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32 REVISTA DO LEGISLATIVO32 jul-set/98 No Brasil, circunstâncias históricas tornaram mais lento o processo de formaçªo da cidadania e fizeram com que atØ hoje prevalecesse a desconfiança entre os cidadªos e destes frente ao governo, situaçªo que precisa mudar junto com o fortalecimento da cidadania, para garantir nosso próprio futuro como naçªo Brasileiro: Cidadªo? JosØ Murilo de Carvalho Doutor em CiŒncia Política pela Universidade de Stanford/EUA e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) C omeço contando um pequeno episódio de que fui parte. Peque- nas histórias do cotidi- ano sªo, às vezes, mais esclarecedoras da cultura de um povo do que abstratas especulaçıes acadŒmicas. Em sua espontaneidade, podem jogar luz inesperada sobre as- pectos importantes dos valores cole- tivos, inclusive no campo que nos deve ocupar aqui hoje o da cons- truçªo da nossa cidadania. Dirigia- me a um sítio localizado a 60 quilô- metros do Rio de Janeiro, quando fui interrompido por um grupo de pes- soas que me pediram para levar uma senhora ao mØdico. Atendi e, no car- ro, indaguei da razªo do pedido. A casa da mulher tinha sido invadida por policiais militares. Ela sofreu um choque e passou mal. De regresso do posto mØdico, onde fiquei saben- do que o trauma poderia ter sido sØ- rio, detive-me no posto policial para reclamar. Apenas me viram, os poli- ciais se dirigiram a mim com toda gentileza, dizendo imediatamente: Agradecemos ao autor e à Editora UFMG a cessªo dos direitos de publicaçªo deste artigo para a Revista do Legislativo. Brasileiro: Cidadªo? foi extraído do livro Pontos e Bordados escritos de história e política, Editora UFMG, 1998. Texto publicado originalmente sob o título Interesses contra a cidadania. In: MATTA, Roberto da et al. Brasileiro: cidadªo?. Sªo Paulo: Cultura Editores Associados, 1992. p.87-125. ENSAIO 1 33REVISTA DO LEGISLATIVOjul-set/98 Pois nªo, doutor, em que podemos servi-lo? Expliquei o caso, argumentei que poderiam ter causado a morte da po- bre velha. O sargento nªo se abalou. Admitiu terem sido ele e um colega os autores do feito, mas negou a acu- saçªo: Nªo invadi, doutor, nªo ar- rombei; foi apenas o peso do meu corpo que forçou a porta do case- bre. Continuou explicando que a mulher se declarara crente e fora bem tratada. Havia uma acusaçªo de rou- bo de galinha o clÆssico roubo de galinha! contra os filhos da mulher, daí a razªo da investigaçªo policial. Completou afirmando que o local era ponto de macumba e talvez de trÆfi- co de drogas, o que justificava ple- namente a açªo da polícia. Essa Ø a pequena história. O que ela nos diz sobre a cidadania em nosso país? De início, podemos verificar que, naquele contexto, a igualdade de todos perante a lei, estabelecida no artigo 5” da Constituiçªo em vigor, Ø balela. Quem define a cidadania, na prÆtica, Ø a polícia. Na curta conver- sa de dez minutos com um agente da lei, com alguØm que deveria implementar os dispositivos consti- tucionais, descobrimos que ele esta- belece, por conta própria, trŒs clas- ses de cidadªos, a saber: o doutor, o crente, o macumbeiro. Doutor Ø o cidadªo de primeira classe, titular dos direitos constitucionais, merecedor do respeito e da deferŒncia dos agen- tes da lei. O crente vem em segundo lugar: pode ter alguns direitos viola- dos, mas ainda merece algum res- peito. Por fim, o macumbeiro: nªo tem direitos, nem pode ser conside- rado cidadªo. Na vida real daquela localidade, o que vale mesmo Ø a constituiçªo da Animal Farm (A Revoluçªo dos Bichos), a famosa cri- açªo literÆria de George Orwell. Como todos sabem, após a reforma constitucional de Animal Farm fei- ta pelos porcos, a constituiçªo da- quele país aparentemente imaginÆ- rio reduziu-se a um artigo: Todos os animais sªo iguais, mas alguns animais sªo mais iguais do que os outros. O doutor Ø, entre nós, o animal mais igual do que os outros. O poli- cial nªo teve dificuldade em amigos influentes, pagando advoga- dos, comprando a