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CAPÍTULO XII A Magia na Mesopotâmia KATIA MARIA PAIM POZZER A Mesopotâmia localiza-se no território do atual Iraque, no valafluvial do Eufrates e do Tigre (Figura 1). Foi nessa região que surgiram as civilizações urbanas1 responsáveis pela invenção da primeira escrita da humanidade, a escrita cuneiforme.2 Na Antiguidade, essa região foi palco de importantes culturas, como a suméria, a babilónica e a assíria ao longo de três milénios. Sua estrutura política básica foi a da cidade-Estado, marcada pela pulverização do poder: cada cidade-Estado disputava a hegemonia política sobre uma região. E uma das características desta sociedade era o politeísmo: cada cidade-Estado possuía seu próprio panteão, um verdadeiro mosaico de divindades e mitologias A concepção religiosa O sistema religioso mesopotâmico traduzia as representações coletivas do sagrado daquela comunidade, que fora formada em uma tradição imemorial. A estrutura religiosa era composta de hábitos, de regras implícitas, de orientações adquiridas através da educação familiar; ela não dependia de um criador, nem perpetuava uma norma rígida (Bottéro & Kramer, 1993: 56). As divindades mesopotâmicas não eram anónimas, elas possuíam epítetos e funções, estado civil, atributos específicos e estavam vinculadas a um território particular, uma cidade onde exerciam seu poder e proteção. No 1. A descoberta e a difusão da agricultura e da pecuária, durante o período neolítico (7000-4000 a.C.), favoreceram o processo de sedentarização das comunidades nómades e de formação de novas organizações da sociedade. O desenvolvimento da agricultura gerou uma elevação das reservas alimentares, possibilitando uma maior especialização das atividades artesanais e técnicas e uma maior complexidade na divisão social do trabalho. Esse fenômefio económico acompanhou-se de uma aceleração do processo de descobertas e invenções decisivas, que marcaram essa época como a invenção da escrita. 2. A palavra cuneiforme vem do latim cuneus - canto -,' pois a escrita que recebe esse nome era o resultado da incisão de um estilete na argila mole, tendo três dimensOes: altura, largura e profundidade (Pozzer, 1998/1999: 62). 176 História Antiga: contribuições brasileiras Figura 1. Mapa do Antigo Oriente Próximo. mundo mesopotâmico existem tantos panteões quantas mitologias e cidades (Glassner,2002:186). E, como todo sistema politeísta, as divindades estavam organizadas em uma sociedade, onde cada uma tinha seu campo de atuação, suas competências, seus privilégios, seus saberes e poderes. Para os antigos habitantes da "região entre rios'1, toda a vida na Terra era comanda pela vontade dos residentes dos céus e dos infernos, isto é, as divindades do mundo superior e do mundo inferior. Como resume Bottéro (Bottéro & Kramer, 1993:78): Em todos os sentidos e em todas as suas funções essenciais, a religião na Mesopotâmia foi a transposição, magnificada e sublimada, das relações de submissão, de admiração, de dependência e devoção dos sujeitos à seu rei. A concepção básica dos mesopotâmicos era de que nada ocorria por si; acreditavam na inexistência da casualidade, em que tudo que acontecia era resultado de um ato, de uma vontade de alguém. E, como esta infinita série de vontades meta-humanas era a raiz e a razão de tudo, uma maneira lógica de evitar o mal seria abortá-lo em sua causa, obtendo acesso aos escritos do destino a fim de corrigi-lo. Mas, posto que isso era impossível, Pedro Paulo A. Funari Glaydson José da Silva | Adilton Luís Martins (QRGS.) 177 fazia-se imprescindível conhecer o estado embrionário da História, o que está entre o já decretado mas ainda não acontecido: o futuro. Esta concepção de História explica o papel dos adivinhos e de sua importância na sociedade mesopotâmica. Geralmente, os mesopotâmicos utilizavam-se dos adivinhos para compreender e interpretar as mensagens criptografadas dos deuses, mas acreditavam também que os deuses poderiam se dirigir diretamente aos homens através da revelação. Juntamente