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Uma alma simples - Gustave Flaubert.pdf

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Uma alma simples 
 
Gustave Flaubert 
 
 
I 
 
 
 
Durante meio século, os burgueses de Pont-l’Évêque invejaram a 
Srª. Aubain por sua criada Felicidade. 
 
Por cem francos ao ano, ela cozinhava e limpava a casa, costurava, 
lavava, passava, sabia arrear cavalos, engordar aves, bater a 
manteiga; permaneceu fiel à sua patroa, que, no entanto, não era 
uma pessoa agradável. 
 
Ela esposara um belo rapaz sem fortuna, que falecera no começo 
de 1809, deixando-lhe duas crianças pequenas e uma quantidade 
considerável de dívidas. Então, vendeu seus imóveis, exceto as 
terras arrendadas de Toucques e de Geffosses, cujos rendimentos 
atingiam, no máximo, cinco mil francos, e deixou sua casa de 
Saint-Melaine para morar em outra menos dispendiosa que 
pertencera a seus ancestrais, localizada atrás do mercado. 
 
Essa casa, revestida de ardósia, situava-se entre um beco e uma 
ruela que terminava no riacho. Seu interior tinha desníveis que 
faziam tropeçar. Um vestíbulo estreito separava a cozinha da sala 
onde a Srª. Aubain permanecia durante o dia, sentada em uma 
poltrona de palha, perto da janela. Encostadas no lambri, pintado 
de branco, alinhavam-se oito cadeiras de acaju. Um velho piano 
sustentava, sob um barômetro, um pilha piramidal de caixas 
variadas, algumas de papelão. Duas "bergères" em tapeçaria, 
ladeavam a lareira em mármore amarelo, em estilo Luís XV. O 
relógio, no meio, representava um templo de Vesta — e todo o 
ambiente cheirava um pouco a mofo, pois o piso era mais baixo do 
que o quintal. 
 
No primeiro andar, havia primeiro o quarto da "Senhora", muito 
grande, forrado com um papel de flores desbotadas, contendo o 
retrato do "Senhor", de aparência janota. Ele se comunicava com 
um quarto menor, onde se viam duas camas de crianças sem 
colchões. Depois, vinha a sala de visitas, sempre fechada, cheia de 
móveis cobertos por lençóis. Em seguida, um corredor levava a um 
escritório; livros e papéis lotavam as prateleiras de uma estante que 
tomava três lados de uma escrivaninha grande em madeira escura. 
Dois painéis, por sua vez, desapareciam sob desenhos em bico de 
pena, paisagens a guache e gravuras de Audran, lembranças de um 
tempo melhor e de um luxo perdido. Uma lucarna, no segundo 
andar, clareava um pouco o quarto de Felicidade, com vista para os 
campos. 
 
Felicidade levantava-se com a madrugada, para não perder a missa, 
e trabalhava até a noite, sem interrupção; depois, terminado o 
jantar, a louça em ordem e a porta bem fechada, ela cobria de cinzas 
a acha de lenha e adormecia diante da lareira com o rosário na mão. 
Ninguém, nas redondezas, demonstrava mais perseverança. 
Quanto à limpeza, o brilho de suas panelas levava ao desespero as 
outras criadas. Econômica, ela comia com lentidão e recolhia com 
os dedos as migalhas de pão — um pão de doze libras, 
especialmente feito para ela, que durava vinte dias. 
 
Em todas as estações do ano, ela usava um lenço indiano fixado nas 
costas por um alfinete, uma touca escondendo-lhe os cabelos, 
meias cinzas, um saiote vermelho e sobre a camisola, um avental 
inteiriço, como o das enfermeiras de hospital. 
 
Seu rosto era magro e sua voz aguda. Com vinte e cinco anos, 
davam-lhe quarenta. A partir dos cinqüenta, não aparentava mais 
nenhuma idade; e, sempre silenciosa, postura ereta e gestos 
comedidos, parecia uma mulher de madeira, funcionando de 
maneira automática. 
 
 
 
II 
 
 
Ela tivera, como qualquer outra, sua história de amor. 
 
O pai, pedreiro, morreu quando caiu de um andaime. Depois, a mãe 
faleceu, as irmãs se dispersaram, um arrendatário recolheu-a e 
empregou-a, ainda pequena, para cuidar das vacas no pasto. Ela 
tremia de frio em seus farrapos, bebia, deitada no chão, a água das 
poças, apanhava por qualquer motivo; por fim, acabou sendo 
expulsa por causa de um furto de trinta soldos, que não havia 
cometi-do. Foi para uma outra propriedade, onde trabalhava no 
fundo do quintal, cuidando dos animais; e, como agradava aos 
patrões, os outros criados invejavam-na. 
 
Numa noite do mês de agosto (tinha, então, dezoito anos) eles a 
levaram à feira em Colleville. Imediatamente ficou atordoada, 
estupefata pela balbúrdia dos violeiros, pelas luzes nas árvores, 
pela miscelânea de cores das roupas, pelas rendas, crucifixos de 
ouro, pela multidão indo e vindo ao mesmo tempo. Mantinha-se a 
distância, modestamente, quando um jovem, de aparência 
abastada, fumando cachimbo, com os dois cotovelos sobre o timão 
de uma carroça, veio tirá-la para dançar. Pagou-lhe sidra, café, 
bolo, um lenço e, imaginando que ela o adivinharia, ofereceu-se 
para levá-la para casa. Ao lado de um aveal, ele a derrubou 
brutalmente. Ela teve medo e se pôs a gritar. Ele se afastou. 
 
Uma outra noite, na estrada de Beaumont, ela quis ultrapassar uma 
grande carroça de feno que avançava lentamente; e, ao esbarrar nas 
rodas, reconheceu Teodoro. 
 
Ele a abordou com um ar tranqüilo, dizendo que precisava perdoar 
tudo, pois era "culpa da bebida". 
 
Ela não soube o que responder e teve vontade de fugir. 
 
Logo em seguida, ele falou das colheitas e das pessoas importantes 
da comuna, pois seu pai tinha deixado Colleville pelas terras de 
Écots, de modo que, agora, eram vizinhos. 
 
— Ah! — disse ela. 
 
Acrescentou que desejavam casá-lo. Porém não estava apressado e 
aguardava uma mulher do seu agrado. Ela abaixou a cabeça. Então, 
ele lhe perguntou se pensava em casamento. Ela respondeu, 
sorrindo, que não era bom debochar. 
 
— Mas, não, eu lhe juro! — e, com o braço esquerdo ele lhe 
enlaçou a cintura. 
 
Ela caminhava amparada pelo seu abraço; diminuíram o passo. O 
vento estava suave, as estrelas brilhavam, a enorme carroça de feno 
balançava diante deles; e os quatro cavalos arrastando os passos, 
levantavam poeira. Em seguida sem comando, viraram à direita. 
Ele a beijou ainda uma vez. Ela desapareceu na penumbra. 
 
Teodoro, na semana seguinte, conseguiu marcar encontros com ela. 
 
Viam-se no fundo dos pátios, atrás de um muro, sob uma árvore 
isolada. Ela não era inocente à maneira das moças finas — os 
animais haviam-na instruído; — mas a razão e o instinto de honra 
impediram-na de se entregar. Essa resistência exasperou o amor de 
Teodoro, de modo que para satisfazê-lo (ou ingenuamente talvez) 
ele lhe propôs casamento. Ela hesitava em acreditar. Ele fez 
grandes juras. 
 
Logo em seguida, confessou-lhe algo desagradável: seus pais, no 
ano anterior, haviam pago a um homem para se alistar em seu lugar; 
contudo, cedo ou tarde, poderiam chamá-lo; a idéia do 
recrutamento assustava-o. Essa covardia foi para Felicidade uma 
prova de afeto; seu sentimento por ele redobrou. Ela escapava de 
noite, e uma vez juntos, Teodoro torturava-a com suas inquietudes 
e insistências. 
 
Enfim, Teodoro anunciou que ele mesmo iria à administração para 
obter informações e as traria no domingo seguinte, entre onze horas 
e meia-noite. 
 
Chegado o momento, ela correu ao encontro de seu amado. 
 
Em seu lugar, encontrou um de seus amigos. 
 
Este lhe disse que não mais deveria revê-lo. Para se livrar do 
alistamento, Teodoro havia-se casado com uma mulher velha e 
muito rica, Srª. Lehoussais, de Toucques. 
 
Foi uma crise de desgosto. Ela se atirou ao chão, gritou, clamou 
pelo bom Deus, e gemeu sozinha no campo até o sol se levantar. 
Depois, retornou à propriedade, declarou sua intenção de ir 
embora; e, no final do mês, tendo recebido suas contas, reuniu seus 
poucos pertences em uma trouxa e foi para Pont-l’Évêque. 
 
Diante de um albergue,interpelou uma burguesa com capelina de 
viúva, que justamente procurava por uma cozinheira. A jovem não 
sabia grande coisa, mas parecia ter tanta boa vontade e tão poucas 
exigências, que a Srª. Aubain acabou por dizer: 
 
— Está bem, eu a admito! 
 
Felicidade, quinze minutos depois, estava instalada na casa dela. 
 
No começo, conviveu com uma espécie de estremecimento que lhe 
causavam "o estilo da casa" e a lembrança do "Senhor", pairando 
sobre tudo! Paulo e Virgínia, aquele com sete anos, esta com 
apenas quatro, pareciam-lhe formados de uma matéria preciosa; ela 
os carregava nas suas costas como se fosse um cavalo, e a Srª. 
Aubain proibiu-lhe de beijá-los a cada minuto, o que a mortificava. 
No entanto estava feliz. A suavidade do ambiente tinha dissolvido 
sua tristeza. 
 