polícia, ou, no caso do Rio de Janeiro e outras metrópo- les, recorrendo atØ a meios heterodo- xos. É o um por cento da populaçªo com renda de mais de dez salÆrios mí- nimos. Direitos civis O crente da histó- ria, projetado para o cenÆrio brasi- leiro, Ø o pobre honesto: o trabalha- dor assalariado com carteira assina- da, do campo ou da cidade, o pe- queno funcionÆrio, o pequeno pro- prietÆrio. Ele nªo estÆ, como o dou- tor, acima de qualquer suspeita, mas tem o benefício da dœvida. Quais de seus direitos serªo respeitados, quais serªo violados, isso depende da ava- liaçªo concreta de cada caso pelos agentes da lei. Em nossa historinha, foi ignorada a inviolabilidade do domicílio e respeitada a integridade física. O pobre honesto nªo tem o conhecimento exato de seus direi- tos civis nem as condiçıes intelectu- ais e materiais para fazer valer esses direitos. Na antiga sociedade patri- arcal, sua œnica defesa era o fazen- deiro sob cuja proteçªo devia colo- car-se apesar dos altos custos em ter- mos de independŒncia pessoal. Hoje, apenas igrejas, sindicatos e associa- çıes de moradores proporcionam al- guma assistŒncia que, no entanto, li- mita-se a pequena parcela dessa imensa populaçªo. Por fim, o macumbeiro. Em ter- mos de Brasil, o macumbeiro repre- senta um imenso segmento da po- pulaçªo das grandes cidades, traba- lhadores sem carteira assinada, do- mØsticas, biscateiros, camelôs, meno- res de rua, mendigos. Quase sem- pre, Ø mulato ou negro, analfabeto ou com educaçªo primÆria incomple- ta. Esse brasileiro faz parte da comu- nidade política nacional apenas no- minalmente. Seus direitos civis sªo desrespeitados sistematicamente. Ele Ø culpado atØ prova em contrÆrio. Às vezes, mesmo após prova em con- trÆrio. identificÆ-lo em minha pessoa. Mi- nha roupa era de trabalho, surrada. Mas havia o carro, um monza, sím- bolo inequívoco de posiçªo social, e havia a cor branca, o modo de falar, a pele fina, os dentes completos, toda uma sØrie de pequenos indicadores que revelavam, ao olho experimen- tado, a presença de um mais igual. O doutor, o cidadªo de primeira clas- se, falando agora do Brasil e nªo ape- nas do contexto de minha pequena história, Ø a pessoa rica, educada, bran- ca. É o empresÆrio, o professor uni- versitÆrio, o político, o fazendeiro, o coronel, o profissional liberal. É a pes- soa capaz de defender seus direitos e mesmo seus privilØgios, recorrendo a A igualdade de todos perante a lei, como determina o artigo 5” da Constituiçªo, Ø balela. Quem define a cidadania, na prÆtica, Ø a polícia. Ela Ø que determina as classes de cidadªos BRASILEIRO: CIDADˆO? 34 REVISTA DO LEGISLATIVO34 jul-set/98 Crentes e macumbeiros, pobres honestos e pÆrias formam a multi- dªo dos pobres e miserÆveis, os 60 milhıes analfabetos e semi-analfa- betos, de acordo com reportagem da Folha de S. Paulo. Formam a imensa base da pirâmide social bra- sileira, os 83% que recebem atØ dois salÆrios mínimos (dados de 1985). Sªo a base de uma socieda- de hierarquizada, que o antropó- logo Roberto da Matta caracterizou como a do vocŒ sabe com quem estÆ falando?. Conta mais a posi- çªo social de cada um do que as estipulaçıes da lei, do que o capí- tulo constitucional que garante a igualdade de todos perante a lei. É uma sociedade cujos valores con- trastam radicalmente, por exemplo, com os da sociedade norte-ameri- cana, onde a frase equivalente ao vocŒ sabe com quem estÆ falan- do? Ø quem vocŒ pensa que Ø?, uma afirmaçªo de igualdade em perfeito acordo com a declaraçªo de direitos feita pelos fundadores dos Estados Unidos. No primeiro caso, Ø o doutor, socialmente su- perior, afirmando sua superiorida- de civil sobre os inferiores. No se- gundo, Ø o so-cialmenteinferior, afirmando sua igualdade civil pe- rante os supe-riores. E tudo acontece num país em que o capítulo de direitos políticos da Constituiçªo estÆ em pleno fun- cionamento. HÆ eleiçıes regulares e razoavelmente honestas, o sufrÆ- gio nunca foi tªo amplo, incluin- do, pela primeira vez na história da Repœblica, analfabetos