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Azevedo - Natureza humana e liberdade na Oratio De Hominis Dignitate de Pico Della Mirandola

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CAPÍTULO III
NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NAS FORMULAÇÕES DA
ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE
Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo
o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal, a
fim de que tu, arbítro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e
te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido188.
Após as considerações acerca de alguns pressupostos necessários à
compreensão, quer histórica quer filosófica acerca da obra e do tema deste estudo, pode-
se aqui sustentar, de início, que a Oratio é um louvor ao exercício da Filosofia189, com o
objetivo de ser um prefácio metodológico e justificativo do projeto sistemático de Pico
della Mirandola. Nesse escrito, o autor apresenta uma síntese de diversas orientações
culturais, sapienciais e doutrinais, destacando igualmente aspectos religiosos e
filosóficos pertencentes à tradição e à civilização. Apesar de escrita em 1486, a Oratio é
interpretada por comentadores190 como uma celebração dos valores humanistas,
destacando, em especial, a liberdade humana. A exposição sobre o universo cultural e
filosófico renascentista, realizada nos capítulos anteriores, foi relevante para esta
abordagem específica da Oratio, a fim de destacar os principais elementos culturais,
sapienciais e também categoriais, que se articulam na reflexão sobre a natureza humana
e a liberdade: tema central desta dissertação.
3.1 Magnum, o Asclepi, miraculum est homo: emblema e fórmula da teorética da
Oratio
Em seu exórdio à exposição da Oratio, Pico recorre aos árabes para argumentar
sobre o homem191 e com o famoso dito de Hermes Trimegisto, emblema e fórmula
188 MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 57.
189 Para concluir, e retomando uma afirmação feita no inicio
deste estudo, relativamente ao fato de a Oratio ser um elegante elogio da filosofia, gostaríamos de aduzir,
a partir do próprio texto, alguns argumentos a favor desta tese
MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.XXX).
190 Cf. DOUTHERTY, M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola IN: Pico della
Mirandola: novos ensaios, p. 137.
191 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53.
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compreensiva da sua teorética: pensar o homem e a sua natureza192. Trata-se, portanto,
de considerar o Homem como tema central da teorética filosófica, pois resume e
consolida no seu escrito aquele intento humanístico da dignitas hominis. Por
conseguinte, ele principia a Oratio com o reconhecimento da dignidade da criatura
fosse a seus olhos o espectáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo, tinha
respondido que nada via de mais admirável do que o home 193. Também as fontes
194
.
Enquanto meditava acerca do significado dessas afirmações, Pico diz não estar
de todo satisfeito com as diversas razões que eram habitualmente aduzidas, com
multa de humanae
naturae]195. Daí expor alguns lugares comuns nos quais se indicam o sentido da
digninitas hominis:
[...] ser o homem vínculo das criaturas, familiar com os superiores,
soberano das inferiores; pela agudeza dos sentidos, pelo poder
indagador da razão e pela luz do intelecto, ser intérprete da natureza
da natureza; intermédio entre o tempo e a eternidade e, como dizem os
Persas, cópula, portanto, himeneu do mundo e, segundo atestou David,
em pouco inferior aos anjos196.
Será que a dignitas hominis se fundamenta nesses antigos lugares comuns, o de
ser humano-microcosmo e a sua centralidade no Universo, como indicam quer a Bíblia
quer os Caldeus. Com a exortação das palavras de exaltação do homem que o árabe
Abdala havia pronunciado, com as quais concorda o dito acima indicado de Hermes
Trimegistro, expressão de um universalismo cultural presente na sua orientação
filosófica, e refletindo sobre o significado preciso da grandeza do homem, conforme
essa resenha de todas as justificações fornecidas pela tradição humanista, Pico della
Mirandola permanecia ainda insatisfeito. Sobre essa resenha temática justificadora da
dignitas hominis, a tradição humanista teria se debruçado no seu confronto retórico com
o averroísmo com base nas fontes clássicas e cristãs. Tais justificativas sobre a dignitas
192 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53.
193 Ibidem.
194 Ibidem.
195 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 53.
196 Ibidem.
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hominis não eram ainda suficientes no sentido de alcançar o fundamento da grandeza do
homem: era preciso ir ao fundamento dessa grandeza a fim de uma compreensão da
diferença humana, quer em relação aos astros quer em relação aos anjos, pois superiores
ao homem, mas já presos à sequela do bem.
Certamente Pico reconhece a relevância das várias atribuições relativas ao
197
.
que, de facto, não deveremos admirar os anjos e os beatíssimos
198
. Pareceu-lhe então, conforme escreve na Oratio, ter compreendido
[...] por que razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados
e digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição que
lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só pelas bestas,
mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos. Coisa
inacreditável e maravilhosa. E como não? Já que precisamente por
isso o homem é dito e considerado justamente um grande milagre e
um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado199.
3.2 Deus: architectus e artifex
Após esses argumentos, Pico busca explicitar a condição de grandeza do homem.
Por isso oferece, de início, a sua versão da narrativa bíblica da criação divina. Era
preciso uma justificativa:
Já o Sumo Pai arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana
sabedoria este lugar no mundo como nós o vemos, augustíssimo
templo da divindade. Tinha embelezado a zona superceleste com
inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoado
com uma multidão de animais de toda espécie as partes vis e
fermentantes do mundo inferior. Mas, consumada a obra, o Artífice
desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma
obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a sua grandeza. Por
isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e Timeu atestam, pensou
por último criar o homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara
nenhum sobre o qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha
algum para oferecer em herança ao novo filho, nem dos lugares de
todo o mundo restara algum no qual se sentasse este contemplador do
universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído nos
sumos, nos médios e nos ínfimos graus. Mas não teria sido digno da
paterna potência não se superar, como se fosse inábil, na sua última
obra, não era próprio da sua sapiência permanecer incerta numa obra
necessária, por falta de decisão, nem seria digno do seu benéfico amor
197 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 53.
