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1 CURSO DE ÉTICA Prof. Marco Antônio “Por si só, um texto não é nada, tal como uma viagem por si só tampouco é nada. Uma alma se faz necessária para concatenar entre si os méritos desta e as frases daquele, fazendo jorrar do contato essa luz misteriosa que se chama verdade ou que tem por nome beleza” A.-D. Sertillanges 2 B695 Bomfim, Marco Antônio Correia. Curso de ética / Marco Antônio Correia Bomfim. – Ilhéus, BA: CESUPI, 2015. 144 f. Inclui referências. 1. Ética. I.Título. CDD 170 3 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.....................................................................................................3 CAPÍTULO I – ÉTICA E CIVILIZAÇÃO 1.O LOGOS GREGO E O ESTUDO DO ETHOS.............................................11 1.1 A ÉTICA ENQUANTO CIÊNCIA DO ETHOS..............................................11 1.2 O “CONHECE-TE A TI MESMO” COMO FUNDAMENTO DO SABER ETICO................................................................................................................18 1.3 A ETICIDADE COMO DIMENSÃO ONTOLÓGICA DO SER DO ENTE HOMEM.............................................................................................................26 1.4 A FORMAÇÃO DO ETHOS PELO HÁBITO................................................36 1.4.1 A RESPONSABILIDADE..........................................................................38 1.4.2 O CARÁTER.............................................................................................41 1.4.3 O HÁBITO E O SEU VALOR MORAL......................................................50 CAPÍTULO II – O ETHOS CRISTÃO-MEDIEVO 2.O ETHOS CRISTÃO E O HOMEM (PESSOA) COMO REALIZADOR DO BEM E DO MAL MORAL...................................................................................54 2.1 A DIMENSÃO ÉTICA DO EVANGELHO.....................................................54 2.2 A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTE......................................................62 CAPÍTULO III – O ETHOS MODERNO E SUA PERSPECTIVA REVOLUCIONÁRIA..........................................................................................71 3.1 O ETHOS MODERNO ENQUANTO RUPTURA E VONTADE DE PODER76 3.1.1 A DISSOCIAÇÃO ENTRE POLÍTICA E ÉTICA NO FAZER HUMANO E A SUBMISSÃO DO ÉTICO AO POLÍTICO...........................................................78 3.1.2 VONTADE DE PODER, COISIFICAÇÃO E NEGAÇÃO DO OUTRO......84 3.1.2.1 A TRANSVALORAÇÃO DE TODOS OS VALORES.............................84 3.1.2.2 MORAL E PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA: a moral enquanto reengenharia social............................................................................................89 CAPÍTULO IV – A CULTURA DENTRO DO ETHOS GLOBALISTA..................................................................................................114 4.1 MASSIFICAÇÃO, DESCONSTRUÇÃO E REDUCIONISMO....................121 4.2 A ÉTICA COMO DIMENSÃO PRECÍPUA PARA A RECONSTITUIÇÃO DO SER DO ENTE HOMEM .................................................................................128 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................135 REFERÊNCIAS...............................................................................................140 4 INTRODUÇÃO “Para se compreender uma civilização. É preciso amá-la, e isto só se consegue graças aos valores permanentes, de validez universal, que ela implique. Tais valores costumam coincidir fundamentalmente em todas aquelas culturas que não servem só para o bem-estar físico, mas se preocupam com o homem total, ancorado no eterno. Sem tais valores, a vida não tem sentido.” TitusBurckhardt A perplexidade inerente ao homem moderno, pode-se dizer que tem se manifestado na angustiante realidade que perfaz a sua existência, a qual é a da permanente convivência com a crise. Fenômeno este que assola todos os campos, áreas onde o ser humano atua. Dentre as várias crises que acometem a vida humana, não se pode deixar de mencionar a crise moral. Crise esta que não diz respeito apenas às relações do homem para consigo mesmo, do homem para com seus semelhantes, do homem para com as coisas que o cercam, como também do homem para com o Ser do qual participa. A crise moral então se instala, também, nos estudos que se realizam sobre as disciplinas tão importantes na busca de compreensão, pelo homem, da realidade que o circunda e perfaz. Daí se poder falar que reina no âmbito da vida humana a maior confusão. Segundo o filósofo brasileiro, Mário Ferreira dos Santos (1964, p. 158) A nossa época é uma época de confusão de idéias. E é confusa, porque as idéias, que foram separadas para a análise, que o trabalho crítico realizou para estudá-las em separado, não foram devolvidas de modo hábil à concreção, mas reunidas confusamente, isto é, fundidas com outras, obedecendo a novas hierarquias de valores, que não correspondem ao que melhor devera ser, embora revelem o que se dá na presente fase do processo histórico. Segundo o filósofo, estamos numa época de crise porque vivemos como em nenhum outro momento da história da Civilização Ocidental a crise. E como esta se instala em todos os setores, não poderia deixar de afetar a Ética. E como não haver crise em época onde nós seres humanos nos separamos cada vez mais? Há a ciência, há o crescimento econômico, há a difusão das informações, etc. mas a crise do/no humano é cada vez mais crescente. 5 Este novo milênio, sem dúvida, pode e deve ser caracterizado por um lado, pelo fenômeno da globalização1, entendido este em seu sentido mais amplo. Então o conhecimento, as informações estão viajando em milésimos de segundos, por meios de cabos de fibras óticas e chegando a locais inimagináveis, pondo os indivíduos em contato com mundos diferentes, que os inquietam e produzem no mesmo, anseios, desejos, repulsas, enfim, um mundo de sensações, imagens, representações. Por outro, e de certa forma, ligada à anterior a terceira revolução científico-tecnológica, que traz mudanças nas sociedades, por motivo de suas novas descobertas (biotecnologia, nanotecnologia, etc.). E aqui se pode falar no desenvolvimento da informática e suas influências diretas noutras áreas do conhecimento e intimamente na vida dos seres humanos, estejam eles nas grandes metrópoles ou nos recantos do mundo habitado pelo ser humano. Não por acaso, uma das características marcantes da sociedadehodierna que se diz pós-moderna é a desrealização, desestruturação; ou seja, este é o tempo das transformações profundas que afetam diretamente toda a cultura do humano. Como diz Castells(1999, p. 41) em sua obra: A sociedade em rede: “Nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em oposição bipolar entre a Rede e o ser”. Constata-se então, em meio aos burburinhos do tempo que urge e vigora, que o homem “pós-moderno” está no meio de uma esquizofrenia estrutural entre a função e o significado; o ter e o ser. Diante de tal realidade é lícito também perceber que as noções de tempo e espaço são literalmente transformadas e passam a adquirir novos significados. Enquanto o lugar tem como característica própria o ser fixo, ou seja, é específico, delimitado, concreto, conhecido, familiar em que as raízes do homemsão aí fixadas. O espaço ganha uma nova dimensionalidadeque de nada necessita do concreto para fixar-se, até porque sua marca distintiva é a flexibilidade, a fluidez, ou numa linguagem mais atual, ele se virtualiza adquirindo assim uma 1O termo globalização não deve ser compreendido no sentido habitual, o qual lhe é dado frequentemente, enquanto produto de um sistema econômico em particular, o capitalismo. Mas sim, como um processo de dominação pela cultura,gerência administrativa e reengenharia social que é parte de um projeto meta- capitalista, onde se aliam grandes conglomerados financeiros, organizações supra-estatais, ONGs, partidos políticos. (CARVALHO, 2007 ) 6 onipotência e onipresença impensável e impossível para o lugar. Porque com muita rapidez apenas com um piscar de olhos, um comando de mãos ou voz rompem-se espaços siderais. O que se pode inferir desta assertiva é a destruição do espaço através do tempo. Então, por trás de todo o processo globalizante (mentalidade revolucionária/globalista) tem-se nada mais que o enfraquecimento e a destruição de valores ético-morais e das identidades culturais. No meio deste turbilhão de informações, modificações, revoluções que é o mundo “pós-moderno”, o homem é como que conduzido a pensar e viver dentro de uma proposta que o remete à interdependência cada vez maior, entre os meios e processos de inter-relação e produção social. Assim, passa a ser um imperativo para a vida das sociedades e dos indivíduos que nela habitam um modo de pensar, de ser e de agir. O homem está preso numa teia de símbolos que nega toda e qualquer possibilidade de uma individualidade autêntica, pois esta só é possível dentro dos parâmetros: ou desse homem consumidor (capitalismo vigente), ou do homem politicamente correto (socialismo/comunismo/fascismo). Deste modo, o mesmo se encontra imerso numa descaracterização, portanto, desumanização do ser de seu ente(homem) em prol de projetos que vislumbram criar entidades abstratas que possibilitem a constituição do melhor dos mundos possíveis2. São inúmeros os pontos críticos da realidade hodierna que podem ser investigados, não obstante, nosso enfoque neste curso priorizará os aspectos éticos dentro da constituição deste entechamado Homem. Porque, sem as exigências éticas, as quais estão na base do agir humano, a cultura, qualquer que seja a época em que ela se manifeste no caminhar da história, o que se obterá como conseqüência, será a violência, a barbárie. A este respeito, o filósofo Mário Ferreira dos Santos procurou-nos alertar em meados do século passado acerca da tragédia em que a condição humana estava vivendo sob a bota da superficialidade e a invasão cultural da barbárie com a sua obra/manifesto Invasão vertical dos bárbaros. 2 Cf. a obra: O futuro do pensamento brasileiro, do filósofo e jornalista Olavo de Carvalho, onde na segunda parte, que trata das conferências que o mesmo deu em Paris e Bucareste no tópico III – A globalização da ignorância. O filósofo tratará de forma direta, concisa e elucidatória o projeto da nova ordem cultural do mundo. 7 Não se considerando as exigências éticas fundamentais do agir humano, as quais são co-extensivas ao trabalho da cultura humana.Toda e qualquer transformação da vida social, por mais que pareça ser promissora, a exemplo dos inúmeros avanços científicos e tecnológicos ocorridos no século passado e início deste, os direitos elaborados em prol de uma sociedade e humanidade abstrata, não terá objetivamente nenhuma condição de promover e garantir o bem estar da comunidade humana. Observando-se a quantidade de violência, perpetrada pelo mundo inteiro, nas diversas categorias de seres humanos, constata-se que vem se tornando trivial e como tal, ameaça fazer esse mundo inabitável. Estamos imersos em uma crise moral sem precedentes na história da humanidade. Não por acaso então um enorme fluxo de estudos (artigos, livros) acerca da reflexão ética. E dentro das mais vastas atividades laborais humanas, crescentes são as preocupações em torno das questões éticas. E as razões que podem explicar esse interesse extraordinário pelos temas éticos são múltiplas e complexas. No entanto, acredita-se que se está diante de uma das mais inequívocas e significativas reações a uma crise moral sem precedentes, que atinge a Civilização Ocidental. E particularmente a sociedade brasileira, a qual é amplamente divulgada e reconhecida como possuindo um jeito todo peculiar de ser: o jeitinho brasileiro. Na atualidade a evolução científica e tecnológica que revoluciona o conhecimento estabelece novos paradigmas para as relações humanas e sociais e produz impacto em toda a atividade humana. O tema da ética inquieta cientistas, pesquisadores e profissionais das diferentes áreas do saber. Se os princípios éticos devem conduzir a ciência, a consciência ética, porém, não resulta do debate científico, mas da vontade e coragem das pessoas que agem movidas por princípios éticos, na construção da ciência, nas relações de trabalho, na vida afetiva, etc. Embora, por vezes, não haja clareza de quais caminhos seguir, em vista de um mundo cada vez mais cético e relativista. Onde a derruição das morais leva a maioria das pessoas a confundir a Ética com a Moral. É preciso ter bem clara a compreensão de que a Ética estuda o dever ser humano, enquanto que a Moral descreve e prescreve como se deve agir 8 para realizar este dever-ser. Ou seja, a Moral é variante, mas a Ética é invariante. E exatamente por este motivo é que os homens geralmente mal assistidos pela intelectualidade erram quanto à eticidade de um ato e estabelecem um costume que ou não é conveniente ou é exagerado. Como nos diz Mário Ferreira na esteira dos filósofos clássicos, a Ética deve ser consagrada ao universal. Assim, da moral que surge na vida prática do homem, a mente especulando sobre a mesma chega à Ética, que por sua vez é mais especulativa que prática, pois nela há princípios que são eternos, enquanto na moral há regras de valores históricos, logo, mutáveis. Como medida de esclarecimento do que fora mencionado é possível dizer que: dar a cada um o que é de seu direito é uma norma ética, todavia, o modo como venha a se proceder, segundo a conveniência humana obediente a esta norma, será uma regra moral. Nessa compreensão acerca do emaranhado que compõe a realidade social, a responsabilidade pessoal – ou o que Schweitzer apud Ripolo (2009) denomina moral da personalidade ética, ao entender que a pessoa deve fazer o que pode para elevar a moral social – contribui para aprimorar a moral da sociedade ética. E o descaso pela moral da personalidade ética rebaixa a dignidade da pessoa humana e repercute nas relações interpessoais e na ética da sociedade. A deficiência ética degrada o ser humano. A Ética, ao invés, resulta da disposição lúcida e coerente da razão que ilumina o discernimento e norteia a conduta. E como os demais valores que orientam a conduta humana e social, ela permeia e perfaz as relações humanas. Uma dimensão de vida mais justa, ordenada e equânime, tanto em sentido pessoal quanto coletivo exige uma Ética no sentido integral. Em que o homem esteja ciente do seu propósito na teia da vida e de que ele é parteindissolúvel do meio em que vive (natural, social, etc.); mantém relações dialogais com os seus semelhantes;é sensível e atento para com anatureza, com os outros seres vivos e com o mundo. Esta Ética, baseada em valores que se fundam numa estrutura ontológica da realidade existente e que se constitui existencialmenteda 9 cooperação, da qualidade de ser e das ações deste, de participação e de integração, considera a vida em todas assuas dimensões. A Ética em seu sentido integral deve ser reguladora, no qual os significados tenham a vercom a unidade dos propósitos entre a vida singular dos indivíduos e da sociedade: a demanda se aproxime da necessidade; o custoconsidere a destruição ecológica e os danos sociais (BUARQUE, 1993). Os princípios éticos podem se manifestar em relações de poder. E dentro de paradigmas gestados enquanto entes de razão, tais princípios tendem a se transformar em máquinas abstratas de pressão, desumanização e até supressão de vidas humanas. Um exemplo claro acerca disto são os diversos matizes de socialismo (comunismo, nazismo e fascismo) que vigoraram no século passado na Europa e ainda faz eco em presente século, principalmente, nas “periferias” do mundo. Só que aracionalidade integral exige não o poder traduzido como domínio exclusivo sobre os outros, mas o poder concedido a outros com o objetivo de fortalecer o processo decisório,de uma forma dinâmica, democrática, participativa, descentralizada e que almeje a constituição da vida humana em sua plenitude e, não a tome como meio para outros fins. Como fazem os modelos perpetrados pela economia de mercado e a mentalidade política revolucionária, que a tudo e todos almejam seduzir, formatar, enquadrar, resignificar como se coisas fossem e não seres humanos. Quando não aniquilam por completo das formas mais cruéis e abjetas como nos relatam sobreviventes, dissidentes, pesquisadores, etc.. Esta nova visão de mundo, a qual exige um retorno a uma contemplação da dimensão ética do ser do ente homem,baseada em princípios que respeitem a vida em sua integralidade deve ser balizadora de todas as instâncias do fazer humano; deve ser um modusoperandi dos grupos de cientistas, pensadorese professores;dos empresários, funcionários e trabalhadores. Deve ser estendida às comunidades, instituições e organizações. Destarte a constituição do homem, da sociedade, das novas gerações, perpassa e exige a colaboração consciente de cada indivíduo, tomado este a partir da sua condição de cidadão, não meramente observado em um determinado tempo e espaço circunscrito, mas sendo capaz de romper com certas fronteiras que negam a possibilidade do diálogo entre o novo e o velho; 10 entre o progresso e a tradição; entre o presente e o passado; entre o material e o espiritual. Enfim, que não renegue no homem a sua condição metafísica em prol da arbitrariedade dos modismos ditados por cada época e cultura em particular, como se a escala medidora da verdade fosse aquele do tempo presente. A idéia que se procura fazer ressaltar aqui é a de uma necessária retomada do paradigma clássico da razão prática, enquanto idéia diretriz da Ética filosófica, ou seja, a razão enquanto ordenação à ação (práxis) e não simplesmente ao conhecimento. A fim de possibilitar uma reflexão mais abrangente acerca da formação e atuação do ser humano enquanto indivíduo, pessoa, cidadão. O presente curso encontra-se estruturado da seguinte forma: - O primeiro capítulo: Ética e civilização: o logos grego e o estudo do ethos. Irá tratar acerca da Ética segundo o pensamento clássico grego (Sócrates, Platão e Aristóteles) e o ethos cristão-medievo (Agostinho, Tomás de Aquino, escolástica/pessoa e dignidade da vida humana); - O segundo capítulo: O ethos moderno e sua perspectiva revolucionária. Desenvolverá acerca do ethos moderno tomando como parâmetro os pensadores: Nicolau Maquiavel, Friedrich Nietzsche e Karl Marx; - O terceiro capítulo: A cultura dentro do ethosglobalizado e a Ética. Onde serão tomados como suportes para pensar a cultura e a globalização, os seguintes pensadores: Hannah Arendt, Manuel Castells, Stuart Hall e Evilázio Teixeira; e para pensar a Ética dentro de tal contexto o pensamento do filósofo contemporâneo Mário Ferreira os Santos. Na urgência de uma reflexão ética mais sólida, o capítulo a seguir busca-se amparar nos conceitos e sistematização da Ética filosófica clássica, mais especificamente encontra alicerce em seus formadores: Sócrates, Platão e Aristóteles. Bem como, no helenista Werner Jaeger, através de sua obra clássica Paidéia: a formação do homem grego, estudo amplo e aprofundado acerca da formação cultural do homem grego e, no terceiro volume da obra Ordem e História:Platão e Aristóteles, de Eric Voegelin, onde o filósofo completa o seu vasto e riquíssimo estudo sobre a cultura grega indo desde suas remotas origens pré-helênicas, até sua plena maturidade com o império de Atenas e 11 com os pensadores e filósofos que representam o ponto mais elevado da investigação filosófica entre os gregos. Para tratar da parte referente ao ethos cristão-medievo serão observados aspectos do pensamento de Santo Agostinho, Tomás de Aquino, a escolástica; a renomada obra Nova moral fundamental: o lar teológico da Ética, do catedrático espanhol Marciano Vidal (importante nome ligado à renovação da Ética Teológica depois do Concílio Vaticano II), assim como, da importante, reveladora, esclarecedora e excelenteobra Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental, do historiador Thomas E. Woods Jr.. CAPÍTULO I – ÉTICA E CIVILIZAÇÃO 12 1. A ÉTICA ENQUANTO CIÊNCIA DO ETHOS “Cada homem em particular deve ter portanto, em potência, a aptidão de, atendidos os requisitos pertinentes e guardadas as devidas proporções, compreender seus semelhantes [...], na medida em que se conduzam como seres humanos. E conduzir-se como um ser humano é em última instância, agir segundo um propósito que não se reduza por completo à mera resposta empírica a uma dada situação particular, mas que aponte, de algum modo e em alguma medida, para um sentido universalmente válido.” Olavo de Carvalho Falar da Ética é tratar de um aspecto preponderante na história e formação do ente humano. Onde quer que tenha existido uma comunidade de pessoas que deliberadamente ou não tiveram que conviver, ali houve a prática de certas atividades, a introjeção de certos costumes e hábitos, a constituição de um conjunto de normas e leis, etc. A História tem demonstrado