com o exame das vísceras3 de animais sacrificados para este fim, a interpretação dos sonhos4 constituiu o procedimento divinatório mais antigo na Mesopotâmia (Bottéro, 1987:157- 69). A magia no imaginário mesopotâmico A magia era um aspecto natural da vida na antiga Mesopotâmia. Em um mundo ameaçado por demónios sobrenaturais e feiticeiros, onde o passado, o presente e o futuro estavam inextricavelmente interligados, era comum o uso da magia para confortar e, se possível, curar. O eminente assiriólogo francês, Jean Bottéro (1987-1990:201) define magia na Mesopotâmia como sendo: Um sistema de fatos sociais fundado na crença de eficácia imediata de um certo números de comportamentos, procedimentos e de elementos que se utiliza para criar efeitos essencialmente benéficos, mas cujas relações com suas causas eram, de nosso ponto de vista, perfeitamente irracionais. Enquanto que, em virtude dos mesmos princípios, as operações eram executadas (...) para causar o mal falava-se em feitiçaria. Segundo o imaginário mesopotâmico, o homem possui grande capacidade de intervenção no meio natural que o cerca e, para isso, tinha dois meios essenciais à sua disposição: o gesto e a palavra. Os conjuros ou ritos orais repousavam na força da palavra. Segundo a concepção 3. Existe uma grande quantidade de documentos que formam um verdadeiro "tratado de hepatoscopia" (Blakiston, s/d: 501). Também há evidências da confecção de réplicas de fígados de animais, em argila, que seriam utilizados no ensino destes profissionais (López & Sanmartín, 1993: 456, n. 596). 4. Para os mesopotâmicos, os deuses poderiam falar diretamente com os homens através dos sonhos, como relata um famoso texto literário chamado "O Poema de Âtrahasis", onde o deus Ea previne o herói da chegada do dilúvio sobre a Terra (Bottéro & Kramer, 1993: 548-9). 178 História Antiga: ronlribuíçfles brasileiras mesopotâmica, o verbo era criador, a enunciação de um bem ou de um mal era o suficiente para garantir sua criação. Os ritos manuais tinham sua origem no poder do gesto, na capacidade destrutiva ou transformadora dos diversos produtos naturais ou elementos primordiais como a água e o fogo. Pelo gesto, pela mão auxiliada por inúmeros objetos e pelos elementos naturais primordiais: a água para lavar e limpar, para levar, carregar e afogar; o fogo para purificar e reduzir a cinzas. Apalavra, a ação primeira e fundadora das coisas, teria uni instrumento para ordenar e comandar (Bottéro, 1987^ 1990:206). Aos olhos dos mesopotâmicos, o sofrimento era tudo o que era contrário ao desejo de felicidade. Para eles, os males físicos e as doenças seriam apenas algumas manifestações possíveis do suplício. Eles acreditavam que seu infortúnio era uma punição divina causada por uma ação deliberadamente contrária aos princípios éticos da sociedade, ou por alguma conduta inadequada, ainda que involuntária. Na Mesopotâmia antiga, assim como em todas as culturas, os homens aprenderam a combater o mal. A finalidade da literatura mágica babilónica era a eliminação dos males que acometiam o homem, fossem eles causados pela possessão demoníaca ou decretados por quem administrava o destino e controlava sua realização, isto é, os deuses. O objetivo do ritual mágico era desfazer o sofrimento que impedia o bem-estar e o desfrute normal da vida concedida a cada um. Os demónios eram seres inferiores aos deuses, mas superiores aos homens, eram os executores dos castigos ordenados por aqueles e poderiam causar uma doença específica. A magia tinha um amplo espectro de atuação: poderia ser usada para se proteger contra esses demónios, para desfazer o efeito nocivo de algum "pecado", para aumentar a potência sexual, para assegurar para si a paixão de alguém, para acalmar o choro das crianças, frustrar as atividades de feiticeiros hostis, além de muitas outras funções. Magiae medicina: duas formas de curar Juntamente com a prática da magia, a medicina dita científica também existiu. A origem da medicina mesopotâmica é atestada em documentos do período de Fará, na metade do III milénio a.C. A medicina terapêutica e a medicina mágica co-existiram e foram utilizadas complementarmente, como indica a documentação epistolar da cidade-reino de Mari que relata o tratamento realizado pelo médico5 (asú) e pelo exorcista6 (ââipu) (Biggs, 1987-1990:623). 