Todas as quintas-feiras, freqüentadores assíduos vinham jogar uma 
partida de bóston. Felicidade preparava com antecedência as cartas 
e os aquecedores. Eles chegavam às oito horas em ponto e se 
retiravam antes de soar as onze. 
 
Toda segunda-feira, o vendedor de objetos usados que morava no 
lado de baixo da alameda esparramava pelo chão suas tranqueiras. 
Depois a cidade enchia-se de um murmúrio de vozes, ao qual se 
misturavam relinchos de cavalos, balidos de carneiros, grunhidos 
de porcos, com o barulho seco das charretes na rua. Por volta de 
meio-dia, no auge da feira, via-se surgir na soleira um velho 
camponês de estatura alta, com boné para trás, nariz adunco, e que 
era Robelin, o arrendatário das terras de Geffosses. Logo depois, 
chegava Liébard, arrendatário de Toucques, pequeno, vermelho, 
obeso, usando um casaco cinza e botinas munidas de esporas. 
 
Os dois ofereciam à proprietária galinhas ou queijos. Felicidade 
invariavelmente adivinhava suas astúcias; e eles iam embora 
plenos de consideração por ela. 
 
De quando em quando, a Srª. Aubain recebia a visita do marquês 
de Gremanville, um tio seu, arruinado pela devassidão, que vivia 
em Falaise no seu último quinhão de terra. Chegava sempre na hora 
do almoço, com um cão insuportável cujas patas sujavam todos os 
móveis. Apesar de seus esforços para parecer um fidalgo, chegando 
mesmo a tirar o chapéu cada vez que dizia: "Meu falecido pai", o 
hábito era mais forte, ele bebia um copo após o outro e deixava 
escapar inconveniências. Felicidade colocava-o para fora 
polidamente. "Já é o bastante, Senhor de Gremanville! Até uma 
outra vez!" E fechava a porta. 
 
Ela a abria com prazer para o Sr. Bourais, antigo procurador 
judicial. Sua gravata branca e sua calvície, o peitilho da camisa, 
ampla sobrecasaca marrom, o modo de tomar o rapé curvando o 
braço, todo o seu ser produzia-lhe uma perturbação em que nos 
lança o espetáculo dos homens extraordinários. 
 
Como ele gerenciava as propriedades da "Senhora", trancava-se 
com ela, durante horas, no escritório do "Senhor" e sempre temia 
comprometer-se, respeitava infinitamente a magistratura, tinha 
pretensões de conhecer o latim. 
 
Para instruir as crianças de um modo agradável, deu-lhes de 
presente um livro de geografia em estampas. Elas representavam 
diferentes cenas do mundo, antropófagos com as cabeças cobertas 
de penas, um macaco aprisionando uma moça, beduínos no deserto, 
uma baleia arpoada etc.. 
 
Paulo explicou essas gravuras a Felicidade. Essa foi toda sua 
educação literária. 
 
A das crianças era feita por Guyot, um pobre-coitado, empregado 
da prefeitura, famoso por sua bela caligrafia, que afiava o canivete 
na bota. 
 
Quando o tempo estava bom, iam bem cedo para as terras de 
Geffosses. 
 
No pátio em declive, a casa ficava no meio; e o mar, ao longe, 
surgia como uma mancha cinza. 
 
Felicidade retirava de seu cesto fatias de carne fria e almoçavam 
em uma peça contígua à leiteria. Foi a única que restou de uma 
construção de lazer, agora desaparecida. O papel da parede, todo 
rasgado, tremia com as correntes de ar. A Srª. Aubain abaixava a 
cabeça, abatida pelas lembranças; as crianças não se atreviam mais 
a falar. "Brinquem, vamos!" dizia ela; elas saíam correndo. 
 
Paulo subia no celeiro, apanhava pássaros, fazia ricochetes sobre 
as poças, ou batia com um bastão os largos barris que ressoavam 
como tambores. 
 
Virgínia dava comida aos coelhos, corria para colher florezinhas 
azuis, e a rapidez de suas pernas descobria as pequenas calças 
bordadas. 
 
Numa noite de outono, voltaram pelas pastagens. 
 
A lua, em quarto crescente, iluminava uma parte do céu e uma 
neblina flutuava como um véu sobre as sinuosidades do rio 
Toucques. Alguns bois, deitados na relva, olhavam tranqüilamente 
passarem essas quatro pes-soas. No terceiro pasto cercado, alguns 
se levantaram, puseram-se, em seguida, em círculo diante delas. 
 
— Não tenham medo! — disse Felicidade e, murmurando uma 
espécie de lamento, acariciou o dorso do animal que se encontrava 
mais próximo; ele fez meia-volta, os outros o imitaram. Porém, 
quando atravessaram o pasto seguinte, um mugido medonho soou. 
Era um touro que a neblina escondia. Ele avançou em direção às 
duas mulheres. A Srª. Aubain ia correr. 
 
— Não! Não! Mais devagar! 
 
Elas apertaram o passo, contudo, e ouviam por trás uma respiração 
forte que se aproximava. Seus tamancos, como martelos, batiam na 
relva da campina; e agora ele galopava! Felicidade virou-se; com 
as duas mãos arrancava placas de terra e jogava-lhe nos olhos. Ele 
abaixava o focinho, sacudia os chifres e tremia de furor, mugindo 
horrivelmente. A Srª. Aubain, no fim do pasto, com as duas 
crianças, procurava, perdida, como atravessar a cerca alta. 
Felicidade recuava sempre diante do touro e lançava 
continuamente torrões de relva que o cegavam, enquanto gritava: 
 
— Corram! Corram! 
 
A Srª. Aubain desceu a vala, empurrou Virgínia, Pau-lo em 
seguida; caiu muitas vezes tentando subir o talude, e, à força de 
muita de coragem, conseguiu fazê-lo. 
 
O touro tinha encurralado Felicidade contra uma cerca; sua baba 
jorrava no rosto dela, um segundo mais ele a estriparia. Ela teve 
tempo de deslizar entre duas barras da cerca, e o grande animal, 
surpreso, parou. 
 
Esse acontecimento, durante muitos anos, foi assunto de conversa 
em Pont-l’Évêque. Felicidade não tirou nenhuma vantagem disso, 
duvidando até mesmo de que tivesse feito algo de heróico. 
 
Virgínia sozinha ocupava todo o seu tempo — porque teve, após o 
seu pavor, uma afecção nervosa e o Doutor Poupart aconselhou 
banhos de mar de Trouville. 
 
Naquele tempo, não se tomavam banhos de mar. A Srª. Aubain 
informou-se, consultou Bourais, fez preparativos como se fosse 
fazer uma longa viagem. 
 
Seus pertences partiram na véspera, na charrete de Liébard. No dia 
seguinte, ele levou dois cavalos; um tinha uma sela para mulher, 
munida de um encosto de veludo; na garupa do segundo, um manto 
enrolado formava uma espécie de assento. A Srª. Aubain sentou-se 
atrás dele. 
 
Felicidade encarregou-se de Virgínia, e Paulo montou o burro do 
Sr. Lechaptois, emprestado com a condição de se ter muito cuidado 
com ele. 
 
A estrada era tão ruim que seus oitos quilômetros exigiram duas 
horas. Os cavalos enterravam até as quartelas na lama e, para sair, 
faziam bruscos movimentos de ancas; ou, então, apoiavam-se nos 
sulcos na estrada; outras vezes, era-lhes preciso pular. A égua de 
Liébard, em certos lugares, parava de repente. Ele esperava 
pacientemente que ela se pusesse em marcha; e falava de pessoas 
cujas propriedades margeavam a estrada, acrescentando a suas 
histórias reflexões morais. Assim, no meio de Toucques, quando 
passaram sobumas janelas rodeadas de capuchinhas, ele disse, 
levantando os ombros: 
 
— Aí está uma, a Srª. Lehoussais, que em vez de aceitar um jovem 
rapaz... 
 
Felicidade não ouviu o resto; os cavalos trotavam, o burro 
galopava; todos entraram por um caminho estreito, uma porteira se 
abriu, dois garotos apareceram, e desceram em frente da purina, na 
soleira da porta. 
 
A velha Liébard, vendo sua patroa, prodigalizou demonstrações de 
alegria. Serviu-lhe um almoço com lombo de boi, rabada, chouriço, 
um fricassê de frango, sidra espumante, uma torta de compotas e 
ameixas embebidas em aguardente, tudo regado com cortesias à 
Senhora que parecia cheia de saúde, e à Senhorita que se tinha 
tornado "maravilhosa", ao Sr. Paulo excepcionalmente "gordo", 
sem esquecer seus avós falecidos que os Liébard tinham conhecido, 
pois estavam a serviço da família havia muitas gerações. As terras 
tinham, como eles, caráter de antigüidade. As vigotas do teto 
estavam corroídas, as paredes, negras de fumaça, os ladrilhos cinza 
de poeira. Um aparador de carvalho mantinha todos os tipos de 
utensílios, jarras, pratos, tigelas de estanho, armadilhas de lobo, 
tesouras para a tosquia de carneiros; uma enorme seringa provocou 
risos nas crianças. Não havia nenhuma macieira nos três pátios que 
não tivesse cogumelos em sua base ou, em seus galhos, um tufo de 
visgo. O vento derrubara várias delas. Voltaram a brotar pelo meio; 
e todas se curvavam com a quantidade de maçãs. Os telhados de 
palha, como veludos castanhos de diferentes espessuras, resistiam 
aos mais fortes vendavais. Entretanto a cocheira caía em ruínas. A 
Srª. Aubain disse que iria partir e mandou selar os animais. 
 
