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OBSERVAÇÃO CLÍNICA: OBJETOS E MÉTODO1 Quando, para uma determinada atividade prática, propomos a observação de algo, sempre nos ocorre, antes de qualquer coisa, questionar: observar o quê? Neste caso, logo tratamos de procurar identificar e definir, com a máxima precisão possível, o “objeto” a ser observado. Isso inclui apreender o máximo de detalhes daquele objeto, bem como os respectivos critérios e instrumentos a serem utilizados para tornar possível tal observação. Tudo, para termos a certeza de que, após a observação, sejamos capazes de falar com propriedade e exatidão daquele objeto; como se pudéssemos, a partir daí, dominá-lo de alguma forma. Tudo estaria posto e inquestionável se nos fosse solicitado somente a observação do aspecto concreto de uma determinada realidade. Pois, neste caso, o nosso olhar seria o de um avaliador; aquele que deveria captar o que se apresenta de modo ‘claro’, ‘palpável’, ‘visível’; sobre o qual, seria perfeitamente possível enumerar, deduzir, classificar, constatar ou descrever. Mas, certamente não acontece desse modo quando nos é solicitado observar de um outro lugar: o do campo da Psicologia. Neste campo, o olhar clínico se apresenta como seu instrumento primordial: aquele que embora se destine às certas objetividades de determinada realidade, se situa também no avesso delas; no contrário daquilo que se vê a olho nu, assim como, no campo do que se apresenta nas entrelinhas dos claros discursos. O que não impede – imprescindível esclarecer – a apreensão e nomeação do que se observa, ainda que seja de modo menos específico. O objeto assim torna-se, ao contrário, mais abrangente, flexível e mutável. Justamente, o que torna aquilo que se observa um campo aberto e diverso, no qual as pluralidades e possibilidades de sentidos norteiam, sem aprisionar, a condição do sujeito; não engessam a compreensão do 1Durante a reprodução deste texto, a referência bibliográfica foi extraviada. Desse modo, só é possível identificar o título do livro e do capítulo, respectivamente: L’observation clinique e Modélisation de l’observation clinique: objets et méthode (ainda sem tradução). A escrita baseia-se no conteúdo disposto no capítulo 3 deste livro e foi adaptado por KARINA VERAS à realidade da disciplina ESTÁGIO BÁSICO EM PSICOLOGIA DA SAÚDE, no sentido de contribuir para as reflexões sobre as atividades práticas de tal disciplina. movimento das subjetivações e não se encerram nas intervenções prontas, fechadas, indiscutíveis. Ao contrário, o olhar clínico deve se propor a manter em marcha aquilo que interroga e atravessa o humano, viabilizando sua condição mesma: a de ser, a um só tempo, sujeito de suas ações e desconhecedor de seus feitos. Um sujeito situado numa certa concretude e positividade, mas, remetido profunda e irreversivelmente, àquilo que não tem equivalência nesta mesma realidade. Àquilo que se endereça ao indizível... insistentemente. Como observar “isso”? Passemos então, às palavras e idéias do texto. 1 – Observação da realidade psíquica O objeto da observação clínica é, antes de tudo, a observação de uma realidade psíquica. Neste caso, há que se considerar que o psiquismo se configura como uma realidade – esta, tão determinante quanto a realidade concreta. Assim, podemos afirmar que nossos conflitos psíquicos são determinados não somente pelos fatos vividos em si, mas, sobretudo, pelo mundo das abstrações, pelo que é imaginado dessas experiências. Pouco importa se o que é pensado, imaginado e representado está de acordo ou não com esta realidade exterior. A construção psíquica se apresenta então, como primordial na constituição de uma determinada realidade. Isso revela a potência de idéias inconscientes, a predominância da vida psíquica sobre a vida real, uma vez que nossos questionamentos mais íntimos se servem de uma realidade psíquica, que não se prende tão somente a uma realidade concreta, ainda que também seja certo dizer que toda realidade psíquica tem um núcleo de realidade histórica. Portanto, que os acontecimentos são reais ou fantasmáticos, seus efeitos são os mesmos. Mas, o que é Realidade psíquica? A realidade psíquica é constituída de desejos, de fantasmas, de emoções e de afetos. Ela é também constituída de percepções, de representações, de objetos internos, processos intrapsíquicos, interpsíquicos ou intersubjetivos. Por isso, a realidade psíquica não é observável senão, pelo efeito desses processos. Podemos pensar então que, se o objeto da observação clínica é a realidade psíquica, ela é mais precisamente a subjetividade. De modo que, o trabalho clínico consiste, antes de tudo, em um trabalho de observação da subjetividade. De outra perspectiva, afirmamos também que o subjetivo repousa sobre a atividade de representação. Deste modo, a subjetividade, do ponto de vista da Psicologia Clínica, é a caracterização da apropriação pelo sujeito de suas experiências de mundo. A subjetividade está remetida ao campo do sentido e da simbolização, traduzindo o sentido das experiências do sujeito. O sentido que o faz se reencontrar com o mundo e com ele mesmo. A subjetividade é a constituição de sentidos. Assim, importa destacar também que a subjetividade se constrói ao mesmo tempo que a objetividade, ou seja, toda objetividade de um objeto é relativa ao sujeito que a representa. De forma que, dentro do mesmo movimento onde se desenvolve a subjetividade, se constitui a objetividade, sendo assim, contemporâneas. E no que consiste observar a Subjetividade? Em poucas palavras, diríamos que é a observação dos sentidos, conscientes e inconscientes, lembrando que a subjetividade não se opõe à objetividade, visto que não existe por si só. A observação clínica visará então o movimento de constituição da subjetividade. E como se manifesta a Realidade psíquica e a Subjetividade? A partir de que tipos de manifestação são observáveis? ... Dos sintomas, sonhos e das criações culturais, já dizia Freud. Mas, ao que nos propomos discutir aqui, poderíamos por ora, nos deter no que consideramos sintomas... 