ao longo dos tempos que as civilizações mais remotas tiveram códigos normativos que buscavam coerir a existência dos indivíduos numa vida coletiva. Por uma questão singular, o que nos interessa aqui é retratar a peculiaridade na história da civilização do fenômeno chamado Helenismo, pois, a Grécia se apresenta com relação às culturas do Oriente – diga-se de passagem, culturas riquíssimas quanto aos aspectos das realizações artísticas, religiosas, políticas – com um avanço fundamental quanto ao quesito vida humana em comunidade. Os gregos são sem soma de dúvidas um referencial na história daquilo a que se pode chamar conscientemente de cultura. Quanto a isso corrobora a famosa obra de Werner Jaeger, Paidéia: a formação do Homem grego (1995, p. 5), A investigação moderna no século passado abriu imensamente o horizonte da História. A oikoumene dos gregos e romanos “Clássicos”, que durante dois mil anos coincidiu com os limites do mundo, foi rasgada em todos os sentidos do espaço e perante nosso olhar surgiram mundos espirituais até então insuspeitados. Reconhecemos hoje, todavia, com maior clareza, que tal ampliação do nosso campo visual em nada mudou este fato: a nossa história [...] “começa” com a aparição dos Gregos [...] “Começo” não quer dizer aquiinício temporal apenas, mas [...], origem ou fonte espiritual, a que sempre, seja qual for o grau de desenvolvimento, se tem de regressar para encontrar orientação. É este o motivo por que, no decurso da nossa história, voltamos constantemente à Grécia. Ora, este retorno à Grécia [...], não significa que lhe tenhamos conferido, pela sua grandeza espiritual, uma autoridade imutável, fixa, independente do nosso destino. O fundamento do nosso 13 regresso reside nas nossas próprias necessidades vitais, por mais variadas que elas sejam através da História. Nesta obra Werner Jaeger faz um estudo profundo sobre os ideais de educação da Grécia antiga, onde se observa a interação entre o processo histórico da formação do homem grego e o processo espiritual através do qual os gregos chegaram a elaborar seu ideal de humanidade. Não por acaso, esta representa um dos marcos da cultura contemporânea. Faz-se importante aqui salientar o aspecto do retorno à Grécia que o autor menciona no trecho acima citado, pois, é justamente este retorno que se almeja fazer neste primeiro capítulo, onde será tratado filosoficamente o tema da Ética, ou ciência do ethos como os “gregos” assim a definiram. O retorno se dá face a mais uma crise que a cultura da Civilização Ocidental cientificizada está inserida, a qual denota proporções nunca antes vivenciadas. No entanto, fora gestada no seio da cultura ocidental por uma série de pensadores (Maquiavel, Marx, Nietzsche, Heidegger, etc.) que se entregaram a um minucioso e pertinaz afã de destruir o monumento intelectual erguido pela civilização do Ocidente. Mais especificamente, destruir os alicerces ontoteológicos desse monumento (Metafísica e Ética), porque sobre estes se edificaram as estruturas da razão teórica e da razão prática. A título de exemplos destas tendências e investidas pode-se citar o positivismo lógico e sua crítica ferrenha aos fundamentos da Metafísica e aos fundamentos da Ética, como também o niilismo – o espectro que rondava a Europa, conforme o discurso nietzscheano – mordaz que tem paralisado mentes e viceja por entre as entranhas da cultura ocidental ocupando espaços nunca antes imaginados. Sem contar com a ênfase dada pelo marxismo/socialismos à “dialética negativa”, onde se parte do pressuposto que, da destruição da sociedade, cultura Ocidental é que se pode vir a construir o mundo melhor possível. A multiplicação das razões de toda ordem, seja as de caráter científico-técnico até as de cunho ideológico-político têm sido acompanhadas por uma atitude generalizada de ceticismo (dialética do negativo) que vem atingindo as razões últimas do ser e da vida – Estas razões iniciaram a civilização do logos e começaram a estabelecer o centro do nosso universo 14 simbólico, como também, a delinear as possíveis direções de nosso caminhar histórico. Tais tendências nos impelem a um retorno às nossas origens, uma vez que se corre o sério risco de atrofiamento da inteligência e, por conseguinte, a perda da consciência que pode devorar por completo a sanidade do universo simbólico e com ele esvai-se a capacidade de compreensão do real. Não por acaso, viveu-se o ápice das ideologias (comunista, nazista, fascista, progressista) em século passado, onde mentes desconectadas do real criaram geometricamente: sociedade, homem e tentaram impor a “ferro e fogo” o utópico “mundo melhor possível”. Todavia, no encontro com a realidade o que se pode observar foi a maior carnificina jamais pensada por qualquer dos piores tiranos de épocas remotas da história da civilização. Somente o regime comunista, de acordo com pesquisas feitas pelo cientista social e historiador R. J. Rummel da Universidade do Havaí e O livro negro do comunismo ceifou mais de 140 milhões de vidas em um século – e ainda continua seduzindo mentes e corações juvenis, assim como, governos e movimentos que procuram em sua essência destruir o ethos ocidental – utilizando-se de aparatos tecnológicos modernos, dos serviços conscientes de homens de ciência, das letras, imprensa, etc.. Enfim, os meios empregados para tais atos bárbaros em nenhum momento se refrearam diante do “ethos tradicional”, da consciência ética, mas ao contrário, vicejavam a constituição de um novo e super-homem, uma nova sociedade destituída dos valores burgueses e judaico-cristãos, um mundo sem Deus e todos os mitos e ignorâncias que até então vigorara. Reveladora desta mentalidade “progressista” e revolucionária é uma das diretivas encaminhada a seus comandados, feita por Latzis, um dos primeiros chefes da Tcheka(a polícia política soviética): “Nós não fazemos uma guerra específica contra pessoas. Nós exterminamos a burguesia enquanto classe. Não procurem, na investigação, documentos e provas do que o acusado fez, em atos ou palavras, contra a autoridade soviética. A primeira questão que vocês devem colocar-lhe é a que classe ele pertence, qual é a sua origem, sua educação, sua instrução, sua profissão.” (LATZIS, citado por COURTOIS em o Livro negro do comunismo. p. 20-21, 1999.) 15 Daí se poder perceber que para esta empreitada dentro da “práxis revolucionária”todos os meios se faziam justos e necessários: “Os comunistas recusam-se a ocultar suas opiniões e suas intenções. Declaram abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados com a derrubada violenta de toda a ordem social até aqui existente...” (MARX, Manifesto do partido comunista. p. 99, 1993.) “Nós não entraremos no reinado do socialismo com luvas brancas e sobre um chão polido” (TROTSKY citado por JONHSON, p. 53, 1994) “O atributo do governo popular na revolução é ao mesmo tempo virtude e terror, virtude sem a qual o terror é fatal, terror sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é do que justiça imediata, severa, inflexível; esta é, assim, uma emanação da virtude” (LÊNIN citado por JONHSON, p. 52, 1994) “Em princípionós nunca renunciamos ao terror e não podemos a ele renunciar” [...] “Perguntaremos ao homem: que posição você toma na revolução? Você é a favor ou é contra? Se ele é contra, nós o colocaremos no paredão” (LÊNIN citado por JONHSON p. 53, 1994) “nós temos que destruir os Kulaks, eliminá-los enquanto classe. Nós temos que quebrar a resistência dessa classe em batalha aberta” (STALIN, citado por JONHSON, p. 227, 1994) “O objetivo de qualquer propaganda séria é o de exercer uma intromissão na liberdade de querer do homem” (HITLER citado por JONHSON p.107, 1994) “Cada comunista precisa entender: o poder político nasce do cano de um revolver!” (Mao Dez Dong). Tais pensamentos e ações denotam uma singularidade da práxis revolucionária e delineiam de forma bastante clara um novo modelo de homem, política, moral, enfim, a construção de um ethos que viceja tornar-se o paradigma de constituição da nova sociedade e que encontra o seu fundamento “epistêmico” em teorias pseudo-filosóficas e pseudo-científicas. Estes são apenas ínfimos pensamentos dentre um quadro mais amplo (pensadores e pensamentos) onde se enquadra a chamada perspectiva revolucionária. É mais que latente no que acima fora citado que, a mentalidade revolucionária, como nos fala o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho (2007), se crê habilitada a remodelar a estrutura do homem e da sociedade por meio da ação política e como “sabedora” do destino da humanidade não hesitará em um só milímetro da sua “vontade de potência de transformação”. 16 Para isso é claro, os velhos conceitos, valores, modelos devem ser alterados e vidas “inevitavelmente extirpadas”, na medida em que inviabilizam um projeto de desenvolvimento da humanidadee, numa política de cálculo geométrico, onde fins justificam meios pior será para certos valores, símbolos e vidas humanas. Já que os mesmos não são encarados como tais, mas sim, como preconceitos, alienação, subespécies, empecilhos à marcha da história e inexorável por vir da autêntica raça, classe e progresso da espécie humana. Diante de tal fenômeno não é difícil perceber que entram em conflito: realidade e visão ideológica de mundo, onde para surpresa de qualquer mentalidade normal3: realidade torna-se um fenômeno a ser modificado, construído segundo os moldes de uma racionalidade puramente lógico-formal. Para o filósofo brasileiro, Mário Ferreira dos Santos (1964), e pensadores como Vaz (1993, 2002), Oliveira (1993) dentro do atual momento em que vivemos pode-se dizer que vigora na cultura do Ocidente um clima intelectual em que, os problemas de forma adquirem uma primazia bastante ampla com relação aos problemas de conteúdo. O que quer dizer que um dos aspectos que preponderam e marcam o mundo hodierno é o da desrealização, ou seja, a perda progressiva da referência ao mundo real. Isso implica diretamente em conseqüências aos paradigmas éticos transmitidos pela tradição já que por um lado, a desrealização se mostra em nossa cultura com um fenômeno bastante marcante, que é a instrumentalização. Então, o predomínio da Metaética pode vir a significar uma instrumentalização da lógica e da linguagem éticas, que se indiferentes à realidade (conteúdo objetivo) passam automaticamente a servir à expressão de um universal relativismo dos valores (necessidades e fins subjetivos, interesses ideológicos). Por outro lado, exprime-se ainda na renúncia à tradição da busca de uma conceituação filosófica na explicação da conduta ética, o que nada mais é que derivar a Ética para a área das ciências humanas e assim querer explicar o fenômeno ético apenas em termos de padrões culturais ou de categorias psicológicas e sociológicas. 3 Que é tal como deve ser. Um sinônimo atenuado de bom e justo. Assim sendo, significa em instâncias pragmáticas, que: uma ordem normal de coisas subordinaria o supérfluo ao necessário. 17 Para a língua filosófica grega, ethike procede do substantivo ethos, o qual receberá por sua vez duas grafias distintas que designam perspectivas diferentes da mesma realidade. Assim, ethos (quando escrito com eta inicial) quer designar o conjunto de costumes normativos da vida de um determinado grupo social; já ethos (quando escrito com épsilon) procura referir-se à constância do comportamento. A Ética enquanto ciência real tem como objeto de investigação o ethos, que se apresenta como um fenômeno histórico e cultural dotado de evidência imediata – daí para Aristóteles ser insensato e até ridículo querer demonstrar a existência do ethos, assim como é ridículo querer demonstrar a existência da physis4. Porque physis e ethos são duas formas primeiras de manifestação do Ser e o ethos não é senão a transcrição da physis na peculiaridade da práxis e das estruturas histórico-sociais que dela advém. Esta evidência se impõe à experiência do indivíduo assim que este alcance a idade da razão. A experiência do ethos revela uma estrutura dual característica e constitutiva, a qual é a de ser uma realidade sócio-histórica, mas que só existe concretamente, na práxis dos indivíduos. Destarte é na observância dessa práxis que se faz possível acessar a realidade própria de um determinado ethoshistórico. Sabe-se que originalmente ethos significa morada do animal, no entanto, humana e moralmente falando (cultura) o ethos enquanto transposição metafórica passa de morada do animal para casa/oikos do ser humano. Há aqui um salto imensurável que translada o mundo da matéria, da física para o mundo simbólico que acolhe o ser humano não mais “puramente” de forma material. Enquanto morada física que proporciona abrigo e segurança, mas sim a casa simbólica, a qual, o acolhe espiritualmente e lhe dá uma nova dimensão para a constituição de sua casa material, pois, agora, repleta de significados (relações afetivas, éticas, estéticas...) que ultrapassam as finalidades meramente utilitárias integrando-as no mundo humano da cultura. Como nos evidencia os escritos helênicos desde Homero, Hesíodo passando pelas tragédias, Sócrates, Platão até Aristóteles, no que diz respeito 4 Ética a Nicômaco VII, 9, 1152 a31 18 à realização do ser humano, ou melhor, sua plena auto-realização. Antes de habitar no oikos da natureza, deve o ente humano morar no seu oikos espiritual (mundo da cultura), o qual é por assim dizer, constitutivamente ético. O mundo enquanto espaço habitável que se constitui de comunidades e sociedades humanas tem no ethos sua condição fundante. Da mesma forma que a casa material precisa ser construída sobre bases sólidas para ter permanência e durabilidade, assim o ethos dos mais diversos grupos humanos revela uma extraordinária capacidade de resistir à usura do tempo e às mudanças advindas das tradições estranhas. Como ser humano algum é dotado da capacidade de reconstruir a sua morada espiritual a cada dia, o ethos enquanto constituição se revela como tradicional, pois, trata-se de um legado que é transmitido de gerações a gerações – o fenômeno do niilismo contemporâneo com sua conseqüente destruição das tradições éticas na sociedade é uma contraprova da tradicionalidade intrínseca do ethos. No entanto, não se deve pensar que por ser tradicional o ethos não esteja aberto a mudanças. Pensar assim é negar a dimensão histórica do ethos e do ente homem; é não perceber que o ethos revela um surpreendente dinamismo de crescimento, adaptação e recriação de valores. Ao longo dos tempos o ethos tem demonstrado não só uma enorme capacidade de adaptação a novas situações como também assimilação de novos valores. Esta é a historicidade própria do ethos, a qual se exprime como necessidade constituída e que Aristóteles comparou à necessidade dada da Natureza. Esta dialética permanência e historicidade que é intrínseca ao ethos e que aparece como forma constitutiva do fenômeno ético, é responsável pela maneira como o ethos se apresenta socialmente, enquanto costume. Ou seja, é a forma com que a vida humana é vivida dentro de certa tradição ética. Desta maneira pode-se ver a evolução do ethos na codificação do costume a partir da constituição de leis assim como, de instituições – como exemplo pode-se citar a passagem do ethos grego arcaico para o ethos clássico: honrar os deuses, honrar pai e mãe, respeitar os estrangeiros, educar 19 os jovens a partir da concepção ideal de arete5, tendo como elemento intrínseco a noção de beleza no sentido normativo da imagem desejada do Ideal, onde tal passagem já anuncia a futura criação da Ética. O ethosintrojetado no indivíduo enquanto hábito/costume torna-se para o mesmo um bem cultural e enquanto tal confere significado humano a todos os outros bens da cultura. É importante destacar aqui que o hábito é uma propriedade fundamental da práxis humana e que, a sua formação provém de repetitivas ações dotadas de qualidade que acabam se transformando em sua segunda natureza. Sendo o hábito uma aquisição do indivíduo enquanto sujeito agente que a utiliza de forma deliberada e consciente (virtude), esta ação é por assim dizer, completamente oposta ao comportamento instintivo ou puramente repetitivo, que é próprio do animal (natureza). Assim, dentro das sociedades tradicionais, a prática de ações virtuosas enquanto açõesexemplares, torna-se uma das maneiras mais eficazes de transmissão do ethos (modelos). Desta forma pode-se perceber que, do mesmo modo que o ethos enquanto costume tem a sua existência (histórica) garantida pela tradição, o ethos enquanto hábito é introjetado no indivíduo de forma eficaz e permanente pela educação. Para as culturas Judaica, Grega e Cristã – culturas basilares na constituição do Ocidente – é fato notório que, na tradição se inscreve a historicidade do costume, na educação a historicidade do hábito. Destarte, entre os dois pólos do ethos e da práxis ética traçam-se as fronteiras do campo ético. 1.2 O “CONHECE-TE A TI MESMO” ENQUANTO FUNDAMENTO DO SABER ETICO. “Uma vida sem exame não vale a pena ser vivida” Sócrates 5 Conforme exposto por Jaeger: “Os gregos entendiam por Arete, sobretudo força, uma capacidade. Às vezes definem-na diretamente. Vigor e saúde são a Arete do corpo; sagacidade e penetração, a Arete do espírito. É difícil conciliar estas concepções com a explicação subjetiva agora usual, que faz derivar a palavra de “agradar” [...] É verdade quearete tem com freqüência o sentido de aceitação social, significando então “respeito”, “prestígio”. Mas isto é secundário e deve-se à grande influência social de todas as valorações do homem nos primeiros tempos. Originariamente a palavra designava um valor objetivo naquele qualificava, uma força que lhe era própria, que constituía a sua perfeição. 20 Com Sócrates a reflexão ou o voltar-se para o sujeito adquire uma nuance de conhecimento direcionado para o recesso interior, singular e intransferível do agente ético. O que implica em dizer que este sujeito (portador do hábito e também agente) agora está inserido numa forma de relação de responsabilidade para com a realização do ethos. Nessa relação especificada pela responsabilidade, se faz necessário então o agir sob a “justa medida”, o “justo meio” a fim de não incorrer nos excessos tão naturais quando se age por força dos impulsos ou por ignorância. Talvez não seja um equívoco dizer que é justamente aí que se tem origem a noção de consciência moral. Entretanto, diante dessa consciência moral vem a pergunta: o que convém? O que devo fazer? Pergunta esta que em Sócrates passa por uma compreensão primeira da essência do ser Homem, uma vez que todas as coisas que existem tendem a um fim, uma finalidade e no ser do ente homem isto se faz mais complexo, pois, o mesmo não está dado, feito é um ente por se fazer. Para tal, tem o mesmo o privilégio de possuir o logos e através deste, o dever constitutivo de des-velar a realidade, compreender os seus aspectos e por meio da luz da razão guiar a sua vida tanto em esfera particular como pública6. Para Sócrates o homem é a sua alma7, na medida em que é a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. A este respeito nos fala Giovanni Realeem sua História da Filosofia - Vol. I (1990, p. 88), acerca de um dos raciocínios fundamentais feitos por Sócrates para dizer o que é o homem, Uma coisa é o “instrumento“ que se usa e outra é o “sujeito” que usa o instrumento. Ora, o homem usa o seu próprio corpo como um instrumento, o que significa que o sujeito, que é o homem, e o instrumento, que é o corpo, são coisas distintas. Assim, à pergunta “o que é o homem?”, não se pode responder que é o seu corpo, mas sim que é “aquilo que se serve do corpo”. Mas “o que se serve do corpo é a psyché, a alma (= inteligência)”, de modo que a conclusão é inevitável: ”A alma nos ordena conhecer aquele que nos adverte: conhece-te a ti mesmo.” 6 Cf. os diálogos platônicos em especial, a obra: República. 