Levaram ainda meia hora antes de chegar a Trouville. O pequeno 
grupo teve que apear para passar as Écores, tratava-se de uma 
falésia que pendia sobre os barcos; e três minutos mais tarde, no 
fim do cais, entraram no pátio do Agneau d’Or, na casa da velha 
David. 
 
Virgínia, desde os primeiros dias, sentiu-se um pouco mais forte, 
resultado da mudança de ares e da ação dos banhos. Ela os tomava 
de camisa, por não ter roupa apropriada; e sua empregada a vestia 
em uma cabana de aduaneiro que servia aos banhistas. 
 
À tarde, ia-se com o burro para além de Roches-Noires, ao lado de 
Hennequeville. O caminho, no começo, subia entre terrenos com 
vales como o gramado de um parque depois, chegava a um planalto 
onde alternavam as pastagens e as plantações. À beira do caminho, 
no amontoado de espinheiros, azevinhos erguiam-se; aqui e acolá, 
havia grandes árvores mortas que faziam ziguezagues com seu 
galhos no ar azul. 
 
Quase sempre, eles repousavam em um campo, tendo Deauville à 
esquerda, o Havre à direita e, em frente, o mar aberto. Ele brilhava 
sob o sol, liso como um espelho tão calmo que mal se escutava seu 
murmúrio; pardais escondidos chilreavam, e a imensa abóbada 
celeste recobria tudo. A Srª. Aubain, sentada, trabalhava em sua 
costura; Virgínia, próxima a ela, trançava juncos; Felicidade 
arrancava flores de lavanda; Paulo, que se entediava, queria ir 
embora. 
 
Outras vezes, tendo passado de barco por Toucques eles 
procuravam conchas. A maré baixa deixava à mostra ouriços-do-
mar, moluscos, medusas; as crianças corriam para pegar os flocos 
de espuma que o vento carregava. As ondas adormecidas, 
quebrando na areia, desenrolavam-se ao longo da praia; esta se 
estendia a perder de vista, mas, do lado da terra, tinha como limite 
as dunas que a separavam do Marais, ampla pradaria em forma de 
hipódromo. Quando retornavam por aí, Trouville, ao fundo sobre o 
penhasco da encosta, a cada passo, aumentava, e com todas suas 
casas desiguais parecia desabrochar-se em uma alegre desordem. 
 
Nos dias de muito calor, eles não saíam do quarto. A ofuscante 
claridade do exterior imprimia faixas de luz entre as lâminas das 
persianas. Nenhum ruído no vilarejo. Embaixo, na calçada, 
ninguém. Esse silêncio espalhado aumentava a tranqüilidade das 
coisas. Ao longe, os martelos dos calafates batiam nas carenas, e 
uma brisa densa trazia o cheiro do piche. 
 
O principal divertimento era o regresso da barca. Assim que 
ultrapassavam as bóias, eles começavam a bordejar. As velas dos 
mastros vinham dois terços arriadas; e, com a mezena cheia como 
um balão, eles avançavam, deslizavam no marulho das ondas, até 
o meio do porto, onde, de repente, lançavam a âncora. Em seguida, 
o barco se colocava junto ao cais. Os marujos jogavam por cima da 
borda peixes ainda palpitantes, uma fila de charretes os aguardava 
e mulheres com gorros de algodão corriam para pegar as cestas e 
abraçar seus homens. 
 
Uma delas, um dia, abordou Felicidade, que pouco tempo após 
entrou no quarto, toda feliz. Havia reencontrado uma de suas irmãs; 
e Nastácia Barette, mulher de Leroux, apareceu, com um bebê no 
colo, segurando à mão direita uma outra criança, e tendo à sua 
esquerda um pequeno grumete com os punhos nas ancas e a boina 
até às orelhas. 
 
Ao cabo de quinze minutos, a Srª. Aubain dispensou-a. 
 
Reencontravam-se sempre nos arredores da cozinha ou nos 
passeios que faziam. O marido nunca aparecia. 
 
Felicidade afeiçoou-se por eles. Ela lhes deu um cobertor, camisas, 
um fogão; evidentemente, eles a exploravam. Essa fraqueza irritava 
a Srª. Aubain que, aliás, não gostava das familiaridades do 
sobrinho, porque ele tratava seu filho por "tu"; e como Virgínia 
estivesse tossindo e como o tempo tivesse mudado, retornou a 
Pont-l’Évêque. 
 
O Sr. Bourais orientou-a na escolha de um colégio. O de Caen 
parecia ser o melhor. Paulo foi enviado para lá; e despediu-se 
valentemente, satisfeito por ir viver em uma casa onde teria 
amigos. 
 
A Srª. Aubain conformou-se com o afastamento do filho, porque 
era indispensável. Virgínia pensava nisso cada vez menos. 
Felicidade, sentia falta da balbúrdia que ele fazia. Mas uma 
ocupação veio distraí-la; depois do Natal, ela levava todos os dias 
a menina ao catecismo. 
 
 
III 
 
 
Uma vez feita, à porta, uma genuflexão, ela avançava sob a alta 
nave entre as duas fileiras de cadeiras, abria o banco da Srª. Aubain, 
sentava-se e deixava os olhos vagarem à sua volta. 
 
Os rapazes à direita, as moças à esquerda ocupavam a estala do 
coro; o pároco permanecia de pé perto da estante do coro; em um 
vitral da abside, o Espírito Santo se elevava sobre a Virgem; um 
outro mostrava-a de joelhos diante do Menino Jesus e, atrás do 
tabernáculo, um grupo em madeira representava São Miguel 
subjugando o dragão. 
 
De início, o padre fez um resumo da História Sagrada. Ela 
acreditava ver o paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as cidades 
completamente em chamas, pessoas que mor-riam, ídolos 
derrubados; e guardava desse assombro o respeito pelo Altíssimo e 
o temor de sua cólera. Depois, chorou ao ouvir a Paixão. Por que o 
haviam crucificado, ele que amava as crianças, alimentava as 
multidões, curava os cegos e quisera, por bondade, nascer entre os 
pobres, sobre o esterco de um estábulo? A semeadura, a colheita, o 
lagar, todas essas coisas familiares de que fala o Evange-lho, 
encontravam-se em sua vida; a passagem de Deus as havia 
santificado; e ela sentia mais afeto pelos cordeiros por amor ao 
Cordeiro, e pelas pombas, por causa do Espírito Santo. 
 
Era-lhe difícil imaginar sua pessoa; já que não era apenas uma ave, 
mas ainda um fogo e, outras vezes, um sopro. Talvez seja sua luz 
que paira à noite sobre a margem dos pântanos, sua respiração que 
empurra as nuvens, sua voz que torna os sinos harmoniosos; e ela 
se estendia em uma adoração, gozando o frescor das paredese a 
tranqüilidade da igreja. 
 
Quanto aos dogmas, não compreendia absolutamente nada, nem 
mesmo se esforçava para compreendê-los. O padre discorria, as 
crianças recitavam, ela acabava por adormecer; e acordava de 
repente, quando os outros, ao saírem, faziam soar os tamancos 
sobre o piso. 
 
Foi dessa maneira, de tanto ouvi-lo, que aprendeu o catecismo, uma 
vez que sua educação religiosa tinha sido negligenciada na 
juventude; e desde aquele mometo, imitava todas as práticas de 
Virgínia, jejuando como ela, confessando-se com ela. Para a festa 
de Corpos Christi fizeram juntas um andor. 
 
A primeira comunhão atormentava-a por antecipação. Preocupou-
se com os sapatos, o terço, o livro, as luvas. Com que tremor não 
ajudou a mãe a vesti-la! 
 
Durante toda a missa, sentiu uma angústia. O Bourais escondia-lhe 
um lado do coro; mas logo à frente o bando de virgens usando 
coroas brancas sobre os véus abaixados formavam como que um 
campo de neve; e reconhecia de longe a menina querida pelo 
pescoço fino e a atitude recolhida. O sino tocou. As cabeças se 
curvaram; fez-se silêncio. Ao som do órgão, os cantores e a 
multidão entoaram o Agnus Dei; então começou o desfile dos 
meninos; e, depois deles, as meninas se levantaram. Passo a passo 
e de mãos juntas andavam em direção ao altar todo iluminado, 
ajoelhavam-se no primeiro degrau, recebiam sucessivamente a 
hóstia e, na mesma ordem, voltavam aos seus genuflexórios. 
Quando foi a vez de Virgínia, Felicidade debruçou-se para vê-la e, 
com a imaginação dos verdadeiros afetos, parecia ser ela mesma 
aquela criança; aquele rosto se tornava seu, aquele vestido a vestia, 
aquele coração batia em seu peito; no momento de abrir a boca, 
fechando as pálpebras, estava a ponto de desmaiar. 
 
No dia seguinte, logo cedo, apresentou-se na sacristia para que o 
padre lhe desse a comunhão. Recebeu-a devotamente, mas não 
experimentou as mesmas delícias. A Srª. Aubain queria tornar sua 
filha uma pessoa perfeita e, como Guyot não pudesse lhe ensinar 
inglês e tampouco música, resolveu colocá-la em um pensionato 
nas Ursulinas de Honfleur. 
 
A criança não fez nenhuma objeção. Felicidade suspirava, julgando 
a Senhora insensível. Depois considerou que talvez a sua patroa 
tivesse razão. Todas essas coisas ultrapassavam sua competência. 
 
