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A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M887f Moura, Luís César Souto de A face reversa da educação médica : um estudo sobre a forma- ção do habitus profissional no ambiente da escola paralela / Luís César Souto de Moura. – Porto Alegre, RS : AGE : SIMERS, 2004. 14x21 cm. ; 160p. Apêndice Inclui bibliografia ISBN 85-7497-235-5 1. Educação médica. 2. Pessoal da área médica – Treina- mento. I. Título. 04-2592. CDD 610.7 CDU 614.252 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DO HABITUS PROFISSIONAL NO AMBIENTE DA ESCOLA PARALELA PORTO ALEGRE 2004 A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA © Luís César Souto de Moura, 2004 Capa: MARCO CENA Diagramação: LAURI HERMÓGENES CARDOSO Supervisão editorial: PAULO FLÁVIO LEDUR Editoração eletrônica: AGE – ASSESSORIA GRÁFICA E EDITORIAL LTDA. Reservados todos os direitos de publicação ao SIMERS – SINDICATO MÉDICO DO RIO GRANDE DO SUL Rua Cel. Corte Real, 975 Fone (51) 3027-3737 90630-080 Porto Alegre, RS, Brasil www.simers.org.br Edição e distribuição: EDITORA AGE LTDA. Rua São Manoel, 1787 Fone (51) 3223-9385 – 3061-9385 91620-110 Porto Alegre, RS, Brasil vendas@editoraage.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Agradecimentos Aos meus filhos, Ricardo e Artur, pelas horas de lazer em queprescindiram involuntariamente da companhia do pai para que este trabalho fosse realizado. À minha mulher, Gisela, que já passou por isso, cuja contri- buição foi decisiva em todos os sentidos para que este estudo fosse viável. À minha mãe, Myrtes, também titulada como mestre, mi- nha referência intelectual e moral, a qual me ensinou que a educa- ção é um processo que nunca está concluído. Ao meu pai, Carlos Alberto (in memoriam), guerreiro que me instruiu e treinou para a luta da vida; filósofo da prática que me ajudou no desenvolvimento do espírito crítico. Ao Prof. Renato de Oliveira, orientador e amigo que foi quem melhor entendeu o que eu queria mesmo estudar; analista que incorporou um entendimento fantástico do mundo e da alma médica; parceiro no jogo da “Conciliação de Agendas”. A ciência está longe de ser um instru- mento perfeito de conhecimento. É ape- nas o melhor que temos. Neste aspecto, como em muitos outros, ela se parece com a democracia. Carl Sagan Sumário Apresentação (Renato de Oliveira) ............................................................ 11 Introdução ................................................................................................. 19 Explicações introdutórias ....................................................................... 19 Delimitação do tema, hipótese e objetivos ............................................ 22 CAPÍTULO 1 UMA REVISÃO DA BIBLIOGRAFIA SOBRE A SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES 1.1 Opção epistemológica .......................................................................... 35 1.2 A sociologia e as profissões ................................................................... 37 1.3 A profissão como categoria analítica .................................................... 49 1.4 Profissão, profissionalização e profissionalismo ................................... 55 CAPÍTULO 2 MEDICINA E PROFISSIONALISMO 2.1 A medicina como profissão típico-ideal ............................................... 58 2.2 Cultura profissional médica ................................................................. 67 2.3 Medicina e profissionalismo no Brasil ................................................. 70 2.4 A escola médica como reprodutora de uma cultura profissional unificada metanacional ........................................ 73 CAPÍTULO 3 EDUCAÇÃO MÉDICA E FORMAÇÃO DO HABITUS PROFISSIONAL 3.1 Educação médica e conversão à cultura profissional ............................ 75 3.2 A formação de um habitus profissional médico ................................... 87 3.3 Ação pedagógica e reprodução das relações sociais em um campo ........................................................................... 89 3.4 Habitus e estratégias profissionais ........................................................ 92 CAPÍTULO 4 METODOLOGIA 4.1 A medicina na confluência de paradigmas ........................................... 97 4.2 O emprego de uma metodologia crítico-dialética de análise ............. 104 4.3 A entrevista como técnica .................................................................. 109 CAPÍTULO 5 TRABALHO DE CAMPO E ANÁLISE DE DADOS 5.1 Classificação dos dados e definição de categorias operativas ............. 113 5.2 Análise de dados sintetizados ............................................................. 115 CAPÍTULO 6 CONCLUSÕES 6.1 Considerações finais ........................................................................... 151 6.2 Da escola formal à Escola Paralela: O trânsito da formação do habitus profissional ................................. 152 Bibliografia consultada ............................................................................. 158 A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 11 Apresentação O presente livro é o trabalho apresentado pelo autor para a obten-ção do grau de Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 3 de dezembro de 2001, quando, por maioria da banca julgadora, obteve conceito máximo. Tive o prazer e a honra de orientar este trabalho. Para elaborá-lo, o autor contou antes de tudo com sua fina capaci- dade de percepção das coisas e pessoas, que se traduz num gosto caracte- rístico e muito próprio em observar a vida, resultando antes de tudo numa personalidade cativante. Tais características o fizeram guardar na memória uma infinidade de fatos aparentemente pequenos e sem im- portância, banais até, vividos ou observados durante sua vida de estu- dante. Fatos paralelos à formação médica propriamente dita, desses que vão aos poucos constituindo o folclore de uma instituição, e que o autor gosta de relatar aos amigos pelo puro prazer do bom-humor. Em segundo lugar, contou com o conceito de habitus, do soció- logo francês Pierre Bourdieu, recentemente falecido. Bourdieu é um sociólogo exigente, que não admite contempla- ções para com a “sociologia dos sábios”. Bourdieu entende como tal aquela sociologia que coloca o sociólogo acima do seu objeto de es- tudo, enquadrando-o em esquemas teóricos previamente definidos, dos quais se deduzem as “leis” que determinam o comportamento de agentes sociais mais ou menos ignorantes sobre os fundamentos de suas preferências e escolhas. Para Bourdieu, a sociologia é um “espor- te de combate”, que coloca o sociólogo lado a lado com seu objeto, engajando-o numa luta que é a um só tempo de compreensão e des- mitificação das ilusões que envolvem o objeto. Por isso mesmo, é uma sociologia com exigências éticas rigorosas e muito definidas, que obrigam o sociólogo, antes de tudo, a colocar-se em guarda con- tra as armadilhas da sua formação. 12 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA O médico Luís César sentiu-se à vontade nesta sociologia. Não apenas por ser médico – obviamente! –, mas por ter aprendido, ao longo de sua história de relacionamento com seu objeto de trabalho médico, o paciente, a abrir um olho com respeito à sua própria for- mação profissional. Que está entre as melhores do país, digamo-lo logo: o Dr. Luís César é formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – cujo folclore já cente- nário é riquíssimo e saborosíssimo! O conceito de habitus Luís César foi aprendendo aos poucos, com a dificuldade própria de alguém que, como costumava dizer em nossas sessões de trabalho, “vem de uma outra formação”. De fato, o Dr. Luís César não entrou na sociologia pela porta maiscomumente utilizada pelos médicos que a buscam, a porta da medicina de saúde pública e da epidemiologia – o Dr. Luís César é médico clínico, especializado em cirurgia geral. Em suma, uma outra formação. Mas as inúmeras histórias dos seus tempos de aprendizado médico, um folclore inteiro que povoa- va sua memória, estavam lá, como material bruto a ser trabalhado, e Luís César ia avançando em seu novo aprendizado teórico com o visível fascí- nio de quem volta e meia se parava dizendo: “Tchê, mas então é isto?!” Através do conceito de habitus Bourdieu deita raízes em Aristó- teles, desconfiado de uma razão que fosse capaz de libertar-se de to- das as contingências da vida e chegar a uma pureza de intenções determinada unicamente por ela própria, a Razão. Kant tem algo a ver com isso, e não é à toa que Kant é tão citado por doutrinadores de uma ética médica que seria capaz de insurgir-se contra as contin- gências do exercício profissional e submeter o médico ao seu único imperativo: primum non nocere, o bem-estar do paciente em primei- ro lugar. Aristóteles é mais complexo. Para ele, a razão humana está indissoluvelmente ligada à vida prática, que não é resultado, esta, nem dos desejos ou do simples querer afetivo, nem tampouco da teoria ou da sabedoria, mas da sua combinação no ato, no agir efeti- vo. Para Aristóteles, é sobre as circunstâncias que o ser humano deli- bera. E se a deliberação é um ato de razão, a matéria sobre a qual ela se exerce é antes sentida irracionalmente na esfera do desejo. Esse primórdio de uma teoria da ação está presente no conceito de habitus. Através dele, Bourdieu procura explicar a ação humana A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 13 como resultado das escolhas do próprio indivíduo. Essa ação, no en- tanto, bem como as escolhas em que ela se baseia, realizam-se num mundo de relações sociais objetivadas, cuja expressão maior são as instituições. Face a tais relações, há, em primeiro lugar, uma disposição permanente do indivíduo em adaptar-se a elas. Essa disposição é da or- dem do inconsciente. Por outro lado, é graças a essa adaptação que a ação se torna possível e, mais importante, socialmente