conhece a saliva" (Joarmès, 2001:485-6).
A magia foi onipresente na Mesopotamia e se baseava na convicção
da eficácia imediata de certos elementos e determinadas ações. Recitar certos
conjuros, às vezes acompanhados de ações ritualísticas, poderia amenizai1
os males do corpo e da alma e provocar a cura dos doentes. Esses rituais
mágico-medicinais, realizados nas residências ou nos templos, eram utilizados
23. A palavra dagan, em ugaritico e hebraico, significa grão e, de acordo com a tradição
mesopotâmica, o deus Dagan foi o inventor do arado.
Pedro Paula A. Funarí | Glaydson José da Silva | Adiltcn Luís Martins (ORGS.) 187
para casos de etiologia aparentemente tão dispares como dor de dente ou
dor de amor.
Os males e sortimentos da existência humana eram castigos infligidos
pelos deuses pomo punição pelos pecados. Assim, o sofrimento, em geral, e
a doença, em particular, estavam integrados no sistema religioso do universo
e haviam encontrado sua justificativa, sua explicação e sua razão de ser. Mas
também o seu antídoto: a magia. Através dela, palavras e gestos eram
utilizados na busca da cura e da felicidade.
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