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. Atlas didático Ciclo de vida da Leishmania 1a Edição Dirceu E. Teixeira Marlene Benchimol Juliany Cola F. Rodrigues Paulo Henrique Crepaldi Paulo Filemon Paolucci Pimenta Wanderley de Souza Rio de Janeiro 2013 Atlas didático Ciclo de vida da Leishmania 1a Edição Dirceu E. Teixeira Marlene Benchimol Juliany Cola F. Rodrigues Paulo Henrique Crepaldi Paulo Filemon Paolucci Pimenta Wanderley de Souza Rio de Janeiro 2013 Capa Esquema da Leishmania. Ilustração: Ricardo Amaral / Diagramação: Paulo Crepaldi. Teixeira, Dirceu E. Atlas didático: Ciclo de vida da Leishmania/ Dirceu Esdras Teixeira ... [et al.]. – Rio de Janeiro : Fundação CECIERJ, Consórcio CEDERJ, 2013. 64p. : il. color. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7648-900-9 1. Educação de Biologia e Parasitologia. 2. Protozoa. I. Título. CDD-616.9364 Nota biográfica dos autores Dirceu Esdras Teixeira, graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula, três anos de experiência como professor assistente de Biologia nessa Universidade e seis anos como designer instrucional em EaD na Fundação CECIERJ/Consórcio CEDERJ, trabalhando na roteirização de storyboards para as aulas do curso de Ciências Biológicas, no setor WEB-Biologia. Possui mestrado em Ciências do Mar, atualmente cursa doutorado em Educação, Difusão e Gestão em Biociências no Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e trabalha como acadêmico no setor de pesquisa do CEDERJ. Juliany Cola Fernandes Rodrigues, graduada em Ciências Biológicas Modalidade Genética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Ciências Biológicas (Biofísica) e doutorado em Ciências ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Possui pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na University of Georgia, USA. Atualmente é professora adjunta do Polo Avançado da UFRJ em Xerém e coordenadora do Mestrado Profissional em Formação Científica para Professores de Biologia, ambos da UFRJ. É Jovem Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ. Tem experiência na área de Biofísica, com ênfase em Biologia Celular, Parasitologia e Quimioterapia, atuando principalmente nos seguintes temas: Leishmania, Quimioterapia e Ultraestrutura. Paulo Henrique Crepaldi, graduado em Computer Arts pela Blinn College (Texas, USA). Graduado em Desenho Industrial pela Universidade Estácio de Sá. Atualmente é designer gráfico e animador 3D da Fundação CECIERJ/ Consórcio CEDERJ. Paulo Filemon Paolucci Pimenta, atualmente é Pesquisador Titular da Fiocruz- MG, chefiando o Laboratório de Entomologia Médica que criou em 1995. Foi professor da UFRJ durante 11 anos e pesquisador do NIH-USA durante 10, onde iniciou a área de estudos de vetores das leishmanioses. Foi professor visitante sênior da Universidade de Notre Dame, USA e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro-UENF. Possui experiência na área de Biologia Celular e Molecular em Parasitologia, com ênfase em estudos de vetores transmissores de doenças em humanos, principalmente insetos vetores das leishmanioses, dengue e malária, focalizando aspectos da interação com patógenos, tendo contribuído para a formação de vários profissionais. Marlene Benchimol, pesquisadora 1 A pelo CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Possui graduação, mestrado e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez pós-doutorado no exterior, na Universidade de Illinois e diversos estágios em centros de pesquisa internacionais. Atualmente é professora aposentada pela UFRJ e titular da Universidade Santa Úrsula, chefiando o Laboratório de Ultraestrutura Celular. Wanderley de Souza, possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestrado em Ciências Biológicas (Biofísica) e doutorado em Ciências, ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador 1 A do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Atualmente é Professor Titular da UFRJ e Diretor de Programas do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Nacional de Medicina e da Academia Mundial de Ciências. Prefácio O ensino da Parasitologia no Brasil é ministrado com base em material disponível nos livros clássicos, constituído por fotografias e esquemas que, em geral, não mostram os avanços obtidos nos últimos anos. Aspectos como o ciclo biológico dos vários protozoários, a compreensão da sua organização estrutural e os ciclos bioquímicos que ocorrem em várias organelas são pontos de fundamental importância, uma vez que o desenvolvimento de novos métodos de diagnóstico e de novas terapias baseia-se nos conhecimentos adquiridos nos últimos anos. Por outro lado, estes protozoários também são excelentes modelos de estudo de Biologia Celular de células eucarióticas, contribuindo significativamente para o melhor conhecimento de suas estruturas e funções. Com o objetivo de atualizarmos professores e estudantes na área da Protozoologia Médica, produzimos, inicialmente em 2011, o material sobre o ciclo de vida do Trypanosoma cruzi e, agora, o ciclo de vida da Leishmania em versão gráfica e em DVD, a serem disponibilizados gratuitamente, com os seguintes conteúdos: (a) esquemas bidimensionais e tridimensionais coloridos que mostram o ciclo biológico no hospedeiro vertebrado e invertebrado; e (b) animações e esquemas tridimensionais que mostram a organização ultraestrutural dos vários estágios do desenvolvimento. No conjunto, esperamos que este material contribua para melhorar o conhecimento científico e as aulas dos professores, sobretudo nos ensinos fundamental e médio. Agradecimentos especiais Aos pesquisadores do Laboratório de Ultraestrutura Celular Hertha Meyer do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que colaboraram com discussões, sugestões valiosas, cedendo ilustrações, além da produção em conjunto de artigos científicos. Gostaríamos de agradecer especialmente à doutoranda Joseane Lima Prado Godinho, à Dra. Marcia Attias e ao Dr. Jackson Costa por cederem gentilmente fotomicrografias de Leishmania e de pacientes apresentando os sintomas clínicos das principais manifestações das leishmanioses. Também nossos agradecimentos aos designers gráficos, Marcelo Xavier e Ricardo Amaral. Agradecemos ainda às várias instituições que apoiaram esta iniciativa, como a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), a coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), a Fundação Centro de Ciências do Estado do Rio de Janeiro (CECIERJ), o Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF), o Instituto de Bioquímica Médica (IBqM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Biologia Estrutural e Bioimagem (INBEB), o Centro Nacional de Bioimagem (CENABIO) e o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Conteúdo 1. Introdução ............................................................................................... 