relevante. Se entendermos a ação como fundamentalmente distinta do com- portamento, na medida em que este é uma incorporação passiva das circunstâncias, reproduzindo-as, enquanto aquela é resultado de uma vontade capaz de ir contra e alterar as circunstâncias (o comporta- mento é conforme à regra, a ação é conforme à liberdade), o dito anteriormente pode parecer um paradoxo. Mas não o é. Bourdieu procura demonstrar justamente que é por identificar-se com as rela- ções sociais objetivadas em seus respectivos “campos” (o científico, o religioso, o econômico, etc.) e as distintas práticas sociais e formas de conhecimento a eles associadas, que o indivíduo é capaz de decidir- se a agir. Em outras palavras, é antes de tudo a familiaridade com o conjunto de práticas sociais e conhecimentos correspondentes a um “campo” específico de atividades que dá suporte à ação. O médico é um excelente exemplo de como isso se processa. Pensemos no cirurgião que, da sala de urgências do Hospital de Pronto Socorro, viu entrar um indivíduo pálido estendido sobre uma maca, apresentando um pequeno orifício no abdômen (“bala calibre 22” – pensa ou ouve falar!). Imediatamente saca do bisturi, faz uma incisão precisa no abdômen da vítima, literalmente enfia a mão incisão aden- tro e segura o vaso por onde se esvai o sangue1. Tudo se passa muito rapidamente, sem que tivesse havido tempo para que o médico exa- minasse o caso, imaginasse a trajetória da bala no interior da cavida- de abdominal e concluísse, com base no seu conhecimento teórico dessa parte da anatomia humana, que muito provavelmente o vaso “x” havia sido perfurado, submetendo a vítima a intensa hemorragia interna, e, com base nesta hipótese, avaliasse as possíveis conseqüên- 1 Uma cena como esta é consistentemente referida, no meio médico, como tendo efetivamente acontecido no Pronto Socorro Municipal de Porto Alegre. 14 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA cias, sobre o estado da vítima, do tempo necessário para a chegada ao bloco cirúrgico, os procedimentos de anestesia, assepsia de campo, etc., para então decidir, argumentativamente, que o melhor seria não esperar e agir ali, naquele preciso momento. Nada disso ocorreu: o médico olhou o paciente, ato contínuo avançou com o bisturi e ime- diatamente estava com a mão no interior da cavidade abdominal acompanhando a maca até a sala de cirurgia, onde se comprovou o acerto da sua intervenção. Alguém poderia sugerir que isso foi possível pelo “hábito” do médico em questão. De tanto executar cirurgias abdominais, o mé- dico “habituou-se” e sua ação foi, como se diz, “automática”. Esta resposta, no entanto, é altamente insatisfatória. O “hábito” só se tor- nou possível através da repetição sucessiva de eventos em condições idênticas: eu reajo sempre da mesma forma quando ouço o ruído do carro de minha mulher aproximando-se do portão da casa (e nisso talvez não me diferencie muito do meu cachorro...); ou, quando sen- to confortavelmente ao final do dia para ler o jornal levo automati- camente a mão ao bolso do paletó em busca do maço de cigarros – apesar de já ter deixado de fumar há alguns anos; ou cultivo o hábito de, nos finais de tarde, encontrar os mesmos amigos para um chope no mesmo bar, de preferência na mesma mesa e para debater os mes- mos assuntos, até que num certo dia, encontrando o bar fechado, deparamo-nos com um problema insolúvel. Em suma, o hábito não requer deliberação – antes dispensa-a. Ora, o evento acima referido foi absolutamente singular. Nunca havia ocorrido daquela forma e jamais voltou a ocorrer. No entanto, sua ocorrência deu-se num con- texto (um “campo”, para utilizarmos a linguagem do próprio Bour- dieu) com o qual o médico estava extremamente familiarizado. Con- texto formado por conhecimentos teóricos, formas próprias de co- municação e relações entre seus integrantes, estruturadas segundo valores típicos, resultados almejados, etc. Essa familiaridade não é outra coisa senão o fato de o médico tomar esse contexto como sen- do seu, interiorizá-lo, transformando-o no elemento estruturante do seu equipamento mental, a ponto de poder decidir e agir criativa- mente sobre ele de forma aparentemente instantânea. É a isso que Bour- dieu chama de habitus, distinguindo-o do simples “hábito”. A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 15 Luís César estende o modo de análise próprio a esse conceito à experiência dos estudantes de medicina. Trata-se, em suma, de ten- tar compreender o processo de formação da “maneira médica de ver o mundo” – uma maneira que não se restringe aos assuntos médicos propriamente ditos. A suposição básica de sua análise é que essa for- mação não depende apenas, nem principalmente, dos conteúdos teó- ricos aprendidos em sala de aula. A formação em medicina á uma formação envolvente como poucas. A experiência de lidar com um ser humano em situações-limite, não raro entre a vida e a morte; de conviver com a dor alheia, tanto de pacientes quanto de pessoas no momento da perda de entes queridos; de fazer experiências em ani- mais in vivo; de manipular e cortar cadáveres humanos com espírito “objetivo”, dentre outras, e tudo isso pouco após a adolescência, no início da formação da personalidade adulta, só é possível se os estu- dantes de medicina contarem com um suporte emocional, psíquico e afetivo ímpar dentre as formações profissionais de nível superior. É esse suporte que será decisivo para a formação da personalidade do futuro médico, inclusive da sua formação ética. Os “conceitos” rela- tivos a esse suporte estão, obviamente, no mais das vezes, presentes nas disciplinas que compõem o currículo de um curso de medicina. Mas as relações vivenciais que o garantem não estão aí. Elas estão presentes no universo de relações sociaisnas quais o estudante de medicina imerge no momento de ingresso no seu curso, e que daí em diante constituirão o seu mundo – o seu “campo”, para utilizarmos a linguagem de Bourdieu. “Campo” onde aparecem professores, pes- quisadores, médicos assistentes, pacientes, funcionários da faculda- de, profissionais de enfermagem, pessoal auxiliar, estudantes, etc., mas, sobretudo, onde são constituídas e vividas relações sociais espe- cíficas entre esses distintos personagens. “Campo”, no sentido que lhe dá Bourdieu, é literalmente “campo de forças”, e podemos pensá-lo por analogia ao conceito físico de “campo”. Na física concebe-se a coexistência de campos distintos num mesmo espaço, como, por exemplo, um campo magnético e o cam- po gravitacional. No entanto, as forças de um deles (as do campo magnético, por hipótese) podem ser tão intensas que torne irrele- vante, em seu interior, a ação das forças do campo gravitacional. A 16 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA analogia, no entanto, pára por aí: num “campo social”, os indivíduos agem, ao contrário de partículas metálicas num campo magnético, por exemplo. Ora, o que caracteriza a abordagem de Bourdieu, é que esta ação se realiza no “quadro de forças” que caracteriza o “campo” respectivo, e só é possível porque os indivíduos internalizam tais for- ças como se fossem suas próprias, ou seja, seu modo natural de ser. É essa internalização que Bourdieu chama de habitus. Tais forças, nos “campos” sociais, são constituídas pelas tradições, ritos, linguagem, valores, pela cultura enfim, no sentido amplo deste termo, característica de cada setor de atividade humana. Se elas, de uma forma ou de outra, refletem a cultura de uma sociedade como um todo, assumem, no entanto, no interior de cada “campo”, formas específicas e uma intensidade tal que podem tornar irrelevantes, para a conduta dos seus integrantes, valores institucionalizados da sociedade. Pensemos, por exemplo, na anulação da eficácia dos valores ligados à solidariedade hu- mana no interior do “campo” econômico. Ora, a cultura de um “campo” não é inteiramente instituciona- lizada. Ela se expressa e adquire tão maior vitalidade quanto mais é impregnada no dia-a-dia dos indivíduos, em seus hábitos, etc., trans- mitindo-se geração após geração de forma não sistematizada, e so- bretudo pelo “folclore” típico de cada setor de atividade humana. Daí a hipótese que permeia todo o trabalho de Luís César: nas salas de aula, os estudantes aprendem medicina; no entanto, eles aprendem a ser médicos num espaço de baixa institucionalidade que circunda as salas de aula, onde convivem com as práticas da sua futura profissão. É nesse espaço de baixa institucionalidade que, aprendendo o folclore da profis- são e, através dele, tornando-a sua, eles aprendem também a praticar os valores ligados à hierarquia entre os diversos personagens do “campo” médico, encontrando o seu lugar nesse campo, ensaiando-se nas suas relações internas. O que torna esse aprendizado prático altamente eficaz é, provavelmente, o fato de que ele funciona também como suporte para as emoções vividas por um pós-adolescente na sua formação médica, seja anulando-as ritualmente, seja estereotipando-as. A importância do trabalho de Luís César, portanto, vem do fato de ele desviar o foco comumente utilizado nos debates sobre a formação médica, que tendem a centralizar a atenção nos problemas A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 17 dos currículos e na ordenação dos conteúdos teóricos – enfim, nos problemas típicos do espaço de forte institucionalidade da formação profissional, espaço, conseqüentemente, público e submetido a con- troles formais, como se fosse aí que o estudante aprendesse a ser mé- dico. Ora, diz Bourdieu, retomando Aristóteles, a forma de os médi- cos agirem não é nem o resultado das suas impulsões subjetivas, nem da sua formação teórica, tomadas isoladamente. Ela é resultado da combinação peculiar desses dois componentes – um “prático” e ou- tro “teórico” – em cada situação concreta. A pergunta que resulta dessa hipótese é: quais valores estão sen- do