e maio- res de 16 anos. Hoje, apenas os conscritos do serviço militar estªo excluídos do direito de voto. Parti- dos políticos podem ser organiza- dos com a maior facilidade, mani- festaçıes políticas sªo livres e fre- qüentes. Os mecanismos da demo- cracia funcionam normalmente. Nossa política Ø formalmente de- mocrÆtica. No entanto, apesar da plenitude dos direitos políticos, permanecem a incerteza e a insegurança quanto ao nosso futuro democrÆtico, sem falar no futuro nacional. Permanece a sensaçªo de que as instituiçıes democrÆticas, como o Congresso, os partidos, a PresidŒncia, os sindica- tos, ainda nªo funcionam de manei- ra satisfatória; de que a democracia ainda continua um sonho irrealizado, planta frÆgil; de que os problemas bÆsicos da populaçªo continuam sem soluçªo. Certamente, haverÆ muitas ra- zıes para este fracasso. Nªo Ø pos- sível abordar todas numa curta pa- lestra. Gostaria de centrar a discus- sªo em uma razªo que nªo Ø mui- to discutida, mas que me parece importante. A razªo que gostaria de discutir tem a ver com o episódio relatado. Tem a ver para usar agora uma ter- minologia pedante, própria do dia- leto da tribo acadŒmica a que per- tenço com o maior desenvolvimen- to dos direitos políticos em relaçªo aos direitos civis. Entendo por direi- tos políticos o direito de votar e ser votado, o direito de organizar parti- dos e fazer demonstraçıes e reivin- dicaçıes políticas. Os direitos civis, tambØm arrolados na Constituiçªo, sªo: a igualdade perante a lei, a li- berdade, a propriedade. Mais espe- cificamente, liberdade de pensamen- to, de religiªo, de associaçªo; a pre- servaçªo da honra e da privacidade; a inviolabilidade do lar; o direito de nªo ser processado e sentenciado a nªo ser pela autoridade competen- te, de nªo ser privado da liberdade ou dos bens sem o devido processo legal, de nªo ser preso a nªo ser em flagrante delito ou por ordem judici- al. HÆ um excelente estudo históri- co de T.H. Marshall2 sobre a evolu- çªo dos direitos que compıem a ci- dadania os civis, políticos e soci- ais. Marshall diz que em um dos pa- íses em que se gerou a moderna de- mocracia, a Inglaterra, esses direitos surgiram seqüencialmente. Em pri- meiro lugar, vieram os direitos civis. Com base na posse dos direitos ci- vis, foram reivindicados os direitos políticos. Finalmente, conquistados os direitos políticos e, graças a eles, conseguida participaçªo no poder, foram implantados os direitos soci- ais: a regulamentaçªo do trabalho, a proteçªo à saœde do trabalhador, o seguro-desemprego, a pensªo, a apo- sentadoria, etc. A tese parece convincente do ponto de vista histórico e Ø lógica. Desenvolveu-se inicialmente no sØ- culo XVIII, o senso de alguns direi- tos fundamentais, como o da liber- dade individual e o direito de pro- priedade. Expandiu-se ao mesmo tempo o aparato da justiça real, que fazia valer esses direitos, que os ga- rantia, mesmo que de maneira im- perfeita e desigual. Era a justiça do rei que se sobrepunha lentamente à justiça privada dos barıes feudais. A Apesar da plenitude dos direitos políticos, permanece a sensaçªo de que a democracia ainda continua um sonho irrealizado e de que os problemas bÆsicos da populaçªo brasileira continuam sem soluçªo BRASILEIRO: CIDADˆO? 35REVISTA DO LEGISLATIVOjul-set/98 convicçªo de ser livre e a existŒncia de uma justiça que protegia esta li- berdade eram jÆ elementos podero- sos na fundaçªo de uma consciŒncia cívica, de uma comunidade política. O passo seguinte só veio um sØ- culo mais tarde, na Inglaterra, quan- do se consolidaram as instituiçıes representativas. Por volta de 1830, naquele país, o voto nªo era muito mais difundido do que no Brasil. Talvez fosse menos difundido, pois no Brasil votavam os analfabetos e, na Inglaterra, só os ricos pagavam impostos. No final da dØcada de 30, começou, no entanto, um movimen- to popular pela expansªo do voto, chamado Cartismo. A luta foi longa, mas, ao final do sØculo, expandira- se grandemente a franquia eleitoral. Para o sufrÆgio