7 Para Sócrates a alma é a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante. 21 O modo de atuar de Sócrates era bastante peculiar e por si só revelador. Isto se faz evidenciar na seguinte passagem da obra platônica, Apologia de Sócrates(PLATÃO, 1979, p. 26-27): Enquanto viver, não deixarei jamais de filosofar, de vos exortar a vós e de instruir quem quer que eu encontre, dizendo-lhe à minha maneira habitual: querido amigo, és um ateniense, um cidadão da maior e mais famosa cidade do mundo, pela sua sabedoria e pelo seu poder; e não te envergonhas de velar pela tua fortuna e pelo seu aumento constante, pelo teu prestígio e pela tua honra, sem em contrapartida te preocupares em nada com conheceres o bem e a verdade e com tornares a tua alma o melhor possível? E, se algum de vós duvidar disto e asseverar que com tal se preocupa, não o deixarei em paz nem seguirei tranquilamente o meu caminho, mas interrogá-lo-ei, examiná-lo-ei e refutá-lo-ei; e se me parecer que não tem qualquer Arete, mas que apenas a aparenta, invectivá-lo-ei, dizendo-lhe que sente o menor respeito pelo que há de mais respeitável e o respeito mais profundo pelo que menos respeito merece. E farei isto com os jovens e com os anciãos, com todos os que encontrar, com os de fora e com os de dentro; mas sobretudo com os homens desta cidade, pois são por origem os mais próximos de mim. Pois ficai sabendo que deus assim mo ordenou, e julgo que até agora não houve na nossa cidade nenhum bem maior para vós do que este serviço que presto a Deus. É que todos os meus passos se reduzem a andar por aí, persuadindo novos e velhos a não se preocuparem nem tanto nem em primeiro lugar com o seu corpo e com a sua fortuna, mas com a perfeição da sua alma. Aqui se está diante de um momento singular e original da forma como Sócrates filosofa, como o mesmo entende o papel da filosofia e do filósofo, como o mesmo analisa dialeticamente o homem, sua existência e a constituição do seu ser, ou, vir a ser do humano no ente homem (essência). De pronto o que se evidencia é que não estamos diante de um teórico, de um acadêmico, nem tampouco de um homem de retórica, mas de um homem maduro (spoudaios) que tem a plena consciência do que seja o conhecimento na vida dos indivíduos, da sociedade e, do seu papel frente aos concidadãos e demais homens. Assim como, perante a pólis e acima de tudo ao deus que o exortou para tal atividade. Torna-se perceptível que o homem não é visto apenas como entidade material, física, como um ser histórico e culturalmente datado, por isso mesmo, há a repreensão/exortação com relação à preocupação indevida com os bens materiais deixando de lado e até esquecendo-se de preocupação mais nobre e necessária, a qual é a sua alma. 22 Como um médico da civilização, o filósofo exorta os seus concidadãos à necessidade de cuidar da alma8, daquilo que ele entende como mais precioso no humano e que não é o seu corpo, mas sim o seu interior. Segundo Jaeger (1995), Sócrates define de forma mais concreta o cuidar da alma como um cuidado através do conhecimento do valor e da verdade (phronesis e aletheia). O mundo interior, a arete de que nos fala Sócrates é um valor espiritual. Destarte, servir a alma é servir a deus, porque ela é espírito pensante e razão moral, e estes são os bens supremos do mundo. Destarte, torna-se importante saber que, Em Sócrates, aquelas expressões de aparência religiosa brotam da analogia entre a sua atuação e a do médico. É isto que dá ao seu conceito de alma o cunho especificamente grego. Dois fatores confluem na representação socrática do mundo interior como parte da “natureza” do Homem: o hábito multissecular do pensamento e os dotes mais íntimos do espírito helênico. [...] A alma de que Sócrates fala só pode ser compreendida com o acerto se é concebida em conjunto com o corpo, mas ambos como dois aspectos distintosda natureza humana. (JAEGER, p. 534, 1995) O pensamento Socrático não separa, nem tampouco opõe o psíquico ao físico, pois, ambos, corpo e alma fazem parte do cosmo. Elucidativa, portanto, é a frase mens sana in corpore sano(mente sã em corpo são) para designar de forma correta o sentido do que fora acima exposto, uma vez que o próprio Sócrates não descuidava do corpo e ensinava aos amigos a manterem o corpo são por meio do endurecimento e alimentação apropriada. Se faz mister informar que para a cultura helênica a arete deve ser analisada através de uma analogia entre o corpo e a alma. Isto se evidencia por meio dos escritos, quando se observa que quase sempre as virtudes (aretai) da pólis grega estão associadas à bravura, ponderação, força interior, justiça, etc. (virtudes da alma). Os gregos falavam de virtude dos vários instrumentos, por exemplo: a “virtude” da faca, a qual seria cortar, a da cítara, que seria tocar, a do cão que seria ser um bom guardião, etc. Assim a virtude do homem deve ser pensada a 8 Segundo Jaeger, a expressão “cuidar da alma” tem para nós um sentido especificamente cristão, porque se converteu em parte integrante desta religião. Isto se explica pelo fato de a concepção cristã coincidir com a socrática na idéia da Paidéia como o verdadeiro serviço de Deus e do cuidado da alma como verdadeira Paidéia. 23 partir daquilo que venha a fazer a sua alma ser de acordo com o que a sua natureza determina. Ou seja, boa e perfeita. Daí Sócrates dizer que é a ciência (conhecimento) este elemento e o seu contrário, o vício (ignorância) seria a privação de ciência. Deste modo é que vê Sócrates operar uma reviravolta no quadro dos valores até então em voga na cultura helênica. Uma vez que os “valores” se tornam valores (virtudes) na medida em que são usados como o conhecimento exige (em função da alma e da virtude). Daí então se poder falar que: status, riqueza, poder, beleza entre outros, não são valores em si, pois, valores ligados a coisas externas e, se utilizados de forma ignorante podem levar o indivíduo ou a sociedade a grandes males. Ao passo que os valores da alma governados pelo juízo e pela ciência, podem trazer benefícios para a vida humana. Conclui-se assim que para Sócrates, em si mesmos, nem uns nem outros (dos valores citados) têm valor. E conforme nos diz Werner Jaeger em sua Paidéia (1995, p. 535): A virtude física e a virtude espiritual não são, pela sua essência cósmica, mais do que a “simetria das partes” em cuja cooperação corpo e alma assentam. É a partir daqui que o conceito socrático do “bom”, o mais intraduzível e o mais exposto a equívocos de todos os seus conceitos, se diferencia do conceito análogo na ética moderna. Será mais inteligível para nós o seu sentido grego se em vez de dizermos “o bom” dissermos “o bem”, acepção que engloba simultaneamente a sua relação com quem o possui e com aquele para quem é bom. Para Sócrates, “o bom” é, sem dúvida, também aquilo que se faz ou quer fazer por causa de si próprio, mas ao mesmo tempo Sócrates reconhece nele o verdadeiramente útil, o salutar, e também, portanto, o que dá prazer e felicidade, uma vez que é ele que leva a natureza do Homem à realização do seu ser. Desta passagem se faz salutar extrair o elemento ético como caracterizador da natureza humana. Ou seja, ser dotado de razão é implicitamente ser convocado a contemplar o seu ser como uma simetria entre corpo e alma, uma ordem, um cosmion(um todo ordenado). Esta existência dotada de razão e assumida responsivamente enquanto tal é que torna possível o ethos. Para Sócrates, a formação da alma neste ethos é precisamente o caminho natural do homem, o caminho possibilitador da sua eudaimonia. Segundo o pensamento do filósofo grego, para o homem encontrar a harmonia 24 com o seu ser, é necessário que o mesmo siga a lei por ele des-velada através do exame da sua alma. Pois, a verdade uma vez des-coberta não pode voltar a ser velada ou pelo menos, não deveria. Tem-se aqui um princípio que se mostra de importância fundamental para a constituição da vida humana: verdade des-coberta é verdade que deve ser seguida. E no que tange ao ethos tem uma implicação de instância moral, visto que, não se pode brincar com experimentos, excentricidades, etc. quando a matéria “em jogo”, a ser “utilizada” é a vida humana. Infelizmente, tal princípio é encoberto e destituído de valor para o ethoscontemporâneo (revolucionário). Em Sócrates, nos diz Jaeger, a experiência enquanto fonte dos valores humanos mais supremos deu existência àquele jeito de interioridade, característico dos últimos tempos da Antiguidade. E presenciamos assim o fenômeno, o qual é o de, a virtude e a felicidade deslocarem-se para a interioridade do homem. Através deste apelo do filósofo para o cuidado da alma, têm-se uma nova guinada com relação à forma do homem compreender e viver a vida. Porque a partir de agora a vida não é meramente um existir temporal, uma presa dos destinos, uma lástima dos sobreviventes e capricho dos deuses! Isso se torna evidente na vida e morte do próprio Sócrates, enquanto ente que paga cônscia e deliberadamente o preço por buscar viver uma existência que almeja a autenticidade e singularidade. Mesmo que o seu entorno não tenha esta compreensão; que a coletividade não tenha ainda alcançado este patamar de consciência. Pois diferente do que propagam os socialista, a realidade não é apreendida pela coletividade, mas sim, por individualidades concretas que compõem a vida social. Não é por menos que em Apologia de Sócrates(1979), o filósofo declara que “uma vida sem exame não vale a pena ser vivida”. Está aqui mais uma singularidade apontada pela sua filosofia, a qual é a do pensar-agir. Ou seja, em Sócrates a vida é sempre existência em meio aos fenômenos, aos conflitos, à escolha diante dos opostos. Enfim, entre se ganhar ou se perder no meio de um emaranhado de símbolos e modelos sedutores, os quais podem levar os homens de um lado para o outro ao sabor dos modismos culturais de cada época e que são marca registrada e elemento denotador destes tempos hodiernos. 25 A existência enquanto busca de vida singular e autêntica exige de cada ente humano uma escolha que inevitavelmente deve passar pelo conhecimento, portanto, uma escolha deliberada por se apropriar literalmente do ser do ente homem. O que implica uma vivência ética. Desta maneira, a vida humana é por essência uma vida ética. Não obstante ser o ente homem dotado de razão, esta não lhe é tão natural como os frutos numa arvore, ou como a defesa de uma galinha aos seus filhotes, frente ao perigo iminente do ataque de uma águia. No homem, este logos precisa ser trabalhado, desenvolvido. Então, mais uma vez se é levado a encontrar com esta figura paradigmática chamada Sócrates, pois o foco central agora paira sobre a Paidéia e o filósofo se vê dialeticamente em meio a discussões travadas com os sofistas, não por menos, o ético retorna enquanto elemento preponderante, uma vez que os Sofistas, por meio de seus ensinamentos o deslocam. Já que os mesmos acirram a dúvida quanto à possibilidade da educação triunfar. Inevitavelmente se há de deparar com os seguintes questionamentos: por que se deve estudar? Até onde se deve estudar? Para que serve o estudo? Qual o objetivo da vida humana? Com estas perguntas, não se busca denotar aqui um aspecto contingencial de uma época, aquela vivida pelo indivíduo/cidadão Sócrates, mas sim, fazer vir à nossa reflexão a singularidade constitutiva do fenômeno da educação na formaçãodo ser deste entecontemplador chamado homem. Assunto este bastante atual e ainda problemático dentro de nossa cultura. Todavia, educação aqui não deve ser pensada como mera instrumentalização para alcance do poder político, ou como é corrente em nossa cultura, a formação de especialistas para o mercado de trabalho – criando assim uma nova classe que muitas vezes se torna subutilizada e obsoleta, não ocupando os cargos para que fora “treinada”, pois o mercado não necessita da quantidade de mão de obra oferecida. Sem falar é claro, da qualidade questionada de boa parte desta mão-de-obra, fruto de interesses escusos, mesquinhos e, muitas vezes hipócritas (econômicos, políticos, ideológicos). Nem tampouco, se identifica com as atividades que exigem menos da capacidade intelectiva, e, diga-se de passagem, é justamente do seio desta 26 nova classe de “intelectuais” que se tem gestado muitos dos pensamentos niilistas, revolucionários, progressistas, etc.. São de extrema importância a este respeito, obras como: A traição dos intelectuais, de JulienBenda; A vida intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos, de Antonin- DalmaceSertillanges, A rebelião das massas, Ortega y Gasset. Em Sócrates, é claro que o ideal político tão evidenciado nos sofistas, também está presente, não obstante, é com ele que a educação terá um sentido mais profundo, na medida em que procura reestruturar a conexão da cultura espiritual com a cultura moral (Paidéia). É desta forma que Sócrates inaugura um novo modo de pensar e agir do ser humano ao buscar na personalidade, no caráter moral a essência fundante tanto da existência humana como da vida em sociedade. A este respeito nos diz Jaeger (1995, p. 546-547): [...] toda educação deve ser política. Tem necessariamente de educar para uma de duas coisas: para governar ou para ser governado. [...] O homem que é educado para governar tem de aprender a antepor o cumprimento dos deveres mais prementes à satisfação das necessidades físicas. Tem de se sobrepor à fome e à sede. Tem de se acostumar a dormir pouco, a deitar-se tarde e a levantar cedo. Nenhum trabalho deve assustar, por árduo que seja. Não se deve deixar extrair pelo engodo dos prazeres dos sentidos. Tem de se endurecer para o frio e para o calor. Não deve preocupar- se, se tiver de acampar a céu aberto. Quem não é capaz de tudo isto fica condenado a figurar entre as massas governadas. Dentro do ideal de educação socrático, rico em símbolos e dado a muitas interpretações, o que nos interessa especificamente é extrair um conceito de enorme importância para a cultura ética Ocidental, o qual é o de autodomínio (enkratéia). Fazendo-se assim perceber que a conduta moral deve brotar do mais íntimo de cada indivíduo, ou seja, o autodomínio enquanto virtude basilar para a formação ética do indivíduo representa a emancipação racional para com as seduções e os desregramentos da sua natureza animal. O autodomínio representa na vida de Sócrates a virtude humana de dominar a tirania dos instintos pelo poder do espírito. E aqui se deve notar que o Filósofo toca em um problema central, porque, uma vez que o homem se torna vulnerável aos seus desejos e presa dos seus instintos, não se pode falar em um indivíduo livre nem tampouco em um cidadão ético (ações eticamente 27 livres). O que denotará, por conseguinte, no plano das suas ações em atitudes moralmente imaturas. Portanto, educar para Sócrates é muito mais que simplesmente domesticar, forjar habilidades e competências, “formar para a cidadania”, seguir alienadamente a cultura do entorno sem ter uma real dimensão do que seja o ente homem. Visto que, o homem nunca deverá ser tomado como meio, mesmo se compreendermos que a sua formação está intimamente ligada com o ethospreponderante; que a formação do homem enquanto cidadão é sempre voltada para o exercício de servir a pólis, do engrandecimento da cidade, de suas leis e de seus cidadãos. No entanto, este cidadão é antes e inalienavelmente um sujeito ético e como tal, não deve se conduzir com relação às leis, normas, tradição enquanto um indivíduo submisso. Mas sim, de acordo com uma conduta moral que brota do seu interior, que denota a maturidade (autodomínio) de um sujeito ético, a qual se expressa como uma ação consciente e deliberada, portanto, livre. A essência da verdadeira Educação humana deve estar num conjunto de saberes (virtudes) que ao longo da existência viabilize ao ser humano as condições necessárias para alcançar o fim autêntico de sua vida. – Segundo Jaeger (1995), em Sócrates é identificada com a aspiração ao conhecimento do bem, com a phronesis. – Em outras palavras, a Paidéia deve converter-se na aspiração a uma ordenança filosófica consciente da vida, a qual se propõe cumprir o destino espiritual e moral do homem. A continuação desta Paidéia, ou melhor, a sua explicitação por meio de símbolos clarificantes estará mais bem denotada nos diálogos de Platão e mais especificamente a sua alegoria da caverna. 1.3 A ETICIDADE COMO DIMENSÃO ONTOLÓGICA DO SER DO ENTE HOMEM. “O homem pode converter-se no mais divino dos animais, sempre que se o eduque corretamente; converte-se na criatura mais selvagem de todas as criaturas que habitam a terra, em caso de ser mal-educado.”Platão Em Platão, aquele que representa memorável e magistralmente os ensinamentos de Sócrates ver-se-á o prolongamento do ensino e estudo ético- 28 socrático. Isto, sobretudo, pode ser observado nos primeiros Diálogos de Platão (Diálogos Socráticos), onde duas características importantes nos são apresentadas: uma de ordem metodológica aonde Sócrates por meio da inquisição (zetesis) vai avançando entre perguntas e respostas, tendo por objetivo chegar a uma definição. No entanto, sempre atento às aporias, conflitos e armadilhas do discurso que toda discussão faz surgir. A outra de ordem temática, que revela a originalidade do ensinamento de Sócrates, onde se verá o Filósofo transitar por entre os temas do homem interior (psychê), da verdadeira sabedoria (sophrosyne) e a virtude (arete). Tais temas representam uma mudança e uma revolução no campo do saber filosófico e do conhecimento acerca do ser do homem, em um primeiro momento, na cultura grega e posteriormente, em toda a cultura da Civilização Ocidental. Com Sócrates então será dada a mudança de paradigma quanto ao objeto de conhecimento: da natureza (physis) para o homem (antropos) e o necessário aprofundamento no estudo de tal objeto, onde por meio das interpelações aos cidadãos atenienses se pode perceber um itinerário que visa mostrar aos mesmos o verdadeiro valor do ser deste ente homem. Segundo Sócrates este valor reside no único bem inatingível pela instabilidade e inconstância da fortuna, incerteza do futuro, precariedade do sucesso e todas as vicissitudes da existência, o qual é o bem da alma. Isto nos é revelado em diálogos como: Apologia de Sócrates, Críton, Primeiro Alcebíades, etc. O início do pensamento filosófico de Platão está marcado pela morte de seu mestre, por tal motivo, estas reflexões têm um forte teor ético-político. Com Platão tem-se o desdobrar do ensinamento ético de Sócrates. Em primeiro ponto há a retransmissão dos ensinamentos do sábio ateniense e, só por isso já é possível dizer que nós nos encontramos frente à sua filosofia como grandes devedores. No entanto, há ainda o gênio de Platão que eleva a herança dos ensinamentos socráticos a uma altitude especulativa não imaginada pelo seu mestre. É sabido que Platão não escreveu nenhum Diálogo específico sobre a temática ética, assim como,esta só ganhou contornos de disciplina “sistematizada” com Aristóteles. Todavia, não se pode deixar de observar que 29 os temas éticos são uma constante nos Diálogos (socráticos e da maturidade) escritos por Platão. Até porque Sócrates (a questão socrática) é sempre retomado em sua filosofia. Isto se faz evidente no prólogo à sua obra magna A República, onde Sócrates em diálogo com Trasímaco explicita que a vida autêntica do homem (como deve o homem viver) perpassa pela investigação do logos. A idéia central do pensamento ético platônico é a de ordem (taxis). Para Platão é ela que permite a unificação, da Ética, da Política e da Cosmologia, assegurando a mediania da arete entre o indivíduo e a pólis e guiando, desta forma, o Demiurgo na construção de um Kosmos harmonioso. Tudo isso é claro, sob o domínio da Teoria das Idéias, a qual faz interagir a significância de natureza ética com a de matiz metafísica. Com a idéia de ordem enquanto proporção Platão procura exprimir uma analogia, que é capaz de unir elementos e seres diversos, como, entre a alma humana e a pólis, entre a alma e o mundo. Deste modo ver-se-á surgir com Platão o primeiro grande modelo ético da história. A questão do ethose da práxis transposta ao plano do logos (filosófico), apresenta-se como solidária a uma concepção da realidade total, solidariedade esta que poderíamos denominar como sendo entre o Bem e o Ser. Todas as categorias éticas: do saber ético grego (sabedoria, virtude, lei, justiça) e socráticas (alma, virtude-ciência) serão retrabalhadas na filosofia platônica dentro da perspectiva metafísica da ordem. O que se intenciona fazer a seguir é tomar a Alegoria da caverna como um momento significativo deste pensamento ético-metafísico, onde se pode observar o pressuposto socrático da unidade entre arete e logos, assim como, a questão da conciliação entre liberdade e necessidade. Talvez não seja um absurdo enunciar que a alegoria ou mito da caverna, a qual se encontra no centro (livro VII) da obra magna A República, de Platão, seja uma das mais famosas passagens da literatura filosófica; assim como, uma das mais lidas, citadas e discutidas. Esta é uma das muitas alegorias utilizadas por Platão para expor acerca da condição humana, diga-se de passagem, com uma amplitude e riqueza interpretativa extraordinária. 