transmitidos aos nossos estudantes de medicina, ou seja, aos nos- sos futuros médicos, nesses espaços de baixa institucionalidade, alheios a qualquer controle formal, que circundam as salas de aula dos nos- sos cursos de medicina? Como os estudantes estão sendo ensinados, aí, por exemplo, a enfrentarem a “selva” do mercado de trabalho num estado como o nosso, que já tem um médico para cada 240 habitantes, dos quais pelo menos a metade são pessoas pobres que não podem pagar uma consulta ou um seguro privado de saúde? Como aparecem, para esses estudantes, seus futuros pacientes habi- tantes dessa selva que eles visualizam a partir do seu “campo” especí- fico de formação nas práticas profissionais? Olhando as coisas por esse ângulo, começaremos a entender o sentido de expressões como “tigrão”, “jacaré”, “cabeção” e outras, que povoam o folclore desses espaços de baixa institucionalidade – e deveríamos começar a nos preocupar profundamente... Oxalá as dificuldades inerentes a algumas das atuais atividades do Dr. Luís César o animem a retomar esta linha de pesquisa! En- quanto isso, seu trabalho deveria urgentemente ser levado em conta pelos responsáveis pela educação médica em nosso país, bem como pela ética dos nossos futuros profissionais médicos. Caso contrário, continuaremos almejando a ética do reino dos anjos enquanto cá embaixo os demônios andarão à solta. PROF. RENATO DE OLIVEIRA Programa de Pós-Graduação em Sociologia Universidade Federal do Rio Grande do Sul A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 19 Introdução Os erros da religião são perigosos; os da filosofia, apenas ridículos. David Hume EXPLICAÇÕES INTRODUTÓRIAS As relações da medicina como profissão instituída, tomada como um agente social coletivo, com o conjunto da sociedade são marcadas por oscilações entre tensão e harmonia, antago- nismo e cooperação, ressentimento e gratidão, dominação e subordinação. A profissão médica instituída apropriou-se progressivamente de um bem social, produzindo um conhecimento de base científica que estrutura uma prática, que tem valor econômico e político e que res- ponde a uma necessidade universal da sociedade, ou seja, uma neces- sidade que atinge todos os seus agentes individualmente. Em suas relações com outros agentes sociais, tais como pacientes e outros profissionais de saúde, a medicina usa esse bem apropriado como fonte de poder e como estratégia de dominação e hegemonia no campo da saúde, já apontada por Pires (1989). Tal fonte de poder, como é fácil imaginar, não foi subtra- ída ao conjunto da sociedade de forma espontânea, mas fruto de um longo processo ativo que acabou reservando esse corpo de conhecimentos legitimamente a alguns indivíduos que, a ele tendo acesso, vêem-se moralmente obrigados à sua guarda e se tornam coletivamente responsáveis por mantê-lo ao abri- go de olhos leigos. 20 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA Para que este poder siga servindo à categoria profissional que o detém, constituiu-se um discurso que legitima essa restrição de acesso. Formulou-se uma linguagem hermética e não muito lógi- ca para que não seja facilmente decifrável pelos não-iniciados, e um conjunto de salvaguardas ideológicas que apresentam esses profissionais como os guardiões da saúde, como os detentores do conhecimento e do código que dá acesso à longevidade possível e a uma vida útil, prazerosa e autônoma. Essa hegemonia histórica não foi conquistada sem sacrifício. Antes mesmo de se configurar como uma profissão acadêmica, a medicina teve de competir com diversas categorias de práticos que se dedicavam à arte da cura e do tratamento de doentes e feridos. Barbeiros, curandeiros, bruxos, sacerdotes, druidas e cirurgiões – estes últimos assim tratados antes de sua agregação à medicina clínica – são os melhores exemplos dentre ospostulantes ao status que hoje é concedido aos médicos. Cabe ainda uma explicação. O que aqui viemos chaman- do de medicina, como profissão instituída, ou médicos, seus agentes individuais, se refere ao paradigma médico chamado por Luz (1995, p. 114) de medicina ocidental contemporânea. Essa autora identifica pelo menos três outros paradigmas, ou racionalidades médicas, que seriam: a medicina homeopática, a medicina tradicional chinesa e a medicina ayurvédica. Neste trabalho nos restringiremos ao estudo e a citações do que pre- valece em nosso meio: o paradigma médico ocidental contem- porâneo. A construção da hegemonia desse modelo veio a consolidar- se com a adesão do discurso médico à vertente científica do co- nhecimento. A consagração do paradigma científico moderno como formulação epistemológica dominante trouxe a reboque a medicina científica moderna. Sua complexidade se multiplicou e o acesso social aos seus conteúdos, princípios e preceitos se redu- ziu na mesma proporção. A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 21 Ser médico não foi sempre uma escolha do candidato, senão do mestre que, em aceitando um discípulo e reconhecendo suas habilidades e sua vocação, incorporava-o à sua prática cotidiana na qualidade de aprendiz, num programa de treinamento infor- mal e sem duração definida. A ascensão da medicina ao status de profissão de nível acadêmi- co e de base científica consagrou-a, juntamente com o paradigma científico, como a única, ou pelo menos como a fórmula dominante, com credibilidade pública e legitimidade garantida pelo arcabouço jurídico-institucional e cultural nos países ocidentais. Em alguns países o poder da corporação médica, assim como o de outras profissões, é tão grande que chega mesmo a superar o poder do Estado. Exemplifiquemos com um fato particular que carrega uma eloqüente carga simbólica. Ao con- cluir o curso de graduação em medicina em uma faculdade ou escola de uma universidade publicamente reconhecida e auto- rizada a formar médicos pelo Ministério da Educação, da Re- pública Federativa do Brasil, o graduando recebe seu diploma oficial e reconhecido formalmente pelo mesmo ministério. Esse diploma, no entanto, não o autoriza a exercer a profissão. So- mente a apresentação deste documento à profissão instituída, através dos Conselhos Federal e Estaduais da categoria, e a obtenção de uma autorização caracterizada por um registro podem permitir ao médico graduado o exercício da medicina. O Ministério da Educação tem seu poder restrito à fiscalização do processo de “produção de médicos” (Larson, 1977). O mer- cado de produção de assistência médica, por sua vez, é contro- lado, formal e legalmente, pela profissão. De fato o poder de licenciar a prática profissional é, efetiva- mente, delegado pelo Estado às profissões organizadas. Ocorre que esta delegação, no caso da medicina, não é considerada como tal e sim como natural e devida ao grupo, como o demonstrou Oliveira (1997). 22 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA DELIMITAÇÃO DO TEMA, HIPÓTESE E OBJETIVOS A percepção dessa manifestação de poder de uma categoria profissio- nal em relação ao conjunto da sociedade, já referida, foi que desenca- deou o processo de sensibilização necessário para a identificação de outras tantas evidências do poder profissional, o que, por sua vez, nos estimulou à realização deste trabalho e nos conduziu à busca de um abrigo teórico que permitisse a sua realização. O estranhamento de que aqui se trata implica no que Bour- dieu chama de “vigilância epistemológica” (1994, p. 27). Para ele, a proximidade e a familiaridade com o objeto de estudo são os principais obstáculos epistemológicos ao caráter científico do tra- balho do sociólogo. Da mesma maneira, o esforço para superar uma natural tenta- ção moralista teve que ser incorporado às operações intelectuais de concepção, de criação e, principalmente, de trabalho de campo. Estando clara a existência de uma relação social entre medi- cina e sociedade, surgiu então a curiosidade de refletir sobre as maneiras como esta relação se estrutura, sobre a construção histó- rica da dominação médica nesse campo e sobre as estratégias ideo- lógicas de manutenção dessa ordem. Quanto a este último fato, salta aos olhos a importância do processo de recrutamento, de seleção e de treinamento de novos médicos na manutenção do poder da profissão. Larson (1977) acredita que, para fins de estabelecer e assegurar a catividade de um mercado para a profissão médica, foi fundamental unificar a medicina em torno de um único paradigma e incorporar bases científicas à prática médica. Esta manobra, além de facilitar a unificação, simplificou o processo de “produção de produtores”, como se referia ao treinamento de novos profissionais, o qual, acredita, cons- titui-se no centro sociológico do problema (1977, p. 34). A fase do processo de produção de médicos que chamamos de recrutamento é espontânea. Candidatam-se a um curso de medicina tantos quantos nutrem a aspiração de atingir tal propó- A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 23 sito, movidos pelo prestígio e por apelos românticos ligados à pro- fissão que os próprios médicos se encarregam de difundir. Nada pode ou deve ser feito para restringir tais aspirações. Pelo contrá- rio, quanto mais candidatos – em especial quanto mais candida- tos não lograrem êxito em atingir o desiderato – mais prestígio amealha a profissão. Ao segundo aspecto, a seleção, deve ser dedicado uma espe- cial atenção. O grande número de candidatos torna imperativo um alto rigor na seleção para evitar a banalização. Tornar-se médi- co deve ser algo restrito a poucos. Este é um dos cânones do discurso da profissão instituída. Seus porta-vozes apelam para argumentos vagos, como indicado- res preconizados pela Organização Mundial da Saúde, que apon- tam para uma proporção de um médico para cada mil habitantes, para manter um esquema de regulação da produção de novos médicos. Mesmo assim, como estudar medicina e tornar-se médico parece ser uma das mais procuradas estratégias