1 1.1. Leishmania: classificação e epidemiologia....................................... 1 1.2. História e manifestações clínicas das leishmanioses ........................ 5 1.2.1. Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) ........................... 6 A. Leishmaniose cutânea localizada ............................................ 6 B. Leishmaniose cutânea difusa ...................................................7 C. Leishmaniose cutânea disseminada .......................................... 9 D. Leishmaniose mucocutânea ..................................................... 10 1.2.2. Leishmaniose Visceral (LV) ...................................................... 11 1.3. A Leishmaniose no cão ..................................................................... 12 2. Estágios do desenvolvimento ................................................................. 15 A. Promastigota ........................................................................................ 15 B. Amastigota ........................................................................................... 19 3. Organização estrutural ......................................................................... 21 Núcleo ..................................................................................................... 25 Retículo endoplasmático .......................................................................... 26 Complexo de Golgi .................................................................................. 28 Mitocôndria e cinetoplasto ....................................................................... 28 Corpúsculo basal ...................................................................................... 29 Bolsa flagelar ........................................................................................... 30 Flagelo ..................................................................................................... 30 Estrutura paraflagelar ............................................................................... 30 Microtúbulos subpeliculares .................................................................... 31 Acidocalcissomo ...................................................................................... 31 Glicossomo .............................................................................................. 33 Inclusões lipídicas .................................................................................... 33 Túbulos multivesiculares ......................................................................... 35 Megassomo .............................................................................................. 35 4. Ciclo biológico da Leishmania ............................................................... 37 5. Interação da Leishmania com a célula hospedeira .............................. 40 5.1. Interação da forma promastigota com o macrófago ......................... 41 5.2. Interação da forma amastigota com o macrófago ............................. 52 6. Interação da Leishmania com o inseto vetor ........................................ 56 7. Referências básicas ................................................................................. 60 1 1. Introdução 1.1. Leishmania: classificação e epidemiologia Os protozoários do gênero Leishmania pertencem à Família Trypanosomatidae e à Ordem Kinetoplastida e podem ser subdivididos em dois subgêneros, o Viannia e o Leishmania. Esta subdivisão de gênero está relacionada principalmente ao desenvolvimento das formas promastigotas no inseto vetor. No subgênero Leishmania, os promastigotas colonizam os intestinos anterior, médio e posterior, enquanto que no subgênero Viannia, eles colonizam apenas os intestinos anterior e médio. Duas outras diferenças também são importantes para esta classificação: no subgênero Leishmania os amastigotas são maiores (3 a 6 μm) e as lesões densamente parasitadas, enquanto que no Viannia, são menores (2 a 4 μm) e as lesões apresentam poucos parasitos. São 21 espécies descritas no mundo atualmente, no entanto, apenas 12 espécies são reconhecidas nas Américas. No Brasil, até o presente momento foram identificadas oito espécies, sendo seis do subgênero Viannia e duas do subgênero Leishmania. As três principais espécies no Brasil são a L. (V.) braziliensis, L. (L.) amazonensis e a L. (L.) infatum chagasi (Shaw, 2006). Estes protozoários são parasitos flagelados que podem causar um complexo de doenças infecciosas conhecidas como leishmanioses, que são antropozoonoses de grande importância médica e veterinária. As leishmanioses fazem parte do grande grupo de doenças negligenciadas por não despertarem o interesse das indústrias farmacêuticas uma vez que são doenças principalmente relacionadas com a pobreza, cujo mercado consumidor é potencialmente de 2 baixa renda. Além disso, o estudo destas doenças também recebe poucos financiamentos por parte das agências de fomento (Academia Brasileira de Ciências, 2010). As leishmanioses são consideradas endêmicas nos cinco continentes, estando presentes em 98 países que podem ser divididos em três territórios. O gênero Leishmania apresenta uma ampla distribuição geográfica, sendo encontrado nas Américas Central e do Sul, bem como em partes da Europa, África e Ásia (Alvar et al., 2012). É uma doença que afeta principalmente as regiões mais pobres e os países em desenvolvimento. Estima-se que 350 milhões de pessoas estejam expostas ao risco de infecção no mundo e cerca de dois milhões de novos casos ocorram anualmente (WHO, 2010). Estudos epidemiológicos recentes estimam que ocorra anualmente de 200 a 400 mil novos casos de leishmaniose visceral e de 700 mil a 1,2 milhões de leishmaniose cutânea. Apenas três países concentram 90% dos casos de leishmaniose mucocutânea, enquanto que 10 países concentram 75% dos casos de leishmaniose cutânea. O Brasil está entre os países de maior incidência das formas cutânea e mucocutânea. Por outro lado, 90% dos casos de leishmaniose visceral se concentram principalmente na Índia, Bangladesh, Etiópia, Quênia, Sudão e Brasil (Alvar et al., 2012). No Brasil, ocorre uma predominância das formas cutâneas e mucocutâneas, presentes em praticamente todos os estados brasileiros (Fig. 1). No entanto, a leishmaniose visceral está presente com alta taxa de mortalidade (Fig. 2). Dados recentes do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde indicam a ocorrência de 35 mil casos de 3 leishmaniose cutânea e mucocutânea e 5 mil casos de leishmaniose visceral por ano (Desjeux, 2004; Ministério da Saúde - Brasil, 2006, 2007; Alvar et al., 2012). Fig. 1. Densidade de casos e circuitos de produção de Leishmaniose Tegumentar Americana por município. Brasil, 2005 a 2007, e casos em 2008 (Fonte: SVS/MS). 