Um dia, afinal, uma velha traquitana parou em frente à porta e dela 
desceu uma religiosa que vinha buscar a Senhorita. Felicidade pôs 
a bagagem no carro, fez recomendações ao cocheiro e colocou no 
baú seis potes de doces e uma dúzia de peras com um ramalhete de 
violetas. 
 
Virgínia, no último momento, foi tomada por um grande choro; 
abraçava a mãe que a beijava no rosto, repetindo: 
 
— Vamos! Coragem! Coragem! 
 
O degrau foi levantado e o carro partiu. 
 
Então, a Srª. Aubain teve um desfalecimento e à noite todos os 
amigos — o casal Lormeau, a Srª. Lechaptois, as Senhoritas 
Rochefeuille, o Sr. de Houppeville e Bourais — apareceram para 
consolá-la. 
 
De início, a privação de sua filha foi muito dolorosa. Mas três vezes 
por semana recebia uma carta, nos demais dias escrevia-lhe, 
passeava no quintal, lia um pouco e, dessa forma, preenchia o vazio 
das horas. 
 
De manhã, por força do hábito, Felicidade entrava no quarto de 
Virgínia e olhava as paredes. Sentia falta de pentear os seus 
cabelos, amarrar-lhe as botinas, colocá-la na cama — e de ver 
continuamente seu delicado rosto, de segurá-la pela mão quando 
saíam juntas. Em sua ociosidade, tentou fazer rendas. Os dedos 
pesados demais rompiam os fios; não ouvia nada, perdera o sono, 
segundo sua palavra, estava "minada". 
 
Para "se distrair", pediu a permissão para receber seu sobrinho 
Vítor. 
 
Ele chegava aos domingos após a missa, com as faces rosadas, o 
peito nu e cheirando aos campos que atravessara. Imediatamente 
ela botava a mesa. Almoçavam um diante do outro e, comendo ela 
o menos possível para evitar as despesas, empanturrava-o de tal 
maneira que ele acabava por adormecer. Ao primeiro toque das 
vésperas, ela o acordava, escovava suas calças, apertava-lhe a 
gravata e dirigia-se à igreja, apoiada em seu braço com um orgulho 
maternal. 
 
Seus pais sempre o encarregavam de conseguir alguma coisa, fosse 
um pacote de açúcar, sabonete, aguardente, às vezes até mesmo 
dinheiro. Trazia suas roupas velhas para remendar; e ela aceitava 
esse trabalho, feliz por haver uma oportunidade que o forçasse a 
voltar. 
 
No mês de agosto, seu pai enviou-o à marinha. 
 
Era época de férias. A chegada das crianças consolou-a. Mas Paulo 
tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha mais idade para ser 
tratada por "tu", o que colocava um constrangimento, uma barreira 
entre elas. 
 
Vítor foi sucessivamente a Morlaix, Dunkerque e Brighton; no 
regresso de cada viagem ele lhe trazia um presente. Da primeira 
vez, foi uma caixa de conchas; da segunda, uma xícara de café; da 
terceira, um grande boneco de pão de mel. Estava tornando-se belo, 
era magro, tinha um bigodinho, olhos sãos e francos e um pequeno 
chapéu de couro, que usava para trás como um piloto. Divertia-a 
contando histórias repletas de termos de marinheiro. 
 
Em uma segunda-feira, 14 de julho de 1819 (ela não esqueceu a 
data) Vítor anunciou que havia sido recrutado para uma longa 
viagem e que dali a duas noites, com o navio de Honfleur, iria 
juntar-se à galé, que deveria partir do porto do Havre em breve. Ele 
talvez ficasse fora por dois anos. 
 
A perspectiva de tal ausência deixou Felicidade desolada; e, para 
ainda lhe dizer adeus, na quarta-feira à noite, após o jantar da 
Senhora, vestiu as galochas e percorreu as quatro léguas que 
separavam Pont-l’Évêque de Honfleur. 
 
Chegando diante do Calvário, em vez de pegar a esquerda, pegou 
a direita, perdeu-se nos canteiros de obras, voltou para trás; as 
pessoas que abordava mandavam-na apressar-se. Ela deu a volta na 
doca repleta de navios, batia nas amarras; depois o terreno se 
inclinou, as luzes se entrecruzaram e ela acreditou estar louca, 
avistando cavalos no céu. 
 
À margem do cais, outros relinchavam assustados com o mar. Uma 
talha, que os levantava, desceu-os no barco onde os viajantes se 
acotovelavam entre os barris de sidra, os cestos de queijo, os sacos 
de grãos; ouvia-se o barulho das galinhas, o capitão blasfemava e 
um grumete permanecia apoiado ao turco da embarcação, 
indiferente a tudo aquilo. Felicidade, que não o reconhecera, gritou: 
 
— Vítor! 
 
Ele levantou a cabeça; ela avançou quando, de repente, retiraram a 
escada. 
 
O navio, que mulheres cantando puxavam pelas cordas, deixou o 
porto. A carcaça estalava, as ondas pesadas fustigavam a proa. A 
vela virara, não se via mais ninguém; e, sobre o mar prateado pela 
lua, o navio deixou uma mancha negra que se ia empalidecendo, 
embrenhou-se nas águas, desapareceu. 
 
Felicidade, ao passar perto do Calvário, quis recomendar a Deus o 
que mais amava; e rezou muito tempo de pé, com as faces banhadas 
em lágrimas, os olhos em direção às nuvens. A cidade dormia, os 
aduaneiros passeavam; e a água caía sem parar pelos buracos da 
eclusa com um barulho de torrente. Soaram duas horas. 
 
O locutório não abriria antes do amanhecer. Um atraso, certamente, 
deixaria a Senhora contrariada e, apesar do desejo de beijar a outra 
criança, ela voltou. As moças do albergue despertavam quando ela 
entrou em Pont-l’Évêque. 
 
O pobre rapaz durante meses iria então vaguear sobre as ondas! 
Suas viagens precedentes não a haviam assustado. Da Inglaterra e 
da Bretanha podia-se voltar; mas a América, asColônias, as Ilhas, 
aquilo ficava perdido em uma região incerta, do outro lado do 
mundo. 
 
Desde então, Felicidade pensou exclusivamente em seu sobrinho. 
Nos dias de sol, atormentava-se com a sede; quando caía um 
temporal, temia os raios por ele. Escutando o vento que troava na 
chaminé e varria as ardósias, via-o batido pela mesma tempestade, 
no topo de um mastro despedaçado, com o corpo todo para trás, 
sob um lençol e espuma; ou então — lembranças do livro de 
geografia estampas — ele era devorado pelos selvagens, 
aprisionado pelos macacos em uma floresta, morria ao longo de 
uma praia deserta. E jamais falou de suas inquietudes. 
 
A Srª. Aubain tinha outras pela filha. 
 
As freiras achavam que ela era afetuosa, mas delicada. A mínima 
emoção deixava-a nervosa. Era preciso largar o piano. 
 
A mãe exigia do convento uma correspondência regular. Numa 
manhã em que o carteiro não viera, impacientou-se e andava pela 
sala, da poltrona até a janela. Era realmente extraordinário! Quatro 
dias, sem notícias! 
 
Para que ela se consolasse com o exemplo, Felicidade disse-lhe: 
 
— E eu, Senhora, já faz seis meses que não recebo nada!... 
 
— Mas de quem?... 
 
A criada replicou suavemente: 
 
— Mas ... de meu sobrinho! 
 
— Ah! seu sobrinho! — E, dando de ombros, a Srª. Aubain 
retomou seu passo, o que queria dizer: "Eu nem penso nele!... Além 
disso, pouco me importa! Um grumete, um miserável, grande 
coisa!... Enquanto que minha filha... Imagine só!... 
 
Felicidade, embora crescida em meio à crueldade, indignou-se com 
a Senhora, depois esqueceu. 
 
Parecia-lhe fácil perder a cabeça em se tratando da menina. 
 
As duas crianças tinham uma importância igual; um lugar em seu 
coração as unia e seus destinos deviam ser os mesmos. 
 
O farmacêutico contou-lhe que o barco de Vítor chegara a Havana. 
Lera essa informação em uma gazeta. 
 
Por conta dos charutos, ela imaginava Havana como um país onde 
não se fazia outra coisa senão fumar, e Vítor circulava entre os 
negros em uma nuvem de tabaco. Podia-se "em caso de 
necessidade" voltar de lá por terra? A que distância ficava de Pont-
l’Évêque? Para sabê-lo, interrogou o Sr. Bourais. 
 
Ele pegou o atlas, depois começou explicações sobre longitudes; e 
estampava no rosto um grande sorriso pedante diante do pasmo de 
Felicidade. Por fim, com sua lapiseira, indicou nos recortes de uma 
mancha oval um ponto negro, imperceptível, acrescentando: 
 
— Aqui está. 
 
Ela se debruçou sobre o mapa; aquela malha de linhas coloridas 
cansava a vista, sem lhe ensinar coisa alguma; e a Bourais, o qual 
insistia que lhe dissesse o que a perturbava, pediu que lhe mostrasse 
a casa onde morava Vítor. 
 
Bourais levantou os braços, espirrou, riu a valer; tamanha candura 
excitava sua alegria; e Felicidade não compreen-dia o motivo, — 
ela que esperava talvez ver até o retrato do sobrinho, de tal modo 
sua inteligência era limitada! 
 
Foi após quinze dias que Liébard, na hora do mercado, como de 
costume, entrou na cozinha e entregou-lhe uma carta enviada pelo 
cunhado. Uma vez que nenhum dos dois sabia ler, ela recorreu à 
patroa. 
 
A Srª. Aubain, que contava as malhas de um tricô, colocou-o de 
lado, deslacrou a carta, estremeceu e, com uma voz baixa, um olhar 
profundo: 
 
— É uma desgraça... que lhe é anunciada. Seu sobrinho... 
 