de mobilidade so- cial no Brasil, o afluxo de candidatos é enorme e alguns acabam por furar o bloqueio e formar-se médicos a despeito de origens sociais e com sacrifícios inacreditáveis. Os métodos seletivos não se encerram aí, permanecem e se distribuem ao longo de todo o curso de graduação até o seu final, como veremos, pois a prática da medicina pressupõe um longo e penoso caminho para seus candidatos. Tal caminho é constituído de um conjunto seqüencial de desafios e provações, formais ou não, que permite uma analogia com os ritos iniciáticos das cultu- ras primitivas. O primeiro desafio que se interpõe entre os candidatos a uma vaga em medicina e seu objetivo, no Brasil, é o do concurso vesti- bular. Os cursos médicos de qualquer universidade são sempre muito concorridos e a competição por uma de suas vagas é extre- mamente dura. Exige de seus postulantes muito esforço, estu- do, autodisciplina e compromisso com o objetivo. Não é infre- 24 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA qüente alguém classificar-se em medicina após cinco ou seis tentativas em vestibular. Para aqueles que logram sucesso neste primeiro obstácu- lo, se inicia uma nova fase, igualmente difícil, que se convencio- nou chamar de ciclo básico, no qual o aluno é exposto às disci- plinas consideradas instrumentais para o ciclo clínico que o sucede. O ciclo básico é estruturado com base nos conheci- mentos de biologia celular e molecular, na organização micros- cópica dos tecidos vivos, na química e na física da vida, na fisiologia decorrente delas, na morfologia corporal humana e no estudo da ação dos fármacos sobre a fisiologia humana. Nesse agregado estaria o núcleo científico do conhecimento que pro- porciona as condições para a prática clínica. A medicina clínica não é reconhecida por alguns autores (Par- sons, s.d.; Wright Mills, 1969)como uma ciência emancipada, como veremos, mas como uma tecnologia, um conjunto de conhe- cimentos, especialmente princípios científicos, que se aplicam a um determinado ramo de atividade (Ferreira, 1986, p. 1656). A medicina clínica pode ainda ser considerada uma arte. Trata-se da aplicação de conhecimentos técnicos na tentativa de solução de casos particulares e diferentes entre si. Depende fundamentalmente do talento de quem a exerce – e de sua so- litária deliberação – o sucesso ou fracasso no propósito de curar alguém, reduzir seu sofrimento ou aliviar a dor. Além disso, na maioria das situações que se apresentam ao médico, há mais de uma opção de conduta tecnicamente correta e sua escolha se baseia em critérios muito pessoais, geralmente baseados em experiências pregressas com aquela situação específica ou apli- cando, por analogia, condutas utilizadas em casos parecidos. A possibilidade de solução dos problemas trazidos pelos pa- cientes passa pela habilidade do médico em aplicar seus conheci- mentos não apenas de forma racional. Uma fração marcadamente intuitiva faz parte do conteúdo do trabalho desse profissional no que se refere à escolha entre opções de tratamentos a ser instituí- A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 25 dos. Temos observado que essa questão, essa polêmica entre intui- ção e prática médica baseada apenas em evidências científicas, tem- se exacerbado nos últimos anos, gerando violenta controvérsia em alguns fóruns sobre o trabalho médico1. Como já foi citado, o fato é que não se pode falar, sem risco de contestação imediata, de uma ciência médica. Pode-se catego- rizar a medicina como uma aplicação de princípios e conheci- mentos científicos para proceder o mais apurado diagnóstico de doença, buscar a mais detalhada informação sobre sua extensão num corpo doente, selecionar o método terapêutico mais adequa- do e, ao empregá-lo, tentar prever o desfecho mais provável mas que nem sempre se confirma. Parsons (s.d., p. 456), por sua vez, ao tratar da cientificidade da medicina escreve: Um fato básico sobre a ciência é que a estrutura das discipli- nas científicas “puras” se entrecruzam com a estrutura dos campos de aplicação da ciência às questões práticas. O termo “ciência médica” é, neste sentido, um termo algo equivocado. Não é a designação de uma única disciplina teoricamente integrada, senão de um campo de aplicação. Muitas ciências diferentes encontram aplicação no campo médico ou sanitá- rio: a física, a química, toda a gama das ciências biológicas, a psicologia e – como agora podemos ver – a sociologia, ainda 1 Recentemente, conforme o Jornal “Informes Cooperativos”, órgão de divul- gação da UNIMED Porto Alegre, de julho de 2001, essa cooperativa informa ter hoje um consultor em Medicina Baseada em Evidências (MBE). Esta va- riante da técnica clínica defende que nenhum procedimento, tratamento ou medicamento deve ser aplicado a pacientes vivos sem que haja suficiente evi- dência científica de sua eficácia. A adoção da MBE é considerada por alguns profissionais como uma forma de alienação da autonomia técnica, com a fina- lidade de conter custos e tornar-se competitiva no mercado das operadoras de saúde privadas. 26 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA que esta última seja apenas reconhecida neste contexto (tra- dução minha)2. Sendo ou não uma ciência, o fato é que o processo de ensino- aprendizagem, quando aplicado ao caso específico da educação médica, se constitui na incorporação instrumental de conhecimen- tos tidos como objetivos e oriundos de fontes científicas, no trei- namento de habilidades compreensivas ou manuais e na incorpo- ração de atitudes e comportamentos que visam a capacitar o alu- no à aplicação prática e integrada dessas dimensões da educação a situações de repercussões e desfechos não totalmente previsíveis. Não é, portanto, um processo passivo ou contemplativo de um determinado aspecto da realidade. Pelo contrário, visa a formação de um sujeito ativo, cuja função precípua é intervir sobre a reali- dade de forma a modificá-la instantaneamente ou alterar os ru- mos indesejados que se podem prever. Freidson (1988) nos aponta que o exercício prático da medi- cina clínica guarda visíveis diferenças do exercício acadêmico, teó- rico ou investigativo. Do clínico se espera menos demonstração de erudição médica e mais ação, no sentido de intervenção sobre a realidade indesejável constatada. Diz ainda que a intervenção com chance de sucesso é ideal e preferível a qualquer intervenção, mas que qualquer intervenção, por mínima que seja a chance de suces- so, é preferível a nenhuma. Segundo esse autor, os médicos envol- vidos com a prática curativa individualmente orientada se carac- 2 Un hecho básico sobre la ciencia es que la estructura de las disciplinas cien- tíficas “puras” se entrecruza com la estructura de los campos de aplicación de la ciencia a las cuestiones prácticas. El término “ciencia médica” es, en este senti- do, un término algo equívoco; no es la designación de una única disciplina teóricamente integrada, sino de un campo de aplicación. Muchas diferentes ciencias encuentran aplicaciones en el campo médico sanitário: la física, la química, toda la gama de las ciencias biológicas, la psicologia y – como ahora podemos ver – la sociologia, aunque esta última todavia apenas es reconocida en este contexto (Parsons, 19XX, p. 456). A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 27 terizam pela fé no que fazem e tendem a acreditar mais na sua experiência pessoal do que nos “conhecimentos de livros”. Neste sentido, a formação de um médico articula uma di- mensão intelectual com um treinamento de habilidades quase ar- tísticas e com a incorporação de atitudes e comportamentos que o distingue, refletindo uma visão ativa de mundo. Talvez por este motivo, a organização dos cursos médicos seja tradicionalmente dividida em dois ciclos claramente distintos e praticamente estanques: um ciclo básico, em que predomina o conhecimento científico puro – considerado instrumental para o que vem a seguir – e um ciclo clínico, no qual o aluno deixa os bancos escolares e os laboratórios, adentrando ao hospital-escola. No primeiro, a exposição inicial dos alunos recém-chegados às chamadas ciências básicas é, por vezes, organizada por professo- res e alunos mais antigos, de maneira a produzir uma experiência de impacto traumático. Laboratórios de anatomia onde jazem cadáveres humanos; centros cirúrgicos onde se podem observar corpos abertos e, pelo menos temporariamente, mutilados; unidades de tratamento in- tensivo e salas de emergência – onde o sofrimento humano che- ga ao limite do suportável e a diferença entre vida e morte se torna de difícil distinção – são os locais mais procurados para esse evento que visa expor os alunos novos ao que a medicina tem de mais violento. A abordagem de Parsons sobre este aspecto específico tor- na evidente que esta prática está muito além de uma simples brincadeira de boas vindas, trata-se de uma tradição, senão universal, pelo menos amplamente difundida nas escolas mé- dicas do ocidente. Se o médico não tende, em geral, em nossa sociedade, a tomar o lugar formalmente ocupado pelo sacerdote – o que com fre- qüência se diz, porém sujeito a consideráveis cautelas –, tem ao menos uma associação muito importante com o reino do 28 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA sagrado. Nesta conexão é interessante assinalar que a dissec- ção de um cadáver faz parte dos inícios do treinamento for- mal de um médico e que esta dissecção tende a realizar-se como um ritual solene, especialmente no primeiro dia, por parte dos professores de medicina, e os estudantes freqüente- mente têm uma reação emocional bastante violenta ante a esta experiência. Se pode concluir, portanto, que a dissecção não é só um meio instrumental para a aprendizagem da ana- tomia, é também um ato simbólico muito carregado designi- ficação afetiva. Em algum sentido, trata-se de um rito de iniciação daquele que vai ser médico em