30 Esta alegoria será exposta aqui de forma esquemática e sintética, para isso, a mesma será dividida em quatro momentos, os quais são: 1º - A caverna É sabido que esta alegoria conta acerca de um homem, que estava preso numa caverna com outros iguais. Eles estavam acorrentados desde a infância (corpo e cabeça imobilizados) e tudo que viam, ouviam e “sabiam” lhes era mostrado por meio das sombras dos objetos projetadas na parede e iluminadas pela fogueira e dos ecos das vozes que advinham de fora da caverna... Por mais estranhos que esses homens possam nos parecer é de nós, do nosso mundo e da nossa condição de seres humanos que a alegoria está a tratar. Um mundo artificial, aparente, verossímil feito de realidades efêmeras que desconhecemos, mas que, no entanto nos são caras, pois vive-mo-la de forma aprazível desde a mais tenra idade (a nossa ilusão é total) como se esta fosse a nossa mais pura realidade. E habituados estamos de receber tudo do exterior a ponto de vivermos dos simulacros das imagens e dos discursos a mercê das opiniões reinantes. Porque não temos condições de fazer os devidos julgamentos e assim nos contentamos com os boatos, com o ouvir dizer, com os pré-conceitos e todos os lugares comuns que preponderam numa sociedade que fabrica pessoas, funcionários, artistas, políticos, heróis, belezas, etc.; que produzem realidades como se produzem objetos nas linhas de produção das modernas e eficientes indústrias. Então, presas do condicionamento, da intoxicação mental, das ideologias, estes homens se encontram duplamente acorrentados: em um primeiro plano, pois são vítimas! Em segundo, por que ignoram a condição de vítimas a qual estão condicionadas as suas existências. Sendo assim, se encontram em situação pior do que os incapacitados de visão uma vez que têm olhos, mas, não enxergam. 2º - A conversão E “Se alguém soltasse um desses prisioneiros”? A continuação da alegoria irá transcorrer sobre a égide deste novo momento, etapa e mistério na 31 vida do ser humano! Não obstante há de se perguntar: que força, que ser empreende tal ato? É um deus? Um homem? Uma força interior? Não se sabe bem ao certo, no entanto, “esse ...” seguirá de perto o homem cativo até o fim, convidando o mesmo a transcender a sua condição de prisioneiro. Mas como é possível sair da caverna? Como negar todo um conjunto de fatos, símbolos, costumes, etc.? A saída da prisão significa uma conversão (periagogê), ou seja, uma mudança radical de rumo, uma renúncia ao mundo anteriormente tomado como real e vivenciado diuturnamente. Portanto, sair da caverna, converter-se significa passar por um processo árduo e doloroso de modificação e ascese! Isto implica esforço, incompreensão, ofuscamento, sofrimento, abandono, críticas, revolta, nostalgia, fraquezas, etc.; reaprender a ver, escutar, sentir; esforçar-se para aprender, elaborar os próprios pensamentos, refletir, julgar. Enfim, todo o processo de educação (reeducação) se faz imensamente doloroso, pois uma ruptura com um mundo anteriormente vivido e o iniciar de uma nova etapa desconhecida e imensamente amedrontadora! 3º - A ascensão (anabasis) Ultrapassando o mundo dos objetos sensíveis – agora devidamente reconhecidos e identificados – deve o antigo prisioneiro seguir o caminho íngreme (encosta abrupta e árdua) que leva em direção ao Sol. Mas não se deve deixar enganar que esta etapa é mais fácil e prazerosa, porque iluminada! Mesmo que o indivíduo já demonstre nesta altura da empreitada ter vontade de mudar, de conhecer verdadeiramente a realidade das coisas existentes, tudo leva a crer que o caminho ainda é duro, difícil uma vez que não basta se desvencilhar das antigas impressões, opiniões, se faz necessário neste momento ir a busca da verdade, aquela que é capaz de livrar o homem do caminho enganoso e sedutor que é o das ideologias. Mas para isto é necessário aprender, se faz preciso o rigor da disciplina, a preparação da alma (caráter/personalidade) a fim de que possa receber e conduzir devidamente os conhecimentos da realidade. É necessário então aprender as ciências, as ciências abstratas que segundo Platão têm a virtude formadora (propedêuticas) de habituar os espíritos a manejarem com as abstrações e preparam-no para a abstração 32 suprema, a qual é a da capacitação para apreender as essências (Idéias), o mundo das verdades. 4º - O retorno Até onde pode levar o caminho íngreme? O que significa o topo, este lugar mais alto? Quais as implicações deste novo saber? Neste ponto a filosofia e a existência humana se equivalem na medida em que assim como o filósofo sabe que não é possuidor da sabedoria, mas que necessita dela para se guiar; assim também é o homem na sua condição de ente que não está feito, acabado, mas que precisa se fazer durante a sua existência e o mais importante, não é qualquer espécie de vida que leva o homem ao caminho de sua humanidade integral. E Platão de forma magistral nos mostra que aquele que era afeiçoado à opinião (o filodoxo) na caverna, se tornou um amante da sabedoria (o filósofo). Mas não nos deixemos enganar achando que o amor é uma zona de segurança e conforto, porque este é tensão, vontade e busca. Assim, afilosofia é a busca incessante pela verdade, nunca descanso ou repouso nela, mesmo que nos pareça merecido este descanso depois de tamanha atividade, trabalho árduo de ascensão. E assim é a vida humana em seu processo ininterrupto de auto- constituição seja na ordem privada ou na vida pública. E é exatamente nesta dimensão da práxis humana que o elemento ético-político se faz necessário na constituição do ser da realidade do mundo humano (equivalência e harmonia entre o Bem e o Ser). Sendo assim, uma vez o antigo prisioneiro tendo chegado “lá no alto”; no cume de seu esforço e no mais sublime do conhecimento da realidade, não lhe é permitido se deter no momento, uma vez que o seu ser é um constante devir, um vir a ser, um dever-ser! Ele não deve se instalar na quietude dos conhecimentos adquiridos ou das verdades encontradas. A vida humana não é um fim em si mesmo, tanto no sentido biológico, como no sentido histórico-cultural de sua existência. Existir para o homem também implica em estar com outros, estar no mundo; se fazer com outros, se fazer no mundo. 33 E acima de tudo isso, nos diz Platão ter a capacidade de dar o salto no Ser e compreender a realidade em sua totalidade e no retorno inevitável agir de acordo com os princípios eternos, pois, verdade conhecida é verdade que deve ser vivida. Eis aí toda a solidariedade entre Ser e Bem; entre a totalidade da realidade e a singularidade da realidade do ente homem dentro da totalidade do Ser! Ao filósofo cabe agora o retorno ao mundo e aos prisioneiros da caverna. Pois, são muitos os homens que vivem rebaixados na condição da ignorância, da ilusão, da mentira e das ideologias. O seu esforço e o seu árduo trabalho de subida e des-coberta da realidade não lhe serão tomados, até porque não é possível retirar daquele que sabe o seu saber. Todavia, o seu conhecimento não lhe pertence como um objeto, ele é condição essencial para a constituição da humanidade no homem e, aquele que consegue alcançá-lo tem por dever repassá-lo aos demais. Esta é a dimensão ético-política do conhecimento, uma vez detentor do conhecimento não lhe é permitido o direito de conservar tal bem como propriedade única e exclusivamente sua. Este saber constitui um bem e uma dimensão ontológica do ser do ente homem. Portanto, precisa ser partilhada e difundida por entre os demais entes humanos (antigos companheiros da caverna), para que os mesmos possam ser libertos e quiçá alcancem por meio da práxis o devido nível de autarquia necessário para constituir uma autêntica comunidade dos homens livres. A vida humana necessita desta forma da compreensão da verdade para se constituir plenamente, no entanto, o homem não é um ser puramente animal, o qual já está de antemão dado e circunscrito na esfera de suas leis causais. Ele é o ente privilegiado para quem a existência autêntica é uma conquista e a possibilidade de se derruir é de sua total responsabilidade, uma vez que o mesmo é um ser racional dotado de inteligência, vontade, da capacidade de agir e de fazer história. O homem é o ser para quem o conhecimento é um valor, e mais! Como nos diz Louis Lavelle: “O ato pelo qual o eu assume o seu ser próprio é que funda o valor de si mesmo. E, concomitantemente, de todos os objetos a que se aplica, de todos os fins que se propõe” (LAVELLE, apud REALE, 2007, p. 205). 34 O retorno enquanto uma etapa na constituição do ser deste ente (antigo prisioneiro) é um dever, mas é também uma árdua e perigosa tarefa, pois, o mundo da caverna está constituído sob a égide da aparência e da ignorância onde prepondera de um lado cegueira, inabilidade, etc. de outro sarcasmo, ódio, desejos e ameaças de morte ao outro! Não devemos nos esquecer da morte de Sócrates pelos seus concidadãos, aqueles para quem o discurso pautado fora da realidade circundante (cultural/politicamente correto) deveria ser execrado e punido com a pena de morte. Sócrates representava para tais “concidadãos” um perigo e um peso, pois trazia para a consciência dos mesmos tudo aquilo que era farsa, burla, representação; execrável na constituição do homem. Assim como o caso Sócrates, outros foram perpetrados na história tendo homens sendo perseguidos, torturados e aniquilados pela ignorância, prepotência, arrogância e presunção insolente daqueles que nada querem saber, mas desejam ardentemente o poder em suas mais variadas formas e escalas. E inequivocamente, por meio desta desmesura, ignorância e desvio do ser é que a humanidade do homem pode vir a ser rebaixada à mais vil das esferas, a qual é a da bestialidade não perceptível em qualquer outro ente, no entanto, vastamente vislumbrada na espécie humana, quando resolve agir pura e simplesmente por uma das esferas do seu ser9 Na alegoria Platão trabalha de forma sintética e densa a simbolização metafísica, gnosiológica, dialética e ética da realidade, uma vez que traduz os diversos graus em que ontologicamente se divide a realidade (objetos sensíveis: as sombras da caverna... e supra-sensíveis: o Sol a idéia do Bem); os graus do conhecimento (as sombras e estátuas representam imaginação e crenças, os objetos verdadeiros e o sol que representam a dialética em seus vários graus e a intelecção pura); e o necessário retorno à caverna, onde a luz do Sol, conhecimento supremo, supremo Bem precisa ser posto em evidência para os demais companheiros antigos da caverna a fim de que os mesmos possam sair da condição indigna e desumana, a qual é a de escravos da 9 Conferir a razão instrumental e o desejo de potência inerente ao tecnicismo, à tecnocracia, aos regimes socialistas: nazismo e comunismo. E toda a sua vasta conseqüência nas diversas áreas da vida e cultura humana. 35 aparência e ignorância e assim, utilizem de forma autárquica a liberdade que lhes é inerente e necessária para a constituição do seu ser. Nesta alegoria, Platão como um autêntico filósofo e discípulo de Sócrates procura levar o leitor não somente ao drama da história, à participação do diálogo; muito mais, ele nos obriga a responder. É o nosso próprio drama existencial que está em jogo, por isso ele nos convida a compreender como funciona a razão e como a consciência liberta. De suas descobertas do reino do Ser ele nos convida a “experiênciá- las”, a tentar vivenciá-las e juntamente com outros homens que des-cobrem por meio de uma autêntica Paidéia chegar à iluminada libertação. Faz-se mister aqui salientar para melhor entender, que a filosofia em suas origens tem uma amplitude e dimensão que é ignorada e negligenciada a partir do ethos moderno, o qual a toma com muita freqüência, como se fosse um jogo intelectual destituído de entusiasmo, energia, onde o logos se reduz à mera especulação de ordem lógica. E daí ver-se surgir sistemas ideológicos gnósticos que são manipulados por vidas esquizofrênicas que são incapazes de compreender e aceitar a realidade, não obstante, e por este motivo, se mostram capazes de perpetrar assassinatos e mortandades à grande parcela da humanidade. Falta a muitos modernos a compreensão de que em sua filosofia, Platão tenta de forma magistral dar consistência e vida àquilo que ocorre na existência concreta humana. E como nos diz Eric Voegelin (2009, p. 13), a tensão no pensamento de Platão refletia a tensão de sua participação na metaxy, ou na mistura, da vida humana. [...] como a revelação, a filosofia “é mais do que um aumento de conhecimento da ordem do ser; é uma mudança na própria ordem”. A filosofia para Platão é muito mais que uma verdade sobre o Ser; elaé a verdade do Ser proclamada pelo homem que sabe. No meio da especulação o filósofo reproduz o próprio ser. Assim como Parmênides anteriormente havia demonstrado que a filosofia é uma encarnação da verdade do Ser. E Platão enquanto discípulo de Sócrates (que vivencia o assassinato judicial de seu mestre), procura denotar a filosofia como uma atividade e conhecimento que está em oposição e, porque não dizer, resistência contra a 36 desordem que abarca a sociedade ateniense. Daí a sua filosofia enquanto um esforço para restaurar a ordem da civilização helênica por meio do amor à sabedoria. Em A república a filosofia ou o amor à sabedoria, não é representada como uma doutrina da ordem reta (abstração/sistema), mas sim, como a luz da sabedoria que incide sobre a luta da alma com as forças existenciais que a puxariam para baixo, na direção do pólo da morte espiritual. Sendo assim, deve-se compreender que a filosofia não é uma “informação” sobre a verdade, mas o esforço árduo para localizar as forças do mal e identificar a sua natureza. Como o filósofo não existe em um vazio social, mas sim, em oposição ao filódoxo (sofista). A filosofia deve ser percebida não como uma abstração, mas enquanto algo concreto vivência e experiência que não se deixa arrastar pela multidão de sentidos, das aparências. Então para o Filósofo a justiça não é definida no abstrato, mas em oposição às formas concretas que a injustiça assume. A ordem reta da pólis não é apresentada como um “estado ideal”, mas os elementos da ordem reta são desenvolvidos em oposição concreta aos elementos da desordem na sociedade circundante. A filosofia de Platão não pode ser devidamente entendida se não tivermos a compreensão de que a linguagem utilizada pelo filósofo era explicitadora da realidade enquanto sua dimensão dialética (conflito de opostos). Daí então se ver o sentido real da filosofia em contraposição à filodoxia. O filósofo é chamado à existência, pois são abundantes os filódoxos, os amantes de opinião. É assim que o cientista político é o filósofo em forma existencial porque é o homem que resiste ao sofista e que, portanto, pode evocar um paradigma de ordem social reta à imagem de sua alma bem ordenada, em oposição à desordem da sociedade que reflete a desordem da alma do sofista. Com isso se pode compreender o sentido mais estrito em que o teórico (filósofo-cientista político) apresenta proposições (provisórias) referentes à ordem reta na alma e na sociedade. Afirmando para elas a objetividade da episteme (ciência), afirmação esta que é duramente contestada pelo sofista cuja alma está sintonizada com a opinião da sociedade. 37 Deste modo ao avaliar o papel do paradigma da teoria política de Platão, deve-se ter em mente que o bem da pólis tem a sua fonte não no paradigma das instituições, mas na psique do fundador ou governante que imprimirá o padrão de sua alma nas instituições. Daí se compreender Sócrates, assim como, em Platão a idéia de que não é a excelência do corpo que torna a alma boa, mas a alma boa é que fará com que o corpo se torne o melhor possível. O caráter essencial de uma polítéianão deriva de seu paradigma, mas da polítéia na alma de seus governantes. Como nos diz Eric Voegelin em Ordem e História, vol. III: Platão e Aristóteles(2009, p. 147), Platão concebeu a sua autoridade espiritual como a autoridade de um estadista para restaurar a ordem da pólis. A existênciahumana significava [para ele] existência política; e a restauração da ordem na alma envolvia a criação de uma ordem política em que a alma restaurada pudesse existir como um cidadão ativo. Como conseqüência, ele teve de acrescentar à sua investigação sobre o paradigma da boa ordem o problema de sua realização na pólis. São inúmeros os aspectos que podem ser desenvolvidos nesta rica passagem acerca da filosofia de Platão. Todavia, o que se faz importante aqui ressaltar é o caminho e não o fim, pois, por meio do caminho na descoberta e aprimoramento das virtudes o homem vai aprofundando, introjetando o que há de melhor em si. No entanto, o homem não se faz só, nem tampouco fora da comunidade; ele não é uma presa do destino, dos instintos, etc., mas, precisa se fazer a partir da relação com o seu entorno sem estar aprisionado ao mesmo e, exatamente aí conseguir diante da multiplicidade dos fenômenos que arrastam e buscam impregnar a alma dos homens, dar o salto no Ser e compreender a realidade, a qual denota os princípios, normas pelos quais a existência humana precisa estar alicerçada a fim de que possa alcançar a plenitude do seu existir. Sem a qual, a vida é um festival de erros, pois, aprisionamento, desproporção e desvio da ordem. O próximo tópico, A formação do ethospelo hábito será destinado a uma análise mais especifica acerca do olhar eminentemente filosófico sobre o 38 ethosenquanto objeto da Ética e estará pautada na filosofia do mais célebre dos discípulos de Platão, Aristóteles. É com o estagirita que se pode vislumbrar a maturação das questões de matiz ética, pois, mais precisamente com ele a Ética enquanto ciência adquire forma e delineia o seu conteúdo. 1.4 A FORMAÇÃO DO ETHOS PELO HÁBITO. “Sê senhor da tua vontade e escravo da tua consciência.” Aristóteles Aristóteles é dentre os filósofos, aquele que primeiro usou o termo ethos como um conceito filosófico integral, dando ao mesmo o lugar de estudo específico (pragmateia) da virtude ética, ou seja, da virtude do caráter. O caráter designa uma disposição adquirida pelo hábito, da parte desejante da alma intermediária entre a parte vegetativa e a parte racional. Uma característica peculiar da Ética aristotélica, mas também das éticas em geral é que o ethos aparece sempre como forma particular de hekis, ou seja, hábito, maneira estável de ser adquirida pela educação. E Aristóteles procura distinguir a hekis da potência natural, a qual não é suscetível de nenhuma transformação: Com efeito, nada do que acontece naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza. Por exemplo, à pedra que por natureza se move para baixo não se pode imprimir o hábito de ir para cima, ainda que tentemos adestrá-la jogando-a dez mil vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por natureza se comporte de certa maneira a comportar-se de outra. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, 1, 1103 a 20-23) Mesmo forçando a natureza, não será possível fazer com que ela adquira um novo modo de ser. No máximo, o que se obterá será um movimento contrário à sua natureza, por motivo de uma imposição externa. E assim, o estagirita procura nos informar que, naquilo que diz respeito ao ser humano, Não é por natureza, nem contrariando à mesma que as virtudes poderão ser engendradas em nós. Diga-se. Antes, que somos adaptados por natureza, primeiro a recebê-las e nos tornamos 39 perfeitos pelo hábito. Por outro lado, de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeiro adquirimos a potência e mais tarde exteriorizamos os atos. Isso é evidente no caso dos sentidos, pois não foi por ver ou ouvir frequentemente que adquirimos a visão e a audição, mas, pelo contrário, nós as possuíamos antes de usá-las, e não entramos na posse delas pelo uso. Com as virtudes dá-se exatamente o oposto: adquirimo-las pelo exercício, como também sucede com as artes. Com efeito, as coisas que temos de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo; por exemplo, os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadoresde lira tangendo esse instrumento. Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a temperança, a bravura, etc. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, 1, 1103 a 25- 1103 b) A hekis, então, difere da potência natural, por ser uma capacidade adquirida; ela é assim a disposição durável produzida pelo traço que uma atitude repetida deixa, introjetaem nós. Portanto, essa capacidade é o que podemos chamar de transformação no homem, do seu agir/fazer em um verdadeiro ter, isto é, um habitus10. Exatamente neste particular é que adentramos na especificidade do ser do ente homem, enquanto ser dotado de razão, e que, implica na constituição de seu ser (ôntico-existencial-moral, etc.) a tomada de consciência da responsabilidade inerente ao seu agir/fazer humano entre “humanos”. A Ética é para Aristóteles a ciência do ethos, mas acima de tudo, um saber voltado para o bem supremo ou soberano bem no homem. E esse bem supremo é ainda a felicidade. Trata-se assim, não somente de pensar, des- velar um aspecto do ser do ente homem, mas de “viver de um modo bem- aventurado e belo” (MARITAIN apud ARISTÓTELES, 1973, p. 52), pois, a eudemonia11 consiste na realização perfeita da natureza humana. Assim para Aristóteles, não ter sua vida organizada na direção de algum fim, é um sinal de grande loucura. Da mesma forma que Sócrates, para quem “uma vida sem exame não vale a pena ser vivida”, o estagirita compreende o peso moral que cada “existência humana” carrega em si. Esse peso advém de uma questão, angústia moral, a qual é a do sentido real da vida no ente homem. Portanto, o viver humano implica a tomada de decisões e, como nos diz o Filósofo “O homem é o princípio e genitor dos seus atos como de seus filhos”. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, III, 5, 1113 b 18) 10 Aristóteles considera que o habito é o meio de formar precocemente o caráter. 11 Para Aristóteles a eudemonia é o estado de um homem no qual a natureza humana e suas plenas aspirações se realizam plenamente e em conformidade com a verdade hierárquica dos fins dessa natureza. 40 1.4.1 A RESPONSABILIDADE O princípio da responsabilidade segundo Aristóteles, pressupõe duas condições. Primeiro se faz necessário que esteja na própria realidade das coisas que são contingentes, pois, denotam a possibilidade aberta de interferência no futuro (esta contingência é característica inerente ao mundo sublunar). A segunda é pertinente à nossa proposta, pois é concernente ao indivíduo que age. Segundo Aristóteles, para que um indivíduo possa ser designado como autor de seu ato, se faz necessário que este (ato) dependa daquele (indivíduo) e, esta dependência é afirmada pelo estagirita através da noção de “bom grado” (ekoysiodekon). Em sua Ética a Nicômaco (III, 2, 1111 b 8-9), o Filósofo declara que o ato de bom grado as crianças e os outros seres vivos partilham com o homem. O bom grado aqui deve ser definido como o ato cujo princípio é interior ao sujeito, no entanto, para Aristóteles ter o princípio de seus atos em si, é ter a possibilidade de realizá-los ou não e aí, pode-se contestar a conveniência desta proposição para o animal ou a criança. As crianças, enquanto homem vivem em um mundo contingente e possuem uma faculdade motriz, mas, lhes é subjetivamente impossível não agir da maneira que agem, pois, não têm a capacidade, a não ser devido a alguma imposição externa, de resistir a seus apetites e desejos desmesurados. Daí Aristóteles comparar tais ações às dos seres inanimados, portanto, não podendo estes atos ser caracterizados como atos verdadeiros. Mas então o que permite dizer que o ente homem é o único ser a agir verdadeiramente com pleno consentimento? Segundo Aristóteles o homem possui um princípio de ação que é distinto da cobiça ou do arrebatamento, este princípio é o do cálculo ou raciocínio (logismos) ou o do discurso enquanto regra (logos). Portanto, o ente homem em sua existência e na constituição de seu ser no existir, não pode evitar a escolha. Tem este que optar sempre seja a favor ou contra o logos. Assim, qualquer que seja o seu ato, o homem não se resume pura e simplesmente ao seu princípio motor ou agente, ele é também agente que consente; é alma inteira que consente. Para Aristóteles só há dois tipos de atos 41 que se cumprem sem consentimento: os que são feitos por imposição exterior e aqueles que são feitos por ignorância. No que diz respeito à ignorância, o filósofo estabelece uma distinção não pensada por Sócrates e que constitui manifestamente um progresso na reflexão moral: a única ignorância que não diz respeito ao consentimento é aquela que não depende de nós. Se por exemplo, nos colocamos por atos feitos de boa vontade (nos embebedamos/drogamos) num estado que nos torna ignorantes, somos responsáveis por este ato de ignorância, pois, não agimos por ignorância, mas sim, como ignorantes. Não obstante, se os nossos atos ignoram as condições objetivas da ação, não se pode mais falar de consentimento e de falta, mas sim, de infeliz acidente e neste caso, se causamos danos a outrem a justiça corretiva poderá reparar o nosso dano, como medida para restaurar tal situação em favor da vítima. Com o pleno consentimento parece Aristóteles querer nos mostrar que é possível fazer a separação entre os atos que são moralmente imputáveis e os que não o são. No entanto, se faz pertinente salientar que o filósofo transita ainda pelo campo da legalidade de tais atos e vai mais além destes, na medida em que procura definir os graus de vícios ou de virtudes inerentes aos mesmos. Para definir esses graus, o mesmo toma como modelo as diferentes relações do homem com os prazeres do tato – faz-se importante observar aqui que, não é por acaso que a relação aos prazeres do tato pode servir de paradigma a toda vida moral, pois, para o estagirita, esses prazeres concernem a todo homem (são prazeres necessários) e são por conseqüência a maior causa dos desregramentos humanos –. Indo do mais inferior ao mais superior tem-se a intemperança (acolasia), a incontinência (acrasia), a continência (egcrateia) e por fim a temperança (sophrosyne). Estes termos são utilizados por analogia para caracterizar as diferentes maneiras de se comportar em face dos prazeres e das penas em geral. Deste modo, para Aristóteles, a temperança não é somente uma virtude particular como o é a coragem, a liberalidade; ela é mais 42 especificamente o que designa por excelência a virtude moral, pois é a maneira certa de agir conforme a regra, com certa disposição interior. Essas distinções são realizadas graças a um conceito maior da ética aristotélica, o qual é o de proairesis, termo esse que guarda um sentido plurívoco, concorda-se, porém, em reconhecer dois sentidos principais para este termo: a escolha intencional e a escolha nascida de deliberação sobre os meios. A proairesis designa primeiro a escolha intencional como visar a um determinado fim, esse sentido permite diferenciar o intemperante do incontinente. O intemperante e o incontinente deixam-se, ambos, levar por seus desejos irracionais. Todavia, o incontinente é capaz de reconhecer a regra e, por isso, desejá-la. Aristóteles diz que ele age com pleno consentimento, mas contra seu desejo12. O intemperante, por sua vez, perdeu todo o senso do valor da norma/regra e, as suas ações visam a um fim mau, testemunhando dessa forma, uma perversão da proairesis e de seu pensamento. No que tange à segunda acepção da escolha intencional, a proairesiscomo intenção pode servir paraqualificar a disposição interior particular do homem temperante, pois, como nos diz Aristóteles o homem virtuoso faz o que deve fazer, mas o faz intencionalmente, em razão das coisas às quais visa. Portanto, primeiro com conhecimento de causa e depois, intencionalmente. Assim, designa a escolha deliberada dos meios para alcançar certo fim, o que demonstra a maturidade por trás das ações, pois, inerente às mesmas está o cálculo, não se pode falar em puro e simples hábito, mas sim, em uma faculdade humana que é a inteligência prática. De outro modo pode-se dizer que o homem virtuoso escolhe deliberadamente os meios para atingir um fim posto de modo intencional. Esse fim por sua vez, não é somente desejado, mas cima de tudo amado em todo o seu ser. 1.4.2 A QUESTÃO DO CARÁTER 12cf. Ética a Nicômaco, VII, 8, 1151 a 43 Pode-se dizer que o desejo de Aristóteles ao elaborar a sua obra acerca da Ética é o de examinar como podem os homens se tornarem bons, já que o fim de todo homem é a felicidade e a vida moral é assunto de adultos. Para o estagirita o caráter do jovem, formado pelos hábitos impostos pelo educador, não pode ser tomado ainda como virtuoso ou vicioso. A virtude e o vício se desenvolvem somente através dos atos de que só o adulto é capaz, pois, se realizam principalmente na instância da vida cívica ou militar, portanto, só elas dão ao caráter sua qualidade especificamente moral. Pode-se então depreender que, não é na infância, mas sim, na fase adulta - idade em que os indivíduos são obrigados a tomar as suas primeiras e importantes decisões – que se realizam os primeiros atos verdadeiros. É óbvio que não se deve negar a influência do caráter adquirido pela educação, não obstante, deve-se considerar que é exatamente quando este indivíduo entra na vida adulta, que o mesmo dá início aos seus projetos, propõe e visa a determinados fins. Ou seja, ele se torna o verdadeiro autor de seus atos e, portanto, o responsável direto por aquilo que faz e é. Talvez não seja um equívoco dizer que neste momento há uma descontinuidade com relação à sua vida até então vivida, assim como, na própria vida humana, quanto ao seu desenrolar como um processo inerente ao ser do seu devir humano. Por um lado pode-se dizer que é pela docilidade ou pela rebelião que o jovem adquire boas ou más disposições em face das paixões. Não obstante é por decisões que o adulto adquire o vício ou virtude, isto é, um caráter moral. O caráter para Aristóteles não é imutável, mas sim suscetível de certa reversibilidade e exatamente aqui, reside toda a importância da Ética. Para o filósofo quatro são as condições gerais que permitem as transformações do caráter: 1ª diz respeito à contingência que reina nos assuntos humanos. Sendo assim, se a natureza é ela própria sujeita ao aleatório, não menos os são os hábitos humanos. Por mais que os hábitos nos conduzam a repetir o que anteriormente fizemos, não podemos dizer que a constância seja uma necessidade. 44 O acaso pode fazer com que um homem virtuoso se ponha a cometer uma injustiça ou que um homem incontinente realize atos conformes à lei. Certas causas externas ou internas são propícias a esse gênero de situação e todo homem conhece a experiência da descontinuidade em sua vida, que diz respeito a seu fadigamento. A vida humana, portanto, comporta intermitências, momentos de relaxamento onde o acaso pode ter maior influência sobre o indivíduo e assim, implicar em certas descontinuidades na vida moral. 2ª Em oposição à primeira, pois, da ordem da necessidade essa diz respeito à influência da evolução fisiológica do temperamento natural sobre o caráter individual. Sendo assim, se existe uma maturação natural do temperamento, se torna possível que certos defeitos sejam reabsorvidos com a idade (impulsividade) e que certas qualidades apareçam com a experiência (juízo, consciência). O caráter pode então ser melhorado a partir do equilíbrio do temperamento fisiológico e psicológico. Todavia, nos diz Aristóteles que este encontro entre a curva da evolução natural e a linha reta traçada pelo hábito comporta também um reverso, pois, alguns defeitos (avareza, covardia, etc.) se desenvolvem com a idade e podem se tornar incuráveis. 3ª É concernente à persuasão. Aristóteles nos diz que o homem é um ente que possui como característica do seu ser não somente os hábitos, mas também, o de ser sensível ao logos. Portanto, o mesmo pode fazer uma escolha que seja contrária à sua natureza ou a seus hábitos, se estiver persuadido de que esta escolha lhe é preferível13. Esta capacidade de mudar repousa, segundo Aristóteles, numa faculdade especificamente humana que é a de se recordar e de antecipar – certos animais têm memória, mas não a reminiscência – que permite representar o passado e julgá-lo. Por isso, mesmo diante das adversidades e do peso de certos hábitos, o homem é capaz de evitar repetir continuamente seu passado. 4ª Se refere à distância que separa a disposição ética do ato e se expressa em dois níveis: 13 Cf. a obra política de Aristóteles, Livro VII, capítulo13, 1332 b 45 1- O caráter não é a causa do ato, mas unicamente da decisão intencional dos fins que se propõe. Assim como, o vício não é causa do ato, mas causa da intenção com a qual foi cometido. Como diz Aristóteles, se é verdade que sempre se pode remontar da práxis ao ethos, não se pode, porém, em compensação, deduzir o ato do caráter. Uma excelente ilustração disso é o procedimento do poeta trágico: a tragédia se ata e se desata através de uma ação. O poeta não faz suas personagens agirem para revelar um caráter; ele dá-lhes um caráter depois para tornar inteligível sua decisão14. 2- Concerne à temporalidade: os atos e as disposições advêm em tempos heterogêneos. Enquanto o caráter se desenvolve através de um processo lento, o ato inaugura algo que não deve nada à duração. Enquanto práxis o ato é desdobramento de uma atividade que é fim em si mesma, em si ele tem o poder de aboli o tempo, pois nele passado e presente, início e fim se coincidem. Desta forma, enquanto as disposições éticas são filhas da duração, o ato é sempre atualidade instantânea que transcende todas as potencialidades, por isso mesmo, o advento de um ato diverso daquele que se podia esperar não é impossível. Não obstante, se faz necessária uma condição mínima, a qual é que, a passagem entre a disposição ética e a decisão intencional não se opere de forma puramente automática. Uma vez que a escolha não depende somente do hábito, mas também da persuasão através do logos, então há a condição de poder se realizar. Desta maneira, Aristóteles procura transparecer que o futuro moral do indivíduo comporta certa abertura e cabe a cada um a disponibilidade para começar uma nova série de atos e através destes dar início à reforma do caráter. Quanto à possibilidade ou impossibilidade disso, vejamos o que Aristóteles propõe diante dos seguintes casos de figura moral: 1- O problema do vício 14Cf a Poética de Aristóteles, VI, 1450 a 15-23. 46 Pode o homem vicioso se transformar? Segundo o Filósofo, quando um homem se chafurda no vício, cada vez mais difícil torna-se, a medida que o tempo e a prática persistem, a possibilidade para se desfazer de tal condição. Esta impossibilidade encontra as suas raízes na natureza do próprio vício, pois, este consiste em fazer o mal segundo escolha intencional,portanto, o ato não somente é injusto como incorre em peso ainda maior, pois, o mesmo fora feito de forma cônscia e deliberadamente. Para Aristóteles a causa desse tipo de escolha é o vício e a intemperança. Sobre a intemperança, o estagirita nos diz (1979): O homem que busca o excesso das coisas agradáveis ou busca em demasia as coisas necessárias, fazendo-o deliberadamente, por elas próprias e nunca tendo em vista algum outro fim, é intemperante. Tal homem será necessariamente inacessível ao arrependimento e, por conseguinte, incurável, pois quem não pode arrepender-se não pode ser curado. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VII, 7, 1150 a 19ss.) Ainda neste mesmo plano Aristóteles apresenta outro tipo de homem intemperante, Existe, igualmente, o homem que evite as dores corporais, não porque estas o levem de vencida, mas por escolha deliberada. (dos que não escolhem tais atos, uma espécie é conduzida a eles pela promessa de prazer e a outra por fugir à dor nascida do apetite, de modo que esses tipos diferem entre si. Ora, todos fariam pior opinião de um homem que, sem apetite ou com um apetite fraco, cometesse algum ato vergonhoso, do que se o fizesse levado pela cólera; pois que faria ele então se a sua ira fosse grande? Eis aí por que o homem intemperante é pior do que o incontinente.) (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VII, 7, 1150 a 23-30.) Vê-se então que há a intemperança quando a parte desejante não obedece a nenhuma regra e quando os objetos de seus desejos se tornam a única preocupação da alma inteira. O intemperante é, por assim dizer, o homem do consumo, do gozo; o homem do desejo desregrado e, que por seus desejos insaciáveis, acresce a força inata da cupidez. Aristóteles vê o intemperante como o oposto ao homem virtuoso, uma vez que ignora a regra ou a lei, pois não reconhece nestas o justo ou o bem e é exatamente por isso, que ele não é acessível à vergonha ou qualquer tipo de remorso. Como diz Aristóteles, para este tipo de homem o discurso coletivo tornou-se estranho, o olhar do outro cessou de ser interiorizado sob a forma de 47 pudor; daí o estagirita excluí-lo da condição de animal político, porque escolhendo ser contra todos os outros, na medida em que é presa dos seus próprios desejos, é incapaz de uma verdadeira amizade, pois, é desconfiado e maldoso em face de todos, julgando os outros a partir de si mesmo. O intemperante para Aristóteles é um homem que optou levar a sua vida guiada pela cegueira e ignorância e, o mesmo é inteiramente responsável pelos seus atos, porque, à força de agir mal, de não escutar nem a lei nem a razão, ele obscureceu em seu ser a faculdade de perceber, de distinguir o bem do mal; a faculdade de desejar, pervertida pelos maus hábitos, obscureceu a faculdade de julgar. No homem vicioso só a razão calculadora, a inteligência prática podem continuar a se desenvolver. A inteligência dos meios, inteiramente submetida a fins maus torna-se instrumento frio e calculista de invenção e maquinação maléfica. Vê-se que o intemperante, enquanto homem vicioso regrediu o seu ser à esfera da mutilação da realidade pelo senso exacerbado da percepção subjetiva. Esse homem vicioso destrói em si a possibilidade de reconciliação com a sociedade e consigo mesmo. 2- Continência e incontinência Segundo Aristóteles o incontinente age de bom grado, sem constrangimento, uma vez que age conforme o seu apetite, porém, o mesmo age contra a sua intenção, ou seja, vai de encontro ao que sua razão compreende ser o certo, o bom. Nesse caso, o incontinente experimenta a contradição interna. E nos fala Aristóteles que é por motivo da faculdade de julgar apresentar muitos tipos de objetos desejáveis que a faculdade de desejar pode experimentar contradições. Essa mesma experiência é assim vivida tanto pelo continente como pelo incontinente, no entanto, o continente é capaz de fazer aquilo que deseja, enquanto o incontinente cede à sua cupidez ou ao seu arrebatamento. A fim de esclarecer tal contraste, torna-se importante aludir a uma noção pouco utilizada hodiernamente, a qual é a de inteligência prática. Aristóteles procura nos fazer compreender que a faculdade de desejar move graças à inteligência prática, ou seja, à capacidade de produzir um 48 silogismo prático. Esse processo se desenrola da seguinte forma: o desejo propõe um fim e a inteligência prática delibera então sobre os meios que deve operar para conseguir atingir tal fim. Colocados em um silogismo pode-se apresentar o que fora dito da seguinte forma: “Os alimentos gordurosos fazem mal à saúde; ora, este alimento que me foi oferecido para almoçar é gorduroso, logo, devo abster-me do mesmo”. Deve-se observar que o “logo” aqui funciona não como uma conclusão teorética, mas sim, como uma passagem ao ato, ou seja, como uma conclusão prática. O incontinente então, se caracteriza pelo conhecimento do que é desejável, por sua capacidade de sustentar bons silogismos teóricos, no entanto, por sua incapacidade de pô-los em ato. Aristóteles, com efeito, nos diz que o incontinente ou esquece de raciocinar (impulsividade), ou não se atém devidamente àquilo que deliberou (fraqueza). O estagirita usa uma analogia bastante interessante para falar de tal situação na Ética a Nicômaco15, a qual é a de colocar o incontinente em relação ao ator que gesticula não obstante não age; que recita frases sem estar presente a seu sentido. Sendo assim, o seu saber da regra permanece abstrato, em potência, como que adormecido. Destarte, para o Filósofo, o incontinente seria aquele indivíduo cujo desejo é ineficaz, pois, não sabe usar corretamente a inteligência prática. Diante de uma situação onde há enunciados contraditórios, um que emana da sensação e o outro que emana da razão. O incontinente é aquele que encontrará o “mau” universal, a partir do qual irá processar o silogismo deixando o “bom” em estado virtual. É preciso deixar claro que para Aristóteles, o incontinente não é aquele que põe fora do jogo a inteligência prática, mas sim, aquele que conclui muito rápido ou que põe um mau universal. Portanto, por ser incontinente faz mau uso da razão prática (sua cólera o impede de raciocinar e agir corretamente quanto ao que deve empreender). E o estagirita procura explicitar que se se quer vencer a incontinência é o ethos que se faz necessário transformar e não a inteligência. 15 Cf. Ética a Nicômaco, VII, 3, 1147 a23 49 Para se tornar continente deve o indivíduo exercer um autodomínio, ou seja, agir conforme à sua razão e contrariamente ao seu apetite. Percebe-se claramente que o continente é o homem que vive a decisão moral como um combate; é aquele que no momento em que se faz necessário age em conformidade com a regra, ou seja, faz concordar a sua preferência com o enunciado racional, mesmo sendo bombardeado pelas explosões dos sentidos e desejos que buscam constantemente fazer guarida na vida humana. Exatamente por esse motivo e sabedor da sua condição de homem falível, capaz de ser levado pelos desejos violentos, desregrados e maus é que o homem continente sabe da necessidade da vigilância, da resistência, do trabalho árduo e nada prazeroso que impõem certas escolhas. 