Morrera. Não estava escrito mais nada. 
 
Felicidade caiu sobre uma cadeira, apoiando a cabeça na parede e 
fechou as pálpebras, que, de repente, tornaram-se rosadas. Depois, 
com a fronte baixa, as mãos caídas, o olhar fixo, repetia em 
intervalos: 
 
— Pobre menino! Pobre menino! 
 
Liébard via-a soltando suspiros. A Srª. Aubain tremia um pouco. 
 
Ela lhe propôs ir ver a irmã em Trouville. 
 
Felicidade respondeu, com um gesto, que não era preciso. 
 
Fez-se silêncio. Liébard, homem simples, julgou conveniente se 
retirar. 
 
Então ela disse: 
 
— Para eles, isso não significou nada! 
 
Sua cabeça baixou; e maquinalmente ela erguia, de tempos em 
tempos, as longas agulhas sobre a mesa de costura. 
 
Algumas mulheres passaram no pátio com uma padiola de onde 
gotejava a roupa. 
 
Vendo-as pela janela, lembrou-se da roupa lavada; tendo-a deixado 
de molho no dia anterior, precisava hoje enxaguá-la; e saiu do 
aposento. 
 
A tábua de bater roupa e a tina estavam nos limites do Toucques. 
Jogou sobre o talude uma pilha de camisas, arregaçou as mangas, 
pegou a tábua de bater; e os fortes golpes que dava eram ouvidos 
nos outros quintais ao lado. Os campos estavam vazios, o vento 
agitava o riacho; ao fundo, a relva alta se inclinava sobre ele como 
cabeleiras de cadáveres flutuando na água. Reteve sua dor, até a 
noite foi muito corajosa; mas, em seu quarto, jogou-se de ventre 
sobre o colchão, com o rosto no travesseiro e os dois punhos contra 
as têmporas. 
 
Muito depois, pelo próprio capitão de Vítor, conheceu as 
circunstâncias de seu fim. 
 
Haviam-no sangrado demais no hospital, por causa da febre 
amarela. Quatro médicos ocuparam-se dele ao mesmo tempo. 
Morreu imediatamente e o médico chefe dissera: 
 
— Bem! Mais um! 
 
Os pais sempre o tinham tratado com crueldade. Preferiu não os 
rever; e eles não tentaram nenhuma aproximação, por 
esquecimento ou por endurecimento dos miseráveis. 
 
Virgínia enfraquecia. 
 
Sufocações, tosse, uma febre contínua e marcas na face revelavam 
uma enfermidade profunda. O Doutor Poupart aconselhara uma 
estada na Provence. A Srª. Aubain decidiu-se e teria imediatamente 
trazido sua filha para casa, se não fosse pelo clima de Pont-
l’Évêque. 
 
Fez um trato com um dono de carros que a levava ao convento 
todas as terças-feiras. Há no jardim um terraço de onde se descobre 
o Sena. Ali Virgínia passeava de braços dados com ela sobre as 
folhas caídas das videiras. Às vezes o sol atravessando as nuvens 
forçava-a a piscar, enquanto olhava as velas ao longe e todo o 
horizonte, desde o castelo de Tancarville até o farol do Havre. Em 
seguida repousavam sob o caramanchão. Sua mãe providenciara 
um pequeno barril de excelente vinho de Málaga; e rindo com a 
idéia de ficar levemente embriagada, bebia dois dedos, não mais. 
 
Recobrou forças. O outono passou suavemente. Felicidade 
tranqüilizava a Srª. Aubain. Mas, certa noite, quando fora aos 
arredores fazer compras, encontrou à porta o cabriolé do Sr. 
Poupart; e ele estava no vestíbulo. A Srª. Aubain amarrava o 
chapéu. 
 
— Dê-me meu aquecedor, minha bolsa, minhas luvas. Ande, mais 
rápido! 
 
Virgínia tinha uma fluxão do peito. Talvez fosse grave. 
 
— Ainda não! — disse o médico; e ambos subiram no carro, sob 
os flocos de neve que turbilhavam. A noite estava por chegar. Fazia 
muito frio. 
 
Felicidade precipitou-se para a igreja para acender uma vela. 
Depois correu atrás do cabriolé, que alcançou uma hora mais tarde, 
saltou ligeiramente por trás, segurando-se nas barras, quando lhe 
veio um pensamento: "O pátio não estava fechado! e se entrassem 
ladrões?" E ela desceu. 
 
No dia seguinte, logo de madrugada, apareceu na casa do médico. 
Ele tinha chegado e saído novamente para o campo. Depois ela 
permaneceu no albergue, acreditan-do que algum desconhecido lhe 
entregaria uma carta. Por fim, ao amanhecer, pegou a diligência de 
Lisieux. 
 
O convento encontrava-se no fim de uma ruela íngreme. 
Aproximadamente no meio, ela ouviu sons estranhos, um toque de 
finados. "É para outra pessoa", pensou ela; e Felicidade puxou 
violentamente a aldrava. 
 
Ao cabo de alguns minutos,chinelos arrastaram-se, a porta 
entreabriu-se e uma religiosa apareceu. 
 
A freira com um ar de compunção disse que "ela acabara de 
falecer". Ao mesmo tempo o sino fúnebre de São Leonardo tocou. 
 
Felicidade chegou ao segundo andar. 
 
Já na soleira do quarto, viu Virgínia estendida de costas, com as 
mãos juntas, a boca aberta e a cabeça para trás sob uma cruz negra 
que se inclinava sobre ela, entre as cortinas imóveis, menos pálidas 
que seu rosto. A Srª. Aubain, aos pés do leito que abraçava, 
soluçava de agonia. A madre superiora estava de pé à direita: Três 
candelabros sobre a cômoda faziam manchas vermelhas e a névoa 
esbranquiçava as janelas. Algumas religiosas retiraram a Srª. 
Aubain. 
 
Durante duas noites, Felicidade não deixou a morta. Repetia as 
mesmas preces, aspergia água benta sobre os lençóis, voltava a 
sentar-se e contemplava-a. Ao final da primeira noite, notou que o 
rosto havia amarelado, os lábios azulado, o nariz afinava-se, os 
olhos afundavam. Beijou-os diversas vezes e não teria 
experimentado nenhuma imensa surpresa se Virgínia os houvesse 
reaberto; para semelhantes almas o sobrenatural é muito simples. 
Fez sua toalete, envolveu-a no lençol, desceu-a para o esquife, 
colocou-lhe uma coroa, estendeu seus cabelos. Eram louros e de 
extraordinário comprimento para sua idade. Felicida-de cortou uma 
grande mecha, cuja metade deixou deslizar dentro do peito, 
decidida a jamais dela se separar. 
 
O corpo foi levado a Pont-l’Évêque, seguindo as intenções da Srª. 
Aubain, que seguia o féretro em um carro fechado. 
 
Após a missa foram necessárias ainda quatro horas para alcançar o 
cemitério. Paulo andava à frente e soluçava. O Sr. Bourais vinha 
atrás, depois os principais habitantes, as mulheres cobertas de 
mantas negras e Felicida-de. Sonhava com seu sobrinho e por não 
haver podido lhe render suas honrarias, sentia um acréscimo em 
sua tristeza, como se o estivessem enterrando com a outra. 
 
O desespero da Srª. Aubain foi ilimitado. 
 
Primeiro, revoltou-se contra Deus, julgando injusto de sua parte ter 
levado sua filha, — ela que jamais fizera mal algum e cuja 
consciência era tão pura! Mas não! ela deveria tê-la levado ao Sul. 
Outros médicos a teriam salvado! Acusava-se, queria juntar-se a 
ela, gritava de angústia no meio dos sonhos. Um deles, sobretudo, 
obcecava-a. Seu marido, vestido como um marinheiro, voltava de 
uma longa viagem e dizia-lhe chorando, que havia recebido a 
ordem de levar Virgínia. Então, planejaram juntos de encontrar um 
esconderijo em alguma parte. 
 
Certa vez, voltou do quintal, transtornada. Havia pouco (ela 
mostrava o lugar) o pai e a filha tinham-lhe aparecido um após o 
outro e não faziam nada; observavam-na. 
 
Durante vários meses, permaneceu no quarto, inerte. Felicidade 
reprimia-a delicadamente; era preciso conservar-se pelo filho e 
pela outra, em memória "dela". 
 
— Ela? — repetia a Srª. Aubain, como que acordando.. — Ah! 
sim!...sim!... Você não esquece mesmo! — Alusão ao cemitério 
que lhe haviam proibido escrupulosamente. 
 
Felicidade lá ia todos os dias. 
 
Às quatro horas precisamente, passava ao longo das casas, subia a 
encosta, abria a grade e chegava ao túmulo de Virgínia. Era uma 
pequena coluna de mármore rosa com uma laje por baixo e 
correntes em volta circundando um pequeno jardim. Os canteiros 
desapareciam sob uma cobertura de flores. Regava as folhas, 
renovava a areia, ajoelhava-se para melhor trabalhar a terra. A Srª. 
Aubain, quando podia vir, sentia um alívio, uma espécie de 
consolo. 
 
Depois os anos passaram, todos iguais e sem outros episódios senão 
a volta das grandes festas: Páscoa, Assunção, Todos os Santos. 
Alguns acontecimentos no interior da casa marcaram data, a que se 
reportavam mais tarde. Assim, em 1825, dois vidraceiros pintaram 
o vestíbulo; em 1827 uma parte do teto, ao cair no pátio, quase 
matou um homem. No verão de 1828, foi a vez de a Senhora 
oferecer o pão bento; Bourais, nessa época, ausentou-se 
misteriosamente; e os antigos conhecidos aos poucos se foram: 
Guyot, Liébard, a Srª. Léchaptois, Robelin, o tio Gremanville, 
paralítico havia tempos. 
 