associação íntima com a morte e com os mortos (Parsons, s.d: 446-447)3. Uma analogia com a vida militar, proposta por Good (1997, p. 65), torna-se imperativa. No Brasil, quando um soldado profis- sional vai ser submetido a um programa de treinamento especiali- zado para se tornar pára-quedista, combatente de selva ou mem- bro das Forças Especiais, o que equivale dizer, parte da elite guer- reira, ele passa por um processo semelhante. Tem que dar um tes- temunho inequívoco de seu propósito de juntar-se às tropas de elite, dar mostras de sua determinação e deixar muito claro que 3 Si el médico no tiende, en general, en nuestra sociedad, a tomar el sitio formal- mente ocupado por el sacerdote – lo que con frecuencia se dice, pero sujeto a cuali- ficaciones considerables-, tiene al menos una associación muy importante con el reino de lo sagrado. En esta conexión es interesante señalar que la dissección de un cadáver forma parte de los inicios del entrenamiento formal de un médico, y que esta disección tiende a realizarse como un ritual solemne, especialmente el primer día, por parte de los profesores de medicina, y los estudiantes frecuentemente tie- nem una reacción emocional bastante violenta ante esa experiencia. Se puede con- cluir, por tanto, que la dissección no es solo un medio instrumental para el aprendizaje de la anatomía, sino también un acto simbólico muy cargado de significación afectiva. En un sentido se trata del rito de iniciación del que va a ser médico en su asocia- ción íntima com la muerte y con los muertos (Parsons, s.d., p. 446-447). A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 29 não vai desistir por maiores que sejam as dificuldades. Esta profis- são de fé deve ser apresentada aos seus futuros companheiros e instrutores, a mais ninguém, e envolve um conjunto de ações, reações e atitudes que demonstram que o candidato compreende que “não é para qualquer um” ser membro de uma tropa de elite. Ele deve então afirmar inequivocamente, através de sua atitude, que merece a distinção honrosa de ser aceito em tão seleto grupo. O primeiro estágio de qualquer programa de treinamento militar avançado consiste, justamente, de um conjunto de situa- ções metodicamente organizadas para estimular e provocar a de- sistência espontânea, o que ocorre com relativa freqüência. Além disso, por motivos óbvios, a desistência espontânea pode ocorrer, formalmente, até durante a cerimônia de formatura do referido programa. Paralelamente, um vasto espectro de critérios de desclassifi- cação paira sobre os candidatos durante todo o programa. A uma decisão de desistência espontânea do candidato, ou de desclassifi- cação por parte dos instrutores, não cabe, na prática, recurso al- gum. Ela é praticamente irrevogável. O momento privilegiado em que são esperadas mais iniciati- vas de desistência ou, pelo menos, maior insegurança quanto à decisão de submeter-se ao programa ocorre no primeiro contato com o cenário onde o programa é desenvolvido. Da mesma forma, poucos são os cursos médicos em que o primeiro dia dos novatos no laboratório de anatomia humana não se torna um acontecimento para toda a comunidade acadêmica. A este evento acorrem todos quantos, movidos por uma curiosi- dade quase sádica, vem testemunhar as reações dos calouros frente a uma situação inédita e geradora de estresse emocional. Nela, os novos alunos se deparam com um espaço onde ficam expostos, sobre mesas metálicas, uma série de cadáveres humanos conserva- dos em formaldeído. Este agente químico é bastante volátil e seus vapores produzem intensa irritação nos olhos, nariz e boca, o que provoca um forte desconforto, acompanhado de lacrimejamento, 30 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA que potencializa o trauma da experiência mas pode, também, dis- simular lágrimas de emoção. O auge ocorre quando alguém se deixa vencer pela carga emocional e desmaia. Este ficará marcado pelo resto do seu conví- vio com os colegas e contemporâneos de escola médica. Essa experiência funciona como uma espécie de “batismo”, de “iniciação”, uma prova pela qual todos os aspirantes à distinção honrosa de tornar-se médico têm, necessariamente, que passar. O que chamará a atenção de analistas atenciosos é a resigna- ção e, por vezes, até satisfação com que os calouros se submetem a essas situações. Parece haver um contrato tácito e consensual que, para se tornar médico, é imperativo que haja submissão às provas e aos sacrifícios impostos pelos agentes institucionais da educação médica. É o preço a pagar para alcançar o tão almejado objetivo. Isso os calouros, e possivelmente todos os candidatos aos vestibu- lares dos cursos médicos, já sabem e aceitam antes mesmo da ins- crição no concurso vestibular. Essa observação já se constituiria em interessante tema de pesquisa no que se refere aos candidatos e calouros das escolas médicas e, embora tenha papel destacado na explicação de outras relações que se estabelecem no interior da educação médica, não será foco de atenção especial neste trabalho. Passado esse segundo teste, – o primeiro, já convenciona- mos, é o do vestibular – o aluno terá pela frente dois anos de relativa tranqüilidade entre laboratórios, bibliotecas e salas de aula. Nada de mais novo, excetuando-se as experiências em laborató- rios, a técnica de microscopia que deve ser dominada e o caso de alguns cursos que introduzem nesta fase atividades voltadas à saú- de coletiva que incluem contatos, entrevistas e observação de fa- mílias. Na maior parte dos casos estas atividades se dão em bairros populares e vilas miseráveis, o que, para alguns, provoca um outro choque com uma realidade desconhecida e até traumática. Essa atividade, plena de significados, promove a auto-afirmação e insufla a auto-estima do acadêmico. Ela trás um conteúdo explícito A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 31 de distinção de classe, marcando a visível diferença socioeconômica entre o estudante e a família atendida. Estimula uma postura hierar- quizada de uma superioridade social “posta”, natural e evidente em favor do primeiro. Constitui-se em um treinamento para a postura hierarquicamente superior que depois, já médico, terá de assumir frente aos pacientes, seja qual for sua origem de classe. Se, do ponto de vista de geração de estresse, essas atividades carregam um conteúdo emocional e afetivo forte, o mesmo tam- bém ocorre com o início do ciclo clínico-cirúrgico. Em torno do 5o semestre o aluno sai dos domínios da escola convencional e adentra ao hospital-escola. Este termo, ao longo deste trabalho, será empregado no sentido que lhe foi atribuído por Schraiber (1989), para designar aqueles lugares onde a educa- ção médica se encontra com a prestação de assistência médica. Hospitais, enfermarias, ambulatórios, postos de saúde, enfim to- dos os lugares onde se tratam pessoas doentes ou se faz algum tipo de prevenção, se ainda abrigam atividades de educação em medi- cina, estarão incluídos neste conceito. Há uma ruptura real na organização das atividades de ensi- no-aprendizagem. Quanto ao espaço, a sala de aula dá lugar à enfermaria ou à unidade de internação, ao centro cirúrgico e aos ambulatórios. Quanto ao material didático, deixam-se de lado equipamentos e animais de laboratório para substituí-los por pes- soas vivas. Toda a simulação é transportada para a situação real de emprego do conhecimento e da técnica médica. A mudança do cenário não é tão geradora de ansiedade quanto o fato de ter de defrontar-se com uma pessoa real, doente e inter- nada. O paciente é um objeto de estudo muito particular. Ele interage, fala, acusa dor, chora, emprega suas próprias manobras de geração de empatia e, para desespero dos alunos, percebe os sinais de insegurança, de temor e de falta de convicção. Atividade corriqueira e cotidianapara os mais experientes, esse contato com o paciente provoca intenso estresse nos novatos, decorrente da falta de recursos teóricos para entender o que está 32 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA acontecendo e, pior ainda, para responder às perguntas dos pa- cientes e de seus familiares. Sim, porque muitas vezes um aluno de medicina é tudo o que um familiar de um paciente internado em um hospital-escola consegue encontrar para obter informações. Neste momento o aluno pode até duvidar, e freqüentemente o faz, de que os estudos do ciclo básico efetivamente lhe serão úteis nesse novo universo. A desconexão – aparentemente total – entre o discurso científico das ciências básicas, os termos empre- gados pelos pacientes e o próprio jargão clínico usado pelos ins- trutores proporciona condições para que sobrevenha a sensação de se ter perdido os dois anos anteriores. O conflito, nem sempre bem disfarçado, entre os professores do ciclo básico, mais desprovidos de projeção profissional, e os do ciclo clínico-cirúrgico, mais projetados e publicamente reconhe- cidos, exacerba esta angústia e contribui para uma vivência mais penosa dessa transição. Para ser aceito neste seleto grupo, o estudante tem de dar mostras de renúncia aos compromissos mantidos com os profes- sores e os conteúdos do ciclo concluso e demonstrar sua disposi- ção para comprometer-se com a nova situação. Tudo principia pela confissão da própria ignorância, pela submissão humilde e reverente aos detentores do “conhecimento que cura”, que tem valor prático e, por que não dizer, de mercado. Nesse particular, a habilidade do estudante no relacionamento interpessoal pode significar a diferença entre ser mais ou menos facilmente aceito e, conseqüentemente, ter a seu dispor maiores oportunidades de aprendizagem e experiências médicas estranhas ao currículo organizado e formal da escola. O chamado ciclo clínico ou clínico-cirúrgico dura do 5o ao 10o semestre. Ele dá lugar, na seqüência, aos ditos estágios curri- culares. Aí vem nova mudança. Nessa fase as atividades se restringem