198 Ibidem.
199 Ibidem, p. 54.
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que quem estava destinado a louvar nos outros a liberalidade divina,
fosse constrangida a lamentá-la em si mesmo200.
Conforme Pico, Deus havia realizado a sua obra, sem lacunas e sem
insuficiências, mas faltava ainda àquela que, contemplando, pudesse reviver em si a
maravilha do mundo e possuísse nas próprias mãos o destino da própria vida, quase
como se não houvesse mais ulteriores exemplares para criar outros seres: por isso criou
um que constituísse uma espécie de exemplar abrangente. Faltava ainda uma
justificativa para a dignitas hominis201. Nesse sentido, Pico apresenta, em seguida, uma
versão da narrativa sobre a criação divina ante os poucos arquétipos disponíveis, com as
célebres palavras do Criador dirigidas a Sua criatura:
Estabeleceu, portanto, o òptimo artífice que, àquele a quem nada de
especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido
dado parcelarmente aosoutros. Assim, tomou o homem como obra de
natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo:
próprio, nem tarefa alguma especifica, a fim de que obtenhas e possuas
aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo
segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros
seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não
constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu
arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que
daí possas olhar mellhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste
nem terreno, nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti
mesmo, te plasmasses e te informasse, na forma que tivesses seguramente
escolhido. Poderás degenerar até às realidades superiores que são divinas, por
202
.
Para a elaboração desse momento da Oratio, Pico se utiliza, em especial, de três
fontes: o Gênesis bíblico, o Simpósio e Diogênes Aeropagita. Tal cena originária é
construída com base em três imagens: o jardim do Edem, o jardim de Zeus e o paraíso
dos Anjos. A narrativa bíblica é, portanto, fundamental na Oratio, não obstante as
inúmeras alterações realizadas por ele na elaboração de seu texto. Também é bíblica a
sequência dos atos da criação que põem Adão no centro da criação já realizada, mesmo
se o desenrolar do ato criativo seja diverso daquele da narrativa bíblica, pois em seis
dias. Ademais, conforme Pico apresenta a sua interpretação, a criação acontece do alto
200 Ibidem.
201 De acordo com Giovanni di Napoli, a justificação da dignitas hominis se desenvolvera em toda a
tradição humanista como batalha contra o averroismo e reportando-se assim às fontes clássicas e cristãs.
Para Pico, aquelas justificações da dignitas hominis eram insuficientes ou de pouco valor, pois não atingia
o fundamento do problema. Ver aqui: NAPOLI, Giovanni di. Giovanni Pico della Mirandola e la
problemática del suo tempo, Pontefici: Roma, 1965, p.376.
202 Ibidem, p. 57.
93
para o baixo, ou seja, da zona supraceleste, dos astros animados, aos animais na Terra e
ao ser humano203.
Podem-se indicar ainda outros elementos que compõem a interpretação da
Oratio em relação à narrativa da criação e do Criador. É bíblica também a ideia do
discurso do Criador à nova criatura, embora os conteúdos sejam os mais diversos: não a
proibição de ascender à árvore do conhecimento, mas o convite para orientar o desejo, o
conhecimento e o ser completo na realização da meta mais alta. Não se apresenta aqui a
obediência como a vocação humana mais elevada. Porém é também bíblica a ideia da
soberania sobre a criação com a atribuição dos nomes às outras criaturas. De acordo
com Pier Cesare Bori:
Em Pico, a ideia do domínio existe, no sentido que a criatura humana
com o seu olhar domina as coisas e, aliás, pode se tornar aquilo que
desejar, como microcosmo que contém em si os princípios, as razões
seminais de todo o ser. Mas a sua finalidade não é principalmente isto:
a sua finalidade é transcender todo príncipio (vegetal,animal, racional,
intelectual) para a união mística com a divindade, que se ele encontra
no centro do seu c 204.
3.3 Deus-liberilitas e homem-nostrum chamaeleonta: pensar a natureza do homem e
sua liberdade
Na máxima de Pico se sensualia, obrutescet 205, o
homem é possuidor de natureza indefinida, pois compreendido como criatura (figura
teológica). Se racional, o homem pode ser animal celeste ou intelectual206, que assim
será anjo e filho de Deus207. A dignidade do homem não consiste, portanto, na
centralidade do homem ou no domínio sobre a criação e tampouco na liberdade como
tal208. Embora consista na liberdade, mas deve ser realizada em direção a uma finalidade
não de criatura. Para imprimir a sua criatura essa tensão, não presente na versão bíblica,
Pico altera a imagem do paraíso e se apoia na fonte platônica: disso resulta a relevância
do Simpósio e da narrativa segundo a qual Eros foi concebido por Póros e Pénia no dia
203 Ver, nesse sentido, BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità
umana di Pico della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000, p.36.
204 Ibidem, p.37.
205 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57.
206 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59.
207 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.5.
208 A abordagem da questão da liberdade será desenvolvida nos tópicos posteriores de forma aprofundada .
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do nascimento de Afrodite, no jardim de Zeus. Daí a natureza carente de Eros,
intermediária entre ignorância e sabedoria: constante busca dela209. Ademais é relevante
a influência de Orígenes e a sua leitura do Simpósio platônico, autor lembrado,
igualmente, nas suas Conclusiones, mas também a presença de Plotino, quer direta quer
mediada por Ficino210. Em seguida, Pico aborda, a fim de completar a sua exposição
Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do
homem! ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer.
As bestas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre
materno, como diz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos
superiores ou desde o principio, ou pouco depois, foram o que serão
eternamente. Ao homem nascente o Pai conferiu sementes de toda a
espécie e germes de toda a vida, e segundo a maneira de cada um os
cultivar assim estes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais
tornar-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais, elevar-se-á a
animal celeste. Se intelectuais, será anjo e filho de Deus, e se, não
contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro da sua
unidade, tornado espírito uno com Deus na solitária caligem [...] do
Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas estará sobre todas as
coisas211.