3- Excelência e infalibilidade Para Aristóteles a virtude ética está para além da continência e do domínio de si, pois, implica a erradicação completa dos desejos excessivos e maus. Ela se caracteriza pela ação reta, pela temperança do desejo e do coração. E o caminho apresentado pelo filósofopara adquirir a temperança é em um primeiro momento a paidéia da criança. O educador deve, apoiando-se no temperamento natural da criança ou no seu pudor, desenvolver o gosto pelas coisas harmoniosas ou moderadas. O segundo caminho abre a possibilidade de uma passagem contínua da contingência à temperança. Para Aristóteles é na idade madura e não na juventude que é possível a verdadeira temperança. Segundo o estagirita, o que define a virtude ética é mais a disposição interior com a qual agimos, do que a ação em si mesma. Daí se procurar explicitar que o homem temperante não se contenta em obedecer à regra, ele não é um escravo, um simples e mero seguidor; ele a segue com prazer, pois, aprecia a sua beleza e testemunha a sua excelência pela disposição interior, intenção com a qual escolhe agir. O homem temperante é assim amigo do belo e a capacidade de agir retamente (porque é belo) define o que Aristóteles chama de a virtude ética, a qual permite-nos agir com facilidade e graça, pois, o nosso desejo é então concorde com o logos, sendo então um amor pela regra. 50 Todavia, essa virtude não é suficiente, segundo o filósofo, para constituir a aretecompleta, a excelência. Acima da virtude ética que é concernente ao “sujeito” irracional em nós, deve-se desenvolver a virtude do senhor, que conduz a ação indicando a sua norma. Essa última é a prudência e ela nos diz o que é preciso fazer; enquanto aquela nos dá a força e o desejo de fazê-lo. O que se deve depreender do que Aristóteles está a nos dizer é que uma virtude ética que se contentasse com uma mera obediência à regra permaneceria inacabada enquanto virtude moral e, por assim dizer, “natural” é o caso da virtude que se encontra no jovem educado16. A moral tem exigências que excedem em muito a moral; ela exige certa forma de inteligência. E esta se adquire mais tardiamente que a virtude do caráter, porque reclama uma experiência que somente a vida ativa pode dar. Sendo assim, a ação verdadeira (do homem adulto) não é nunca simples dedução prática a partir de princípios racionais claros para todos. Deste modo, ser justo não consiste simplesmente em respeitar os códigos de lei da cidade, nem tão pouco da moral ou da religião; ser justo implica muito mais em inventar o que é preciso fazer para que o justo de fato aconteça. E a prudência é exatamente essa capacidade de encontrar a norma justa numa situação particular, de encontrá-la, não de forma abstrata como uma equação matemática ou regras frias e opacas, mas realizando-a. Para Aristóteles, o homem prudente é aquele que revela como ser justo nesta ou naquela situação concreta, esclarecendo a capacidade de situação prática. A prudência é então o guiamento da virtude ética e guia infalível, pois, é posto em ato, segundo o logos (sabedoria prática) e não segundo palavras ou meros esquemas abstratos, os quais são dados a esquecimento ou disparidades. No entanto, esta faculdade de medida que é a prudência pressupõe sempre um bom ethos, o qual, por sua vez, depende da lei da cidade e da regra aprendida desde a infância. Daí se depreender a importância vital da pedagogia e da política. 16 Conferir Ética a Nicômaco, VI, 13, 1144 b 16 51 Como um farmakon a pedagogia e a política têm demonstrado que a história da humanidade foi e é fortemente marcada pelo grau de idoneidade ou não dos seus projetos. Esse discurso em nada é novo (Sócrates, Platão e Aristóteles já o discutem com os sofistas) e, todos já conhecem a máxima que o sucesso ou fracasso na formação do homem e de uma grande civilização são frutos da Educação e da Política desempenhada por cada povo/nação. Segundo o estagirita, a lei enquanto opinião reta deve servir de guia àquele que conhece ainda desejos rebeldes. Seu ethos é tal que ele não vê claro o bastante para se dirigir sozinho. Em compensação, aquele que interiorizou suficientemente a lei, pode encontrar na inteligência prática um guia de vida e de ação. A iniciativa assume dessa forma o descanso do bom hábito. E deste modo a Ética ultrapassa a formação do ethos para tornar-se ação inventiva. Faz-se importante salientar aqui que os gregos tinham a real percepção de que uma verdadeira Ética nunca está destituída de um forte teor Estético. Isso se faz ver claramente nas vidas de Sócrates, Platão, Aristóteles, assim como, mais tarde, é possível ver na personagem de Cristo e, não por acaso, o encontro destas Éticas forjarão um dos pilares do Ocidente. Com a descrição do homem excelente pode-se depreender que o Filósofo almejou fazer advir, a consciência da necessidade de uma reconciliação do homem consigo mesmo, que fosse capaz de se manifestar com graça no mundo, assim como em relação aos outros. Enfim, apto a encarnar de maneira infalível uma norma que nenhuma lei universal pode enunciar, e que, contudo, constitui o ideal da conduta humana. 1.4.3 O HÁBITO E O SEU VALOR MORAL O hábito pode ser definido como certa imposição física e interna, que inclina o indivíduo a se conduzir do mesmo modo que agira no passado. Seja ele bom ou ruim só é possível adquiri-lo através da ação. Mas o que é o hábito quando se diz que se adquirem maus hábitos ou que se forja um mau caráter? Assim como, o hábito tem o mesmo sentido quando se trata de bom hábito? 52 Com relação aos maus hábitos pode-se dizer que consiste em se deixar levar por seus pendores, quer esses sejam da ordem da cobiça, quer do arrebatamento. Dentro de tal plano o homem segue o seu pendor natural, tornando-o progressivamente mais forte. Ou seja, em outros termos ele não se mostra capaz de dizer não e à medida que o tempo vai passando, o constrangimento se acentua e transforma aquela inclinação em verdadeiro defeito de caráter. Quanto ao bom hábito, esse, nos diz Aristóteles que é repetindo gestos convenientes, depois multiplicando atos conformes à lei que se podem adquirir bons hábitos em matéria de ação. Não obstante pode-se objetar que para uns há uma maior facilidade em adquirir tais hábitos, enquanto que para outros é um exercício árduo e difícil. Aristóteles apresenta a seguinte via, ou método ascético: Mas devemos considerar as coisas para as quais nós próprios somos facilmente arrastados... É preciso forçar-nos a ir na direção do extremo contrário, porque chegaremos ao estado intermediário afastando-nos o mais que pudermos do erro... (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, 9, 1109 b 1-5) O estagirita nos apresenta então o bom hábito como sendo a luta contra os seus pendores. Não seria equivocado dizer que tal combate se assemelha ao exercício exigido para o aprendizado de uma técnica ou de uma ciência. A oposição estabelecida, primeiro entre o hábito e o exercício perde todo o seu rigor. É só ao fim de um período relativamente longo que o sentimento do esforço desaparece e, o que anteriormente parecia desagradável agora se torna prazeroso e de certa forma fácil, por conta do costume. Somente então se percebe que o hábito não possui mais o sentido de exercício repetitivo, e sim de facilidade para fazer o que se deve. Daí termos a modificação do estado de continência para o de temperança. Para o Filósofo a virtude enquanto uma disposição ética não é conversão renovada a princípios, porém muito mais, propensão para desejar o que o logos ordena. A mesma não se implanta como seqüência de revolução 53 interior, mas por força de impregnação, assim como, por um conjunto de pequenas e múltiplas correções e progressos. E assim atinge a sua perfeição quando todo desejorebelde foi extirpado e não se tem mais nenhuma necessidade, como no caso do continente, de imaginar regras para segui-las, pois o desejo a incorporou. Para Aristóteles, a virtude define-se pela constância graças às quais o indivíduo realiza, de maneira concreta a essência humana. Ela faz com que o indivíduo se torne apto a resistir às pressões do outro, aos caprichos da sorte, aos desejos rebeldes. Atinge então, na sua conduta, uma constância tanto mais firme quanto a contenção de si dá lugar à felicidade de fazer o que se faz, de ser o que se é. A consistência do caráter virtuoso vem assim por dizer, dessa constância do agir. O homem excelente, reconciliado consigo mesmo, amigo da forma e da beleza, adquire então a estatura de Homem. Essa é a qualidade mais sublime, pois testemunha a realização, o cumprimento da essência humana. O homem excelente atualiza então o que há de mais alto e de maior no homem, pois encarna não a Idéia de universal de homem, mas sim, o ideal de Humano. E nisso a excelência prática aparece às vezes como específica do ser Humano, posto que somente ele é suscetível de virtude moral e de prudência deliberativa, ao mesmo tempo como forma particular, também se é a mais eminente, desta arete que designa em todas as coisas, o melhor estado em que se pode achar, para preencher sua função ou sua tarefa. Atualizando sua essência, realizando sua unidade, o homem descobre também a sua unicidade. Daí se poder dizer que o intemperante tem toda a liberdade para se singularizar por seus vícios, mas somente o homem virtuoso tem o poder de se individualizar. E esta, por sua vez, é mais o resultado da prudência, da virtude do senhor do que do ethos. O ethos revela a beleza de seus atos passados e a continuidade de uma linha de vida, mas só o ato, no qual o ser se concentra e se manifesta, testemunha a iniciativa e a invenção individuais. Contudo, se torna importante salientar que, esta invenção não é a busca de originalidade a qualquer preço, é a resposta adequada de um indivíduo a uma situação particular. 54 Sendo o resultado dos atos, o ethos supera seu significado de temperamento psicológico, para assumir significado moral. Não obstante, na medida do grau de temperança ou intemperança do qual é objeto, seu papel em relação aos atos vindouros difere. O caráter intemperante constitui um peso, um constrangimento do qual é cada vez mais difícil nos afastarmos, pois o hábito de ceder à facilidade torna-se impulso irreprimível de fazer o que não se deve. Por esse motivo o caráter vicioso tende a se tornar característica psicológica permanente, tanto mais grave quanto implica, por sua vez, perversão da inteligência. No que diz respeito à temperança, pode-se dizer que essa faz do ethos um instrumento dócil da inteligência prática. O hábito não deve ser observado como o velho homem que emperra a decisão, mas sim, como o que preserva a sua retidão. Quando é bom, o caráter não é um destino, pois, o homem excelente quando age tem o poder de até mesmo transcendê-lo. Destarte, a importância atribuída ao caráter dá à reflexão ética seu aspecto de singularidade. Mostra o valor da continuidade, que não é permanência natural, mas a concretude de uma série de atos descontínuos. A ação não é somente o que engaja minha responsabilidade em face dos outros; engaja a responsabilidade que tenho em relação à minha vida inteira. Desta forma, configurando o meu ethos, traço de maneira cônscia e deliberada o esboço do que vou me tornar. O ethos enfim, exprime a ancoragem da decisão humana em temperamento natural e, principalmente, na cidade. A regra é antes de qualquer coisa exposta e imposta do exterior pelo pedagogo e pela lei. A cidade aparece então como condição da possibilidade de ethos bem regrado e como o horizonte de toda a ação humana. Evidencia-se assim que para os gregos Ética e Política são dimensões intrínsecas e constitutivas do fazer-ser humano que se esclarecem e se confirmam na práxis dentro da comunidade (polis). O próximo tópico tratará do ethos cristão, da noção de pessoa, da dignidade da vida humana e do papel da Igreja católica na construção (moral) do Ocidente. 55 CAPÍTULO II – O ETHOS CRISTÃO E O HOMEM (PESSOA) COMO REALIZADOR DO BEM E DO MAL MORAL “§ 5 É assim o Cristianismo a religião do homem concreto, porque não deve este nunca negar-se, não deve este nunca menosprezar o que tem de positivo, não deve nunca descrer de suas próprias possibilidades perceptivas, nem de que pode utilizá-las. O Cristianismo é, assim, uma promessa que se realiza através de nós, e só exige de nós que ofertemos o melhor de nós e o mais humano de nós” Mário F. dos Santos. 2.1 A DIMENSÃO ÉTICA DO EVANGELHO Como está bem documentado na obra de Marciano Vidal Nova Moral Fundamental: o lar teológico da Ética, a moral cristã tem a sua raiz originária natural na Sagrada Escritura. Ali o mesmo nos diz que “a referência contínua à Bíblia é a garantia mais eficaz e segura da autenticidade da vida ética dos fiéis e da reflexão teológico-moral” (2003, p. 271). A Sagrada escritura é, foi e será fonte viva e fecunda da doutrina moral da Igreja, isso pode-se atestar também no Concílio Vaticano II. Sob diversas formas e variadas perspectivas vem-se trabalhando a necessidade de relacionar mais estreitamente o trabalho teológico-moral com o dado bíblico. Moralistas e biblistas vêm trabalhando na busca de uma reflexão moral mais enraizada na Bíblia e de uma exegese bíblica mais ligada à práxis dos cristãos. No primeiro capítulo da encíclica Veritatissplendor (cf. 6-27) reúnem-se os conteúdos essenciais da revelação do Antigo Testamento e do Novo Testamento sobre o agir moral. Pode-se observar a seguinte ênfase: - a posição central do Decálogo tanto no Antigo quanto no Novo Testamento (cf. 10-14); - a moral evangélica, cuja carta magna é o Sermão da Montanha e que enfatiza a proposta das bem-aventuranças (cf. 15-18); - o seguimento à pessoa de Jesus Cristo como norma suprema da moral cristã (cf. 19-21) e, o modo de atuar de Jesus e suas palavras, atitudes e preceitos constituem a regra moral da vida cristã (cf. 20); - a lei do Espírito (lei nova) tal qual aparece, sobretudo em São Paulo (Cartas aos Gálatas e aos Romanos. Cf. 22-24); 56 - a catequese moral da comunidade primitiva cristã tal como se reflete nos diversos escritos do Novo Testamento (cf. 25-27). Com relação aos conteúdos essências da moral bíblica, a encíclica resume-os da seguinte forma: A subordinação do homem e da sua ação a Deus (Aquele que só Ele é bom); a relação entre o bem moral dos atos humanos e a vida eterna; o seguimento de Cristo que abre ao homem a perspectiva do amor perfeito; e o dom do Espírito Santo, fonte e auxílio da moral da „nova criatura‟ (cf. 2Cor 5,17)17. Quanto aos pontos temáticos sob os quais giram a moral do Antigo Testamento, pode-se dizer que são quatro: 1º a Lei; 2º o Decálogo; 3º a Moral Profética; e 4º a Moral Sapiencial. 1º com relação a Lei procuram-se neste tema: - o fundamento ético das tradições mais primitivas; - a influência mosaica da vida, moral israelita; - a vinculação ético- religiosa como fundamento da Confederação das tribos; - a teologização proveniente da característica religiosa da Aliança; - e as ligações entre os pensamentos profético, sacerdotal e sapiencial. O tema da Lei é a coluna vertebral da ética veterotestamentária. 2º Êxodo 20, 2-17 situa o contexto do Decálogo da Aliança e;Deuteronômio 5, 6-21 reflete a teologia deuteronômica. No Novo Testamento se assume o conteúdo moral do Decálogo(Mc 10, 17-22; Mt 19, 18-24; Lc 18, 18-23; Rm 13,9). A Igreja, além de conservar seu conteúdo, serviu-se dele como esquema para expor a catequese moral. Sem deixar de assinalar, é claro, que o mesmo também possui o caráter de promessa e de sinal de uma Nova Aliança (cfEx 24). O dom do Decálogo é promessa e sinal de Aliança, quando a Lei for definitivamente escrita no coração do homem (cf Jr 31, 31-34), substituindo a lei do pecado, que aquele coração tinha deturpado(Jr 17, 1). Então será dado „um novo coração‟, porque nele habitará „um espírito novo‟, o Espírito de Deus (cfEz 36, 24-28). 17Veritatisspendor, 28. 57 3º Lei e Decálogo não têm interpretação correta senão a partir do profetismo. Há uma importância inominável dos profetas na configuração da consciência ética de Israel e as características básicas da ética dos profetas continuam a vigorar, são as mesmas: - o ímpeto do ethos a partir do “conhecimento de Deus”; - a concretização moral na tríade de misericórdia-justiça-direito; - a capacidade de “denúncia ética”; - a incidência político-social. 4º Por fim, não se pode esquecer da Moral Sapiencial, pois, a “Sabedoria” é inseparável da “Lei”, e dos “Profetas”: não vai faltar a lei ao sacerdote, o conselho ao sábio, nem ao profeta a palavra” (Jr 18, 18; cf. Ez 7, 26). A ética cristã hodierna apresenta algumas linhas da moral sapiencial: - importância da estimativa ética (sabedoria); - abertura da ética à experiência e ao pensamento do homem; - ênfase na responsabilidade pessoal diante da pressão sociológica; - vinculação da ética à cultura popular; - insistência nos temas de preocupação “humanística”. Com relação à Moral do Novo Testamento percebe-se um deslocamento da categoria de “Aliança” para as categorias de “Seguimento de Jesus Cristo” e de “Reino de Deus”, ou seja, a moral cristã é entendida como atualização do Seguimento de Jesus e como a realização das exigências do Reino. Como bem diz Marciano Vidal (2003, 278) A moral do Novo Testamento deve ser interpretada mediante as coordenadas religiosas do Antigo Testamento. É imprescindível prenotar as idéias éticas e os valores morais que configuram a vida, a cultura, e o pensamento do mundo helenista, com o qual tiveram de defrontar-se as comunidades cristãs primitivas. Tampouco convém esquecer as idéias morais da literatura intertestamentária e dos movimentos religiosos judaicos, [...]. Com relação à moral dos grandes grupos literários de que se compõe o conjunto neotestamentário, destaca-se: A Moral Paulina: - por sua base místico-teológica: moral da vida nova em Cristo, nascida do batismo e integrada na vida cultural; 58 - por sua estrutura de liberdade: moral do indicativo, do Espírito (Carta aos Gálatas); - pela riqueza formal de seu funcionamento: universo motivacional amplo e profundo; uso da razão transformada em Cristo; - pela inculturação na filosofia helenista, da qual recebe fatores decisivos da vida moral como “nomos” (lei) (Carta aos Romanos) e “synéidesis” (consciência) (Rm 2, 14; 14; 1Cor 8-10); - pelo desenvolvimento de categorias especiais do organismo cristão, como o “discernimento” (Rm 12, 1-2; Fl 1,2-9); - pelo interesse com as preocupações de hoje: moral da “autonomia”; o “específico” da moral cristã; - pela amplitude temática: escravidão (Carta a Filemon); sexualidade, matrimônio e família (1 Cor 7; Ef 5,22-23); estado (Rm13, 1-7). A Moral dos Evangelhos Sinópticos, que antes de mais nada é transmissão da ética de Jesus Cristo. A Moral de São João e dos demais escritos do novo testamento. Na teologia joanina pode-se vislumbrar: - a vinculação do ethos cristão com os “sinais”; - o evangelho de São João apresenta Jesus Cristo como “paradigma” a partir do qual se deve confrontar a própria vida. - os escritos joaninos enfatizam a concentração da moral cristã no preceito do amor e não da lei; - muitas características da moral cristã são enriquecidas pelas perspectivas joaninas, por exemplo: a função das virtudes teologais (fé, esperança, caridade), a consideração do pecado, etc. Torna-se importante salientar que as categorias bíblicas observadas dão à ética cristã um conjunto de condições especiais, e as mais importantes são: - a proposição de um ideal de perfeição absoluta, que é como que a situação-limite que é força de atração para os fiéis; - a exigência de crescimento contínuo para se conseguir o ideal de perfeição (lei do crescimento contínuo até a perfeição/produzir frutos na caridade para a vida no mundo); 59 - a valorização do universo motivacional (prêmio/castigo) tem papel decisivo quanto: ao Reino de Deus, à esperança escatológica, à imitação de Deus, etc. A ética cristã revela ao longo dos tempos o seu caráter de pretensão messiânica, intencionalidade subversiva, conflito e confronto, afirmação e confirmação da vida do homem diante do inimigo e da morte e, uma práxis sedimentada no amor à verdade que se torna práxis libertadora. Não por acaso o Concílio de Trento cunhou uma densa formulação quando afirmou que o Evangelho (= divina Revelação) é “como fonte de toda verdade salvadora e de toda norma de conduta”. Tal afirmação e fórmula é também assumida pelo Concílio Vaticano II. Em toda a formulação do núcleo significativo do cristianismo, bem como uma evidência na vida real dos cristãos ao longo da história, pode-se perceber que, ao Evangelho, entendido em seu amplo significado de Revelação, corresponde uma dimensão moral. Esta transmitida pela Tradição e pela Sagrada Escritura. A encíclica Veritatissplendor é ainda mais explícita e reiterativa nessa afirmação, sublinhando o “nexo intrínseco e indivisível entre fé e moral”18, constatando o conteúdo moral na missão dos Apóstolos19 e no ensinamento da Igreja20, e vendo na palavra de Deus as orientações para o comportamento moral, isto é, sobre o comportamento que agrada a Deus (cf. 1 Ts 4,1)21. Os escritos do Novo Testamento afirmam muitas vezes que o homem faz o bem ou o mal, que realiza ações boas ou más22. Têm particular importância, para este contexto, as passagens do Novo Testamento em que se afirma de forma clara que o bem ou mal ético é objeto de realização em atos internos ou externos do homem. Pode-se destacar, mais especificamente, a passagem em que o Apóstolo Paulo afirma na carta aos Romanos (2006, p. 1978): [...] não faço o que quero, o bem, mas aquilo que não quero, o mal...; o querer o bem está ao meu alcance, não 18Ibid, 4. 