5. CAD A/II 344, em sumério chamado de a.zu, e em acádico de asu. 6. CAD A/II 431, em sumério chamados de lú.maS.masYIú.ka.pirig ou Iú.mu7.mu7, e em acádico de maSmaSSu/(w)ãSipu. 4 l Pedra Paulo A, Funari | Giaydson José da Silva | Adilton Luís Martins (ORGS.) 179 Sabemos que b médico7 (asú) era formado por um mestre que praticava a medicina ou por uma escola, como a famosa "Faculdade da cidade de Isin" e que alguns se tornavam especialistas, como "médico dos olhos".8 O Código de Hammu-rabi, em seus parágrafos 215a 223, regula a profissão de médico e prevê o pagamento de honorários (Bouzon, 2000). Já o mágico (ââipu) era um integrante do corpo de funcionários do templo e estava ligado ao clero. A documentação sobre a magia atesta a utilização de remédios extraídos da natureza, sobretudo de plantas, de produtos minerais (sais e pedras) e animais (sangue, carne, couro, ossos, excrementos) com o uso de decocção, cataplasmas, enemas, ungilentos, pomadas, etc. O conhecimento prático de remédios a partir de ervas, bem como o conhecimento cirúrgico existiu na antiga Mesopotâmia, mas as causas das doenças (dimítu, em acádico) do corpo, do espírito e do "coração" - dores, tristezas, privações e desgraças - eram imputadas à ação divina ou demoníaca, sendo os demónios apenas agentes das decisões dos deuses na punição dos pecados (Bottéro, 1992:206). Dentre a documentação existente, podemos citar igualmente textos de caráter profilático, nos quais a ação mágica é preventiva. Nestes rituais, que incluíam a elaboração e uso de poções e unguentos, fazia-se oferendas de água e/ou queima de perfumes. Além de remédios elaborados a partir de ervas naturais, a cerveja, bebida comum na Mesopotâmia, era utilizada como medicação. Uma oração à SamaS9 exemplifica esta prática: "SamaS: levo à minha boca a erva tarmus, na minha mão esquerda a erva imhuresra,10 na minha direita o deus Cerveja" (López & Sanmartín, 1993:443). Encantamentos e rituais mágicos A prática mágica era fundada na ideia de que os homens podiam agir sobre as forças sobrenaturais, sobre os seres vivos e as coisas que constituíam seu ambiente natural. A magia babilónica sobreviveu até nós através de diversas formas: encantamentos e fórmulas mágicas em sumério, acádico e algumas outras línguas, como o elamita ou o hurrita, descrevendo os rituais endereçados ao mágico, as ações que ele deveria fazer, incluindo a 7. O CAD A/ÍI 344 apresenta a palavra asâtu como o feminino de asQ, demonstrando a existência de mulheres médicas. ; 8. CAD A/II 347. 9. SamaS é o deus da justiça na Babilónia, é o ;deus-sol,-aquele que ilumina (Black & Green, 1998: 182-4). 10. As ervas ditas tarmuS e imhureSra não possuem tradução. tea História Anlíga: cortríbjiçfias brasileiras lísla dos encantamentos a sarem usados para cada caso, o que deveria ser dito pelo mágico ou pelo paciente, e amuletos contendo excertos de magia. Os rituais mágicos eram realizados através de gestos e de palavras, os chamados conjuros. Estes eram recitados por técnicos em curandeirismo e magia, os exorcistas (âôipu\s também de levar a cabo as ações ritualísticas mágicas que poderiam ser feitas em domicílios privados ou no templo e receitar os ingredientes e os fármacos. Os encantamentos são ritos orais complementares às operações e gestos mágico-religiosos, realizados pelos habitantes da Mesopotâmia, para combater o mal que os afligia. Os mais antigos encantamentos sumérios que conhecemos datam do Período Dinástico Antigo, por volta de 2400 a.C., são provenientes das cidades de Abu Salabih, Suruppak e LagaS e são destinados a curar doenças. Alguns servem contra a picada de serpentes e escorpiões, para ajudar no parto ou para consagrar objetos usados nos rituais mágicos (Joannès,2003:408-10). Os escribas mesopotâmicos