às práticas clínico-cirúrgi- cas, com a inserção do aluno na equipe assistencial. Eles passam a ser reconhecidos como “doutorandos” – nome tradicionalmente empre- A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 33 gado para designar os alunos de último ano –, “estagiários” ou “inter- nos” e a assumir algumas responsabilidades de complexidade crescen- te no tratamento dos pacientes. As aulas cedem espaço às discussões de casos e aos seminários, mais específicos e voltados à prática médi- ca. A avaliação deixa de estar baseada em provas e trabalhos escritos e incorpora o desempenho do estudante na prática assistencial. Começa outra etapa de competição e concorrência, com vis- ta aos concursos para ingresso em programas de residência médica após a formatura na graduação. Isso significa a diferença entre tornar-se um especialista e ter uma chance no mercado de traba- lho, ou estar condenado aos subempregos e a uma certa discrimi- nação entre seus colegas. Feitas essas considerações preliminares para que se tenha um entendimento da organização dessa prática pedagógica em suas parti- cularidades e das relações sociais aí envolvidas, necessárias como in- trodutórias ao tema selecionado, passaremos à análise sociológica pro- priamente dita dessa questão à luz da sociologia das profissões. Delimitado o tema, escolhemos como problema de investi- gação a seguinte questão: – Seria a formação do habitus profissional uma missão cons- cientemente integrada na estrutura institucional da edu- cação médica a partir da atuação do professor? Nossas hipóteses são: – Parece haver uma fração expressiva e determinante da forma- ção de médicos que ocorre num espaço de baixa instituciona- lidade, onde as relações tradicionais entre mestre e discípulo persistem e sobrevivem; onde a ênfase não é posta na transmis- são de conhecimentos, missão preponderante da escola formal, mas na estruturação de um habitus profissional. – Entendemos que existe uma relação dialética entre a escola formal, que se ocupa predominantemente da dimensão cogni- tiva da educação médica, vale dizer, que “ensina medicina”, e 34 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA essa sua face reversa e indivisível, uma verdadeira “escola pa- ralela” que lhe complementa o trabalho “ensinando o aluno a ser médico”, e que desta relação resulta como síntese o médico em todas as suas dimensões. Definido o tema, o problema e a hipótese, apresentam-se como objetivos deste trabalho: – Constituir-se num estudo exploratório do tema, levantando questões para estudos posteriores. – Promover uma revisão da bibliografia sobre a sociologia das profissões atualizando o quadro de referência teórico, partin- do de um ponto de vista mais amplo e progressivamente fe- chando o foco sobre a medicina, para abordá-la utilizando a profissão como categoria analítica. – Deduzir do contexto desse tema a educação médica como cen- tro sociológico do problema, como núcleo reprodutivo estraté- gico das relações da profissão com a sociedade, através da es- truturação de um habitus profissional, padrão de distinção entre médicos e não-médicos. – Identificar, descrever e compreender os mecanismos de forma- ção do habitus profissional médico que, por hipótese, não se situam no espaço institucional da escola médica, mas em sua face reversa: a “escola paralela”. – Abordar o campo através de um de seus agentes menos estuda- dos: o professor de medicina. No capítulo seguinte procederemos uma revisão da biblio- grafia sobre a sociologia das profissões, desde os clássicos e suas menções à profissão, até trabalhos mais atuais que, no conjunto, configuram um corpo de conhecimentos sociológicos que, se ain- da não é considerado de forma incontroversa uma teoria, se reves- te de tal importância que permite a afiliação teórica de estudos da natureza do que nos propusemos a elaborar. A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 35 CAPÍTULO 1 Uma revisão da bibliografia sobre a sociologia das profissões Médico é médico. Profissional de saúde é... outra coisa. Dr. Roberto Velloso Eifler Presidente da Associação dos Médicos do Hospital Presidente Vargas de Porto Alegre. Espaço de “Opinião” do Jornal da Associação Mé- dica do Rio Grande do Sul, dezembro de 1999. 1.1 OPÇÃO EPISTEMOLÓGICA As abordagens clássicas da sociologia propunham explicações para os fenômenos empiricamente verificados a partir de uma ótica macrossocial. Tudo se explicava pela aplicação de conceitos e prin- cípios gerais que poderiam – e deveriam– ser universalmente em- pregados na análise sociológica. A classe, no caso da teoria marxista, determinava um corte transversal na estrutura social perpassando-a por inteiro (Lakatos e Marconi, 1999); a noção de “fato social” (Durkheim, 1995) pro- punha uma visão naturalizada da sociedade submetendo sua aná- lise a um método derivado das ciências naturais; o conceito de “ação social” dotada de sentido subjetivo e de intencionalidade era para Weber a formulação epistemológica chave para explica- ção sociológica (Santos, 1999). Posteriormente, os estudos de gênero (Lopes, Meyer e Wal- dow, 1996) – que ainda não configuram, de forma incontroversa, uma teoria – propuseram um corte longitudinal que atravessa a estrutura transversal das classes, mostrando que as mesmas rela- 36 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA ções de dominação que se estabelecem entre as classes se reprodu- zem no seu interior entre as frações masculinas e femininas, intro- duzindo o conceito das relações sociais de sexo. De toda maneira, tanto classe quanto gênero são abordagens com pretensões totalizantes. Cortam a estrutura social em dire- ções cruzadas e perpassam-na toda; explicam tudo a partir dessas definições. As propostas fenomenológicas – fenomenologia, etnometo- dologia e interacionismo simbólico – invertem esta visão, partin-do para explicações sociológicas que consideram prioritariamente a subjetividade, o sentido atribuído pelos agentes sociais às ações e a visão de mundo dos atores. Entre esses extremos aparecem alternativas epistemológicas que, se não são completamente dirigidas à subjetividade e ao indi- vidualismo, se situam numa posição intermediária e elegem fra- ções de classe como objeto de análise. A sociologia das profissões é uma destas alternativas intermediárias, embora alguns autores, notadamente alguns funcionalistas, tenham chegado a sugerir que as profissões pudessem vir a substituir a classe como categoria ele- mentar da explicação sociológica (Wright Mills, 1969; Parsons, s.d.). Parsons (op. cit.) chega a afirmar o entendimento da relação médico paciente como um sistema social por inteiro. Não tendo optado, na elaboração deste trabalho, pela transver- salidade da classe, nem pela longitudinalidade do gênero, como alter- nativas analíticas totalizantes, fica claro que renunciamos também ao emprego de categorias analíticas que concorrem para as explicações macrossociais. A escolha da profissão como categoria de análise dá uma idéia do que se busca aqui, ou seja, a realização empiricamente locada em nosso meio, de um estudo exploratório da transmissão de elementos culturais, eminentemente profissionais, no processo de “produção” (Larson, 1977) de médicos, a jovens aspirantes a esta con- dição a partir da visão de um dos seus agentes: o professor de medicina. O tema – profissão médica – já foi vastamente explorado na sociologia americana e européia como sabemos (Becker, 1997; A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 37 Boltanski, 1989; Dingwall & Lewis, 1983; Freidson, 1988; Good, 1997; Jacob, 1999; Larson, 1977; Parsons, s.d., Wright Mills, 1969). Os trabalhos em geral tratam a medicina como um exem- plar típico-ideal de profissão. O problema da educação médica, ou o processo de “produção de produtores” como foi denominada por Larson (1977, p. 34), tam- bém já foi amplamente estudado na produção científica destes países (Becker, 1997; Good, 1997; Bonner, 1995). Assim, sendo a educação médica uma parte da totalidade que é a educação em geral, e se desse processo maior resulta a formação do que Bourdieu estabeleceu como conceito de habitus (Bourdieu apud. Ortiz, 1994, p. 15), proponho que se adote a noção de habitus profis- sional para designar o habitus resultante daquela fração específica da educação, que culmina com a produção de novos médicos. Esta pro- posta de aplicação do conceito, como parece claro, pode ser estendida a todas aquelas ocupações que se enquadram no sentido que a socio- logia dá ao termo profissão. Com este objetivo em mente, a opção epistemológica de abor- dagem da realidade empírica que nos pareceu melhor foi a escolha da profissão como categoria de análise social. Esta opção resulta do fato de que a decisão de realizar este trabalho partiu de um sensibilização intuitiva que surgiu espontaneamente ao longo de nossa vivência no campo delimitado e foi transformado em objeto de pesquisa. Não é a sociedade integral que tencionamos estudar, nosso objeto se restringe à medicina como profissão instituída e à educação médica como es- paço estratégico de reprodução das relações sociais entre a profissão e a sociedade. 