4 Fig. 2. Estratificação por município dos casos de Leishmaniose Visceral ou Calazar no Brasil, no período de 2006 a 2008 (Fonte: SVS/MS). 5 1.2. História e manifestações clínicas das leishmanioses O parasito foi descrito pela primeira vez em 1903, pelo médico britânico William Leishman e simultaneamente pelo pesquisador Charles Donovan em um caso de Calazar ou febre negra na Índia (Leishman, 1903), daí o seu nome. No Brasil, a primeira identificação ocorreu em 1895, quando Moreira identificou a existência do que foi denominado de Botão da Bahia ou Botão de Biskra, que também foi conhecido como botão endêmico dos países quentes. Esta referência se deve à presença de lesões cutâneas na pele. A confirmação de que se tratava de leishmaniose com a presença de leishmanias em úlceras cutâneas e nasobucofaríngeas só se deu em 1909, quando Lindenberg encontrou o parasito em trabalhadores de áreas de desmatamento para a construção de rodovias no interior de São Paulo. Por fim, Splendore dignosticou a forma mucosa da doença em 1911 e Gaspar Vianna denominou o parasito de Leishmania braziliensis. Somente em 1922, Aragão demonstrou o papel do flebotomíneo na transmissão das leishmaniosescutânea e mucocutânea. A forma visceral da doença teve uma história um pouco diferente quando, apenas em 1913, foi diagnosticado o primeiro caso pelo médico Migone em necrópsia de um paciente proveniente do Estado do Mato Grosso. Em seguida, a maior parte dos casos foi sendo identificada principalmente no Norte e Nordeste. Somente depois de 1930 é que o inseto Lutzomyia longipalpus foi identificado como vetor e, neste momento, começaram também a descobrir os primeiros casos de leishmaniose canina. Cada espécie está diretamente associada a um quadro clínico diferente (sumarizado na Tabela 1 no final desta seção), mas podemos considerar a 6 existência de, pelo menos, cinco formas clínicas diferentes causadas pelas principais espécies brasileiras, L. braziliensis, L. amazonensis e L. infantum chagasi: cutânea, mucocutânea, cutânea difusa, visceral (ou Calazar) e lesão dérmica pós-calazar. Estas formas podem ser agrupadas em duas grandes classes: Leishmaniose Tegumentar Americana, que engloba as formas cutânea e mucocutânea da doença e a Leishmaniose Visceral ou Calazar, que pode ser fatal (Kaye e Scott, 2011). Nos próximos tópicos serão abordadas as principais formas clínicas das leishmanioses. 1.2.1. Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) A leishmaniose tegumentar é de baixa gravidade quando comparada à leishmaniose visceral. A cura é geralmente espontânea ou após terapêutica específica. Esta forma da leishmaniose possui diferentes manifestações clínicas, tais como: A. Leishmaniose cutânea localizada São várias as espécies causadoras de leishmaniose cutânea no Brasil, com destaque para L. guyanensis, L. amazonensis e L. braziliensis, que podem ser transmitidas por picadas dos vetores Lutzomyia umbratilis, Lu. flasvicutellata e Lu. whitmani. Como o próprio nome sugere, no local da picada do inseto vetor, ou seja, em áreas expostas, desenvolve-se uma lesão cutânea indolor, de formato arredondado, tamanho variado (de milímetros a centímetros), podendo ser ulcerosa ou não (Fig. 3). As lesões têm características de fundo granuloso 7 e avermelhado e bordas elevadas, que podem ainda apresentar infecções secundárias por bactérias e/ou fungos. A lesão pode ser única ou múltipla e apresenta boa resposta ao tratamento (Ministério da Saúde, 2007). Fig. 3. Leishmaniose cutânea localizada. Paciente com lesão ulcerada franca, caracterizada por úlcera com bordas elevadas, infiltradas, fundo profundo granuloso, drenando secreção esbranquiçada (Foto de J. Costa, CPqGM/FIOCRUZ, Bahia). B. Leishmaniose cutânea difusa É uma doença de evolução lenta e sem tratamento eficaz, que no Brasil é causada pela espécie L. amazonensis (Ministério da Saúde, 2007). Constitui 8 uma forma clínica rara, de natureza crônica e muito grave. A doença começa com uma lesão única no local da picada do inseto vetor. É tratada de modo convencional, desaparecendo ao fim do primeiro tratamento. No entanto, em pacientes debilitados por deficiência na resposta imune celular, novas lesões múltiplas e não ulceradas podem aparecer. Estas se espalham por grandes extensões do corpo após o tratamento (Fig. 4). Fig. 4. Leishmaniose Cutânea Difusa (LCD). Paciente apresentando extensas placas infiltradas, algumas áreas com erosões associadas a crostas. Nota-se, ainda, lesão tuberosa com erosões e crostas no joelho esquerdo (Foto de J. Costa, CPqGM/FIOCRUZ, Bahia). 9 C. Leishmaniose cutânea disseminada É uma forma relativamente rara da doença que pode ser observada em até 2% dos casos. É caracterizada pelo aparecimento de múltiplas lesões papulares e de aparência acneiforme que acometem várias partes do corpo (Fig. 5). É causada por L. braziliensis e L. amazonensis. (Ministério da Saúde, 2007). Fig. 5. Leishmaniose Cutânea Disseminada (LCD). Paciente apresentando polimorfismo lesional (lesões ulceradas, úlcero crostosas, em placas infiltradas, acneiforme) distribuídas em diversos segmentos do corpo. De modo geral, os pacientes apresentam mais de dez lesões distribuídas pelo corpo, podendo comprometer mucosas (Foto de J. Costa, CPqGM/FIOCRUZ, Bahia). 10 D. Leishmaniose mucocutânea: É causada principalmente por parasitos da espécie L. braziliensis (Ministério da Saúde, 2007). Acredita-se que até 5% dos casos possam evoluir a partir da leishmaniose cutânea de forma crônica, ou também devido à cura espontânea ou com tratamento inadequado. Neste caso, os parasitos podem disseminar através da via hematogênica ou linfática. A partir daí, chegam até às mucosas da boca, nariz, palato, faringe e laringe. Como consequência, há a formação de lesões destrutivas que são desfigurantes, podendo causar mutilações na face (Fig. 6). Pode-se imaginar os impactos social e econômico desta doença desfigurante (David e Craft, 2009). Fig. 6. Leishmaniose mucocutânea. Edema nasal gigante com desabamento do mesmo e comprometimento da parte superior do lábio (Foto de J. Costa, CPqGM/FIOCRUZ, Bahia). 