universal, faltava ape- nas o voto feminino, que teve que aguardar o sØculo XX para ser admi- tido. Uma vez ampliado o círculo do poder, formados os partidos socialista e trabalhista, o próximo passo foi re- clamar os direitos sociais via a açªo do próprio Estado. Os direitos sociais foram uma conquista típica do sØculo XX. Curiosamente, aliÆs, em alguns países, como os Estados Unidos, eles foram de início considerados incom- patíveis com os direitos políticos, pois pensava-se que uma pessoa depen- dente do Estado nªo poderia ser sufi- cientemente autônoma para exercer o direito de voto. Ordem inversa De qualquer modo, a combinaçªo dos trŒs direi- tos na seqüŒncia indicada, em que o exercício de um deles levava à con- quista do outro, parece-me ter cons- tituído um precioso elemento para explicar a solidez do sentimento de- mocrÆtico e a maior completude da cidadania nos países do ocidente europeu e nos Estados Unidos. A ci- dadania foi uma construçªo lenta da própria populaçªo, uma experiŒncia vivida: tornou-se um sólido valor coletivo pelo qual se achava que valia a pena viver, lutar e atØ mesmo mor- rer. Entre nós, as coisas nªo se de- ram dessa maneira. A ordem de surgimento dos direitos foi outra. A Constituiçªo imperial de 1824 regis- trou, de uma vez, os direitos civis e políticos como apareciam nas prin- cipais Constituiçıes liberais europØias da Øpoca. Eles surgiram pelo ato de fundaçªo da nacionalidade, realiza- do quase sem luta, numa transiçªo pacífica do regime colonial para a vida independente. Transiçªo que estava muito distante da longa luta empreendida pelos ingleses e da dra- mÆtica experiŒncia da Revoluçªo Francesa. A pressªo popular pelo direito de voto, por exemplo, foi quase inexistente no Brasil. No sØ- culo passado, houve mesmo retro- cessos, como o da lei da eleiçªo di- reta de 1881, que tirou o voto dos analfabetos num país em que eles constituíam 80% da populaçªo. Tal- vez o œnico movimento a demandar participaçªo eleitoral nos 170 anos de vida independente do País tenha sido o das Diretas, comandado es- pecialmente pela classe mØdia urba- na na dØcada de 80. Nªo houve nada semelhante ao Cartismo, e o movi- mento pelo sufrÆgio feminino foi pouco significativo. As expansıes do voto no Brasil se deram por reformas constitucio- nais em 1934 e 1988, sem que a elas correspondessem grandes pressıes populares. Os direitos civis jÆ esta- vam consagrados na Constituiçªo de 1824, que se inspirava na Constitui- çªo francesa de 1792 e na Declara- çªo dos Direitos do Homem e do Cidadªo. Mas, se esses direitos ain- da hoje sªo letra morta para grande parte da populaçªo, que dizer do Brasil do sØculo XIX, quando havia escravidªo e quase toda a popula- çªo chamada de livre vivia sob o es- trito controle dos senhores de terra? Ao ser discutida uma vez no Se- nado a naturalizaçªo dos imigrantes que se buscava atrair para o País, um senador mais franco se opôs à medi- da, dizendo nªo querer que os es- trangeiros, confiados na lei, aqui vi- essem tomar cacete. Esta foi, literal- mente, a expressªo usada pelo se- nador Bernardo Pereira de Vascon- celos, insuspeito de demagogia, pois era um dos chefes do Partido Con- servador. A fala confirmava o uso da violŒncia física contra os trabalhado- res livres e nªo apenas contra os es- cravos. Era violŒncia privada, mas tambØm violŒncia do Estado, de vez que Vasconcelos se referiaprovavel- mente ao recrutamento militar, que era uma autŒntica caçada aos pobres livres. É uma glória para o marinhei- ro Joªo Cândido ter sido o líder de uma revolta contra o uso da chibata na Marinha, em 1910, jÆ em pleno sØculo XX. A prÆtica, ainda comum no País inteiro, dos maus-tratos e mesmo da tortura contra presos co- muns por parte da política reflete, sem dœvida, esta tradiçªo escravista No Brasil, a ordem de surgimento dos direitos foi diferente da Europa e dos Estados Unidos. Talvez o œnico movimento a demandar participaçªo eleitoral nos 170 anos de vida independente do País tenha sido o das Diretas BRASILEIRO: CIDADˆO? 