Certa noite, o condutor da mala-postal anunciou em Pont-l’Évêque 
a Revolução de Julho. Um novo subprefeito, poucos dias depois, 
foi nomeado: o barão de Larsonnière, ex-cônsul na América e que 
tinha em casa, além da mulher, a cunhada com três Senhoritas, já 
bem grandes. Eram vistas na relva vestidas de blusas esvoaçantes; 
possuíam um negro e um papagaio. A Srª. Aubain recebeu a visita 
deles e não se esqueceu de fazer a sua. Por mais longe que fosse de 
onde aparecessem, Felicidade corria para avisá-la. Mas uma coisa 
apenas era capaz de comovê-la, as cartas de seu filho. 
 
Ele não podia seguir nenhuma profissão, por estar absorvido nos 
tavernas. Ela lhe pagava as dívidas, ele fazia outras; e os suspiros 
que soltava a Srª. Aubain, tricotando perto da janela, chegavam até 
Felicidade, que girava a roca na cozinha. 
 
Elas passeavam juntas ao longo da fileira de árvores e falavam 
sempre de Virgínia, perguntando-se se tal coisa lhe teria agradado, 
em tal ocasião o que provavelmente teria dito. 
 
Todos os seus pequenos objetos ocupavam um armário no quarto 
com duas camas. A Srª. Aubain os inspecionava o menos possível. 
Certo dia de verão, resignou-se; e borboletas saíram voando do 
armário. 
 
Os vestidos alinhavam-se sob uma prateleira onde havia três 
bonecas, arcos, uma casinha, a bacia de mãos de que se servia. Elas 
retiraram igualmente os saiotes, as meias, os lenços e estenderam-
nos sobre os dois leitos antes de dobrá-los novamente. O sol 
iluminava aqueles pobres objetos, fazendo aparecer as manchas e 
as dobras formadas pelo movimento do corpo. O ar estava quente 
e azul, um melro chilreou, tudo parecia viver em uma profunda 
tranqüilidade. Reencontraram um pequeno chapéu de pelúcia, com 
longos pêlos, de cor marrom; mas estava todo roido por traças. 
Fixaram os olhos uma na outra, eles se encheram de lágrimas; por 
fim a patroa abriu os braços, a criada neles se jogou; e abraçaram-
se, satisfazendo a dor te em um abraço que as igualava. 
 
Foi a primeira vez de suas vidas, pois a Srª. Aubain não era uma 
pessoa de natureza expansiva. Felicidade ficou-lhe grata como por 
uma caridade e doravante adorava-a com uma devoção bestial e 
uma veneração religiosa. 
 
A bondade de seu coração desenvolveu-se. 
 
Quando ouvia na rua os tambores de um regimento em marcha 
colocava-se à porta com uma moringa de sidra e oferecia de beber 
aos soldados. 
 
Cuidava dos doentes de cólera. Protegia os polacos; e houve 
mesmo um que declarou querer se casar com ela. Mas eles se 
desentenderam; pois certa manhã, ao voltar da igreja, encontrou-o 
na cozinha, onde entrara e preparara um molho vinagrete que comia 
tranqüilamente. 
 
Depois dos polacos, foi a vez do velho Colmiche, conhecido por 
cometer atrocidades em 93. Vivia à margem do riacho, nos 
escombros de uma pocilga. Os meninos observavam-no pelas 
fendas do muro e atiravam-lhe pedregulhos que lhe caíam sobre a 
enxerga, onde jazia, continuamente abalado por um catarro, com 
os cabelos muito longos, as pálpebras vermelhas e no braço um 
tumor maior que a cabeça. Ela lhe providenciou roupas, tratou de 
limpar aquele chiqueiro, sonhava em instalá-lo na casa do forno, 
sem que isso incomodasse a Senhora. Quando o câncer rebentou, 
ela o tratava todos os dias, algumas vezes trazia-lhe um pouco de 
bolo, sentava-o no sol sobre um feixe de palha; e o pobre velho, 
babando e tremendo, agradecia-lhe com a voz apagada, temendoperdê-la, estendia as mãos assim que a via afastar-se. Ele morreu; 
ela encomendou uma missa para o descanso de sua alma. 
 
Naquele dia teve uma grande felicidade: na hora do jantar, o negro 
da Srª. de Larsonnière apareceu segurando o papagaio na gaiola, 
com o bastão, a corrente e o cadeado. Um bilhete da Baronesa 
anunciava à Srª. Aubain que, na vez que seu marido havia sido 
promovido para uma prefeitura, eles partiriam àquela noite; e ela 
pedia que aceitasse este pássaro como uma lembrança e testemunho 
de seu respeito por ela. 
 
Ele já ocupava há muito tempo a imaginação de Felicidade, pois 
vinha da América; aquela palavra lembrava-lhe Vítor, tanto que se 
informava sobre ele com o negro. Certa vez até disse: 
 
— A Senhora é que ficaria feliz em tê-lo! 
 
O negro repetira aquela fala à sua patroa que, não podendo levá-lo, 
livrou-se dele dessa maneira. 
 
IV 
 
 
Ele se chamava Lulu. Seu corpo era verde, as pontas das asas rosa, 
a fronte azul e o pescoço dourado. 
 
Mas tinha a irritante mania de morder seu bastão, arrancava as 
penas, espalhava sua sujeira, derramava a água de sua banheira; a 
Srª. Aubain, a quem aborrecia, deu-o para sempre para Felicidade. 
 
Ela se ocupou a ensiná-lo; logo ele repetia: "Belo rapaz! Às ordens, 
Senhor! Ave Maria!" Ficava perto da porta e muitos espantavam-
se que não atendesse pelo nome de Jacquot, uma vez que todos os 
papagaios se chamam Jacquot. Comparavam-no a um peru, 
achavam-no estúpido: tantas punhaladas para Felicidade! Estranha 
obstinação de Lulu de não falar assim que o observavam! 
 
No entanto procurava companhia; pois aos domingos, enquanto as 
Senhoritas Rochefeuille, o Sr. de Houppeville e novos 
freqüentadores — Onfroy o boticário, Senhor Varin e o Capitão 
Mathieu — jogavam sua partida de cartas, ele batia nos vidros com 
as asas e agitava-se tão furiosamente, que era impossível ouvir 
qualquer coisa. 
 
O rosto de Bourais, provavelmente, parecia-lhe muito engraçado. 
Logo que o via, começava a rir com todas as forças. Os estalos de 
sua voz repercutiam no pátio, o eco repetia-os, os vizinhos 
colocavam-se às janelas, rindo também; e, para não ser visto pelo 
papagaio, o Sr. Bourais passava rente ao muro, dissimulando o 
perfil com o chapéu, alcançava o riacho, depois entrava pela porta 
do quintal; e os olhares que lançava ao pássaro não tinham 
nenhuma ternura. 
 
Lulu recebera do empregado do açougueiro um piparote, quando 
se permitira afundar a cabeça em seu cesto; e desde então tratava 
sempre de beliscá-lo através da camisa. Fabu ameaçava torcer-lhe 
o pescoço, se bem que não fosse cruel, apesar das tatuagens nos 
braços e das grandes suíças. Pelo contrário! tinha até uma afeição 
pelo papagaio, querendo mesmo, por brincadeira jovial, ensinar-
lhe alguns palavrões. 
 
Felicidade, a quem estas, maneiras desagradavam, colocou-o na 
cozinha. Tirou-lhe a corrente e ele circulava pela casa. 
 
Quando descia as escadas, apoiava sobre os degraus a curva do 
bico, levantava a pata direita, depois a esquerda; e ela temia que tal 
ginástica lhe causasse tonturas. Ele ficou doente, não podia mais 
falar nem comer. Tinha sob a língua uma membrana grossa, como 
às vezes a tem algumas galinhas. Ela o curou arrancando essa 
película com suas unhas. O Sr. Paulo, certo dia, teve a imprudência 
de soprar-lhe nas narinas a fumaça de um charuto; uma outra vez a 
Srª. Lormeau provocou-o com a ponta de sua sombrinha, ele 
engoliu o aro da mesma, por fim desapareceu. 
 
Ela o havia colocado sobre a relva para refrescá-lo, ausentando-se 
por um minuto e, quando voltou, nada do papagaio! Primeiro 
procurou-o nas moitas à beira da água e sobre os telhados, sem 
ouvir sua patroa que gritava: 
 
— Tome cuidado! Você está louca! Em seguida verificou todos os 
quintais de Pont-l’Évêque; e parava os passantes. 
 
— Não viram, por acaso, meu papagaio? 
 
— Àqueles que não conheciam o papagaio, dava uma descrição. 
De repente, acreditou distinguir detrás dos moinhos, ao final das 
ladeiras, uma coisa verde que esvoaçava. Mas do alto das ladeiras, 
nada! Um mascate lhe afirmou que o havia encontrado agora 
mesmo, em Saint-Melaine, na loja da velha Simão. Para lá ela 
correu. Não entendiam o que ela queria dizer. Por fim, voltou para 
casa esgotada, os chinelos aos farrapos, com a morte na alma; e 
sentada no meio do banco, perto da Senhora, contava todas as suas 
peripécias, quando um leve peso lhe pousou sobre o ombro. Lulu! 
Que diabos tinha ele feito? Talvez tivesse passeado pelos 
arredores! 
 