compilaram duas grandes séries de ritos corporais e encantamentos. Trata-se das séries Maqlú e Surpu, grandes clássicos da literatura mágica. O Maqlú, a queima, possui oito tabletes cuneiformes com encantamentos e um tablete que descreve um complexo ritual noturno, no qual o exorcista invoca os deuses que conhecem a identidade da feiticeira e expulsa o mal do corpo da vítima, após a queima de certos objetos e a pronúncia de encantamentos para conjurar e destruir o .poder maléfico da feiticeira. Já o èurpn, a cremação, se propõe a purificar a vítima. Ele reúne encantamentos e rituais contra todo o tipo de má conduta familiar e/ou social que o indivíduo possa ter. Nele, o exorcista queima os objetos sobre os quais foram transferidos os pecados do paciente. Dentre as coleções mágicas mesopotâmicas com melhor preservação está a chamada de Surpu, que significa literalmente queima ou combustão. O Surpu era realizado quando os clientes/pacientes do mágico não conheciam as causas de seus males, isto é, não sabiam por quais atos ou omissões eles teriam ofendido aos deuses e perturbado a ordem do mundo. O paciente ia ao mágico num estado crítico, atormentado, com insónia, doente, algumas vezes em convulsão, espumando pela boca, acometido de mutismo ou sofrendo de enxaquecas. No ritual, todos os pecados possíveis são exaustivamente enumerados, incluindo os efeitos do juramento: um perjúrio , poderia causar uma maldição. A combustão é a parte do ritual na qual o paciente descasca uma cebola, corta tâmaras em lâminas, desfaz nós de fios de linho ou lã e os joga no fogo. Todo o processo do surpu era realizado enquanto se recitava os encantamentos e através dele os pecados eram "desfeitos", sendo que a "performance" do paciente no ritual também era avaliada pelos deuses. Para finalizar, o mágico apaga o fogo e com ele os pecados. Pedro Paulo A, Furiari \n José da Silva j Adilton Luís Martins (ORGS.) 181 A documentação da época paleobabilônica apresenta um conjunto de textos que formam uma série canónica e classificam-se em quatro tipos fundamentais (López& Sanmartín, 1993:427-30): • Aqueles nos quais o mágico dirige-se diretamente aos demónios, ele próprio representando os deuses associados à magia branca (Enki/Ea,11 sua esposa Damkina e Asarluhi, considerado seu último filho) com a ordem de proteger a si mesmo contra os demónios enquanto durar o ritual. Este termina-se, geralmente, pela expressão "É conjurado pelo céu. É conjurado pelo inferno"; • Conjuros profiláticos, onde a ação mágica é meramente preventiva, usada para proteger as pessoas dos ataques dos demónios; « O terceiro grupo, chamado "do tipo Marduk-Ea" começa com a descrição detalhada dos demónios e o que eles têm feito. Apresenta esta pequena narrativa: Marduk12 observa e vai até seu pai (o deus Enki) para consultá-lo. Enki diz a seguinte fórmula: "Meu filho, o que é que você não sabe? Eu posso ajudá-lo? Tudo o que eu sei, você também iabe". Depois ele dá um conselho e indica um ritual apropriado a ser realizado. A ação inclui uma representação na qual o médico conjurador assume o papel do poderoso deus Marduk e fica encarregado de liberar o paciente de seus males; • O último tipo não é endereçado aos demónios ou aos deuses de magia branca, mas aos objetos de cultos que seriam usados em rituais. O encantamento dos objetos tornará mais efetiva sua função mágica. A maioria destes objetos são produtos naturais, tais como cebola, flocos de lã, farinha, sal, incenso, água do mar, cinzas ou brasas, pêlo de cabra, etc. Outro elemento da prática de magia de natureza diversa era chamado em acádieo de nambitrbú,que significa literalmente "para sua dissolução", e era realizado para "desfazer ou evitar" o efeito de um mal futuro, já detectado por um mau presságio. O ritual mágico namburbú típico consistia numa série de instruções destinadas ao exorcista: • A primeira prevê a realização de cerimónias fechadas (em espécies de cabanas de palha) a fim de separar o lugar ritualístico do mundo exterior, às vezes, pela performance dentro de uma área delimitada com um círculo mágico;13 11. Ea, nome acádieo do seu equivalente em sumério, Enki, o deus responsável pela criação do Homem, segundo a mitologia mesopotâmica (Black & Green, 1998: 75). 