19 Ibid., 27. 20 Ibid., 27, 28, 29, 30 etc. 21 Ibid., 28. 22 Cf. passagens como: Rm 13, 3-4; 1Ts 5,15; 2 Ts 3,13; 3 Jo 1,11; Tg 4,17. 60 porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não quero. (Rm 7,14-25). E mais adiante, na mesma carta, escreve São Paulo “detestai o mal e apegai-vos ao bem” (Rm 12,9); e em outra passagem fala daquele que pratica o mal e o bem: “Tribulação e angústia para toda pessoa que pratica o mal [...]; glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem [...]” (Rm 2,9-11). À base dos textos que foram citados acima, se pode estabelecer que, segundo a doutrina das fontes reveladas (cristãs), o homem, a pessoa humana é realizadora do bem e do mal moral. Este é em sua consciência o caráter prático dos valores éticos. Na doutrina cristã se faz patente que a pessoa humana, ao atuar, é realizadora daqueles valores. O bem e o mal trazem em si mesmos o sinal profundo da operatividade da pessoa. Baseando-se nesta afirmação, pode-secompreender em que princípio se apóia, em última instância, a afirmação de que o ideal da perfeição pessoal do homem, na ética cristã, é um ideal prático. Com efeito, dado que o bem e o mal moral são o produto da atividade da pessoa, compreende-se que a pessoa se aperfeiçoa moralmente ao realizar o bem, enquanto se degrada moralmente ao realizar o mal. Desta maneira, pois, o caráter prático dos valores morais está condicionado em sua própria essência pela atividade da pessoa. Somente um sistema que conceba própria atividade da pessoa em referência ao bem ou ao mal moral poderá expressar plena e adequadamente o caráter prático dos valores morais, assim como do ideal pessoal da ética cristã. Antes de partir para o próximo tópico se faz necessário explicitar o seguinte aspecto ontológico da moral em seu sentido mais abrangente, portanto geral, e mais especificamente a moral cristã (em estudo). Todo sistema moral compõe-se de duas coisas: normas e princípios. Com relação às normas pode-se dizer que possuem a característica de serem específicas, pois ordenam ou proíbem determinado tipo de conduta concreta. Encontramos no Decálogo, alguns exemplos: “Não matar”; “Não roubar”; “Não desejar a mulher do próximo”; “Não levantar falso testemunho”, etc. e quando estas não se expressam por um imperativo concreto, mas por uma relação abstrata de proporcionalidade (tipo equação), onde já não se trata 61 de conduta específica, então estamos diante de um princípio que deve ser seguido em todas as condutas e situações concretas da existência humana. Como exemplo no Decálogo “Amarás o teu Deus acima de todas as coisas e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Assim nos explicita de forma bastante didática o filósofo Olavo de Carvalho, em artigo publicado no jornal Diário do Comércio, no dia 02 de junho do ano de 2008, cujo tema é Errando e aprendendo, As normas específicas, para ser obedecidas, requerem distinções e ressalvas que, partindo da sua formulação geral tipológica, as adaptem sabiamente à situação particular do momento. “Não matarás”, decerto, mas quem se recuse a fazê-lo na guerra ou em defesa do inocente ameaçado pode arcar com a culpa de expor os outros à morte, por omissão. “Não roubarás”, é claro, mas quem tem o direito de se recusar a fazê-lo quando o único meio de transportar um ferido ao hospital é o carro que um proprietário desconhecido esqueceu com a chave na ignição? “Não prestarás falso testemunho”, mas isto não quer dizer que você esteja obrigado a dizer a verdade quando um assaltante lhe pergunta onde o seu patrão guarda o dinheiro, ou quando um truculento comissário do povo lhe pergunta onde a sua aldeia escondeu a colheita. Tendo validade tipológica absoluta, as normas são de aplicação eminentemente relativa: relativa à situação, às intenções, ao caráter das pessoas envolvidas, à interferência de fatores culturais, psicológicos e psicopatológicos altamente complexos, etc. etc. etc. Permanentes na sua obrigatoriedade geral, requerem uma interpretação particular, diferente em cada caso e circunstância. Muitas vezes, pessoas de bem fazem o mal, não porque desejem conscientemente violar a regra moral, mas porque erram na sua interpretação particular. Por tal motivo acima expresso é que Deus não forneceu apenas regras de conduta, mas também princípios gerais pelos quais se deve nortear a interpretação. E tais princípios (formais idênticos as equações) são de validade absoluta e incondicional servindo para aferir a interpretação que os cristãos (demais seres humanos) dão às normas concretas. Destarte, a distinção dos Dez Mandamentos se torna clara. Se alguém pergunta a Jesus Cristo “o que devo fazer para herdar o Reino dos céus?” O mesmo lhe responde “Amarás o teu Deus acima de todas as coisas e amarás o teu próximo como a ti mesmo.”. Percebe-se então que ontologicamente o Decálogo é constituído de dois princípios e oito regras e que, os princípios são 62 as chaves que determinam o sentido das regras/normas em cada caso particular. Assim pode-se exemplificar que se um sujeito comete um desvio de dinheiro (roubo) ou adultério ele infringe uma norma, mas, se você o aponta à execração pública ao invés de recriminá-lo, aconselhá-lo e perdoá- lo(particularmente) como gostaria que se fizesse com você (caso o pecado fosse por você cometido). Então, você está em pecado maior que o ladrão, pois você peca contra o princípio, enquanto ele peca contra a norma. Ou seja, Deus perdoa os adúlteros, ladrões, mentirosos, etc., mas não perdoa àqueles que não são capazes de perdoar. A Bíblia está repleta de princípios formais secundários que funcionam como mapas norteadores para os cristãos e demais indivíduos que se encontram angustiados, perdidos pela complexidade, aspereza rudeza e forma bastante árdua como a existência pode deixá-los atormentados. Um bom exemplo vem do Apóstolo São Paulo “Experimentai de tudo e ficai com o que é bom”. Como o ser humano, em sua maioria não aprende por ouvir dizer, mesmo que as palavras sejam do Deus vivo!Então se torna necessário que se veja com os próprios olhos, que se aprenda por participação (experiência), que na maioria das vezes é demorada, árdua e trabalhosa para distinguirmos entre o bem e o mal nas situações angustiadamente complexas do dia-a-dia humano. A simbologia cristã é muito rica e a este respeito pode-se utilizar como elemento exegético e heurístico o símbolo do pão, na Eucaristia que significa as virtudes morais práticas, portanto, “comerás o teu pão com o suor do teu rosto”, ou seja, o pouco de bom que exista em nós virá misturado ao mal e terá de ser separado dele aos poucos, por meio da experiência, da tentativa e do erro produzindo assim, algumas virtudes. Assim como o vinho, que significa as virtudes espirituais. O Apóstolo São Paulo está a nos dizer que tão logo tenhamos adquirido o conhecimento da verdade acerca do bem (não devemos deixá-lo por nenhum dinheiro do mundo) e do mal, ou seja, que certa conduta é má devemos evitá-la. Platão, Filósofo grego, em outro contexto e de maneira diversa diz o mesmo que o Apóstolo São Paulo, “verdade conhecida é verdade obedecida”, e o Filósofo Sócrates nos demonstra com a sua própria vida que é 63 preferível morrer pelo Bem e em nome da verdade a viver na corruptibilidade da mentira e mediocridade da aparência. No próximo tópico ver-se-á de maneira sucinta como esta moral fundada em princípios éticos ajudou a moldar e constituir o ethos do Ocidente a partir da Igreja Católica (observada enquanto agente histórico, na medida em que prolonga os seus atos para além de uma geração). 2.2 A IGREJA E A MORAL NO OCIDENTE [...] Para o nosso estudante do ensino médio, a história do catolicismo pode ser resumida em três palavras: ignorância, repressão e estagnação; ninguém fez o menor esforço por mostrar-lhe que a civilização Ocidental deve à Igreja o sistema universitário, as ciências, os hospitais e a previdência, o direito internacional, inúmeros princípios básicos do sistema jurídico, etc. etc. [...]. (Thomas Woods, 1, 22) Apesar de vivermos em uma época de profunda crise, principalmente no que tange ao quesito identidade (projeto de Nova Ordem Global), onde o processo de reengenharia social e de poder controlador (gerência geral do espírito humano) procura estender os seus tentáculos. Não se pode apagar fatos reais que consumaram e constituíram a história do Ocidente. Como afirma o historiador Thomas E. Woods Jr. (2008) em sua obra Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental Não é de surpreender que os padrões morais do ocidente tenham sidodecisivamente configurados pela Igreja Católica. Muitos dos mais importantes princípios da tradição moral ocidental derivam da idéia nitidamente católica da sacralidade da vida humana, do valor único de cada pessoa, em virtude da sua alma imortal [...] (WOODS, p. 191) Se observarmos mais detidamente, por exemplo, o mundo antigo, não veremos na Grécia, nem tampouco em Roma tal idéia. Basta dizer que, para estes ethoso pobre, o fraco, o doente, etc. eram normalmente tratados com desprezo e, às vezes, abandonados à própria sorte. Para Platão, um homem que se tornasse incapaz de trabalhar deviaser abandonado à morte; Sêneca escreveu: “Nós afogamos as crianças que nascem débeis e anormais”. O advento da Igreja Católica, a este respeito em específico, com suas obras de caridade, em muito podem atestar, uma vez 64 que, em nada, os princípios morais cristãos coadunam com o desrespeito à pessoa humana. A Igreja tem como princípio o compromisso com a natureza sagrada da vida humana na condenação do suicídio, prática que tinha defensores no ethos antigo. Sabe-se que Aristóteles condenou o suicídio, no entanto, os estóicos, particularmente, eram favoráveis a tal prática, diziam os mesmos ser uma maneira aceitável de escapar ao sofrimento físico ou psíquico (não por acaso um bom número de estóicos cometeu suicídio). Em sua obra A cidade de Deus(1990), Santo Agostinho faz uma crítica mordaz à esta prática da cultura pagã, e que, sobretudo, ainda é vista, por parte dos “intelectuais” e seus asseclas como uma atitude nobre. Nos diz o mesmo, Grandeza de espírito não é o termo correto para designar alguém que se mata por lhe ter faltado coragem para enfrentar o sofrimento ou as injustiças dos outros. Na verdade, revela-se fraqueza em uma mente que não pode suportar a opressão física ou a opinião estúpida da plebe. Nós atribuímos muito justamente grandeza de espírito a quem tem a fortaleza de enfrentar uma vida de miséria em vez de fugir dela, e de desprezar os juízos dos homens [...] antepondo-lhes a pura luz de uma boa consciência. (AGOSTINHO, 1, 22) E continua Santo Agostinho, dizendo que o próprio exemplo de Cristo proíbe tal comportamento. Jesus Cristo podia ter induzido os seus seguidores ao suicídio, para escaparem dos castigos dos seus perseguidores, mas não o fez. Ao contrário, enfrenta as adversidades da vida de forma serena, sábia e responsavelmente é o que se pode ver em Mc 14:36 que relata a oração e os momentos de angústia de Jesus Cristo antes de ser preso... “E rogava: “Abba, Pai, todas as coisas são possíveis para ti, afasta de mim este cálice; todavia, não seja o que Eu desejo, mas sim o que Tu queres” Também São Tomás de Aquino abordou a questão do suicídio no tratado sobre a justiça em sua SummaTheologiae(TOMÁS, citado por WOODS, p. 193). Mesmo suas argumentações baseando-se estritamente no critério racional, o Aquinate conclui o seu raciocínio de maneira católica, A vida é um presente oferecido por Deus ao homem e só ele tem o poder de dá-la ou tirá-la. Portanto, quem tira a sua própria vida peca contra Deus, assim como aquele que mata o servo de outra pessoa peca contra o senhor a quem esse servo pertencia, ou assim como 65 peca aquele que usurpa o poder de julgar em matéria que não é da sua jurisdição. A Deus pertence julgar da morte e da vida, como diz o Deuteronômio 32, 39: Eu faço morrer e faço viver. (AQUINO, II-II, q. 64, art. 5.) Sem soma de dúvidas pode-se afirmar que a aversão infundida pela Igreja contra o suicídio teve extraordinário eco entre os seus fieis. Foram também os ensinamentos de Cristo proclamados pela Igreja que ajudaram a abolir os combates de gladiadores, onde os homens lutavam entre si até a morte como forma de entretenimento. Tal banalização da vida humana, em hipótese alguma poderia ser aceita pela Igreja e pelo cristianismo, pois, o princípio do cristianismo e da Igreja católica preza pelo valor da pessoa e dignidade da vida humana. Por isso, já por volta do século IV na metade ocidental do Império Romano e no início do século V na metade oriental, as carnificinas foram banidas por ordem de imperadores cristãos. Um feito que deve ser atribuído genuinamente à Igreja Católica. Da mesma forma, a Igreja foi também, feroz inimiga dos duelos, o Concílio de Trento (1545-1563) expulsou da Igreja os que se batiam em duelo, excluindo-os dos sacramentos e proibindo que tivessem funerais católicos. O papa Bento XIV reafirmou essas penas em meados do século XVIII e o papa Pio IX deixou claro que elas se estendiam igualmente às testemunhas e aos cúmplices. Como disse o papa Leão XIII em sua Pastoralisofficii23 as razões alegadas pelos que se batem em duelo para dirimir suas contendas são ridiculamente inadequadas. No fundo, baseiam-se no simples desejo de vingança que impele homens passionais e arrogantes a exigir satisfações. Tais atitudes, diz ainda o papa, são contrárias ao mandamento de Deus, que diz que os homens devem amar-se uns aos outros com amor fraternal e proíbe-os de jamais usar violência seja com quem for; condena a vingança como um pecado mortal e reserva a Si o direito à expiação. Outro tema que a Igreja católica forjou as concepções morais no Ocidente foi o da guerra justa. Não se pode negar que a antiguidade clássica já 23 Cf. Pastoralisofficii, 1891, p. 2-4. 66 havia debatido esse tema, mas fizera-o a propósito de determinadas guerras (Ilíada) sem chegar a elaborar uma teoria completa acerca do tema. Cícero, é claro, antecipou algo parecido com uma teoria sobre a guerra justa ao analisar os conflitos bélicos de Roma. No entanto, foram os Padres da Igreja, que herdaram a sua idéia e deram-lhe uma extensão muito mais ambiciosa, utilizando-a como ferramenta de avaliação moral, principalmente à vista da força dos ensinamentos bíblicos a respeito da sacralidade da vida. Pode-se observar já em Santo Agostinho, uma primeira abordagem do tema da guerra e dos critérios morais necessários para que se possa ser considerada justa. Para o mesmo, uma guerra só se justifica pela injustiça de um agressor, e que essa injustiça constitua fonte de sofrimento para algum homem bom, sendo por isso uma injustiça humana. Sem contar que, ainda advertia que uma guerra não podia ter por motivo o espírito de desforra, que não podia ser empreendida com base em meras paixões humanas e, insistia nas disposições internas dos combatentes, que deviam refrear o uso indiscriminado da força. São Tomás de Aquino menciona em sua SummaTheologiae (TOMÁS, citado por WOODS, p. 196-197), que existem três condições, que deviam concorrer cumulativamente para que uma guerra pudesse vestir o manto de justiça: Para que uma guerra seja justa, são necessárias três coisas. Em primeiro lugar, deve ser o soberano quem, pela sua autoridade, ordene uma guerra, pois declará-la não é competência de um indivíduo privado. Em segundo lugar, requer-se uma causa justa, ou seja, que aqueles que são atacados o mereçam por terem cometido alguma falta. Por isso, diz Agostinho: “Costuma-se chamar guerra justa àquela em que uma nação ou um Estado devam ser punidos por recusar-se a castigar os erros cometidos pelos seus súditos ou a restituir o que foi injustamente roubado”. Em terceiro lugar, é necessário que os beligerantes tenham uma intenção reta, isto é, que tenham em vista promover o bem ou evitar o mal [...]. por que pode acontecer que, sendo legítima a autoridade de quem declara a guerra e justa também a causa, não obstante, seja ilícita pela má intenção. Por isso, Agostinho diz que “são, em justiça,condenáveis na guerra a paixão por infligir danos, a cruel sede de vingança, um ânimo implacável e inexorável, a febre de revolta, a ambição de dominar e outras coisas semelhantes. (AQUINO, II-II, q. 40, art. 1.) 67 Nos fins da Idade Média e início da modernidade, essa tradição continuou a evoluir, especialmente com o trabalho dos Escolásticos espanhóis do século XVI. Como diz o historiador Thomas E. Woods Jr. (2008), Francisco de Vitória, que, como vimos, desempenhou um papel primordial na formulação dos rudimentos do direito internacional, também se dedicou à questão da guerra justa. Em seu De iure belli, identificou três regras principais da guerra Primeira regra: Partindo da base de que um príncipe tem autoridade para empreender uma guerra, antes de tudo não ficar à procura de ocasiões e causas para declará-la, mas, se possível, viver em paz com todos os homens, como nos recomenda São Paulo. Segunda regra: Quando rebenta uma guerra por uma causa justa, não deve ser empreendida para destruir o povo contra o qual é dirigida, mas somente para obter os direitos e a defesa do próprio país e para que, com o tempo, dessa guerra possam advir a paz e a segurança. Terceira regra: quando se vence uma guerra, a vitória deve ser utilizada com moderação e humildade cristã, e o [soberano] vencedor deve compreender que está sentado como juiz entre dois Estados, o que foi injustiçado e o que cometeu a injustiça. Por isso, deve agir como juiz e não como acusador, a fim de que, pelo juízo que emita, o injustiçado possa obter satisfação e, evitando tanto quanto possível a calamidade e o infortúnio para o Estado, ofensor, os indivíduos ofensores sejam castigados dentro dos limites da lei. (WOODS, p. 197-198) I Dentro deste mesmo espírito o Pe. Francisco Suarez, também fará suas considerações acerca do tema da guerra justa e as suas possíveis condições. É importante aqui ressaltar que, de acordo com a Igreja, ninguém! Nem mesmo o Estado está isento das exigências morais. Daí perceber o motivo da crítica laica contida em O Príncipe de Maquiavel acerca da Igreja católica, pois, para este, a política era vista como “um jogo, como o xadrez, e a eliminação de um peão político, mesmo que esse peão fosse milhares/centena de milhares de pessoas, não devia preocupar mais que comer uma peça de marfim do tabuleiro”. E a reflexão moral colocada como ferramenta de análise (pela Igreja) para o exercício da guerra era um empecilho para os planos de poder nos moldes maquiavelianos. No terceiro capítulo deste curso dedicaremos um tópico para o pensamento maquiaveliano e sua influência na construção do ethosmoderno. 68 Se pesquisarmos mais detidamente com relação à moral sexual em período onde a Igreja surgiu, será possível atestar que o nível de degradação tinha chegado ao extremo. Quanto a isso nos diz Woods (2008), Como escreveu o satírico Juvenal, a promiscuidade generalizada levara os romanos a perder a deusa da castidade. Ovídio observou que, no seu tempo, as práticas sexuais se tinham rebaixado a um nível especialmente perverso, e até mesmo sádico. Podem-se encontrar testemunhos similares em um Catulo, Marcião, Suetônio acerca do estado de fidelidade conjugal e da imoralidade sexual nos tempos de Cristo. Cesar Augusto tentou pôr cobro a essa situação com medidas legais, mas a lei raramente consegue reformar um povo que já tenha sucumbido ao fascínio dos prazeres imediatos. No começo do século II Tácito afirmava que uma mulher casta era um fenômeno raro. (WOODS, p.199) A este respeito não se pode negar que a Igreja teve um papel fundamental na reestruturação das relações conjugais, na medida em que ensinava que estas só são lícitas entre marido e mulher – a sociedade contemporânea (intelectuais, partidos revolucionários, N. O. M., etc.), com sua base fortemente gnóstica, busca avidamente, por todos os meios (revolução cultural) des-construir o ethos tradicional para reintroduzir estas e outras práticas pagãs.Declara Woods que, O próprio Edward Gibbon, que culpava o cristianismo pela queda do Império Romano, foi obrigado a admitir: “os cristãos restauraram a dignidade do matrimônio”. Galeno, o médico grego do século II, impressionou-se tanto com a retidão do comportamento sexual dos cristãos, que os descreveu como “tão adiantados em autodisciplina e no intenso desejo de atingir a excelência moral, que em nada são inferiores aos verdadeiros filósofos” (WOODS, p. 199-200) É importante dizer aqui que para a Igreja, o adultério não se limitava à infidelidade da esposa, como se costumava considerar no mundo antigo, mas estendia-se também ao marido. A influência exercida por ela neste campo foi de importância histórica. Como a Igreja santificava o matrimônio e proibia o divórcio (o que significava que nenhum homem podia abandonar a sua esposa sem motivos, para casar-se com outra), as mulheres cristãs eram em grande número. Por este exato motivo, os romanos desprezavam a religião cristã24. Foi também, graças ao catolicismo que as mulheres alcançaram autonomia. Conforme relata Woods (2008), 24 Cf. a este respeito as críticas feitas por Nicolau Maquiavel em suas obras políticas. 