11 1.2.2. Leishmaniose Visceral (LV) A Leishmaniose Visceral ou Calazar é uma doença grave e frequentemente letal se não tratada. É considerada a mais devastadora dentre as formas clínicas das leishmanioses, por levar à morte, principalmente de crianças e idosos (Fig. 7). É causada, na maioria das vezes, pelas espécies L. donovani no Velho Mundo (Europa, Ásia e África) e L. infantum chagasi no Novo Mundo (Américas). Neste caso, os parasitos têm um tropismo acentuado pelo sistema mononuclear do fígado, baço, medula óssea e linfonodos. Após o tratamento, os pacientes podem desenvolver uma forma da doença denominada leishmaniose dérmica pós-calazar, que no entanto, é muito rara no Brasil. Fig. 7. Leishmaniose visceral. Note, marcado à tinta, como o fígado e o baço se encontram com tamanho muito aumentado (Ministério da Saúde). 12 1.3. A Leishmaniose no cão O cão, por ser o principal reservatório doméstico, exerce importância epidemiológica em áreas endêmicas no Brasil. Em geral, o que se observa é que a leishmaniose canina antecede a doença humana. Diversos estudos têm investigado a associação entre leishmaniose canina e humana na mesma região (Miró et al., 2008). Onde há um ser humano infectado com qualquer espécie de Leishmania, geralmente há também um cão infectado. A doença canina é clinicamente semelhante à infecção humana. No entanto, diferem quanto às lesões dérmicas, pois essas, ao contrário dos humanos, são frequentemente encontradas nos animais infectados e sintomáticos (Silva, 2007). Outros sintomas são feridas que demoram a cicatrizar, crescimento anormal das unhas (onicogrifose) e outros (Fig. 8). 13 Fig. 8. Principais sintomas da leishmaniose canina. (a) Feridas na pele, principalmente nas orelhas e no focinho (b). (c) Crescimento anormal das unhas (onicogrifose). (Fotos de P. Araujo, UFRRJ). 14 Tabela 1. Distribuição das principais espécies de Leishmania e o tipo de doença. Subgênero Leishmania Subgênero Viannia Velho Mundo Novo Mundo Novo Mundo Leishmaniose Visceral Acentuado tropismo do parasito pelas vísceras, como fígado, baço, medula óssea e tecidos linfáticos L. donovani L. infantum L. infantum chagasi Leishmaniose Cutânea Doença caracterizada pela presença de uma lesão cutânea localizada no sítio de inoculação pelo inseto vetor, que pode ser ulcerosa ou não L. major L. tropica L. aethiopica L. infantum chagasi L. mexicana L. pifanol L. amazonensis L. braziliensis L. guyanensis L. panamensis L. peruviana L. lainsoni L. naiffi L. lindenberg L. shawi Leishmaniose cutânea difusa Presença de lesões crônicase disseminadas que se assemelham à lepra. Neste caso, o paciente apresenta forte inibição da resposta imune celular e não há tratamento disponível L. aethiopica L. mexicana L. amazonensis Leishmaniose mucocutânea As lesões podem destruir total ou parcialmente as mucosas da boca, nariz, laringe e faringe L. braziliensis L. panamensis 15 2. Estágios do desenvolvimento O ciclo biológico da Leishmania apresenta dois estágios do desenvolvimento: promastigota, encontrada no trato digestório dos hospedeiros invertebrados e amastigota, que é observado apenas no interior da célula hospedeira dos vertebrados. A Leishmania é um parasito intracelular obrigatório, além de ser heteroxênico, ou seja, apresenta seu ciclo de vida em hospedeiros vertebrados mamíferos (que pode ser o homem) e insetos dípteros (o mosquito-palha). Independente da espécie de Leishmania, os estágios do desenvolvimento são semelhantes morfologicamente. A. Promastigota A forma promastigota é encontrada principalmente no inseto vetor. Esta forma é alongada e elíptica, cujo corpo celular mede entre 6 e 8 μm de comprimento. Possui um flagelo longo que emerge da parte anterior do corpo (Fig. 9), o que dá mobilidade ao parasito, além de ajudá-lo a se fixar no epitélio intestinal do inseto vetor. Apresenta organelas e estruturas típicas dos eucariotos, tais como núcleo, mitocôndria, retículo endoplasmático, complexo de Golgi e citoesqueleto. No entanto, a forma promastigota apresenta algumas organelas que podem ser exclusivas da Família Trypanosomatidae como o cinetoplasto, estrutura paraflagelar, acidocalcissomo, glicossomo e microtúbulos subpeliculares (Fig. 10-11). 16 Alguns estágios morfológicos das formas promastigotas podem ser encontrados durante o seu desenvolvimento no inseto vetor. No entanto, aqui nos concentraremos nos dois morfotipos mais estudados: os procíclicos (Fig. 10) e os metacíclicos (Fig. 11). Esses subtipos variam de acordo com a região do sistema digestório do inseto vetor. Os promastigotas procíclicos representam um estágio proliferativo e não-infectivo e encontram-se no intestino do inseto vetor. Já os metacíclicos, que são formas infectivas e não-proliferativas, são encontradas no lúmen do intestino médio torácico e anterior. Esta forma é a que será transmitida pelo inseto vetor através da picada durante o repasto sanguíneo (Bates, 1994). No hospedeiro vertebrado, os metacíclicos serão rapidamente Fig. 9. Micrografia da forma promastigota de L. amazonensis observada no microscópio eletrônico de varredura (Imagem de J. Godinho). 17 Fig. 10. Esquema tridimensional da forma promastigota procíclica de L. amazonensis mostrando as principais estruturas celulares (Vídeo suplementar 1). fagocitados, principalmente por macrófagos e neutrófilos. No interior destas células, os metacíclicos se transformarão rapidamente em amastigotas. Sendo assim, seu tempo de vida no vertebrado é muito curto. 18 Fig. 11. Esquema tridimensional da forma promastigota metacíclica de L. amazonensis mostrando as principais estruturas celulares. 19 Fig. 12. Micrografia da forma amastigota dentro de um vacúolo parasitóforo no interior de um macrófago observada no microscópio eletrônico de varredura (Imagem de J. Godinho). B. Amastigota A forma amastigota tem morfologia de arredondada a ovoide (Fig. 12), medindo cerca de 3 μm de largura e 6 μm de comprimento e apresentando um flagelo bem reduzido (Bates, 1994). O cinetoplasto possui forma de bastão e fica entre o núcleo e a base do flagelo. Esta forma é intracelular obrigatória, pois vive e se multiplica no interior do vacúolo parasitóforo de células do sistema fagocítico mononuclear dos mamíferos. Equivalentes à amastigota podem ser obtidos em meios axênicos mantidos a 32oC. Os amastigotas apresentam todas as organelas e estruturas semelhantes aos promastigotas, com exceção dos megassomos presentes nos amastigotas e ausentes nos promastigotas, e a estrutura paraflagelar, que está ausente nos amastigotas (Fig. 13). 