2 – Observação dos sintomas O que estamos chamando de sintomas? Em termos muito amplos, poderíamos incluir nesse termo a presença de angústias, de mal-estar psíquico, de certas modalidades de relações de objeto, de conflitos, de alguns mecanismos de defesa; enfim, de tudo o que pode nos sinalizar sobre uma realidade observada ou de qualquer coisa que possa nos falar sobre o sujeito e a circunstância em que permanece e que o circunscreve. Talvez seja sintoma aquilo a que possamos denominar como sinais que saltam aos nossos olhos em um dado momento de nossa observação, ainda que não tenhamos planejado que seria assim. Desse modo, se a observação desses sintomas é útil ao clínico por estabelecer um diagnóstico e ter uma representação global do funcionamento psíquico do sujeito, a observação dos sintomas na Psicologia Clínica tem, sobretudo, como meta o questionamento dos sentidos desses sintomas. De fato, o sintoma, do ponto de vista clínico, porta um sentido, como modo de simbolização. É o que devemos interrogar, visto que, de um modo ou de outro, o sintoma indica um conflito psíquico. A observação clínica não terá por objeto, então, revelar “o” ou “um” sentido do sintoma, mas de permitir um desdobramento de sentidos potenciais, de simbolizações - de poder pensar a partir do sintoma. Em outras palavras, a observação clínica se abre a idéia de uma pluralidade de sentidos potenciais do sintoma e se abre ao trabalho de pensar, refletir, considerar, ponderar... o próprio fazer do olhar clínico. 3 – Observação das mensagens verbais e não verbaisA linguagem é um objeto privilegiado da observação, visto que veicula sentidos, comunicando aspectos conscientes e transmitindo as enunciações portadoras de sentidos manifestos. Mas, transmite também, e é isso que orienta mais especificamente a observação clínica, o sentido latente, inconsciente. Nesse sentido, os pensamentos inconscientes são tributários dos fantasmas que os organizam, ao mesmo tempo. É o que caracteriza a subjetividade... De fato, a linguagem visa a comunicação de sentidos e visa também produzir um efeito. O clínico será sensível tanto ao dito como à maneira de dizê-lo – a fenomenologia da linguagem. Àquilo que dificilmente se apresenta representável em si, ou aquilo que se realiza à revelia do sujeito, colocando um outro à prova, no sentido de convocar o olhar clínico a um exercício de certa “decodificação”. Temos como exemplo o bebê, que, freqüentemente, convida sua mãe à “decifrar” seus incômodos, tensões e mal-estares. Movimento que, essencialmente se fará a partir tanto de palavras como de silêncios e dependerá, em grande medida, de uma disponibilidade, de certa implicação, de certa reserva mas, sobretudo, de se autorizar a observar. 4 – Observação das Associações A livre associação, ou seja, a produção espontânea de ‘certo’ dizer em ‘certo’ espaço coloca em evidência uma ordem determinada por questões inconscientes, alvo da observação clínica. Assim, a cadeia associativa decorrente desse movimento pode ser apreendida pela livre escuta e observação, seja em relação à singularidade do sujeito, seja nas situações grupais. Em outros termos, também faz parte da observação clínica, abrir o campo da percepção a este dizer espontâneo, que, livre de certas amarras (em algum sutil momento) inaugura novos sentidos para uma determinada realidade observada. 5 – Observação da transferência A observação clínica, que visa a observação da realidade psíquica e da subjetividade, remete-se também aos fenômenos da transferência e no quanto eles caracterizam a projeção do mundo interno do sujeito observado, ou seja, das suas angústias, de seus conflitos, defesas e fantasmas específicos das primitivas relações desse sujeito. Assim, a transferência, como algo que perpassa qualquer relação humana em qualquer circunstância real se presta à função de observação clínica. O que compõe essencialmente o campo da clínica. 6 – Interpretação e validação Por fim, a observação clínica deve conduzir a uma determinada interpretação, que, por sua vez, consiste em dar um sentido a um acontecimento psíquico observado. Assim, não se trata da interpretação pela interpretação, pois observar clinicamente não é em si, propor uma tradução literal do fato observado, sustentada somente pelo que se apresenta de forma clara. Interpretar assim seria partir apenas das suposições aparentes, marcadas pelo olhar parcial do observador; o que se distingue radicalmente do olhar clínico proposto pela Psicologia Clínica. O que é interpretado a partir do olhar clínico não é, senão, uma composição de elementos que, amparados por um corpo teórico sólido e uma ética pertinente, oferecem possibilidades de compreensão ao que se pretende observar, no sentido de construir intervenções clínicas para o cuidado e atenção de alguma realidade; sem, no entanto, encerrar as muitas conclusões que possam surgir nesse percurso.
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