36 REVISTA DO LEGISLATIVO36 jul-set/98 negadora dos mais elementares di- reitos civis. A existŒncia dos direitos políti- cos sem o prØvio desenvolvimento de direitos civis, da convicçªo cí- vica da liberdade individual e dos limites do poder do Estado redun- da num exercício falho da cidada- nia política. O voto, como ainda acontece atØ hoje em largas parce- las da populaçªo, passa a ser tudo, menos a afirmaçªo da vontade cí- vica de participaçªo no governo do País, pela representaçªo. Ele Ø o penhor de lealdade pessoal, de re- tribuiçªo de favores, de barganha fisiológica, quando nªo simples mercadoria a ser vendida no mer- cado eleitoral. Escândalos diÆrios Daí, em par- te, as frustraçıes com as prÆticas da democracia política, com o que por algum tempo se chamou eufemisticamente de Nova Repœbli- ca. A Nova Repœblica, aprendemos amargamente, era nova no que se refere ao direito de escolher governantes, mas muito velha nas prÆticas eleitorais, na relaçªo personalista entre eleitor e represen- tante, na irresponsabilidade dos elei- tos, no trato inapropriado da coisa pœblica por parte dos detentores de cargos executivos e legislativos. Par- ticularmente, era muito velha na corrupçªo, que, desde o sØculo XVIII, foi detectada pelo autor anônimo do famoso livro A Arte de Furtar. Saí- mos da ditadura para a democracia e isto em nada parece ter afetado o comportamento de pessoas e insti- tuiçıes no que se refere ao respeito pelo dinheiro pœblico e à impunida- de dos criminosos. Escândalos sªo denunciados quase diariamente, e muito pouco ou quase nada resulta dos inquØritos e das tªo famosas como inócuas promessas de investi- gaçªo custe o que custar ou doa a quem doer. Mais do que o petróleo das cam- panhas da dØcada de 50, podemos dizer que a corrupçªo Ø nossa. Os republicanos acusavam o regime monÆrquico de ser corrupto, os re- volucionÆrios de 30 acusavam a Pri- meira Repœblica de ser corrupta, os democratas de 45 acusavam o Es- tado Novo de ser corrupto, os mi- litares de 64 acusavam a democra- cia de 45 de ser corrupta, a Nova Repœblica acusou a Repœblica dos militares de ser corrupta, hoje to- dos acusam a Nova Repœblica de ser corrupta... EstÆ claro que a corrupçªo nªo Ø um simples pro- blema de moralismo udenista, Ø um fenômeno sociológico que tem a ver com traços profundos de nos- sa cultura cívica ou de nossa falta de cultura cívica. Se o exercício dos direitos políti- cos, se os mecanismos democrÆticos de governo aparentemente nªo funcionam no sentido de represen- tarem os interesses mais prementes da populaçªo, de possibilitarem a soluçªo dos problemas mais dramÆ- ticos do povo, gera-se o desencanto BRASILEIRO: CIDADˆO? 37REVISTA DO LEGISLATIVOjul-set/98 com as próprias instituiçıes demo- crÆticas, gera-se o que todas as pes- quisas de opiniªo revelam: a baixa- estima popular por essas instituiçıes, pelos partidos políticos, pelo Con- gresso e pelos responsÆveis por sua operaçªo, os políticos. Gera-se, no final das contas, o desencanto com o sistema político e com o próprio País. É deprimente o que uma pesqui- sa da Folha de S. Paulo, feita em vÆrias cidades do Brasil, revelou: 40% dos brasileiros nªo vŒem razªo para orgulhar-se de seu país; muitos bra- sileiros sentem vergonha de ser bra- sileiros. Confesso-lhes que, em meus 52 anos de vida e com o meu co- nhecimento da história do sØculo XIX e da Primeira Repœblica, nunca vivi semelhante clima de desencanto e frustraçªo, de falta de lealdade com o sistema político e com o próprio país. Nªo Ø preciso salientar quªo perigosa Ø esta atmosfera, este caldo de cultura, para a sobrevivŒncia das instituiçıes democrÆticas. A situaçªo do País se revela mais peculiar se observarmos que os di- reitos sociais, os œltimos na seqüŒn- cia clÆssica, expandiram-se antes dos direitos políticos no Brasil. Foram introduzidos nªo graças à luta políti- ca, mas durante um período de dita- dura. Nªo se nega que, antes da Re- voluçªo de 30, houvesse um movi- mento operÆrio e demandas de re- gulamentaçªo do trabalho e de