20 Fig. 13. Esquema tridimensional da forma amastigota de L. amazonensis mostrando as principais estruturas celulares (Vídeo suplementar 2). Na figura 14 é possível observar um quadro comparativo dos estágios do desenvolvimento da Leishmania, que resume as diferenças morfológicas entre amastigota, promastigota procíclico e promastigota metacíclico. 21 Fig. 14. Esquema tridimensional comparativo dos estágios do desenvolvimento de L. amazonensis. Notar as diferenças de tamanho do corpo celular e do flagelo. 3. Organização estrutural As informações sobre a ultraestrutura dos parasitos são referentes à Leishmania do Novo Mundo (Américas), exemplificados aqui pela espécie Leishmania amazonensis. Nas figuras 15 e 16 é possível observar ilustrações de cortes longitudinais das formas promastigota e amastigota da Leishmania mostrando organelas e estruturas presentes nestes estágios do desenvolvimento. 22 Fig. 15. Ilustração da forma promastigota de L. amazonensis em corte longitudinal mostrando as principais estruturas celulares. 23 Fig. 16. Ilustração da forma amastigota da L. amazonensis em corte longitudinal mostrando as principais estruturas celulares. Estas ilustrações foram produzidas a partir de micrografias obtidas no microscópio eletrônico de transmissão. Organelas podem ser observadas em detalhes nas figuras 17 e 18. 24 Fig. 17. Micrografia da forma promastigota de L. amazonensis observada no microscópio eletrônico de transmissão (Imagem de J. Rodrigues e W. de Souza reproduzida com permissão da Sociedade Americana de Microbiologia©; Rodrigues et al., 2008). 25 Fig. 18. Micrografia da forma amastigota de L. amazonensis observada no microscópio eletrônico de transmissão (Imagem de J. Godinho e J. Rodrigues). Núcleo O núcleo dos tripanossomatídeos apresenta uma organização estrutural semelhante à de células eucarióticas, medindo cerca de 2,5 μm de diâmetro e possuindo um nucléolo. O núcleo possui um envoltório em que ambas as membranas são típicas, com poros nucleares medindo cerca de 80 nm de diâmetro, sendo que a membrana nuclear externa apresenta continuidade com a membrana do retículo endoplasmático, tal como células eucarióticas superiores (revisto por de Souza, 2002). 26 Retículo endoplasmático O retículo endoplasmático liso e rugoso são organelas envolvidas na síntese de lipídeos e proteínas, respectivamente. Perfis do retículo endoplasmático liso e rugoso podem ser encontrados por todo o corpo celular nos vários estágios do desenvolvimento da Leishmania. Muitas vezes, há maior concentração de retículo na região periférica, próximo aos microtúbulos subpeliculares. Em algumas situações, o retículo endoplasmático chega a tocar os microtúbulos subpeliculares e, muitas vezes, também se aproxima muito da mitocôndria (Fig. 19). 27 Fig. 19. Micrografia da forma promastigota de L. amazonensis. (a) O quadrado marca a área ampliada. (b) Em maior aumento, nota-se a associação íntima (cabeça de seta) entre os microtúbulos subpeliculares e o retículo endoplasmático (a. Imagem de J. Rodrigues reproduzida com permissão da Sociedade Americana de Microbiologia©. Lorente et al., 2004; b. Imagem de P. Pimenta e W. de Souza, 1985 ). 28 Complexo de Golgi Em Leishmania, o complexo de Golgi está sempre próximo à bolsa flagelar. De modo geral, é formado por um sistema de 3 a 10 cisternas e vesículas na porção trans. Como em outras células eucarióticas, o complexo de Golgi está envolvido no processo de modificação de proteínas, como glicosilação esulfatação, atuando como ponto central de distribuição de membranas para várias regiões da célula, sempre através do tráfego de vesículas, bem como na biogênese de lisossomos. Mitocôndria e cinetoplasto A Leishmania, bem como todos os membros da Família Trypanosomatidae, apresenta uma única mitocôndria que se ramifica por todo o corpo do protozoário. Assim como em todas as células eucarióticas, a mitocôndria dos tripanossomatídeos apresenta DNA mitocondrial. Enquanto que em outras células o DNA mitocondrial representa menos de 1% do DNA total, nos tripanossomatídeos pode chegar a 30%. Nesses protozoários, o DNA mitocondrial se organiza na forma de minicírculos e maxicírculos que se associam de forma concatenada. Concentram-se em uma determinada região da mitocôndria, localizada logo abaixo do corpúsculo basal, dando origem a uma estrutura denominada cinetoplasto. Na Leishmania, o cinetoplasto apresenta sempre a forma de bastão levemente curvado em ambos os estágios do desenvolvimento (Fig. 20). O cinetoplasto está sempre situado próximo ao corpúsculo basal e, consequentemente, ao flagelo. 29 Fig. 20. Micrografia eletrônica do cinetoplasto de L. amazonensis mostrando seu formato em bastão, bem como a presença de várias cristas mitocondriais (Imagem de J. Rodrigues). Corpúsculo basal O corpúsculo basal caracteriza-se por apresentar nove tripletes de microtúbulos, intimamente associado ao flagelo, servindo como sítio de crescimento dos microtúbulos. Esta estrutura também se encontra firmemente associada à membrana mitocondrial externa e ao cinetoplasto, através de filamentos unilaterais (revisto por Liu et al., 2005; Ogbadoyi et al., 2003). 30 Bolsa flagelar Em todos os tripanossomatídeos, a bolsa flagelar é formada por uma invaginação da membrana plasmática, de onde emerge o flagelo. Esta região é um importante sítio de endocitose e exocitose em tripanossomatídeos (de Souza et al., 2009). Nas espécies do gênero Leishmania, a bolsa flagelar é o único local de endocitose e exocitose. Flagelo A Leishmania, assim como todos os tripanossomatídeos, apresenta um flagelo típico, responsável pela motilidade do parasito, formado por um axonema, com nove pares de microtúbulos periféricos e um par central, envoltos por uma membrana flagelar. Mesmo a forma amastigota apresenta um pequeno flagelo. Conforme já comentado, o flagelo emerge de uma invaginação da membrana plasmática conhecida como bolsa flagelar. O flagelo encontra-se intimamente associado a um corpúsculo basal que, por sua vez, se associa à membrana mitocondrial externa e ao cinetoplasto. Ao sair da bolsa flagelar torna-se livre na região anterior. Temos ainda outra estrutura associada ao flagelo do promastigota, que é chamada de estrutura paraflagelar. Estrutura paraflagelar A estrutura paraflagelar (do inglês, paraflagellar rod) é formada por um arranjo complexo de filamentos proteicos, de diferentes espessuras que se encontram associados