Aqui se apresenta a liberilitas de Deus diante do mundo e do homem, portanto,
a relação criadora como algo radical e total dos entes que recebem o ser deles de Deus
que é o Ipisum Esse senta Pico, não
precisa da contingência, em Deus não existe o não ser, por conseguinte não tem lugar a
contingência. Nesse sentido, como é necessária a sua essência, uma vez que não pode
não ser assim é preciso a sua ação que forma um todo com a sua essência. Por
conseguinte, essa necessidade diz respeito à íntima essência da ação divina e não
elimina a liberdade de Deus em relação ao finito: por mais misteriosa que possa ser e
parecer à síntese entre necessidade e liberdade em Deus. Portanto, Deus é realmente na
liberdade e na liberalidade da sua ação o princípio de todas as coisas e por isso contém
omnium Principium.
Pico define, no inicio da Oratio 212. Para
tanto ele cita Proteu, hebreus e Pitagóricos, assim como a teologia hebraica. Ele cita
209 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57.
210 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 57.
211 MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, pp. 57-59.
212 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 59.
95
também Enoch, e os exemplos teológicos de Maomé, e faz a comparação do que vem a
ser a natureza celeste e a natureza intelectual humana. Conforme ele escreve:
Quem não admirará este nosso camaleão? [...]. Não sem razão
Asclépio, ateniense, devido ao aspecto mutável e devido a uma
natureza que em si mesma se transforma, disse que nos mistérios era
simbolizado por Proteu. Daqui as metamorfoses celebradas pelos
Hebreus e pelos Pitagóricos. Até mesmo a mais secreta teologia
hebraica, de fato, transforma ora Enoch santo no anjo da divindade,
ora noutros espíritos divinos. E os Pitagóricos transformam os
celerados em bestas e, a acreditar em Empéndocles, até mesmo em
plantas. Imitando isto, Maomé repetia muitas vezes e com razão:quem não se afasta da lei divina torna-se uma besta. De fato, não é a
casca que faz a planta, mas a sua natureza entorpecida e insensível;
não é o couro que faz a jumenta, mas a alma bruta e sensual; nem a
forma circular que faz o céu, mas a reta razão; nem é a separação do
corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual 213.
Pico segue em seus argumentos214 sobre a natureza humana, natureza espiritual e
inteligente, como magnum miraculum. Daí sustentar:
[...] Por isso, se virmos alguém dedicado ao ventre rastejar por terra
como serpente, não é homem o que vê, mas planta; se alguém cego,
como Calipso, por vãs miragens da fantasia, seduzido por sensuais
engodos, escravo dos sentidos, é uma besta o que vemos, não é um
215
. Mais adiante, ele destaca a concepção do homem como
imago dei
as coisas, venerá-lo-emos, é animal celeste, não terreno. Se é puro
contemplante, ignaro do corpo, todo embrenhado no âmago da mente,
este não é animal terreno, nem mesmo celeste: é um espírito mais
elevado, revestido de carne humana. Quem, pois, não admirará o
homem?216.
Tanto na Oratio como no Simpósio platônico, pode-se identificar o elogio a Eros
e, respectivamente, à criatura humana, não pela sua atual dignidade, presentes nos textos
da tradição, como lugares comuns, mas pela capacidade de alcançar as metas mais
elevadas, no caso do homem, que se encontra na posição intermediária,
217
, conforme a Oratio, ou posto no meio
(médium; metaxy), de acordo com o Simpósio, e capaz de atingir, através do amor à
sabedoria, as realidades supremas218. Portanto, nas duas obras revela-se o dinamismo do
213 MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p59.
214 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59.
215 Ibidem, p. 59.
216 Ibidem.
217 Ibidem.
218 Ver, nesse sentido, CESARE, Bori Pier. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità
umana di Pico della Mirandola, pp. 35-81.
96
desejo, ou seja, a substância última do ser humano: de acordo com a Oratio, ser aquilo
que quer ou, segundo o Simpósio, paixão pela verdade219.
Pico se reporta ao conhecimento obtido nas doutrinas dos acima citados para
firmar o homem como imago Dei, pois o filósofo é, no seu entender, o ser racional
celeste220. Pico continua o seu discurso indagando quem não admirará o homem, este
ser camaleão, sustentando a sua tese com base nos ensinamentos dos textos sagrados
mosaicos e cristãos. Nesse sentido, ele afirma:
Que não por acaso nos sagrados textos mosaicos e cristãos é chamado
ora como o nome de cada criatura de carne, ora com o de cada
criatura, precisamente porque se forja, modela e transforma a si
mesmo segundo o aspecto de cada ser e a sua índole segundo a
natureza de cada criatura? O persa Evantes, por isso, onde expõe a
teoria caldaica, escreve que o homem não possui uma sua específica e
nativa imagem, mas muitas estranhas e adventícias. Daí o dito
caldaico de que o homem é animal de natureza vária, multiforme e
mutável 221.
Sem dúvida, Pico é fiel ao espírito originário do Simpósio platônico. Pico indaga,
em seguida, sobre as razões de se recordar o testemunho de todos esses escritos, onde
destaca ser o homem cópula do Criador do mundo. O autor quer, de acordo com a
Oratio, que compreendamos:
[...] a partir do momento que nascemos na condição de sermos o que
quisermos, que o nosso dever [...] é preocuparmo-nos, sobretudo, com
isto: que não se diga de nós que estando em tal honra não nos demos
conta de nos termos tornado semelhantes às bestas e aos estúpidos
jumentos de cargas. Sois deuses e todos filhos do Altíssimo. De tal
modo que, abusando da indulgentíssima liberalidade do Pai, não
tornemos nociva, em vez de salutar, a livre escolha que ele nos
concedeu. Que a nossa alma seja invalidada por uma sagrada ambição
de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos
às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas
energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível222.