polí- tica de assistŒncia social. Mas Ø um fato tambØm que a legislaçªo social foi introduzida maciçamente num momento em que nªo estavam em operaçªo os mecanismos represen- tativos. Por isto, foi introduzida de cambulhada com uma política sindi- cal que favorecia o controle estatal sobre as organizaçıes operÆrias. Deste movimento, surgiu o mito da doaçªo das leis trabalhistas pelo Es- tado, particularmente por seu exe- cutivo na Øpoca, Getœlio Vargas. A imagem paternalista de pai dos po- bres por longos anos conformou a consciŒncia operÆria, assim como o corporativismo se enraizou profun- damente na prÆtica sindical de pa- trıes e operÆrios. Tudo isto era e Ø sintoma e reforço da precariedade da cidadania, da ausŒncia da conquista dos direitos individuais e coletivos pela luta. O que Ø liberdade Aqui cabe ou- tra historinha para exemplificar este lado de nossa falha cultural cívica. No início da Nova Repœblica, a TV Educativa do Rio de Janeiro fez um documentÆrio sobre cidadania. A idØia era flagrar, na prÆtica cotidia- na, a qualidade do espírito cívico da populaçªo. Lembro-me de um dos episódios. Um cidadªo jogava bola em ple- na calçada de uma rua movimenta- da da Zona Sul do Rio de Janeiro. A repórter perguntou-lhe se nªo julga- va tal prÆtica perigosa, pois a bola poderia atingir algum carrinho de bebŒ e machucar a criança, ou que- brar os óculos de uma pessoa. A res- posta veio rÆpida e convicta: Eu pago imposto e faço o que bem en- tender, onde bem entender. Aparentemente, hÆ aí afirmaçªo de liberdade individual, de indepen- dŒncia. AtØ certo ponto, Ø verdadei- ra a observaçªo. Este cidadªo nªo Ø o mesmo que aquele que Ø vítima da tradiçªo escravista, submetido ao arbítrio ou ao paternalismo do go- verno ou de particulares. Ele tem, sem dœvida, um forte senso de inde- pendŒncia pessoal. Mas que liberda- de Ø essa? Eu diria que Ø exatamente o reverso da medalha, da falta de consciŒncia de direitos presente no primeiro caso. Um conhecido soció- logo brasileiro, Oliveira Viana, fez uma observaçªo que me parece per- feita para descrever a situaçªo. O brasileiro, disse ele, diferentemente de povos com maior consciŒncia cí- vica, tem o senso da independŒncia individual, mas nªo tem o senso da liberdade. O que ele queria dizer com isso Ø que o senso da liberdade cívi- ca exige como contrapartida o senso da liberdade do outro. O meu direi- to, na famosa frase, termina onde co- meça o direito de meu semelhante. A concepçªo de liberdade de nosso jogador de calçada Ø prØ-cívica, Ø incompatível com a convivŒncia ci- vilizada, com a vida democrÆtica. Passa-se, entªo, de uma situaçªo de dependŒncia para outra de inde- pendŒncia selvagem, de puro indi- vidualismo. No processo, nªo se constrói o espaço pœblico, aquele espaço que Ø a essŒncia do gover- no democrÆtico por ser o local onde se conciliam os interesses di- vergentes. HÆ muito deste individualismo, desta concepçªo falha da liberdade, na Œnfase que se dÆ hoje à luta pelos direitos do cidadªo. A expressªo popular quero tudo a que tenho direitoØ expressªo deste fenôme- no. Nªo hÆ aí a visªo da contrapartida de dever que estÆ embutida na idØia Se os mecanismos democrÆticos de governo nªo representam os interesses da populaçªo, gera-se o desencanto com as instituiçıes, o que as pesquisas de opiniªo revelam: a decepçªo com o País BRASILEIRO: CIDADˆO? 38 REVISTA DO LEGISLATIVO38 jul-set/98 de direito civil. O professor, para começar com um exemplo que me toca diretamente, quer bons salÆri- os, verbas abundantes para pesqui- sa, independŒncia em relaçªo ao governo. Mas resiste à avaliaçªo de seu trabalho pelo aluno ou pelo go- verno, resiste ao uso de critØrios so- ciais ou pœblicos para avaliar sua docŒncia e sua produçªo. O funcio- nÆrio pœblico insiste nas vantagens do cargo, na estabilidade, nos fun- dos especiais de previdŒncia, mas resiste à discussªo da qualidade de seu serviço, da qualidade do atendi- mento ao pœblico, que Ø a razªo de ser de seu emprego. O empresÆrio quer liberdade de atuaçªo, menos