12. Marduk era o delis principal da cidade de Babilónia. 13. O círculo mágico era feito no chEo, com farinha e o doente deveria ficar em seu interior. 162 História Antiga ccitribuiçáes brasileiras • Os ritos de purificação: o paciente é lavado, banhado, depilado, O tamarindo14 era usado para borrifar e o incenso para fumegar. A área era varrida e provavelmente uma cabra era sacrificada. Um sino de cobre era soado e um tambor era batido; • No terceiro rito, alimentos e aromáticos eram oferecidos aos deuses e à divindade "Rio",ls pois ele carregava todos os males para longe do paciente; • Os ritos finais envolvem atos de purificação, como desfiar plantas, trazendo o paciente de volta ao mundo exterior, com prescrições mágicas estritas, como evitar alho e usar um colar especial por sete dias. Os amuletos não tinham somente a função de proteção contra as forças maléficas, eles também tinham um valor mágico para influenciar benefícamente a vida cotidiana, como a composição de um colar-amuleto que continha 31 pedras: sete se destinavam "a conciliar seu deus com sua deusa"; seis outras visavam "reconciliar um deus irritado com um homem", nove para "obter a benevolência de altos funcionários do palácio" e nove para "obter ganhos, opulência e riqueza". Excertos documentais mágicos Um ritual de exorcismo para aplacar uma dor física terrível, a dor de dente, incluía uni verdadeiro mito. O texto a seguir era recitado três vezes antes da aplicação de um emplastro medicamentoso. Mito do Verme da Dor de Dente Quando Ami16 criou o Céu, o Céu criou a Terra, a Terra criou os Rios, os Rios criaram os Arroios, os Arroios criaram o Lodo, e que o Lodo criou o Verme,17 o Verme veio chorar diante de Samas, e as suas lágrimas rolaram diante de Ea: "O que me dás para comer?, o que me dás para sugar?". "Eu te dou o Figo maduro, ou o fruto do Pessegueiro!". "E o que me importa o Figo maduro, ou o fruto do 14. Arvore da família das leguminosas, originária da África tropical. No interior de seus frutos há uma polpa ácida bastante apreciada. 15. Segundo a crença mesopotâmica, os rios eram tidos como divindades capazes de expiar e julgar os pecados dos homens. 16. Anu, divindade mesopotâmica líder dos deuses, é também o nome sumério para céu (Black & Green, 1998: 30). 17. Acredita-se que o verme identificado no texto seria na verdade o nervo exposto do dente. Pedro Paulo A. Funari | GlaydsoivJosé da Silva | Milton Luís Martins (ORGS.) 183 Pessegueiro? Coloque-me antes e instale-me entre o Dente e a Gengiva para que eu sugue o sangue do Dente e que eu roa a Gengiva!". Penetrar uma agulha e apertar a extremidade do Verme (dizendo): "Posto que assim falaste, oh! Verme, queEate bata com toda a sua força!" (Bottéro, 1993:483-5). huppani kustipanní pitespinir zana buna pitespinir,18 conjuro contra o verme: caça uma rã, corta-a e abra-a, tira-lhe as tripas e as peles, cozinha-a no fogo. Estando o paciente acordado, ponha sobre o dente doente; emprega logo o conjuro e ele se curará (López & Sanmartín, 1993:425). Este conjuro contém elementos de conhecimento medicinal, como colocar calor em uma região inflamada, acelerando o processo inflamatório e, com isto, antecipando a cura. O texto abaixo relata sintomas de doenças, como a própria febre, um mal bastante comum, ou ainda a icterícia e a lepra, doenças que acometiam os mesopotâmicos na época. Encantamento contra a febre Fogo, fogo! O fogo tomou um só Homem. Ele se propaga consumindo suas entranhas. O estoque da raça humana está diminuindo. Bêlet-ili197 tornou-se (rainha) antes de Ea, o rei, Oh, Ea, a humanidade foi criada pela tua palavra, depois tu removeste a argila do céu das profundezas,20 por tua grande ordem, tu determinaste suas capacidades, eu lanço uma palavra no (...) - doenças, febre, furúnculos, lepra, icterícia. Chova como o orvalho, corra como a lágrima, vá para o inferno (Foster, 1995: 416). Algumas situações não chegavam a configurar-se em doença, mas mereciam um pequeno encantamento demonstrando que a magia poderia ser usada para situações bastante simples. 