Certamente, o homem possui sua natureza específica, se considera aqui a
natureza como a essência realizadora de um ente e Pico fala na Oratio de natureza
intelectual e racional para o homem: algo que significa dizer a presença de certa
natureza na estrutura humana. Por conseguinte, uma natureza a qual constitui o homem
219 Cf.BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di Pico della
Mirandola, pp. 40-41.
220 Cf. MIRANDOLA, Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59.
221 Ibidem, p.61.
222 Ibidem.
97
naquilo que o compõe e nas suas funções. Portanto, pensar o homem sem pensá-lo sem
uma determinada natureza é impossível. Por conseguinte, assim como se pode pensar
uma natureza de Deus e uma dos anjos, como se apresenta com frequência em Pico,
pode-se falar de uma natureza do homem. Daí se falar da natureza em todos os entes:
natureza de anjo, de homem e de animal223.
Todavia, o fato de se pensar uma determinada natureza, a qual não significa nas
formulações de Pico a natureza humana como conjunto e complexo de coisas inferiores
ao homem ou oposta ao espírito, não equivale, portanto, no homem, ter uma natureza
determinada como modo determinado de agir. O homem possui uma determinada
natureza que é aquela de homem, mas não tem como as demais realidades inferiores,
uma natureza determinada ou um modo determinista de operar, pois a sua característica
ou prerrogativa é a indeterminação como autodeterminação. Daí Pico conceber no
operar do homem a presença da escolha, que faz do homem um ser responsável pelo seu
destino. Nesse sentido, o homem quando opera, não possui uma propria facie como
tendência determinista do apetite natural e sensitivo, pois escolhe por meio da
inteligência essa face e as suas prerrogativas: age por arbítrio no sentido clássico da
escolha224.
Portanto, no âmbito do operar humano, o homem não é, de forma determinista,
nem celeste, nem terreno, nem mortal nem imortal, mas se torna com base na escolha
com a qual se plasma. A sua natureza é dotada de escolha, pois determina as próprias
determinações de seu operar. Nesse sentido, a liberdade de que fala Pico della
Mirandola na Oratio exclui a necessidade das leis físicas ou biológicas, pois a natureza
humana não se identifica com aquela dos demais seres em relação à natureza definida e
suas leis prescritas por Deus. Aquelas prescritas para o homem faz que opere
racionalmente e livremente sem submeter a sua dignidade e liberdade à ordem
cosmológica. Por conseguinte, aquilo que é racional e livre não pode sofrer imposição
se pensar em contradição, que o determinismo cosmológico afete aquela liberdade225.
223 Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 36-37.
224 Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 42-45.
225 Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 46-48.
98
Se, de um lado, a liberdade humana exclui a necessidade determinista dos seres
inferiores, não exclui, de outro, em relação à necessidade finalista, ou seja, o dever
moral ante a norma: a liberdade é responsabilidade diante da norma, pois transcende a
escolha como o seu ideal. Portanto, a Oratio fala que Deus-Pai criou o homem com
sabedoria, com liberdade, com liberalidade: aquilo que o homem é em sua grandeza e
dignidade provém da liberilitas de Deus. Nesse sentido, a Oratio reforça essa dimensão
de criatura no homem, conforme a narrativa sobre a liberilitas de Deus, que revelam o
sentido da criatura humana e a sua dimensão da escolha. Daí Pico recordar o arbitrium
que faz do homem um magnum miraculum. A liberdade é assim libera optio, a qual
pode ser tanto salutar quanto nociva, ou seja, na medida em que acolha ou rejeite a
norma, dianteda qual o homem é responsável.
É certo que o homem é ser natural, mas se o ser aquilo que quer é escolha, esta
última pressupõe e exige, segundo a Oratio, a norma. A tarefa do homem é a elevação
ao inteligível, ou seja, em direção a Deus como indicam as Escrituras com a escada de
Jacob226. Pico não exclui o pecado, mas não afunda o homem neste, algo que pode
conduzir a certo pensamento otimista humanista da Oratio. Contudo a reflexão da
Oratio exprime o sentido fundamental da dignitas concernente à escolha e do dever que
implica tal escolha. Por conseguinte, a dignitas hominis é na sua estrutura de vinculum
et nodus em relação aos mundos, em que o homem é senhor do que foi criado como
empírico. Por isso, está na escolha e na tarefa de realizar com a escolha o dever da
regeneração, a qual se revela como paz do homem consigo mesmo, e condição ao
mesmo tempo da paz entre o homem e os mundos. A afirmação de Pico della Mirandola
da liberdade humana é, antes de qualquer coisa, o apelo para a responsabilidade
absoluta do homem. Tal responsabilidade deve ter como paradigma o mundo angélico,
ou seja, próximo ao plano divino, pois a contemplatio pertence aos Querubins227.
3.4 Contemplatio e vitae cherubinae: os três estados ascéticos
Chegado a esse momento da argumentação e narrativa do autor da Oratio, a fonte
platônica não é mais suficiente para representar o desenvolvimento do homem, ou seja,
o seu desenvolvimento vertical. Daí Pico mudar o lugar de sua narrativa: não mais o
Edem, mas agora o paraíso dos anjos. Nessa nova representação, Pico se reporta à
226 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 67.
227 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63.
99
concepção de Diógenes Aeropagita de ascensão mística dos três estados: purificação,
iluminação e perfeição, escrevendo:
Desdenhemos das coisas da terra, desprezemos as astrais e,
abandonando tudo o que é terreno, voemos para a sede supramundana,
próximo da sumidade da divindade. Ali, como narram os sagrados
mistérios, Serafins, Querubins e Tronos ocupam os primeiros lugares;
deles também nós emulemos a dignidade e a glória, incapazes agora
de recuar e não suportando o segundo lugar. E se quisermos, não
seremos em nada inferiores a eles228.