1.2 A SOCIOLOGIA E AS PROFISSÕES A primeira dificuldade que surge para o sociólogo ao trabalhar com a categoria “profissão”, no dizer de Horobin (1983), é o fato de ter que pensar e escrever em um vocabulário compartilhado 38 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA com o senso comum. A situação piora quando se percebe que o significado atribuído pelo senso comum às palavras compartilha- das está contido em boa parte do material coletado no campo para análise posterior. Dessa forma, não há como evitar uma certa interpenetração entre a “sociologia profissional” e a “sociologia leiga” (Horobin, 1983, p. 86). Da mesma forma se pronunciou Bourdieu (1994) quando propôs uma imperativa ruptura episte- mológica com a “sociologia espontânea”. No caso da categoria profissão, uma dificuldade adicional emerge: estamos lidando com um conceito sobre o qual não há consenso nem mesmo entre os sociólogos que mais se dedicaram ao seu estudo. Considerado tudo isto, faremos uma revisão tão ampla quanto possível da bibliografia sobre o tema profissão, da sociologia clássica à contemporânea, selecionando os critérios ado- tados pelos diversos autores para considerar uma ocupação como profissão, especialmente aqueles que podem ter utilidade meto- dológica para analisar a profissão médica e seu processo de treina- mento e licenciamento de novos membros. A profissão, de alguma forma, é um conceito que se vê conside- rado nas diversas vertentes teóricas da sociologia. O trabalho de Ma- ria Lígia Barbosa (1993) nos fornece uma síntese da ocorrência desta categoria em diversos cenários teóricos, da sociologia clássica à con- temporânea, analisando seus vínculos contextuais históricos e as rela- ções com os principais eixos paradigmáticos das ciências sociais. Por constituir-se no mais completo trabalho recente de revi- são da bibliografia produzida sobre o tema das profissões, vamos nos servir dele para introduzir uma visão geral sobre o assunto, aproveitando suas diversas referências. A temática das profissões surge como um dos elementos fun- dadores da sociologia de Durkheim, segundo Barbosa4 . Para esta 4 Pessoalmente reluto em concordar com a promoção da profissão a “elemento fundador” da sociologia de Durkheim. Se entendermos o conceito de fato social, por exemplo, como “elemento fundador” do trabalho desse clássico, A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 39 autora, tendo Durkheim eleito a integração social como principal problema de investigação sociológica (1993), ele atribuiu aos gru- pos profissionais um papel preponderante na organização e inte- gração das sociedades modernas. Definia estes grupos com base na divisão do trabalho, mediante critérios técnicos ou econômi- cos, sem esquecer que os grupos profissionais, mercê de suas fun- ções integrativas e normatizadoras, a partir da sua institucionali- zação, exerciam forte influência sobre sua fração da sociedade, promovendo assim a unidade social mais ampla. Durkheim entendia as profissões como grupos homogêneos. Como diz Barbosa: Cabe ao grupo profissional a tarefa de socializar os seus mem- bros, incutindo neles os valores da consciência coletiva de caráter essencialmente moral. E se a sociedade foi fragmentada pela di- visão social do trabalho, as profissões passam a existir como co- munidades morais (Barbosa, 1993, p. 13). O trabalho de Durkheim foi uma das fontes de inspiração teóri- ca da sociologia americana do início do século. Com Merton e Par- sons (Barbosa, 1993) ela ganha grande impulso em termos de produ- ção científica, além de uma tentativa consistente de compreensão e elaboração de um esboço de teoria acerca do funcionamento dos gru- pos profissionais, tomados como agentes sociais coletivos. Parsons entendia que: ... profissões são sistemas de solidarieda- de cuja identidade se baseia na competência técnica de seus membros, adquirida nas instituições educacionais e científicas (Paixão apud Barbosa, 1993, p. 04). Entendidos assim, os grupos profissionais passaram a ocupar um lugar central na sociologia dos sistemas ocupacionais. Obras poderíamos considerar como tal a divisão do trabalho social, a moral, as religiões, entre outros. A questão das profissões aparece como uma derivação da divisão do trabalho e não como um elemento fundador em si. 40 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA inteiras lhes foram devotadas como o clássico Colarinhos Brancos, de Charles Wright Mills (1969), no qual o autor se opõe à idéia marxista de que os estratos médios da sociedade são frações em decadência e destinados, inexoravelmente, à extinção. Ao contrá- rio, entende Wright Mills (1969)que esses grupos são, na verda- de, emergentes e em franco processo de ascensão. A distinção desses grupos profissionais em relação a outros, cuja identidade se baseia em outros critérios, varia muito de autor para autor, como diz Barbosa: Não sendo nem capitalistas, nem trabalhadores, nem adminis- tradores governamentais típicos ou burocratas, os profissionais formam grupos de fronteiras fluidas mas poderiam ser distingui- dos por alguns critérios. São portadores de treinamento técnico formal, com validação institucional da adequação deste treina- mento e da competência técnica do indivíduo treinado. São in- divíduos que possuem um domínio sobre a racionalidade cogni- tiva – tomada em sentido mais amplo, quase uma “cultura ge- ral” – aplicável a um campo específico. Além do domínio de uma certa tradição cultural, eles desenvolvem uma habilidade especial. Outro critério, segundo Parsons, seria o controle da profis- são sobre o uso socialmente responsável dessas qualificações (Barbo- sa, 1993, p. 4-5). A trajetória das profissões de uma posição periférica para uma posição mais central na sociologia americana da primeira metade do século deveu-se, segundo Barbosa (1993), à sua “ancoragem” ao sistema cultural acadêmico. Com o conhecimento científico promovido a um valor basilar da sociedade industrial, as universi- dades e centros de pesquisa adquirem notoriedade e legitimidade para ungir as profissões de base científica, dotando-as de um cará- ter institucional com autoridade normatizadora em relação a seus membros e à própria sociedade, restrita aos limites de sua compe- tência técnica. A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 41 A partir daí evidenciou-se uma dificuldade inerente à tenta- tiva de estruturação de um monopólio do exercício profissional: a competição com os práticos que exerciam livremente cada uma dessas atividades. Essa dificuldade acaba superada com o decisivo apoio da academia e com a publicidade de códigos de ética que privilegiavam a orientação para o interesse coletivo, o altruísmo e a relevância social do trabalho. A teorização parsoniana, segundo a autora (Barbosa, 1993), embora tenha insinuado um certo posicionamento destes grupos profissionais na estrutura social, não foi além do estudo das pro- fissões em si mesmas. Elas ocupariam uma posição “intersticial” (Barbosa, 1993, p. 06) e suas relações com outros grupos sociais seriam marcadas por uma mediação entre antagonismos de classe. Mesmo assim esta autora não tem dúvidas quanto a que, para o funcionalismo, a profissão fosse, efetivamente, o princípio que definiria e hierarquizaria os grupos sociais, que fosse o eixo orga- nizador das sociedades modernas. Para outros funcionalistas citados por ela, como Davis e Moore (apud Barbosa, 1993, p. 06), haveria até uma hierar- quia entre esses grupos profissionais, determinada pela neces- sidade que o sistema social tem do produto de seu trabalho. A definição, mensuração e comparação de tal necessidade consti- tuiria, para a autora, um complexo problema teórico e meto- dológico a resolver. Andrew Abbott (1988) retomou as idéias centrais de Parsons em seu livro The System of Professions. Entre elas, deu especial des- taque e importância ao controle do saber e da qualificação profis- sional (Barbosa, 1993, p. 06). Sobre as teses funcionalistas recaíram as críticas fenomenoló- gicas, para cujos autores o ponto de vista do ator social é que determina em que medida ... as demandas e as características sociais dos consumidores dos serviços produzidos pelos profissionais condicio- nam o status social e a realização das tarefas por estes mesmos profis- sionais (Chapoulie apud Barbosa, 1993, p. 08). 42 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA O fato dos estudos funcionalistas centrarem-se muito na medicina também foi criticado pelos fenomenologistas, segundo Barbosa, que produziram estudos sobre professores e advogados. A influência weberiana sobre alguns autores filiados à etno- metodologia incorporou a necessidade de abordar o tema das pro- fissões e de suas relações sociais menos sob a ordenação da divisão do trabalho e mais sob a influência da categoria “poder”. No dizer de Barbosa: O núcleo das análises, neste caso, é a profissionalização (ou pro- fissionalismo), isto é, o processo pelo qual certas áreas de compe- tência, delimitadas pela divisão do trabalho, são monopolizadas por determinadas categorias de trabalhadores. A luta pelo mo- nopólio, pela constituição de um mercado razoavelmente fecha- do e protegido, é a marca distintiva das profissões enquanto gru- pos sociais (Barbosa, 1993, p. 08). Esta abordagem de inspiração weberiana introduz um mu- dança no cenário teórico da Sociologia das Profissões. Uma tran- sição do modelo funcionalista, no qual o importante era o papel integrativo, normativo e mediador de conflitos de classe exercidos pelas profissões, para um panorama dinâmico em que a ênfase é colocada no processo de profissionalização e, por conseqüência, de implantação do profissionalismo, que reinstitui elementos de conflito e de desigualdade na distribuição do que está sendo dis- putado: poder, mercado e monopólio, também dentro do próprio grupo profissional. Dois autores se destacam nesta mudança, ainda segundo Bar- bosa: Eliot Freidson e Magali Larson. Para ambos o controle de uma área de conhecimento, de sua produção, de suas aplicações práticas é o elemento essencial para a estruturação de um grupo profissional. Larson (1977) preocupou-se em analisar o processo históri- co de ascensão do profissionalismo como forma distinta de orga- A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 43 nização social e de desigualdade estrutural. Viu no mercado a ins- tância fundamental da sociedade moderna em sua trajetória de transformações; viu na aquisição e na acumulação de um tipo de conhecimento e, conseqüentemente, na posse de uma habilitação qualquer um tipo de propriedade tipicamente moderna. Demons- trou que, no mercado, conhecimentos, práticas e suas