18. Estes termos não possuem significado algum, sSo uma espécie de "abracadabra", imitando o som de uma língua estrangeira. 19. Bêlet-ili é a deusa da maternidade e da fertilidade (Black & Green, 1998: 132-3). 20. Isto é, do solo, da Terra. 184 História Antiga: contribuí coes brasileiras Conjuro contra a flatulência Vento, oh ventol Vento, tu és o fogo dos deuses. Tu estás entre as fezes e a urina. Ta tens saído e tomado teu lugar entre os deuses, teus companheiros (Póster, 1995: 4,17). Mas, como vimos, a magia era usada para aliviar o sofrimento de diversos tipos de males, entre eles o "mal de amor". Conjuro amoroso swnéria A jovem que presta na rua seus serviços, a jovem, a prostituta, a filha de Inanna,21 a jovem, a filha de Inanna que presta seus serviços nas pousadas é toda manteiga, é toda nata, é a vaca, a suprema mulher Inanna, o armazém de Enki. A jovem, quando se senta, é um pomar de maçãs florido, quando se encosta é a alegria do varão. Estendo a ela meu querer, o querer do carinho, estendo a ela a mão, a mão do carinho, dirijo até ela meu pé, o pé do carinho (...). Quando tiveres vertido nata de uma vaca pura, leite de uma vaca- mãe, nata de uma vaca, nata de uma vaca branca em uma taça verde e tiveres tocado com eles (o leite e a nata) os peitos da jovem (...). Que a jovem não me feche a porta aberta, nem descuide de seu filho que chora, e que venha atrás de mim! (López & Sanmartín, 1993: 421-2). O texto emprega uma linguagem figurada, fazendo alusão à alimentação (pomar de maçãs, armazém de Enki, isto é, o lugar onde o deus criador dos homens busca os alimentos), e à mulher como provedora de alimento e de vida, associando a pureza à cor branca com as expressões "vaca pura/vaca branca, nata e leite brancos". O encantamento refere-se à divindade feminina mais importante do panteão mesopotâmico, Inanna, considerada, segundo a tradição principal, como filha de Anu e irmã de Ereãkigal, a poderosa rainha do inferno. Inanna é a deusa da guerra, mas também do amor e do comportamento sexual. Na maioria dos inúmeros textos que contam as aventuras sentimentais da deusa IStar/Inaima ela é retratada como fácil, lasciva e dotada de um comportamento difícil. Os mitos sublinham seu caráter principal: ela é a deusa do amor livre, e, precisamente por esta razão, ela não estabelece ligações duradouras com ninguém, pois seu destino, sua vocação, sua natureza, não é a fidelidade, o 21. A deusa Inanna, em sumário, IStar em acádico, é a deusa do amor e da guerra (Black &Green, 1998: 108-9). Pedro Paulo A. Funari Glaydson José da Silva | Adilton Luís Martins (ORGS.) 185 casamento ou a maternidade, mas tão somente o prazer do amor. Ainda segundo a mitologia, Inanna teve como principal amante Dumuzi,22 o deus do pastoreio, e, apesar disso, ela foi responsável pela sua morte (Bottéro, 1993:275). Outros males que afligiam os antigos mesopotâmicos estavam relacionados com a sexualidade. Tanto que alguns destes problemas ou patologias foram objeto de uma série específica de conjuros denominados, em sumério, Sà.zi.ga, em acádico, mó libbi, elevação do coração, que podemos traduzir simplesmente por orgasmo.Conjuro contra a impotência sexual Que sopre o vento, que tremam os montes, que as nuvens se amontoem, que se derrame a chuva. Erija-se o pênis do asno e monte a burra, entre no cio o bode e monte uma cabra atrás da outra. Tenho um bode preso a minha cabeceira e um carneiro preso aos pés da cama. Tu, com a cabeça na minha cama, tenha uma ereção, faça amor comigo! Tu, com os pés na minha cama, tenha uma ereção, acaricie-me! Minha vagina é a vagina de uma cadela, seu pênis é o pênis de um cachorro. Como a vagina de uma cadela retém ereto o pênis do cachorro, que minha vagina retenha ereto teu pênis! Que teu pênis cresça como um bastão. Estou sentada na teia de aranha do prazer, que eu não perca