Aqui se apresenta o lugar próprio da dignitas, pois consiste em emular a
dignidade da vida angélica. Em conformidade com o modelo da ascensão mística, Pico
diz na Oratio:
Arde o Serafim no fogo do amor, refulge o Querubim no esplendor da
inteligência, está o Trono na solidez do juízo. Portanto, ainda que
dedicados à vida activa, se assumirmos tratar as coisas inferiores com
recto discernimento, afirmar-nos-emos com a firmeza dos Tronos. Se
libertos das acções, meditando na criação o artífice e no artífice a
criação, estaremos imersos na paz da contemplação [...],
resplandeceremos rodeados de querubínica luz. Se ardemos só por
amor do artífice daquele fogo que consome todas as coisas, inflamar-
nos-emos logo com aspecto seráfico229.
Nesse sentido, pode-se sustentar que os Tronos, mais distantes de Deus,
representam a vida ativa disciplinada; já os Querubins a contemplação, ou seja, a vida
intelectual que se derrama nas várias disciplinas filosóficas; e os Serafins, os mais
Trono, isto é, acima do justo juiz, está Deus juiz dos séculos. Acima do Querubim, ou
seja, sobre o contemplante, voa e quase gerando-o por incubação aquece-o. [...] O
230
.
Como apresentado por Pico, o homem deve voltar-se às coisas celestes, ou seja, a
Deus, através de sua dignidade e diligência: 231 que é
voltar a alma para Deus. A defesa de que o homem deve abandonar as coisas medíocres
desse mundo é, portanto, clara na Oratio232, pois Deus se apresenta no texto como
figura ímpar na existência humana, já que o criador é mestre sobre a sua criatura: valor
228 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61.
229 Ibidem, 63.
230 Ibidem.
231 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61.
232 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61.
100
inestimável posto por Pico na Oratio de Deus como sumo criador e juiz da existência
humana. Conforme Pico argumenta nesse escrito: -
se sobre as águas, aquelas que estão por acima dos céus e que, como está escrito no
233
. Mais adiante, ele
-lo com o juízo: suma é a
sublimidade dos Serafins e atingi-la- 234. Pico, porém, indaga sobre
amor do que não se conhece. Em seguida se reporta ao exemplo de Moisés235, que
[...] amou o Deus que viu, e promulgou ao povo, como juiz, aquilo
que antes tinha visto na montanha como contemplador. Eis por que no
meio o Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seráfica e
236
.
as
arrebatados até aos fastígios do amor e descer em seguida instruídos e preparados para
as t 237. Portanto, trata-se de responder à luz da filosofia contemplativa
e que deve ser investigada e compreendida.
Se a vida do homem deve ser modelada com base na vida querubínica, é preciso
então saber, de acordo com Pico, ou se
238
. Por causa da dificuldade
do homem de atingi-
aconselha uma aproximação aos antigos Padres. Para se obter, portanto, uma orientação
sobre o modelo da vida angelical, é preciso consultar o apóstolo Paulo239 considerado,
Querubins quando foi arrebatado ao terceiro céu. Responder-nos-á, [...] purificava-se,
eram iluminados e tornavam- 240. Paulo havia falado desse
arrebatamento em um trecho das Cartas a Corintos241.
233 Ibidem, p.63.
234 Ibidem, pp. 63-64.
235 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.62.
236 MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63.
237 Ibidem, pp.63-65.
238 Ibidem, p. 65.
239 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63.
240 Ibidem, p.65.
241 Ver aqui: 2 Coritos, 12, 2-4.
101
3.5 Liberdade como responsabilidade absoluta no homem: distinção no mundo da
criação
Na Oratio, a natureza humana postulada por Pico se expressa na distinção entre
os demais seres que habitam o mundo e nas suas peculiaridades. O homem é detentor de
uma natureza única, pois, como possuidor de uma natureza diferente, é exaltado de
acordo com as suas escolhas e decisões. Na Oratio, os argumentos sobre a natureza
humana se apresenta no inicio do escrito como preparação para se chegar às demais
formulações. A principal explicação dada por Pico sobre a natureza humana está na
descrição dada ao homem que toma como exemplo o Gênesis bíblico, alternando assim
uma história que situa o ser humano como obra indeterminada (indiscretae opus
imaginis) que precisa se moldar com a essência que é a forma e através da escolha feita
por cada ser242.
Enquanto Pico explicita a natureza que o homem traz consigo243, defende
também que este ser criado é obra do Criador. De acordo com a metafísica
tradicional244, Deus inicia a ordem do universo, mas em Pico, a ausência de um
principio metafísico que determine a superioridade humana da ordem da criação (ou
principio determinante) exclui os seres humanos da hierarquia medieval. Daí o valor
dado aos seres humanos difere dos demais seres, pois o homem não está submetido à
ordem da natureza por se tratar de um milagre245. O modo apresentado por Pico da
natureza humana tem o foco central no homem ser de natureza indeterminada, ao passo
que a liberdade humana está ligada ao homem como ser livre246. Tal liberdade está
242 De acordo com estudiosos como M. V. DOUGHERTY A natureza demonstrada por Pico della
Mirandola está evidente no seu conceito de natureza humana (humanitas nature) está na natureza que o
próprio ser humano já trás consigo que é a natureza indeterminada, enquanto os demais seres trazem
consigo uma natureza determinada, ao f. DOUGHERTY. M.V. Três
Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e Questão da Natureza naOratio IN: Pico della
Mirandola: novos ensaios, p.159).
243 Cf. MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57.
244 Cf. DOUGHERTY. M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a Questões
da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.163.
245 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53.
246
Isso implica que sua natureza indefinida não deve permanecer indefinida. Ela deve ser definida,
determinada, como a natureza dos outros seres criados por Deus, como os anjos e as bestas. Ocorre que
quem determinará a natureza humana é o próprio homem, ou melhor, cada homem considerado
capacidade de escolher dentre diversas possibilidades. Cada homem, ao decidir seu destino, decidirá
também o que é. Poderá degenerar e se tornar semelhante aos animais ou regenerar-se e torna-se como os
anjos. Afastar-se ou aproximar-se da perfeição, eis as possibilidades
102
ligada a consequências que o homem colherá de acordo com a decisão que tomará: os
homens são livres para escolher suas opções, porém ao escolhê-los encontrará a sua
essência247.