ao axonema e estende-se ao longo do flagelo do promastigota. Possui função ainda bastante discutida, podendo atuar tanto na 31 motilidade como na adesão ao epitélio intestinal dos insetos. Detalhes desta estrutura podem ser encontrados na publicação nesta série sobre o Trypanosoma cruzi (Teixeira et al., 2011). Microtúbulos subpeliculares Os microtúbulos subpeliculares possuem este nome por estarem situados logo abaixo da membrana plasmática. É o principal componente do citoesqueleto dos tripanossomatídeos e estão distribuídos por todo o corpo celular (exceto na região da bolsa flagelar), interligados entre si e com a membrana plasmática, sendo que, em alguns casos, também com perfis do retículo endoplasmático, conferindo assim maior rigidez à célula (Fig. 19). Acidocalcissomo Os acidocalcissomos possuem este nome por serem organelas ácidas, ricas em cálcio, polifosfatos e outros íons, e por possuírem uma coleção de canais, bombas e trocadores iônicos. Apresentam uma estrutura levemente alongada com diâmetro médio de 600 nm e estão distribuídos por toda a célula (Fig. 21). Dependendo da espécie de Leishmania, podem se apresentar em maior ou menor número, bem como com diâmetros maiores. Os acidocalcissomos atuam no armazenamento de cátions e fósforo, manutenção da homeostase intracelular, pH e osmorregulação (revisto por Docampo et al., 2005; Moreno e Docampo, 2009). 32 Fig. 21. Micrografia eletrônica da forma promastigota de Leishmania mostrando vários acidocalcissomos (organelas eletrondensas) distribuídos principalmente pela região posterior do parasito (Imagem de J. Rodrigues). 33 Glicossomo Os glicossomos possuem formato esférico, com diâmetro de aproximadamente 0,7 µm, apresentam uma matriz homogênea densa e são distribuídos aleatoriamente por todo o corpo celular. Essas organelas correspondem a um tipo especial de peroxissomo, designado como glicossomo, por concentrarem em seu interior a maior parte das enzimas da via glicolítica. Essas enzimas são encontradas no citoplasma de outros eucariotos, incluindo as células de mamífero. Além da via glicolítica, os glicossomos ainda possuem um repertório de enzimas envolvidas em diferentes processos celulares, como o metabolismo de peróxido, β-oxidação de ácidos graxos, gliconeogênese, biossíntese de lipídeos (fosfolipídeos e esteróis), biossíntese de pirimidinas e salvamento de purinas, síntese de aminoácidos, dentre outras. O amastigota parece conter um número maior de enzimas, demonstrando variação no metabolismo dos estágios do desenvolvimento (revisto por Opperdoes e Coombs, 2007). Inclusões lipídicas A Leishmania apresenta uma série de inclusões lipídicas que se caracterizam por apresentarem formas esféricas de diâmetro variável, não sendo envoltas por uma unidade de membrana típica, mas pelo que chamamos de hemimembrana, que corresponde a uma monocamada de fosfolipídios. Algumas são eletronlucentes, enquanto outras apresentam eletrondensidade variando de média a alta (Fig. 22) (Soares e Souza, 1987). Muito pouco se sabe sobre estas estruturas. 34 Fig. 22. Micrografia eletrônica da forma promastigota de L. amazonensis mostrando inclusões lipídicas. (a) Note que as inclusões lipídicas possuem diferentes eletrondensidades, podendo ser eletronlucentes e eletrondensas. (b) Em maior aumento, nota-se, em detalhe, a presença da hemimembrana (Imagem de J. Rodrigues reproduzida com permissão da Sociedade Americana de Microbiologia©). 35 Túbulos multivesiculares Estruturas túbulo-vesiculares são encontradas na forma promastigota de Leishmania. Os endossomas primários e o complexo de Golgi contribuem para a formação deste sistema túbulo multivesicular, que é longo na Leishmania. Estas estruturas tubulares longas são revestidas por membrana, e contêm pequenas vesículas de diferentes tamanhos em seu interior, com diâmetro médio de 100-200 nm. Este sistema se estende da região anterior, próximo à bolsa flagelar, até a região posterior e é sustentado por um ou dois microtúbulos citoplasmáticos que o envolve (Waller e McConville, 2002). Megassomo Como o próprio nome sugere, megassomos são grandes estruturas, que neste protozoário têm atividade lisossomal, encontradas na forma amastigota de algumas espécies do gênero Leishmania. São organelas eletrondensas, que variam de forma e tamanho, podendo alcançar o diâmetro do núcleo da célula (Fig. 23). Sua matriz não é homogênea, podendo apresentar perfis de membrana, inclusões eletrondensas e até mesmo vesículas. No amastigota, os megassomos são o destino finalde todas as macromoléculas capturadas no meio extracelular, ingeridas pelo processo endocítico do parasito. O promastigota possui pequenas vesículas eletronlucentes que acumulam cisteína protease, consideradas precursoras dos megassomos (de Souza, 2002; de Souza et al., 2009). 36 Fig. 23. Microscopia eletrônica de transmissão da forma amastigota de L. amazonensis obtida de tecido de camundongo BalB-c infectado. (a) Notam-se megassomos (asteriscos) com tamanhos variados. (b) Detalhe do megassomo com várias vesículas em seu interior, um possível indicativo de alta atividade de degradação (Imagem de J. Godinho e J. Rodrigues). 37 4. Ciclo biológico da Leishmania A infecção do inseto (mosquito-palha) (1) ocorre durante o repasto sanguíneo, quando a fêmea do flebotomíneo, que é hematófaga, pica um hospedeiro infectado e ingere células sanguíneas e outras células, especialmente macrófagos, contendo formas amastigotas (2). No trato digestório do vetor, ocorre o rompimento da membrana dos macrófagos e os parasitos são liberados (3). Na região anterior do trato digestório, ocorre a transformação dos amastigotas em promastigotas procíclicos (4) no interior da matriz peritrófica. Com o rompimento da matriz peritrófica, os promastigotas migram para o epitélio do trato digestório, onde se multiplicam e aderem pelo flagelo (5). Após a divisão, migram para a região anterior do intestino até a válvula estomodeal (6), onde se concentram e sofrem um processo de diferenciação, denominado metaciclogênese (Sacks e Perkins, 1984). Durante a metaciclogênese, os promastigotas apresentam redução no tamanho do corpo celular, tornam-se extremamente móveis e altamente infectivos e passam a ser denominados promastigotas metacíclicos. Ao danificar a válvula estomodeal, as formas metacíclicas migram para a probóscide e são regurgitados e transmitidos ao hospedeiro vertebrado através da picada, onde recomeça o ciclo. A infecção do homem e de outros hospedeiros vertebrados ocorre quando a fêmea do flebotomíneo infectada (7) pica o mamífero, inoculando o promastigota metacíclica (infectiva) (8) durante o repasto sanguíneo (Turco e Descoteaux, 1992). Hoje se sabe que a simples picada libera uma série 38 de fatores que induzem rápida infiltração da região afetada por neutrófilos e recrutamento de macrófagos (Peters et al., 2008). Os promastigotas metacíclicos são regurgitados e penetram na pele do hospedeiro, aderindo e invadindo uma gama de células nucleadas como, por exemplo, neutrófilos, células dendríticas, macrófagos (9) e fibroblastos. Inicialmente, a forma metacíclica é fagocitada pelos neutrófilos e macrófagos e no interior do vacúolo parasitóforo começa a se diferenciar (10) em amastigota (11) (Stuart et al., 2008). Após a diferenciação, o amastigota adere à membrana interna do vacúolo. Dentro do vacúolo, o amastigota não se multiplica no interior de neutrófilos. No entanto, em macrófagos multiplica-se por divisão binária (12) até ocupar grande parte do citoplasma (13). Em seguida, a membrana do macrófago se rompe liberando os amastigotas (14) no tecido que poderão invadir novos macrófagos (15) ou serem sugados por uma nova fêmea de flebotomíneo durante o repasto sanguíneo. A figura 24 sumariza cada etapa do ciclo biológico nos hospedeiros invertebrado e vertebrado. 39 Fig. 24. Ciclo biológico da Leishmania no interior do inseto vetor e do mamífero hospedeiro (Vídeo suplementar 3 e 4). 40 5. Interação da Leishmania com a célula hospedeira 41 5.1. Interação da forma promastigota com o macrófago O processo de interação da forma promastigota de Leishmania com a célula hospedeira envolve as seguintes etapas: (1) reconhecimento, (2) adesão, (3) sinalização, (4) fagocitose e (5) multiplicação. A etapa de adesão ocorre pelo flagelo ou pelo corpo celular. Envolve o reconhecimento de moléculas presentes na superfície da membrana do parasito, como o lipofosfoglicano (LPG) e a glicoproteína (gp63), que se liga a diferentes receptores encontrados na superfície dos macrófagos. Os principais receptores dos macrófagos envolvidos na adesão ao parasito são receptores do sistema complemento (CR1 e CR3), receptor de manose (MR) e receptores de fibronectina (FnRs). A membrana do macrófago começa a envolver o promastigota, formando um funil, que culmina na entrada do parasito em um vacúolo (Figs. 25, 26, 27 e 28). No interior deste, ocorre a diferenciação do parasito para a forma amastigota (Fig. 29) e, em seguida, ocorre a fusão de lisossomos com o vacúolo contendo o parasito, formando-se o vacúolo parasitóforo. No entanto, o parasito não é alterado pelas enzimas lisossomais. Nas espécies de Leishmania do Novo Mundo, como a L. amazonensis, os amastigotas ficam aderidos à membrana do vacúolo, preferencialmente pela região posterior. Em seguida, os parasitos multiplicam-se no interior do vacúolo parasitóforo e dezenas de amastigotas são aí encontrados (Figs. 30, 31 e 32). Posteriormente, a célula hospedeira fica tão repleta de amastigotas que ocorre a lise celular com a liberação de centenas de parasitos que são fagocitados por células do sistema fagocítico (macrófagos, neutrófilos, etc). 42 Fig. 25. Micrografia obtida no microscópio eletrônico de varredura após 30 minutos da interação de uma forma promastigota de L. amazonensis com macrófagos de cultura. Note que os pseudópodos vão progredindo ao redor do flagelo da forma promastigota (Imagem de J. Rodrigues e T. Portugal). 43 Fig. 26. Micrografia da interação de uma forma promastigota de L. amazonensis com macrófagos de cultura. Note que o promastigota está sendo internalizado e a cabeça de seta indica as ondulações e o funil que se formam na superfície do macrófago. Este promastigota está sendo fagocitado pela região anterior onde se encontra o flagelo (Imagem de J. Rodrigues e T. Portugal). 44 Fig. 27. Micrografia obtida após 1 hora de interação de uma forma promastigota de L. amazonensis com macrófagos de cultura (Imagem de J. Rodrigues e T. Portugal). 45 Fig. 28. Micrografia obtida após 2 horas da interação de uma forma promastigota de L. amazonensis com macrófagos de cultura (Imagem de J. Rodrigues e T. Portugal). 46 Fig. 29. Microscopia óptica de campo claro da interação de L. amazonensis com macrófagos em cultura, usando coloração por Giemsa. (a) Após 30 min de interação, é possível observar ainda a presença de promastigotas sendo internalizados, no entanto, já aparecem parasitos em transformação para formas amastigotas. (b) Após 5h, predominam os amastigotas com seu formato característico no interior dos vacúolos parasitóforos (Imagens de J. Rodrigues e T. Portugal). 47 Fig. 30. Microscopia óptica de campo claro de esfregaço de tecido da pele de camundongos Balb-c infectados com L. amazonensis. Notar o número elevado de amastigotas por macrófago (Imagem de J. Godinho e J. Rodrigues). 48 Fig. 31. Microscopia eletrônica de varredura de tecido da pele de camundongos Balb-c infectados com L. amazonensis após clivagem a frio usando nitrogênio líquido. Notar o número e formato das amastigotas dentro do vacúolo parasitóforo, bem como a sua relação com a membrana deste vacúolo (Imagem de J. Godinho, M. Attias e J. Rodrigues). 49 Fig. 32. Micrografia eletrônica de um macrófago infectado obtido da lesão de camundongo infectado, apresentando vários amastigotas (asteriscos) de L. amazonensis no interior de um vacúolo parasitóforo. Em algumas regiões é possível notar uma forte associação da membrana do amastigota com a membrana do vacúolo parasitóforo (Micrografia de J. Godinhoe J. Rodrigues). 50 Fig. 33. Processo de interação da forma promastigota de Leishmania com a célula hospedeira (macrófago) (Vídeo suplementar 5). (a) Promastigota aderindo e invadindo o macrófago. (b) Promastigota sendo fagocitada pelo macrófago seguido de formação do vacúolo parasitóforo (c). Ocorre a diferenciação do parasito para amastigota, que adere à membrana do vacúolo preferencialmente pela região posterior (d). Posteriormente, os lisossomos liberam enzimas no interior do vacúolo, porém, o parasito não é alterado. (e) O parasito multiplica-se por fissões binárias sucessivas (f), podendo tomar todo o citoplasma (g). A célula hospedeira se rompe pelo excesso de parasitos (h). A figura 33 ilustra as fases da interação de uma forma promastigota de L. amazonensis com o macrófago, bem como o processo de estabelecimento da infecção até a lise da célula hospedeira e liberação das amastigotas. 