impostos, menos burocracia, menos controle por parte do governo. Mas sonega impostos, subfatura, sobrefatura, aumenta desproposita- damente os preços, quando nªo pede abertamente a proteçªo do Estado na forma de incentivos e subsídios. A listagem podia prosseguir in- cluindo todas as categorias sociais. O mal percorre a sociedade de alto a baixo. JÆ foi mesmo batizado como a Lei de Gerson, isto Ø, a lei de levar vantagem em tudo. Em uma sociedade como esta, nªo hÆ possi- bilidade de confiança nem entre ci- dadªos, nem entre cidadªo e gover- no. Porque, evidentemente, o gover- no Ø parte deste jogo quando age arbitrariamente, quando mente, quando nega hoje o que farÆ ama- nhª, quando muda constantemente de posiçªo, quando, enfim, desres- peita o cidadªo. Nªo Ø de menor importância no fracasso das medidas de contençªo da inflaçªo esta des- confiança generalizada. O Plano Cru- zado terminou quando foi manipu- lado eleitoralmente, numa falcatrua que o desmoralizou e a todos os pla- nos do governo Sarney que se se- guiram. O seqüestro da poupança, feito no início do governo Collor, contra afirmaçıes categóricas em contrÆrio na Øpoca da campanha, nªo podia deixar de ter, como teve, efei- tos desastrosos para a credibilidade do ex-presidente. Resumindo, Ø a ausŒncia de cul- tura cívica, diria, que compromete ou torna pouco eficaz o exercício dos direitos políticos. Essa ausŒn-cia Ø meu outro argumento deve-se em boa parte à precariedade do desen- volvimento dos direitos civis, base sobre a qual devem se assentar os direitos políticos. Para que o cida- dªo político possa ter plena eficÆcia, ele deve sustentar-se nos ombros do cidadªo civil, consciente de seus di- reitos e tambØm de suas obrigaçıes. Esta falha, este defeito de origem, permeia a sociedade de alto a baixo. Dela podemos dizer o que dizia JosØ BonifÆcio, o Patriarca da Indepen- dŒncia, referindo-se à escravidªo, que constitui o câncer que corrói as entranhas da Naçªo. A referŒncia Ø apropriada, pois nªo hÆ dœvida de que a falta de es- pírito cívico Ø uma das heranças da escravidªo, esta antítese do espírito de liberdade. A escravidªo permeou de tal modo a sociedade que muitos escravos, ao conseguirem a alforria, se para tanto tivessem recursos, com- pravam para si um escravo. E houve mesmo casos de escravos que pos- suíam escravos. Os valores da escra- vidªo invadiam tudo, todas as clas- ses sociais. Dentro de nosso cidadªo sobrevivia a mentalidade do senhor e do escravo. Este fenômeno gerava o que Joaquim Nabuco chamou de mestiçagem política. Se eliminarmos da expressªo a conotaçªo racista atØ mesmo Nabuco era vítima dos males da escravidªo , se tomarmos mestiçagem no sentido de cidadªos incompletos, fragmentados, a expres- sªo traduz muito bem o argumento que vimos tentando desenvolver atØ agora. A reforma do JudiciÆrio Feito o diagnóstico, resta perguntar so- bre o que fazer. O fato de termos desenvolvido mais os direitos po- líticos e sociais do que os civis ha- verÆ de condenar-nos à perpØtua infantilidade democrÆtica? É preci- so acreditar que nªo. Nªo hÆ por que nªo conceber a possibilidade de que, por exemplo, o exercício sustentado dos direitos políticos acabe por possibilitar a maturaçªo dos direitos civis. O aprendizado Ø certamente lento e cheio de per- calços, pelo próprio fato de ser o exercício dos direitos políticos algo desnaturado, como argumentei. Neste sentido, países que fizeram trajetória diferente da inglesa para a cidadania moderna, como a Ale- manha e o Japªo, estavam em me- lhor condiçªo do que nós, pois ti- nham pelo menos um lado da me- dalha cívica: o senso do dever so- cial. Restava-lhes construir o senso da liberdade cívica, o que fizeram com Œxito. Pode-se, no entanto, perguntar se nas discussıes sobre reformas, inclu- sive constitucionais, que ocupam a HÆ muito de individualismo na Œnfase que se dÆ hoje à luta pelos direitos do cidadªo. Nªo existe ainda a visªo da contrapartida de dever que estÆ embutida na idØia de direito civil BRASILEIRO: CIDADˆO? 