Custou-lhe recompor-se, ou melhor, não se recompôs jamais. 
 
Como conseqüência de um resfriado, ela pegou uma angina; pouco 
tempo depois, uma dor nos ouvidos. Três anos mais tarde, ela ficou 
surda; e falava muito alto, mesmo na igreja. Ainda que seus 
pecados pudessem, sem desonra para ela e sem inconveniência para 
o mundo, espalhar-se pelos quatro cantos da diocese, o pároco 
julgou conveniente não mais ouvir sua confissão na sacristia. 
 
Zunidos ilusórios conseguiam atormentá-la. Freqüentemente sua 
patroa dizia: 
 
— Meu Deus! Como você é tola! 
 
Ela retrucava: 
 
— Sim, Senhora! — procurando alguma coisa à sua volta. 
 
O pequeno círculo de suas idéias encolheu ainda mais e o badalar 
dos sinos, o mugido dos bois, não existiam mais. Todos os seres 
funcionavam com o silêncio das almas. Um único som chegava 
agora a seus ouvidos, a voz do papagaio. 
 
Como que para distraí-la, ele reproduzia o tique-taque do relógio, 
o grito agudo de um vendedor de peixes, o serrote do marceneiro 
que morava em frente e, ao soar da campainha, imitava a Srª. 
Aubain: "Felicidade! A porta! A porta!" 
 
Mantinham diálogos, ele recitando à saciedade as três frases de seu 
repertório, e ela as respondendo com palavras sem lógica, mas com 
as quais seu coração se extravasava, Lulu, em seu isolamento, era 
quase um filho, um amado. Ele escalava seus dedos, mordia seus 
lábios, agarrava-se a seu lenço; e quando ela se debruçava 
inclinando a cabeça como as babás, as grandes asas de sua toca e 
as asas do papagaio tremiam juntas. 
 
Quando nuvens se acumulavam e trovões estrondavam, ele dava 
gritos talvez se recordando das tempestades de sua floresta natal. O 
cair das águas excitava seu delírio. Esvoaçava, desvairado subia ao 
teto, derrubava tudo e pela janela ia agitar-se no quintal; mas 
voltava rapidamente sobre um dos cães da lareira, e saltitando para 
secar as plumas, mostrava ora o rabo, ora o bico. 
 
Numa manhã do terrível inverno de 1837, quando ela o colocara 
diante da lareira, por causa do frio, encontrou-o morto, no meio da 
gaiola, com a cabeça para baixo e as garras nas barras de ferro. 
Uma congestão, talvez, o matara? Ela acreditava ter sido um 
envenenamento pela salsa; e apesar da ausência de qualquer prova, 
suas suspeitas recaíram sobre Fabu. Chorou tanto, que sua patroa 
lhe disse: 
 
— Bom! Mande empalhá-lo! 
 
Pediu conselho ao farmacêutico, que sempre fora bom com o 
papagaio. 
 
Ele escreveu ao Havre. Um certo Fellacher encarregou-se desse 
trabalho. Mas, como a diligência por vezes perdia os pacotes, ela 
resolveu levá-lo ela mesma até Honfleur. 
 
As macieiras sem folhas sucediam-se à margem do caminho. Gelo 
cobria as valas. Cães latiam ao redor das casas e, com as mãos sob 
o manto, seus pequenos tamancos pretos e a sacola, andava 
apressadamente, no meio da rua. 
 
Atravessou a floresta, passou Haut-Chêne, chegou a volt Saint-
Gatien. 
 
Atrás dela, em uma nuvem de poeira uma mala-posta a todo o 
galope vinha violentamente, acelerada peladescida. Vendo aquela 
mulher que nem se incomodava, o condutor ergueu-se por sobre a 
capota e o cocheiro também gritou, enquanto os quatro cavalos, que 
não conseguia conter, aceleravam a marcha; os dois primeiros 
roçaram-na; com uma sacudida nas rédeas, ele os jogou para fora 
do caminho, mas furioso levantou o braço, e com toda a força e o 
grande chicote acertou-lhe do ventre ao coque um tamanho golpe 
que ela caiu de costas. 
 
O primeiro gesto ao recuperar a consciência foi abrir o cesto. Lulu 
não tinha nada, felizmente. Sentiu uma queimação na face direita; 
as mãos, que a tocaram, estavam vermelhas. O sangue corria. 
 
Sentou-se sobre os pedregulhos, limpou o rosto com o lenço, 
depois comeu uma côdea de pão colocada no cesto por precaução 
e consolou-se de sua ferida olhando o pássaro. 
 
Chegando ao topo de Ecquemauville, viu as luzes de Honfleur que 
cintilavam na noite como um punhado de estrelas; o mar, ao longe, 
estendia-se confusamente. Então uma fraqueza fê-la parar; e a 
miséria de sua infância, a decepção do primeiro amor, a partida do 
sobrinho, a morte de Virgínia, como o fluxo das marés, voltaram 
ao mesmo tempo e, subindo-lhe pela garganta sufocavam-na. 
 
Depois quis falar com o capitão do barco e, sem lhe dizer o que 
estava enviando, fez-lhe muitas recomendações. 
 
Fellacher ficou por muito tempo com o papagaio. Prometia-o 
sempre para a semana seguinte; ao cabo de seis meses, anunciou a 
remessa de um caixote; e não se falou mais naquilo. Parecia que 
Lulu não voltaria jamais. "Eles o roubaram de mim!" — pensava 
ela. 
 
Finalmente ele chegou, — e esplêndido, em pé sobre um galho de 
árvore, que estava aparafusado a um soquete de acaju, com uma 
das patas no ar, a cabeça inclinada e mordendo uma noz que o 
empalhador tinha dourado por amor ao grandioso. 
 
Ela o trancou em seu quarto. 
 
Neste lugar, onde apenas poucos podiam entrar, havia um clima ao 
mesmo tempo de capela e de bazar, de tantos objetos religiosos e 
coisas heteróclitas que continha. 
 
Um grande armário dificultava a abertura da porta. Do lado oposto 
da janela, dominando o quintal, um olho-de-boi dava para o pátio; 
uma mesa, perto da cama de lona, continha um pote de água, dois 
pentes e um cubo de sabonete azul em um pratinho lascado. Viam-
se nas paredes: terços, medalhas, diversas Virgens, uma pia 
batismal talhada em uma casca de coco; sobre a cômoda coberta 
com um lençol, como um altar, a caixa de conchas que Vítor lhe 
havia dado; depois um regador e uma bola, cadernos, o livro de 
geografia em estampas, um par de botinas; e no prego do espelho, 
preso pelas fitas, o chapéu de pelúcia! Felicidade cultivava mesmo 
esse tipo de respeito tão distante que guardava uma das 
sobrecasacas do Senhor. Todas as velharias que a Srª. Aubain não 
queria mais, ela levava para o quarto. Assim havia flores artificiais 
no canto da cômoda e o retrato do conde de Artois no vão da 
lucarna. 
 
Com uma prancheta, Lulu foi instalado em um canto da lareira que 
avançava para dentro do quarto. Todas as manhãs, ao levantar, ela 
o via na claridade da aurora e se lembrava então dos dias passados 
e de ações insignificantes em seus menores detalhes, sem dor, com 
toda a tranqüilidade. 
 
Por não se comunicar com ninguém, vivia em um torpor de 
sonâmbulo. As procissões de Corpus Christi reanimavam-na. Ela 
ia até os vizinhos pedir tochas e esteiras para embelezar os andores 
que passavam na rua. 
 
Na igreja, sempre contemplava o Espírito Santo observava que nele 
havia algo de similar com o papagaio. A semelhança pareceu-lhe 
ainda mais evidente em uma imagem de Épinal representando o 
batismo de Nosso Senhor. Com as asas de púrpura e o corpo de 
esmeralda era realmente o retrato de Lulu. 
 
Tendo-o comprado pendurou-o no lugar do conde de Artois — de 
maneira que, com um só olhar, via-os juntos. Associavam-se em 
seu pensamento, o papagaio santificado pela relação com o Espírito 
Santo, que por sua vez se tornava mais vivo a seus olhos e 
inteligível. O Pai para expressar-se não deveria ter escolhido uma 
pomba, uma vez que esses animais não tem voz, mas antes um dos 
ancestrais de Lulu. E Felicidade fazia suas preces olhando a 
imagem mas, de vez em quando, virava-se um pouco em direção 
ao pássaro. 
 
Ela teve vontade de entrar para as Filhas de Maria. A Srª. Aubain 
dissuadiu-a. 
 
Um acontecimento considerável sucedeu: O casamento de Paulo. 
 
Após ter sido primeiro escrivão de cartório, após ter trabalhado no 
comércio, na alfândega, nas arrecadações e ter mesmo começado a 
pleitear um emprego nas águas e reflorestamento, aos trinta e seis 
anos, de repente por uma inspiração dos céus, descobriu seu 
caminho: o registro! e nele mostrava tamanha habilidade que um 
aferidor ofereceu-lhe a filha, prometendo-lhe proteção. 
 
Paulo, agora homem sério, trouxe-a até à mãe. 
 
Ela denegriu os hábitos de Pont-l’Évêque, agiu com ares de 
princesa, ofendeu Felicidade. A Srª. Aubain, assim que ela saiu, 
sentiu um alívio. 
 
Na semana seguinte, souberam da morte do Sr. Bourais, na Baixa 
Bretanha, em um albergue. O rumor de um suicídio acabou se 
confirmando; levantaram-se dúvidas quanto a sua probidade. A Srª. 
Aubain conferiu suas contas e não tardou a conhecer uma 
infinidade de falcatruas: desvios de pagamentos, vendas de madeira 
dissimuladas, falsas quitações etc.. Além do mais, tinha um filho 
natural e "relações com uma certa pessoa de Dozulé". 
 