Reconhecendo a existência de diversas opções que possibilitam à decisão, o
homem com a sua natureza indefinida, existem para permitir as decisões que o homem
irá tomar. A ontologia moral ligada à decisão que esse ser tomará para si, pois a
composição humana está ligada à vida vegetativa e das feras terrestres, porém a decisão
mais conveniente, como argumenta Pico, está no direcionamento final e maior em
direção a Deus. Certo que a felicidade do homem é evidenciada por Pico em sua
consigo tudo aquilo que serão já determinados em sua natureza, ou seja, em sua
atribuição de ser aquele animal, segundo a sua natureza, desde o momento que são
concebidos trazem consigo certa determinação. Ao contrário das bestas, os anjos são
espíritos superiores, que desde a sua criação fazem parte de uma única forma de ser. Ao
homem, ao contrário, foi dada essa natureza indefinida, porém a sua busca pela
divindade deve ser buscada e a qual deve se voltar248.
Há no homem possibilidades que podem ou não se realizar. Pico revela249 que a
mais elevada de todas é a contemplativa, pois torna o homem uno com Deus e ao ser
imagem de Deus no universo ele se apresenta como microcosmo: intermediação entre o
mundo e Deus. Naquilo que concerne à alma250, a posição seguida por Pico é a dos
AMARO, Bruno Lacerda. A Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola. Revista Legis
Augustus (Revista Jurídica) Vol.3, n.1, p.16-23, setembro 2010 ISSN: 1516-9367. p.20).
247 È como se Deus houvesse condenado o homem à escolha, dado a ele a
capacidade de por seu atos livres, torna-se o que deve ser. Percebe-se então, que o homem está acima dos
animais não simplesmente por ser racional, mas porque a razão o impele em direção a algo que nenhum
animal pode conseguir: a determinação do seu próprio ser. È interessante relacionar essa constatação com
outro aspecto da filosofia de Pico o apreço pela magia, vista não como poder sobrenatural, mas como
capacidade de conhecer a natureza, de descobrir seus segredos e transformá -la. O homem não está apenas
- AMARO, Bruno Lacerda. A
Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola. Revista Legis Augustus (Revista Jurídica) Vol.3,
n.1, p.16-23, setembro 2010 ISSN: 1516-9367. p.21).
248 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.56.
249 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem , p.57.
250 Fiel às suas raízes escolásticas, a explicação de Pico da alma e de seus
poderes compõe a base de sua explicação das funções cognitivas. Além do corpo, o ser humano possui
parte vegetativa possui funções puramente vitais de nutrição e sustento do corpo, os outros três poderes
representam uma ordem ascendente de pode (cf. STILL. Carl. N. A Busca de Pico por Todo
o Conhecimento, p.214).
103
platonis parte intelectual e angelical251 na alma
humana e acima da alma racional. O propósito de Pico é unir as defesas de Platão252 e as
de Aristóteles253 sobre a alma. Ele diferencia assim os aspectos bestiais (ligados aos
sentidos) e aqueles do homem (ligados à razão), destacando o que é angélico e o que é
intelecto. Para que a razão esteja em comum com o intelecto é preciso que o homem aja
com a capacidade intelectual.
Para Pico della Mirandola, o homem é entre os demais seres do Universo o mais
precioso e se encontra no centro do mundo, ou seja, medium mundis, lugar que Deus
pós o homem como destaca a Oratio254. Um dos elementos relevante dessa concepção
de Pico, concernente ao homem, se encontra na grandeza que este poderá assumir, em
suas opções, decisões, as quais irão contornar a sua vida, em virtude do fato de ter essa
liberdade de decidir já o torna digno de atenção, devendo assim com a moral e a
dialética, ser possível reconhecer a sua importância in mundi, por ser artífice de si
mesmo.
Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal, a fim de que tu,
arbítrio e soberano artífice de ti mesmo, te plasmaste e te informasses,
na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até
aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até as realidades
superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo255.
Conforme Pico, Deus precisou que houvesse no mundo um ser capaz de
compreender, entre tantas coisas, o sentido de ser criado, ou seja, compreender qual
251 Cf. STILL. Carl. N. A Busca de Pico por Todo o Conhecimento, p.215.
252 No entanto, é dualista (em certos diálogos, em sentido total e radical)
a concepção platônica das relações entre alma e corpo, porquanto Platão introduz, além da participação da
perspectiva metafísico antropológica, a participação do elemento religioso derivado do Orfismo, que
transforma a distinção entre alma= supra-sensível e corpo = sensível, em oposição. Por essa razão, o
corpo é visto não tanto como receptáculo da alma, à qual deve a vida juntamente com suas capacidades de
operação (e, portanto, como instrumento a serviço da alma, segundo o modo de entender de Sócrates), e
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga v.1, São Paulo: Paulus,
2003, p.152).
253 Retomamos, por este modo e conforme afirmamos, a tese que concebe a alma
como uma espécie de corpo subtil, 409 b 1. Por outro lado, e por outro, seguindo Demócrito, para quem é
o movimento causado pela alma, resvalamos em dificuldades especificas. Admitindo que, com efeito, a
alma reside na totalidade de um corpo dotado de sensibilidade, o mesmo lugar incluírá necessariamente
dois corpos, na instância de se assumir que a alma constitui uma 409 b 5. Espécie de corpo. Quanto
àquelas que sustentam ser a alma um número, deverão eles admitir que num único ponto pode realmente
existir uma pluralidade de pontos ou, então, que a totalidade do corpo possui uma alma, a menos que em
nós não apareça um número diferente, isto é: um número distinto da soma dos pontos existentes no
co De Anima. Trad. port. Carlos Humberto Gomes. Lísboa: Edições 70, 2001,
pp.42-43).