39REVISTA DO LEGISLATIVOjul-set/98 atençªo do País, nªo poderia ser dada maior atençªo àquelas que possam contribuir para o fortalecimento e a garantia dos direitos civis. Penso, especialmente, na reforma do siste- ma judiciÆrio, sistema que deveria ser o sustentÆculo desses direitos. Volto à hierarquia de nossa cidadania, o doutor, o crente, o macumbeiro. Nªo digo novidade alguma afirmando que a justiça entre nós, no sentido de garantia de direitos, existe apenas para a pequena minoria dos douto- res. Ela Ø inacessível à multidªo dos crentes e macumbeiros, isto Ø, à gran- de maioria dos brasileiros. Para eles, existe o Código Penal, nªo o Código Civil, assim como para os doutores existe apenas o Código Civil. Sem a garantia das leis civis, Ø ilusória a ci- dadania civil, Ø ilusória a esperança no fortalecimento da independŒncia pessoal, Ø ilusória a expectativa do desenvolvimento de um forte senti- mento de lealdade nacional. Observe-se que, na Ærea dos di- reitos sociais, as coisas evoluíram satisfatoriamente. Criou-se uma jus- tiça trabalhista à qual tem acesso uma parcela muito maior de cidadªos do que à justiça civil. O pobre tem mui- to mais facilidade de entrar em juízo para reclamar hora extra nªo paga do que para garantir a inviolabilidade de seu lar, a proteçªo de sua honra, de sua integridade física, mesmo de seu direito de ir e vir, freqüentemente violado pelas exigŒncias de carteira de identidade, carteira de trabalho, etc. A œnica tentativa no sentido de ampliar o acesso à justiça, feita nos œltimos tempos, foi a criaçªo dos juizados de pequenas causas. A meu ver, Ø uma tentativa de enorme al- cance. Mas ela nªo Ø prioridade de nenhum governo e, em conse- qüŒncia, tem-se expandido muito lentamente, tendo que lutar atØ mes- mo contra o corporativismo dos ad- vogados. De modo geral, parece-me que uma ampla reforma da justiça no sen- tido de tornÆ-la Ægil, barata e acessí- vel a todos os cidadªos seria um pas- so indispensÆvel em nosso aperfei- çoamento democrÆtico. Relembro que a administraçªo da justiça foi a primeira garantia da liberdade na fundaçªo do Estado Moderno. cil e rÆpido. Mas Ø preciso reconhe- cer que este processo estÆ sendo ex- cessivamente lento, assim como foi excessivamente lenta a aboliçªo da escravidªo. A pergunta que ocorre logo ao observador Ø se a lentidªo nªo se deve à falta de interesse em que a cidadania se desenvolva. O cidadªo esclarecido Ø, sem dœvida, uma peça incômoda, reivindicadora. Sem ele, no entanto, estÆ compro- metido nosso próprio futuro como naçªo. Euclides da Cunha escreveu, em Os Sertıes, refletindo o ambi- ente do final do sØculo XIX: Es- tamos condenados à civilizaçªo. Ou progredimos ou desaparecemos.Neste final do sØculo XX, a frase de- veria ser: Estamos condenados à democracia. Ou nos democratizamos ou desaparecemos. Notas 1 Palestra proferida no Ciclo de Debates Brasileiro: Cidadªo?, promovido pelo Banco Bamerindus e pela Associaçªo Cultural Avelino Vieira, em Curitiba, no período de agosto a novembro de 1991. 2 T.H.Marshall. Cidadania, classe so-cial e status. Editora Zahar, 1967. Nas próprias reformas mais estri- tamente políticas, seria possível enfatizar aquelas que podem forta- lecer o senso da responsabilidade in- dividual e coletiva. Penso especifi- camente no voto distrital, que apro- xima o eleitor do eleito e possibilita a revogaçªo do mandato do deputa- do inadimplente; penso na descentralizaçªo política, incluindo aí o município, para forçar a aproxima- çªo entre o cidadªo e o Executivo, com uma adequada distribuiçªo de recursos e responsabilidades entre os vÆrios níveis de governo. A formaçªo do cidadªo nas cir- cunstâncias históricas em que evo- luímos nªo poderia ser processo fÆ- A ampla reforma da justiça no sentido de tornÆ-la Ægil, barata e acessível a todos seria um passo indispensÆvel ao aperfeiçoamento da democracia. A administraçªo da justiça foi a primeira garantia da liberdade na fundaçªo do Estado moderno n BRASILEIRO: CIDADˆO?
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