Essas baixezas afligiram-na muito. No mês de março de 1853, teve 
uma dor no peito; sua língua parecia coberta de fumaça, as 
sanguessugas não acalmaram suas sufocações; e na nona noite ela 
expirou tendo precisamente setenta e dois anos. 
 
Julgavam-na mais jovem, por causa dos cabelos castanhos, cujos 
bandôs envolviam o rosto macilento, marcado pela varíola. Poucos 
amigos entristeceram-se por ela, de tal forma suas maneiras eram 
de uma altivez que distanciava. 
 
Felicidade chorou-a como não se costuma chorar os patrões. Que a 
Senhora morresse antes dela, isso lhe perturbava as idéias, parecia-
lhe contrário à ordem natural das coisas, inadmissível, monstruoso. 
 
Dez dias depois (o tempo de chegarem de Besançon) os herdeiros 
apareceram. A nora vasculhou gavetas, escolheu alguns móveis, 
vendeu os demais, depois recuperaram o registro. 
 
A poltrona da Senhora, sua mesinha redonda, o aquecedor, as oito 
cadeiras, foram-se! No lugar das gravuras desenhavam-se 
quadrados amarelos no meio das paredes. Eles haviam levado as 
duas camas e os colchões, e dentro do armário não se via mais 
nenhum dos pertences de Virgínia! Felicidade subiu os andares, 
ébria de tristeza. 
 
No dia seguinte, havia sobre a porta um cartaz; o boticário gritou-
lhe aos ouvidos que a casa estava à venda. 
 
Ela cambaleou e foi obrigada a se sentar. 
 
O que a desolava principalmente era ter de abandonar seu quarto, 
— tão cômodo para o pobre Lulu. Envolvendo-o em um olhar de 
angústia, implorava ao Espírito Santo e adquiriu o hábito idólatra 
de dizer as preces ajoelhada diante do papagaio. Às vezes, o sol 
entrando pela lucarna atingia seu olho de vidro, fazendo jorrar um 
grande raio luminoso que a fazia entrar em êxtase. 
 
Tinha uma renda de trezentos e oitenta francos, legados pela patroa. 
A horta fornecia-lhe legumes. Quanto as vestimentas, tinha com o 
que se vestir até o fim de seus dias, e economizava luz, deitando-
se logo ao crepúsculo. 
 
Ela não saía muito, a fim de evitar a loja do antiquário, onde 
estavam expostos alguns dos antigos móveis. Desde seu 
atordoamento, puxava uma perna; e, como suas forças minguavam,a velha Simão, que perdera tudo no armazém, vinha todas as 
manhãs cortar a lenha e bombear água. 
 
Seus olhos enfraqueceram-se. As persianas não se abriam mais. 
Muitos anos se passaram. E a casa nem se alugava, nem se vendia. 
 
Com medo de que fosse mandada embora, Felicidade não pedia por 
nenhum conserto. As ripas do telhado apodreciam; durante todo um 
inverno a cabeceira de sua cama ficou molhada. Depois da Páscoa, 
cuspiu sangue. Então a velha Simão recorreu a um médico. 
Felicidade quis saber o que tinha. Mas, surda demais para ouvir, 
uma única palavra chegou-lhe aos ouvidos: "pneumonia". Era-lhe 
conhecida e replicou suavemente: 
 
— Ah! Como a Senhora. — achando natural seguir a patroa. 
 
A época dos altares aproximava-se. 
 
O primeiro era sempre montado ao pé da encosta, o segundo na 
frente do correio, o terceiro no meio da rua. Houve disputas a 
respeito desse último; e os paroquianos escolheram finalmente o 
pátio da Srª. Aubain. 
 
As sufocações e a febre aumentavam. Felicidade entristecia-se por 
nada fazer para o altar. Ao menos, se ela pudesse ter colocado 
qualquer coisa sobre ele! Então pensou no papagaio. Não era 
conveniente, objetaram os vizinhos. Mas o pároco deu a permissão; 
ela ficou tão feliz, que lhe pediu que aceitasse, quando falecesse, 
Lulu, sua única riqueza. 
 
Da terça-feira ao sábado, na véspera de Corpus Christi, ela tossiu 
com mais freqüência. À noite, seu rosto estava crispado, os lábios 
colavam-se às gengivas, os vômitos surgiram; e no dia seguinte, ao 
amanhecer, sentindo-se muito mal, mandou chamar um padre. 
 
Três velhas rodeavam-na durante a extrema-unção. Depois disse 
que precisava falar com Fabu. 
 
Ele chegou em trajes de domingo, pouco à vontade naquela 
atmosfera lúgubre. 
 
— Perdoe-me — disse ela com um esforço para estender o braço 
— Eu acreditava que fora você quem o havia matado! 
 
O que significavam semelhantes asneiras? Ter suspeitado dele 
como um assassino, um homem como ele! E indignou-se, ia fazer 
um alvoroço. 
 
— Ela perdeu o juízo, vocês estão vendo! 
 
Felicidade, vez ou outra, falava com as sombras. As velhas 
afastaram-se. A Simone foi almoçar. 
 
Um pouco mais tarde, pegou Lulu e, aproximando-o de Felicidade: 
 
— Vamos! Diga-lhe adeus! 
 
Embora não fosse um cadáver, os vermes devoravam-no; uma de 
suas asas estava quebrada, a estopa saía-lhe do ventre. Mas, cega 
agora, ela o beijou na fronte e o mantinha encostado à face. A 
Simone pegou-o. de volta para colocá-lo sobre o altar. 
 
V 
 
As pastagens exalavam o aroma do verão; moscas zumbiam; o sol 
fazia brilhar o ribeirão, aquecia as ardósias. A velha Simão, de 
volta ao quarto, dormia tranqüilamente. 
 
Toques de sino acordaram-na; saía-se das vésperas. O delírio de 
Felicidade diminuiu. Sonhando com a procissão, ela a via, como se 
a tivesse acompanhado. 
 
Todas as crianças das escolas, os cantores e os bombeiros andavam 
nas calçadas, enquanto pelo meio da rua avançavam 
primeiramente: o suíço carregando a alabarda, o sacristão com uma 
grande cruz, o instrutor vigiando os garotos, a religiosa inquieta 
com suas meninas — três das menores, cacheadas como anjos, 
lançavam no ar pétalas de rosas — o diácono, com os braços 
abertos, moderando a música e dois incensadores voltando-se a 
cada passo em direção ao Santo Sacramento, que o pároco, na sua 
bela casula, carregava, sob um pálio de veludo vermelho vivo, 
segurado por quatro membros da igreja. Uma multidão seguia atrás, 
entre as toalhas brancas cobrindo o murro das casas; e chegou ao 
final da ladeira. 
 
Um suor frio molhava as têmporas de Felicidade. A Simone a 
enxugava com um pano, dizendo que precisaria um dia passar por 
lá. 
 
O murmúrio da multidão aumentou. Tornou-se muito forte por um 
momento, distanciou-se. 
 
Uma rajada de fuzis abalou os ladrilhos. Eram os postilhões 
saudando o Ostensório. Felicidade virou suas pupilas, e disse, o 
mais alto que pode: 
 
— Ele está bem? — angustiada pelo papagaio. 
 
Sua agonia começou. E estertores, cada vez mais freqüentes, 
erguiam-lhe as costas. Bolhas de espuma escorriam-lhe pelo canto 
da boca, e todo seu corpo tremia. 
 
Logo se distinguiu o ronco dos oficlides, as vozes cristalinas das 
crianças, a voz grave dos homens. Tudo silenciava de vez em 
quando, e a batida dos passos, amortecida pelas flores, fazia o 
barulho de um rebanho sobre a relva. 
 
O pároco surgiu no pátio. A Simone subiu em uma cadeira para 
alcançar o olho-de-boi, e dessa maneira dominava o andor. 
 
Guirlandas verdes pendiam sobre o altar, ornado por um falbalá em 
ponto inglês. Havia no meio um pequeno quadro contendo 
relíquias, duas laranjeiras nos cantos e, em todo o comprimento, 
candelabros de prata e vasos de porcelana, de onde saíam girassóis, 
lírios, peônias, dedaleiras, cachos de hortênsias. Esse amontoado 
de cores brilhantes descia obliquamente, do primeiro andar até o 
tapete, prolongando-se sobre os paralelepípedos; e objetos 
estranhos atraíam os olhares. Um açucareiro de prata dourada tinha 
uma coroa de violetas, pingentes em pedras de Alençon brilhavam 
sobre musgo, dois biombos chineses expunham suas paisagens. 
Lulu, escondido sob as rosas, só deixava ver sua testa azul, parecida 
com uma placa de lápis-lazúli. 
 
Os membros da igreja, os cantores, as crianças enfileiraram-se nos 
três lados do pátio. O padre subiu lentamente os degraus e colocou 
sobre a renda seu grande sol de ouro que cintilava. Todos se 
ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os incensórios, 
balançados vigorosamente, deslizavam em suas correntinhas. 
 
Uma fumaça azul subiu no quarto de Felicidade. Ela avançou as 
narinas, inalando-a com uma sensualidade mística; depois fechou 
as pálpebras. Seus lábios sorriam. Os movimentos de seu coração 
diminuíram um a um, cada vez mais vagos, mais suaves, como uma 
fonte se esgota, como um eco desaparece; e quando exalou seu 
último suspiro, ela acreditou ver, nos céus entreabertos, um 
papagaio gigantesco, planando acima de sua cabeça.

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