254 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57.
255 Ibidem.
104
seria a posição do homem no Cosmo: daí essa especificidade do homem de ser
microcosmo, criado com natureza indefinida e posto no meio do mundo. A natureza
humana carece de uma definição, pois é indeterminação, ou seja, para se determinar o
homem foi posto no meio do mundo, e nessa posição buscar o mais sensato para que
assim haja a definição de sua essência. Para o animal racional, o celeste, se é intelectual
será anjo, ou seja, filho de Deus, se vegetal será planta, unicamente planta, se sensível
será besta sensível ou animal, ao racional será elevado a animal celeste, ao intelectual e
será filho de Deus.
Ao longo da Oratio se destaca a elucidação atribuída por Pico à grandeza da
existência humana, a passagem antropocêntrica256piquiana em que põe o homem como
centro do mundo, dirigido por Deus Criador e a Criatura. A Oratio, De Hominis
Dignitate contém conhecimento filosófico-teológico, e se serve de demais fontes de
saber a fim de uma compreensão da ação e do destino humano. Para Pico, o
conhecimento do homem de sua natureza é buscar o degrau mais alto que possa atingir
completando a grandeza humana. Ademais, as conquistas humanas têm valor, ou seja,
valor ético e as consequências das suas decisões podem gerar tristeza e infelicidade,
pois para Pico tanto a Ética quanto os valores morais elevam o homem. Para demonstrar
que natureza humana tem seu valor e existência inestimável alcança um degrau
privilegiado in mundi, pois na demonstração dos demais seres existentes no mundo o
homem é o mais valioso, sendo assim medium mundis.
Para o seu empreendimento, Pico buscou conhecimento tanto em Aristóteles
quanto em Platão257
ambos os filósofos gregos estavam certos, Porticum at Academiam, (seja Pórtico ou a
256 Nesta passagem decisiva, aparece com força o antropocentrismo do
de para tomar qualquer direção. A existência humana não foi limitada por
Deus a um destino único ou a uma só vontade. O homem está no meio para que ele possa escolher a sua
direção, o seu caminho próprio, para que ele se torne o que quiser ser. Note-se que a palavra
livre de Deus. Tampouco que Deus não exista, ou ainda que não se interesse pelo que é o humano. O
homem é, e será sempre, criatura de Deus, e é pelo seu desejo que ocupa o lugar central no mundo. O
quem deu ao homem o seu lugar central, a realização humana de seu próprio destino é fruto da graça
divina. O homem não é um ser que Deus abandonou à própria sorte, mas uma criatura que Ele
emancipou (cf. AMARO, Bruno Lacerda. A Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola,
p.20).
257 Cf. MIRANDOLA, Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.92.
105
Academia) 258 examinando a fundo todas essas doutrinas259, não obstante as diferenças
entre as escolas. A defesa de Pico na Oratio se apresenta como forma de observação
dos saberes e do que representam essas fontes de pensamento. Pico também se reportou
ao pensamento árabe e as suas peculiaridades260, citando Averróis, Avenpace,
Alfarabi261 entre outros e demonstrando o que há cada um de verdadeiro. Elou observa a
identificação certa relação dos textos da falsafa262 com aqueles herméticos, platônicos e,
igualmente aqueles que constituem a prisca sabedoria, indicando, igualmente, o seu
vínculo tanto no hermetismo quanto na qabbalah judaica.
Em fontes como a Qabbalah a falsafa263, mas também grega, latina e islâmica, o
Alcorão264, Pico não só pensou as Conclusiones, mas ainda o tema fundamental da
Oratio. Daí a presença de inúmeras alusões a pensadores de várias orientações e
culturas diversas fazia importantes na busca de demonstrar o conhecimento presente nos
258 Segundo Maria de Maria de Lourdes Sirgado: Pode-se aqui sustentar que o Pórtico e a Academia
correspondem, respectivamente, à escola fundada por Platão. Ambos os nomes derivam da localização
das escolas: nos estóicos, sob o pórtico ornado com as pinturas de Polignoto; em Platão, no ginásio dos
jardins do herói Academos (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes.
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93).
259 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93.
260 Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93.
261 Com AL-Fãrãbi, o pensamento peripatético já neoplatonizado
recebido no mundo islâmico foi bastante ampliado e melhor sistematizado; o próprio neoplatonismo
islâmico foi fundado por este filósofo. Como poderá ser constatado nos textos aqui traduzidos, a filosofia
de al-Fãrãbî tem como objetivo principal -
Fãrãbî e Avicena. Petropólis, RJ: Vozes, 2011, p.18).
262 Entre os séculos VIII e XIId.C /II e VI H., a filosofia começou a falar em árabe.
Nas terras dominadas pelo Islãm, a falsafa foi a continuadora da filosofia antiga. Por esta razão, em
sentido estrito, é somente com o termo falsafa que se pode referir à ocorrência da filosofia entre os
Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida São Paulo:
Palas Athena, 2002, p.45).
263 A Falsafa foi responsável não só pela imersão do pensamento da
filosofia grega entre os árabes mas também pela transmissão da filosofia grega ao Ocidente. Na medida
em que o paradigma grego foi um dos responsáveis pela construção filosófica do Ocidente, não é difícil
imaginar que a falsafa ocupe um lugar histórico muito peculiar. Sobre o meridiano da filosofia oriental e
ocidental, a meio caminho da contemplação de dois ou mais caminhos, a falsafa contribuiu sobremaneira
para inúmeras transformações da fil (cf. ATTIE Filho, Miguel. Falsafa:
a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida São Paulo: Palas Athena, 2002, p.33).