minha presa (Foster, 1995: 340). Segundo as regras da prática da magia na Mesopotâmia, certos encantamentos eram acompanhados de um ritual específico, como o que acompanhava o conjuro acima descrito: Colocas pó de imãs, pó de ferro em uma taça com azeite. Recitas o conjuro sobre ela sete vezes. O homem se untará o pênis com ele e a mulher a vagina: assim ele poderá dormir com ela várias vezes (López & Sanmartín, 1993: 426). Ainda sobre o mesmo tema, a impotência sexual, existe um encantamento diferente, que faz referência a outras divindades meso- potâmicas. . t Eu fiz uma cama: Potência, potência! Eu fiz uma cama para a potência! Que IStar faça para t)umuzi, que Nartaya faça para seu 22. Em hebreu, Tammuz. 166 História Anliga: contribuições brasileiras amante, que Rara faça para seu cônjuge, permita-me fazer para meu amante! Permita que acame {,..) vibre, que seu pênis permaneça ereto! Possa seu ardor não enfraquecer, noite e dia! Pela ordem da Senhora Poderosa, IStar, Nanava, Gazbaba, Kara (Póster, 1995: 339). Igara, divindade de tradição semita, era esposa do deus Dagan,23 ele também de origem oeste semítica. Igara exerceu mais influência na região do Médio Eufrates e, como uma deusa do amor, foi comparada à IStar, diferenciando-se desta por sua característica específica que era a de ser a deusa da maternidade (Black & Green, 1998:110). Considerações finais . Uma das características da civilização mesopotâmica estava baseada na crença em divindades celestes que seriam responsáveis pelos acontecimentos na vida dos homens na Terra. Para poder explicar estas relações, escribas e sacerdotes criaram mitos e narrativas literárias que tratam das mais variadas questões (Roux, 1995: 111). Esta documentação inclui desde mitos cosmogônicos até textos que relatam a fundação de cidades, passando por composições mágico-medicinais. A magia repousa na crença que os seres vivos e o mundo material à sua volta estavam unidos por fortes relações e que estas possibilitavam todo o tipo de interações entre eles. Acreditavam que o contato físico entre as pessoas e entre pessoas e coisas permitia a transferência de certas propriedades, o que explica a prática do uso de amuletos a partir de plantas e minerais, assim como a utilização da saliva, que cuspida poderia espantar um demónio, ou, se "trocada" entre duas pessoas (num beijo na boca), criaria uma ligação mágica entre elas. A capacidade mágica da saliva é expressa na linguagem, pois o ideograma da saliva (Uáu) está presente no termo que designa o feiticeiro (U§n.ZU) e que, literalmente, significa "aquele que conhece a saliva" (Joarmès, 2001:485-6). A magia foi onipresente na Mesopotamia e se baseava na convicção da eficácia imediata de certos elementos e determinadas ações. Recitar certos conjuros, às vezes acompanhados de ações ritualísticas, poderia amenizai1 os males do corpo e da alma e provocar a cura dos doentes. Esses rituais mágico-medicinais, realizados nas residências ou nos templos, eram utilizados 23. A palavra dagan, em ugaritico e hebraico, significa grão e, de acordo com a tradição mesopotâmica, o deus Dagan foi o inventor do arado. Pedro Paula A. Funarí | Glaydson José da Silva | Adiltcn Luís Martins (ORGS.) 187 para casos de etiologia aparentemente tão dispares como dor de dente ou dor de amor. Os males e sortimentos da existência humana eram castigos infligidos pelos deuses pomo punição pelos pecados. Assim, o sofrimento, em geral, e a doença, em particular, estavam integrados no sistema religioso do universo e haviam encontrado sua justificativa, sua explicação e sua razão de ser. Mas também o seu antídoto: a magia. Através dela, palavras e gestos eram utilizados na busca da cura e da felicidade. Bibliografia BIOGS, R. D. Medizin. Reallexikon der Assyriolagie und Vorderasiatischen Archáologie, Berlin/New York, vol. 7, 1987-1990, pp. 623-9. BLACK, J. & GREEN, A. Gods, Demons and Symbols ofAncient Mesopotamia. London: British Museum Press, 1998. BLAKISTON. Dicionário médico. 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