aplicações são passíveis de monopólio pelos seus detentores e de exploração econômica. A partir deste quadro, Larson define o profissionalismo como um projeto coletivo de mobilidade social articulado em torno de um determinado tipo de conhecimento, cujo monopólio permite controlar um mercado definido. Trata-se de um pro- cesso que busca um duplo monopólio: da expertise no merca- do e do status no sistema de estratificação. Este projeto pode ser entendido como uma “tentativa de traduzir uma ordem de recursos escassos – conhecimentos especiais e qualificação – em outra – recompensas econômicas e sociais (Barbosa, 1993, p. 09). Freidson, ainda segundo Barbosa (1993), por seu lado, não atribui tanta importância ao mercado. Centra seu trabalho em questões mais ligadas ao poder. Assim, produção, distribuição, transmissão, compartilhamento e aplicação do conhecimento são, para ele, os eixos estruturais das relações entre grupos profissio- nais e outros grupos sociais. Os próprios agentes envolvidos no processo passam a ter importância. As estruturas jurídico-institucionais que garantem o controle desse conhecimento e de sua gênese passam a ter impor- tância. O discurso institucionalizado, assim como os porta-vozes desse discurso – no caso deste trabalho os professores de medicina –, passam a ter importância. Para Freidson (Barbosa, 1993), uma profissão se define pelo pro- cesso de treinamento – educação formal – ao qual seus membros são 44 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA submetidos, pré-requisito para a ocupação de determinadas posições de poder na estrutura social. Essa exigência prévia ao exercício consti- tuiria um processo de credenciamento de profissionais – portanto um mecanismo de exclusão – que teriam licença e exclusividade no desempenho de uma determinada prática. Dessa forma, assim como afirmava Larson (1977), o processo de treinamento e validação for- mal destetreinamento – o credenciamento –, também para Freidson, constitui o elemento determinante das condições que permitem o exercício de poder, o centro sociológico do problema. De alguma forma, mas principalmente através da ação do Esta- do, cria-se a obrigatoriedade de se utilizar o trabalho de um profissio- nal para que se tenha acesso a um bem ou serviço no mercado (Barbo- sa, 1993, p. 10). Diz também esta autora: O saber institucionalizado, fonte de poder nas sociedades modernas, é o eixo em torno do qual giram as explicações para a posição dos grupos profissionais na estrutura social, os mecanismos de monopoli- zação do mercado, as formas de organização interna e a atuação do grupo (Barbosa, 1993, p. 10). Larson também aponta para a importância da unificação do conhecimento como forma de monopólio de mercado. Para ela o mercado tem que ser produzido, assim como os próprios produtores tem que ser produzidos. Assim, trás para o foco da discussão, nova- mente, o sistema de ensino, cujo papel torna-se preponderante para a fundação de um mercado e obtenção do monopólio, através da cons- tituição de um domínio no campo em questão e da homogeneização do grupo, obtida através de um longo processo de treinamento co- mum ao qual todos os seus membros são submetidos. Freidson (1986) chama atenção para o fato de que dife- rentes qualidades e conteúdos de conhecimentos proporcio- nam chances desiguais aos seus portadores de posicionamento no mercado, o que determina desigualdades internas no seio A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 45 do próprio grupo profissional. Ele fala de processos de estrati- ficação e diferenciação dentro do grupo e sobre a natureza e o papel das elites profissionais. Sugere, até que apareça termo mais adequado, a expressão “classe” e afirma que a “classe” mais importante, considerando que as profissões se estruturam com base em longo treinamento e educação superior, é composta por aqueles que proporcionam tal treinamento e educação: os professores. Esses seriam considerados os guardiões do conhe- cimento e das habilidades cuja posse e jurisdição o grupo re- clama, institucionalmente, como sua, servindo de base ao cre- denciamento de novos membros. O autor fala também de uma outra “classe”, a administrati- va, composta por pessoas detentoras das mesmas credenciais pro- fissionais, que passam a assumir posições de comando institucio- nal, seja no interior da profissão como organização, seja na estru- tura acadêmica que provê o treinamento em serviço. Ambas são diferenciações a partir de uma outra “classe”, a dos praticantes, aqueles que exercem o trabalho diário no sis- tema produtivo e estruturam relações hierarquizadas no inte- rior do grupo. Larson (1977) compara os conteúdos do conhecimento acu- mulado por algumas profissões e conclui que as diferenças encon- tradas determinam possibilidades diferentes de sucesso do projeto coletivo de mobilidade social. A consecução desses objetivos de- pende da habilidade do grupo profissional no convencimento ideo- lógico sobre a importância e a necessidade de seu produto, dentro dos padrões unificados, além da eliminação da concorrência de produtos fora desses padrões estabelecidos, o que, geralmente, ocorre por meios legais e com a ajuda do Estado. Atingidos esses objetivos, o mercado se constitui também pela instituição de padrões de recompensa e remuneração, variáveis de um grupo profissional para outro, como forma de retorno do tem- po, dinheiro e sacrifício investidos pelos produtores em sua pró- pria educação. 46 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA Mas é o conteúdo do conhecimento que fala mais alto para Larson quanto às possibilidades de demanda do produto e a ne- cessidade que o mercado tem dele. Isto, enfim, é que determina a posição da cada grupo no mercado, o status atingido e o poder que determinado grupo pode exercer. Os autores marxistas não foram desconsiderados por Barbo- sa. Para eles as questões relacionadas à formação de grupos profis- sionais são abordadas com base em outros critérios. Ao contrário de Durkheim, e dos outros autores analisados até aqui, os marxistas, partindo do conceito de divisão do trabalho de Marx, dão pouca ou nenhuma importância à dimensão cognitiva ou técnica para a definição dos grupos sociais. Entre estes autores, as profissões aparecem como obje- to subordinado às classes sociais, que seriam o elemento fun- damental na mediação entre a divisão do trabalho e a for- mação dos grupos profissionais (Barbosa, 1993, p. 15). Poulantzas, segundo Barbosa (1993), distingue três níveis de determinação estrutural das classes sociais: econômico, po- lítico e ideológico, que marcam de forma mais pronunciada os contrastes entre a pequena burguesia tradicional, em decadên- cia, a nova pequena burguesia, emergente, e a classe operária (Barbosa, 1993, p. 15). Considerando o trabalho de um autor marxista americano, Da- vid Noble, que estudou os engenheiros americanos, diz Barbosa: Com o passar do tempo, as tendências gerenciais e anti-sindicais e o apelo à cientificidade da Engenharia alienam-se5 como os mecanismos principais de distinção dos engenheiros (Barbosa, 1993, p. 16). 5 A aplicação do termo “alienam-se” pela autora nesse caso pode dever-se a algum equívoco, uma vez que, no contexto, o termo “aliam-se” parece ser mais adequado. A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 47 De toda a maneira, a situação das profissões como grupo so- cial, para os marxistas, é totalmente subordinada ao conceito de classe social. Ao contrário dos funcionalistas, que mostram predi- leção pelos médicos, os autores marxistas elegem a engenharia como objeto preferencial de estudo, pela posição intermediária de classe dos engenheiros no sistema de produção e pelo exercício da domi- nação em nome do capital. Dois fatores: a burocratização destes grupos, como produto da institucionalização, e a proletarização de alguns de seus mem- bros – contradições desconsideradas na análise funcionalista – constituíram-se em fragilidades teóricas sobre as quais se concen- trou o fogo crítico dos marxistas, segundo Barbosa (1993), que sempre insistiram em subordinar esse tema ao determinismo de classe. Para a autora, a fenomenologia dirigiu sua crítica para outros alvos oriundos do funcionalismo. Dois deles teriam importância especial: o “ideal de serviço”, síntese do altruísmo dos profissio- nais, que se contrapunha ao pragmatismo egoísta dos homens de negócio, e a autonomia no exercício do seu trabalho. Este último, se fosse aplicado não como uma prerrogativa do indivíduo, mas, por extensão, como direito do grupo profissional em relação às estruturas sociais mais amplas, atuaria também como proteção da intervenção leiga, tornando o grupo seu próprio controlador. Pelo estudo da prática cotidiana, os fenomenologistas denun- ciaram motivações não tão altruístas como base do comportamento profissional: diferenças de tratamento entre clientes determina- dos por sua origem de classe – contrariando o princípio parsonia- no do universalismo – e mesmo a fragilidade dos controles éticos e técnicos da burocracia profissional sobre a prática protagoniza- da pelos agentes foram exemplos disso. Esta última denúncia é corroborada por Freidson (1988), para quem as normas éticas e os valores profissionais dos médicos, por exemplo, são tão amplos e gerais que permitem um vasto espaço de interpretação e deliberação pessoal. 48 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA Larson (1977) viu na origem das primeiras associações pro- fissionais não uma fórmula de combater a intromissão da lógica de mercado no seio daqueles grupos sociais, senão uma estratégia de constituição e controle de um mercado. Na busca de legitimação, esses grupos tentam incorporar à sua imagem coletiva valores éticos de fundamento humanitário re- colhidos da tradição, ao mesmo tempo em que se declaram orienta- dos por uma racionalidade
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