264 Tudo isso faz do Alcorão um Livro, cuja semelhança, mortal algum pode produzir, e tudo que a
história do islã e das crenças nos transmitiram atesta isso. O próprio Profeta expunha o Alcorão aos
árabes e lhes pedia para que apresentassem algo semelhante, nem que fosse à menor surata dele. E a
História do Islã ou das crenças não nos transmitiram informação alguma sobre alguém que conseguisse tal
efeito. Dentre os que escreveram ao Alcorão durante os séculos IV e V da Hégira, podemos citar:
Albaclani Imame Abdel Cábdel Cáher Ajjarani, com seu livro
Imame Azzâmkhcheri. Devemos presumir, então, que
isso é uma evidente prova de que o Alcorão não foi uma invenção humana, mas é uma revelação de Deus,
Altíssimo, transmitida por intermédio do anjo Gabriel a Maomé, pois este era iletrado e não podia por
conseguinte produzir um livro que abrangesse verdades históricas e cientificas, que criasse uma base e
uma lei religiosa, um esquema a uma vida política e social, e que, possuísse uma eloqüência ímpar (cf.
ALCORÃO. Alcorão Sagrado, Trad. br. Samir el Hayek. São Paulo: Tangará, 1975, p.XV).
106
estudos realizados das fontes, a fim de um esclarecimento e o conhecimento do destino
humano. Conforme Pico escreve:
Para falar de poucos, com Porfírio deleitar-nos-emos com abundancia
de temas e com a religião complexa, em Jâmblico veneremos a
filosofia oculta e os mistérios bárbaros, em Plotino não há nada que
não se possa admirar, porque em tudo ele se mostra admirável, porque
fala divinamente das coisas divinas, porque quando fala das coisas
humanas coloca-se muito acima do humano com a sapiente subtileza
do discurso, de tal modo que, com algum trabalho, só o entendam os
próprios Platônicos265.
Tais fontes constituem também na Oratio um pressuposto relevante da sua
reflexão sobre o homem e a sua natureza. Daí a ideia piquiana de liberdade corresponde
à máxima dos seres humanos não terem um principio determinante: algo distinto em
relação aos demais seres266. Por isso, o homem não possuí um principio determinante,
para então escolher entre as naturezas que existem na criação. A liberdade postulada por
Pico é, porém, uma liberdade com a responsabilidade, pois o homem será o grande
responsável por aquilo que ele mesmo escolher. Trata-se de um dom que o homem
recebeu de Deus, pois a sua dignidade consiste em se servir dessa liberdade. Por
conseguinte, o homem poderá desejar vidas como vegetativas, sensíveis, racionais,
angelicais ou mesmo divinas.
No que concerne à dignidade do homem, esta é a unidade do homem que é imago
Dei, que é microcosmo, refletido em escala menor: algo que torna a reflexão de Pico
della Mirandola diferente dos demais renascentistas, pois a visão da dignidade humana é
possível com a presença da autodeterminação, a razão e a inteligência humana, pois
possuem alcance ético e poiético. Ademais, ele celebrava na Oratio a liberdade-
responsabilidade humana para justificar, igualmente, a sua retratação em relação à
disputa. Portanto, apenas interpretando a dignitas hominis da Oratio como
autocriatividadeabsoluta poder-se-ia falar de palinódia no pensamento piquiano. Não se
pode descurar também que na Oratio está presente um convite à purificação do espírito
com as disciplinas morais.
A liberdade está no ser humano não possuir uma determinação em sua natureza,
pois oriunda de sua criação, mas também nas decisões tomadas pelo homem em sua
265 MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95.
266 Cf. DOUGHERTY. Três Precursores do debate romano de Pico della Mirandola e a questão da
Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.161.
107
vida: algo que se confirma com a responsabilidade de um valor tanto ético quanto moral
observado pelo homem. As outras criaturas ou naturezas estão na própria origem
determinadas ad unum nas suas disposições, mas a natureza do homem não tem um
princípio determinado, pois se exclui a todo determinismo das leis naturais, ou seja,
físicas. Pico demonstrou essa responsabilidade valendo-se de fontes de conhecimento
sobre a criação do homem, pois vários foram os exemplos extraídos da tradição: gregos
e árabes, mas também aqueles pertencentes à doutrina hebraica e ao conhecimento da
teologia escolástica para sustentar o que cada uma dessas postulou a respeito da criação.
Em algumas passagens da Oratio, é apresentado por Pico essas demonstrações de
fontes que elevam o homem na criação divina, como também defende essa criação vista
aos olhos de quem tiver dúvida em relação a sua posição. Ao conceber a natureza
humana como possuidora de natureza indeterminada, ele defende a responsabilidade no
homem de ter vindo ao mundo, não para permanecer em um estado espiritual menos
elevado, pois deve aspirar às coisas mais elevadas. Para tanto o caminho será sempre o
bem, o justo e o ético, ao qual o homem deverá se voltar. Isto justifica igualmente a
necessidade de se iniciar, quer no conhecimento dos mistérios presentes nas doutrinas
sapienciais quer em seguir certo itinerário de ascensão, a fim de se purificar a alma e se
elevar com o dom da inteligência ao universo das coisas divinas.
3.6 A ascensão sapiencial e a paz universal: filosofia natural, dialética e teologia
Para Pico della Mirandola, a ciência constitui, conforme expõe na Oratio, o
atributo fundamental dos Querubins. Em vez de adotar uma correspondência estática
entre elementos terrenos e elementos celestes, Pico insiste no aspecto dinâmico, ou seja,
no processo de purificação, iluminação e perfeição. Tal modelo é celeste, mas é de
forma análoga reproduzido na vida terrena, ao se tratar de operações imanentes a todo
nível da atividade espiritual. Nesse sentido esses três estados correspondem a três
momentos de certo curriculum ideal de iniciação. Conforme Pico escreve:
Também nós, portanto, emulando na terra a vida querubínica,
refreando o ímpeto das paixões com a ciência moral, dissipando a
treva da razão com a dialética, purifiquemos a alma limpando-a das
sujeiras da ignorância e do vício para que os afetos não se
desencadeiem cegamente nem a razão imprudente alguma vezes
delire. Na alma, portanto, assim recomposta e purificada, difundamos

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