51 52 5.2. Interação da forma amastigota com o macrófago Como vimos anteriormente, a multiplicação dos amastigotas no interior do macrófago conduz à lise e à liberação de centenas de parasitos. O processo de interação dessas formas amastigotas com a próxima célula hospedeira envolve as mesmas etapas que nos promastigotas: (1) reconhecimento, (2) adesão, (3) sinalização, (4) fagocitose e (5) multiplicação. A etapa de adesão envolve o reconhecimento de moléculas presentes na superfície do parasito, como a glicoproteína (gp63) que se liga a diferentes receptores encontrados na superfície dos macrófagos. Os principais receptores dos macrófagos envolvidos na adesão do parasito são receptores do sistema complemento (CR3), receptores Fc- gama (FcγRs e FcγRII-B2) e receptores de fibronectina (FnR). Nos amastigotas, ocorre uma série de processos de sinalização celular, que resultam na fagocitose, onde a célula hospedeira emite pseudópodos que culminam na internalização do parasito. Posteriormente, ocorre fusão de lisossomos com o vacúolo contendo o parasito, formando-se o vacúolo parasitóforo. No entanto, o parasito não é alterado pelas enzimas lisossomais. Inicia-se a etapa de multiplicação sucessiva dos parasitos no interior do vacúolo parasitóforo. Como vimos anteriormente, nas espécies de Leishmania do Novo Mundo, como a L. amazonensis, os amastigotas ficam aderidos à membrana do vacúolo, preferencialmente pela região posterior. Durante a etapa de multiplicação, os parasitos podem ficar livres no lúmen do vacúolo ou aderidos à membrana do vacúolo (Fig. 34). Do mesmo modo, a intensa multiplicação provoca a 53 lise dos macrófagos que libera os amastigotas para o espaço extracelular, onde são fagocitados por novos macrófagos e outras células do sistema fagocítico mononuclear, reiniciando a infecção. 54 Fig. 34. Processo de interação da forma amastigota de Leishmania com a célula hospedeira (macrófago) (Vídeo suplementar 6). (a) Amastigota aderindo e invadindo o macrófago. (b) Amastigota sendo fagocitada pelo macrófago e posterior formação do vacúolo parasitóforo. (c) Lisossomos liberam enzimas no interior do vacúolo, porém o parasito não é alterado. (d) No interior do vacúolo parasitóforo, aderido à membrana, o parasito multiplica-se por fissões binárias sucessivas (e-f), podendo o vacúolo crescer tanto que pode tomar grande parte do citoplasma (g). A célula hospedeira se rompe pelo excesso de parasitos (h). 55 56 6. Interação da Leishmania com o inseto vetor Quando a fêmea do mosquito-palha (ou cangalinha) pica um mamífero infectado durante o repasto sanguíneo, inicia-se a infecção do inseto vetor. A fêmea ingere, então, células infectadas com amastigotas que estão especialmente dentro de macrófagos ou livres no tecido. O intestino do flebotomíneo é dividido em anterior, médio (torácico e abdominal) e posterior. É no intestino médio onde o sangue infectado será digerido. Neste novo ambiente, os amastigotas se agrupam formando aglomerados, chamados de “ninhos” ou “ilhas” de amastigotas, protegidos no interior da matriz peritrófica, que se forma ao redor do sangue ingerido. Esta matriz é secretada pelas células do trato digestório do inseto com o objetivo de englobar o sangue que aí chega, em um processo que ocorre antes dos amastigotas se transformarem em promastigotas no intestino médio (Pimenta et al., 1997; Secundino et al., 2005). Dá-se início ao processo de transformação das formas amastigotas em promastigotas procíclicos (forma não infectante). Esta transformação é o momento durante o qual ocorre a maior morte dos parasitos, quando a membrana do parasito está mais suscetível às enzimas digestivas do ambiente intestinal (Pimenta et al., 1997). A matriz peritrófica começa a se fragmentar na região anterior e assim os parasitos conseguem migrar para o epitélio do intestino médio abdominal do inseto. A matriz peritrófica continua a se fragmentar e alguns parasitos são degradados e eliminados com o bolo alimentar. Quando promastigotas alcançam o epitélio, começam a se multiplicar sucessivamente por divisão binária e aderem ao epitélio intestinal. 57 Esta adesão ocorre predominantemente pela região do flagelo devido à presença de moléculas específicas do parasito denominadas lipofosfoglicana (LPG) (Pimenta et al., 1992). Posteriormente, os promastigotas se soltam e se movem para a porção anterior do intestino médio torácico, onde iniciam o processo de diferenciação em promastigotas metacíclicos. Os parasitos migram para a porção anterior do tubo digestivo e ficam concentrados na região próxima à válvula estomodeal. Ao danificar esta válvula, os parasitos são regurgitados no próximo repasto sanguíneo, infectando um novo hospedeiro (Schlein et al., 1992). A figura 35 sumariza as etapas do ciclo biológico da Leishmania que acontece no inseto vetor. 58 Fig. 35. Fases do ciclo de vida da Leishmania no interior do inseto vetor (Vídeo suplementar 4). (a) Inicialmente, para melhor compreensão do ciclo de vida no interior do inseto, apresentamos uma visão esquemática do inseto flebotomíneo por transparência para observar o tubo digestório. (b) Inseto (mosquito-palha) ingerindo sangue com macrófagos contendo formas amastigotas presentes em um mamífero infectado. (c) Ninhos de amastigotas presentes no intestino médio abdominal. (d) Transformação das formas amastigotas em promastigotas procíclicos. (e) Ao chegar ao intestino médio, os promastigotas começam a se multiplicar por divisão binária e aderem ao epitélio intestinal. (f) Na porção anterior do intestino médio torácico, iniciam o processo de diferenciação em promastigotas metacíclicos. (g) Parasitos sendo regurgitados infectando um novo hospedeiro. 59 60 7. Referências básicas Este trabalho não pretende substituir os livros didáticos e baseia-se em algumas revisões e capítulos de livros, devendo ser encarado apenas como uma das muitas fontes de informação no estudo do ciclo de vida da Leishmania. Academia Brasileira de Ciências (2010). Doenças negligenciadas. Rio de Janeiro: Ciência e tecnologia para o desenvolvimento nacional. Estudos estratégicos. 56p. Alvar, J., Vélez, I.D., Bern, C., Herrero, M., Desjeux, P., Cano, J., Jannin, J., den Boer, M. (2012). Leishmaniasis worldwide and global estimates of its incidence. PLoS One 7: e35671. Bates, P.A. (1994). Complete developmental cycle of Leishmania mexicana in axenic culture. Parasitology 108: 1–9. David, C.V., Craft, N. (2009). Cutaneous and mucocutaneous leishmaniasis. Dermatology and Therapy, 22: 491-502. Desjeux, P. (2004) Leishmaniasis. Nature Reviews Microbiology 2: 692-693 de Souza, W. (2002). Special organellesof some pathogenic protozoa. 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