69 As mulheres encontraram proteção nos ensinamentos da Igreja – escreve o filósofo Robert Phillips –, e foi-lhes permitido formar comunidades religiosas dotadas de governo próprio, algo inusitado em qualquer cultura do mundo antigo [...] Basta repassar o catálogo dos santos, repleto de mulheres. Em que lugar no mundo, a não ser no catolicismo, as mulheres podiam dirigir as suas próprias escolas, conventos, colégios, hospitais e orfanatos? (WOODS, p.200) Assim como para os gregos (filosofia antiga) existe um gênero de vida que convém ao chimpanzé e outro que convém ao ser humano. A Igreja ensinava que uma vida verdadeiramente digna do ser humano requer a graça divina. É importante salientar que, mesmo os pagãos romanos se apercebiam de certo modo da condição degradada do homem, como bem afirma Sêneca “Que coisa desprezível é o homem, se não consegue elevar-se acima da condição humana!”. Para a Igreja, a graça de Deus podia ajudar o homem a conseguir superar tal condição degradada. Essa é, exatamente, a finalidade com que a Igreja propõe o exemplo da vida dos santos. Uma demonstração de que é possível a um homem alcançar uma vida de virtudes heróicas quando se deixa diminuir para que Cristo possa crescer nele. A este respeito, o historiador Woods (2008) fala que, A igreja ensina que uma boa vida não é simplesmente aquela em que as ações externas estão acima de qualquer censura. Cristo insiste em que não basta não matar ou não cometer adultério; não se deve apenas preservar o corpo desses crimes; a própria alma deve proteger-se da inclinação a praticá-los. Não devemos apenas não roubar nada do vizinho, mas também não admitir pensamentos de inveja sobre o que ele possui. E embora seja permitido, evidentemente, odiar o que é mau – o pecado ou Satanás –,temos de afastar qualquer tipo de ira, ódio, que só corroem a alma. Devemos evitar não apenas cometer adultério, mas também entreter-nos com pensamentos impuros, para assim não transformar um ser humano em mero objeto. Uma pessoa que deseje viver uma vida boa não deve converter os seus semelhantes em coisa. (WOODS, p. 201) A tradição da Igreja nos legou estes conhecimentos, por via do ensinamento das Sagradas Escrituras e a vida dos Santos. É comum entre os diretores espirituais da Igreja, recomendar-se aos seus orientados que: “comam uma cenoura da próxima vez que desejarem comer um doce”, não por que doces sejam maus, mas porque,se conseguirmos disciplinar a nossa vontade em situações em que não está em jogo nenhum princípio moral, 70 estaremos mais bem preparados no momento da tentação, quando estivermos realmente perante a disjuntiva de escolher entre o bem e o mal. Deste modo, procura-se salientar que quanto mais habituados ao pecado, mais facilmente pecaremos, e, a vida virtuosa torna-se cada vez mais fácil quanto mais a praticarmos, a ponto desta prática tornar-se um hábito (Aristóteles). Estas foram, de maneira sintética, algumas das idéias peculiares que a Igreja (Católica/cristianismo) introduziu na civilização Ocidental. Não obstante, após a inoculação de pensamentos gnóstico: niilistas, revolucionários, totalitários, liberal-progressistas, ateístas, relativistas, pós-modernistas, etc. a cultura Ocidental começa a implodir e a apresentar os sérios danos de tais vírus inoculados (mentalidade e práxis revolucionárias que trazem como conseqüência desprezo à verdade, à vida humana concreta, à liberdade individual e demais liberdades, à realidade natural...). A este respeito, nos diz o filósofo alemão Eric Voegelin em sua obra A Nova Ciência da Política (1982, p. 119-120), O Cristianismo deixou em sua esteira o vácuo da esfera natural desdivinizada da existência política [...]. Todavia, tão logo se atingiu certo ponto de saturação civilizacional, quando se formaram centros de cultura laica nas cortes e nas cidades, quando aumentou o numero de funcionários leigos competentes junto às administrações reais e aos governos das cidades, tornou-se inteiramente claro que os problemas da existência histórica de uma sociedade não terminavam com a espera do fim do mundo. A ascensão do gnosticismo nessa encruzilhada crítica aparece agora, sob nova luz, como formação incipiente de uma teologia civil ocidental [...] No entanto, a experiência gnóstica no campo da teologia civil envolvia grandes perigos, resultantes de seu caráter híbrido de derivativo cristão. O primeiro desses perigos [...] trata-se da tendência de suplantar, e não suplementar, a verdade da alma. [...] Consequentemente, onde quer que os movimentos gnósticos tenham prosperado, destruíram a verdade da alma aberta, arruinando toda uma área de realidade diferenciada que for conquistada pela filosofia e pelo Cristianismo. [...] nas civilizações gnósticas, a verdade da alam não retorna a seu estado de compactação, e sim é totalmente reprimida. Essa repressão da fonte autêntica da ordem na alma é a causa da deprimente atrocidade dos governos totalitários ao lidar com seres humanos tomados individualmente. O crescimento, a expansão dessa cultura laicizante via movimentos gnósticos vai por etapas preenchendo o vácuo da teologia civil até chegar o momento final. Ou seja, o golpe fatal que é o da abolição sistemática e 71 completa do Cristianismo. Tal realidade pode hoje ser observada nos projetos globalistas que atingem diretamente Igreja Católica, Cristianismo e ethos Ocidental25. Mas acima de tudo, tal investida significa o fechamento da alma humana para a dimensão da realidade. O aniquilamento da pessoa e a transformação deste em mera coisa, animal domesticável a ser manipulado via aparelho estatal. Hodiernamente, grande parcela da população ocidental, não só, não vive segundo os seus princípios morais formadores, como os desconheceprofundamente. A maioria dos jovens só ouviu falar em termos caricaturais dos ensinamentos da Igreja e, sobretudo, sobre a moral sexual, e de acordo com a cultura “pós-moderna” em que estão sendo formatados, nem têm condições (intelectuais, psíquicas, morais...) de entendê-la26. Esta mensagem de Cristo (da Igreja, do cristianismo) ainda está viva, não obstante, todos os meios sofisticados de doutrinação, rebaixamento ontológico e coisificação do ser humano por parte dos administradores globais da consciência e espírito humano. Ela é basicamente esta: você (pessoa humana singular) pode aspirar a ser um desses homens (Agostinho, Carlos Magno, Tomás de Aquino, Francisco de Assis, Pe. Pio de Pietreltina...), um construtor da civilização, um servidor de Deus e dos homens, um missionário heróico; ou então alguém centrado em si mesmo, obcecado pela ânsia de satisfazer os seus apetites materiais, sexuais, etc. que degrada-se enquanto homem para tornar-se animal e/ou coisa. A pensadora francesa Simone Weil, ao perceber o problema crítico da amnésia histórica do Ocidente auto-imposta, escreveu: “Eu não sou católica, mas, considero os princípios cristãos – que têm as suas raízes no pensamento grego e que, no transcorrer dos séculos, alimentaram todas as nossas civilizações européias – como algo a que uma pessoa não pode renunciar sem se aviltar”. 25 Cf. a esse respeito as obras: Os EUA e a Nova Ordem Mundial, debate ocorrido entre o Prof. e filósofo brasileiro Olavo de Carvalho e o Prof. cientista político Russo Alexandre Dugin; Poder Global e Religião Universal, do Mons. Juan Claudio Sanahuja. 26 Cf. o artigo de 23.12.2011, do psicanalista e ex-integrante do movimento e partido comunista, Heitor de Paola. Intitulado: Os exterminadores do futuro IV – 3ª parte: La NuovaScuola Fascista. Que foi publicado no Mídia Sem Máscara e no seu próprio blog. Este artigo é de suma importância tanto no sentido histórico (movimento revolucionário socialista) quanto na exposição do método revolucionário, utilizado na “educação” (construtivismo) das novas gerações. 72 Em sua obra Cristianismo: a religião do homem (2003), o filósofo e maçom Mário Ferreira dos Santos reconhece a grandeza e importância singular do cristianismo e, desenvolve uma Axioantropologia fundada nos melhores moldes da Filosofia Clássica e Tomista, ao descrever os homens diversos das pedras, das plantas e dos animais, como obras de nós mesmos, pois temos uma oréxis que nos impele ao Supremo Bem. Oréxis que é um dever-ser com direitos e obrigações, que implica em justiça, valores humanos, Ética e Moral, fundados em virtudes cardeais e cultivo das virtudes como dever-ser ético do Homem. Daí, nos dizer o filósofo nesta obra que: a partir da miséria humana, encontrará o homem sua salvação (§ 97), porque guarda em si a trindade da Vontade, Inteligência e Amor (§ 104), que lhe permite religar-se a Deus, pois “esta é a vossa religião porque ela está em vós” (§ 120) e, concluindo com as palavras de Cristo “Em mim todos podem encontrar o seu ponto de convergência, porque eu sou o ápice da pirâmide (§ 135). Esta é uma lição que a civilização ocidental, cada vez mais afastada dos seus fundamentos, vai aprendendo com enorme dificuldade. O processo de globalização em vias de andamento (comunismo, islamismo e meta- capitalistas), ou seja, cada um destes projetos tem plena compreensão que não é possível a implantação do governo global sem a destruição da fonte geradora do ethos Ocidental (destruição da individualidade, singularidade e sacralidade da pessoa humana). O próximo capítulo versará acerca do ethos moderno e sua perspectiva revolucionária, procurando abordar alguns pensamentos que de forma direta ou não vieram forjar os movimentos de massa e totalitários, que transformaram o ser humano em meio/instrumento (coisa) e rebaixaram-no, na melhor das perspectivas, a mero animal. 73 CAPÍTULO III – OETHOS MODERNO E A SUA PERSPECTIVA REVOLUCIONÁRIA. “A natureza é uma fêmea que deve ser castigada para nos dizer os seus segredos” Sir Francis Bacon No capítulo anterior tentou-se apresentar de forma sintética e um tanto panorâmica a dimensão do ethos na constituição do ser do entehomem vista sob a perspectiva do logos nascente na cultura grega clássica e cristão- medievo, mais precisamente a partir de suas personalidades máximas, enquanto constituidoras daquilo que entendemos como Cultura Ocidental. Com Sócrates viu-se forjar toda uma perspectiva de compreensão da realidade a partir e um paradigma que operava não no subjetivismo ou relativismo daquele que discutia determinado ponto de vista (conferir os diálogos socráticos e a querela com os sofistas). Exatamente a partir de seu esforço intelectual é que se faz possível compreender o significado da luta pela objetividade e absolutidade dos valores éticos. O mesmo se pode dizer quanto a Platão no que diz respeito ao caminho transcorrido por este. No entanto, o núcleo central da filosofia platônica é o da teoria das Idéias, que transposto para outra esfera, o da análise do ethos, nada mais é que uma teoria dos valores. Visto que a sua teoria das Idéias culminava exatamente na idéia do Bem, do valor ético e estético máximo. E não fora diferente com Aristóteles ao nos revelar que o mundo das idéias está ancorado nos fenômenos, na própria realidade empírica. Pode-se dizer, de certo modo, que o mundo das Idéias despe-se da transcendência platônica e assume uma imanência cósmica. Fundando-se em Platão e posteriormente, em Aristóteles travam-se mais tarde as conhecidas disputas da escolástica sobre o “bonum” (bom), vindo a particular posição teológica deste movimento a dar a estas disputas um lugar da mais alta importância. Na escolástica aristotélica, todas estas discussões vêm a achar-se, subordinadas ao postulado tido como axioma evidente, do omneens est bonum(todo homem é bom),aparecendo, pois, também aqui o valor, antes de mais nada, primariamente como grandeza cósmica. E o ser humano tem acrescido o status da dignidade da vida à algo sagrado. 74 Todavia, com a modernidade vê-se um processo radical de mudança do paradigma até então vigorante e o cogito cartesiano pode ser tomado como elemento central forjador do paradigma moderno. Este paradigma, em alguns aspectos, ainda exerce forte influência nesta que se diz época pós-moderna. E como nos diz Alain Touraine (1994, p. 9), A idéia da modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e da vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Percebe-se então que, segundo o que fora dito por Touraine, a razão é na modernidade o símbolo máximo que ordena esta correspondência entre os três elementos: cultura científica, sociedade organizada e indivíduos livres. Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo; é a razão que anima a ciência e suas aplicações; é a mesma que ordena a adaptação da vida social às necessidades individuais ou coletivas; é ela ainda que deve substituir as formas de arbitrariedades e violências pelo estado de direito e pelo mercado. Deste modo é que se vislumbra a idéia de humanidade sob o julgo das leis da razão; o projeto de desenvolvimento permanente que avança simultaneamente em direção à abundância material, à liberdade, à igualdade e à felicidade. E assim ver-se-á o ethos moderno ser forjado tendo como elemento subjacente, este ente de razão, o qual é a história do progresso da humanidade, possibilitado pelo desenvolvimento técnico-científico e a reengenharia social. René Guénon em sua obra A crise do mundo moderno (1977), nos diz que a Modernidade é em sua essência uma ruptura com a Tradição, e a negação desta é enquanto singularidade moderna o individualismo27, que para 27 Segundo Guénon o individualismo é a negação de qualquer princípio superior à individualidade e, por consequência, a redução da civilização, em todos os domínios, apenas aos elementos humanos. 75 ele é o mesmo que foi designado na época do Renascimento pelo nome de “Humanismo”. E assim no diz o mesmo que (1977, p. 95-96) Tudo isso em suma é apenas uma e mesma coisa, sob designações diversas; e dissemos ainda que esse espírito “profano” se confunde com o espírito anti-tradicional, no qual se resumem todas as tendências especificamente modernas. Não é, sem dúvida, que esse espírito seja inteiramente novo; houve já, noutras épocas manifestações mais ou menos acentuadas, mas sempre limitadas e aberrantes, e que nunca se tinham alargado a todo o conjunto de uma civilização, como o fizeram no Ocidente no decurso destes últimos séculos. O que nunca se tinha visto até aqui é uma civilização inteiramente construída sobre qualquer coisa de puramente negativo, sobre o que se poderia chamar uma ausência de princípio; é isso precisamente que dá ao Mundo Moderno o seu caráter anormal, o que faz dele uma monstruosidade, explicável apenas se o consideramos como correspondente ao final e um período cíclico, de acordo com o que inicialmente explicamos. A negação da intuição intelectual, colocar a razão enquanto atributo individual acima do “bem e do mal”, fazê-la parte superior da inteligência é o que constitui a “filosofia profana” dominante e constituinte da Modernidade, ou seja, o racionalismo cartesiano. E ao falar da filosofia moderna (racionalismo) René Guénon expressa o seguinte juízo (1977, p. 98-99) [...] Esta limitação da inteligência era, aliás, apenas uma primeira etapa; a própria razão não devia tardar a ser rebaixada cada vez mais a um papel sobretudo prático, à medida que as aplicações se adiantavam às ciências que podiam ter ainda um caráter especulativo; e já o próprio Descartes estava, no fundo, muito mais preocupado com as aplicações práticas do que com a ciência pura. Mas não é tudo: o individualismo arrasta consigo, inevitavelmente, o “naturalismo”, visto que tudo está para além da Natureza está, por isso mesmo, fora do alcance do indivíduo enquanto tal; “naturalismo” ou negação da Metafísica, não são senão uma e a mesma coisa, e desde que a intuição intelectual é desconhecida, não há mais Metafísica possível [...] daí o “relativismo” sob todas as formas, seja o “criticismo” de Kant ou o “positivismo” de Auguste Comte; e sendo a razão, ela mesma, totalmente relativa e não podendo aplicar-se validamente senão a um domínio igualmente relativo, é bem verdade que o relativismo, é a única conclusão lógica do “racionalismo”. Destarte, naquilo que René Guénon procura expor acerca da Modernidade e seu fundamento “revolucionário” (anti-tradição) fica explícito que a questão da Verdade é reduzida à questão da realidade enquanto dado sensível e concebida como coisa móvel e instável. A própria razão, já um reducionismo da inteligência agora não é aceita senão enquanto aplicabilidade que venha moldar a matéria para utilizações industriais. 76 E, como explicita Guénon, não para por aí o processo negativista da Modernidade, pois, o passo seguinte é o da negação total da inteligência e do conhecimento, a substituição da verdade pela utilidade (pragmatismo), ou seja, do demasiadamente humano fomos jogados ao infra-humano “com o apelo ao subconsciente, que marca a inversão completa de toda a hierarquia normal” (1977, p. 99)28. Para René Guénon esta é a marcha fatal que nos conduziu e, continua a conduzir a filosofia profana (moderna), pois além de ignorar e odiar o que está para além de suas ínfimas capacidades, desrespeita, corrompe, nega e destrói o que não é ela mesma.Guénon vê Descartes como a encarnação de certo modo e ponto de vista do desvio moderno, não obstante, não é o único nem o primeiro responsável, pois para ele a Renascença e a Reforma, olhadas enquanto manifestações do espírito moderno, concluíram a ruptura com a Tradição. A Modernidade enquanto fenômeno de ruptura com a Tradição traz em seu individualismo estéril a negação da intuição intelectual e da doutrina metafísica pura que estão no princípio de toda a Civilização Tradicional. Não por acaso, em todos os domínios, recantos, etc. vê-se o estado de desordem, confusão, crise, destruição de hierarquia, abolição de princípios, rebaixamento e inversão de valores, etc. Daí René Guénon (1977, p. 110) dizer que: Nada nem ninguém se encontra já no lugar onde devia normalmente estar; os homens já não reconhecem nenhuma autoridade efectiva na ordem espiritual, nenhum poder legítimo na ordem temporal; os “profanos” permitem-se discutir as coisas sagradas, contestar-lhe esse carácter e até a própria existência; é o inferior que julga o superior, a ignorância que impõe limites à sabedoria, o erro que ultrapassa a verdade, o humano que se substitui ao divino, a terra que toma a dianteira ao céu, o indivíduo que se faz medida de todas as coisas e pretende ditar ao Universo leis tiradas inteiramente da sua própria razão relativa e falível. A crítica que René Guénon apresenta nessa passagem acima citada nos faz remeter àquilo que fora dito em outras palavras no Evangelho de Jesus Cristo, mais precisamente no Evagenlho de Mateus (23.16) “Ai de vós, guias 28 Esclarecedora a este respeito é a obra Invasão vertical dos bárbaros, do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, redigida em meados do século passado e se apresenta enquanto um manifesto sobre como se dá a tragédia da condição humana esmagada sob a tragédia da superficialidade. Em uma primeira parte o autor discorre acerca da invasão vertical dos bárbaros na sensibilidade e na afetividade. Enquanto na segunda parte trata do barbarismo e a intelectualidade. 77 cegos”. Neste capítulo ver-se-á Jesus Cristo admoestando as multidões acerca da hipocrisia e vaidade dos escribas e fariseus. E qual é a perplexidade que advém desta constatação, uma vez que nós modernos temos olhos e construímos tecnologias para melhor e mais distante ver, no entanto, somos cada vez mais cegos. E a realidade de maneira trágica nos revela que estamos sendo conduzidos por essa cegueira arrogante29a passos largos para uma nova ordem moderna que se pretende “universal” e se impõe totalitária. Entramos no reino da individualidade hedonista, do praxismo tecnicista onde todos os reducionismos são forjados por uma “metafísica imanentista” chamada vontade de potência. Como bem nos relatou Mário Ferreira dos Santos em sua obra- denúncia Invasão Vertical dos Bárbaros (2012, p. 14), ainvasão que é a penetração gradual e ampla dos bárbaros não só se processa horizontalmente pela penetração no terreno civilizado, mas também verticalmente, que é a que penetra pela cultura , solapando os seus fundamentos, e preparando o caminho à corrupção mais fácil do ciclo cultural, como aconteceu no fim do Império Romano, e como começa a acontecer entre nós. Em tal obra o filósofo brasileiro procura alertar-nos acerca da preparação e do desenvolvimento dessa invasão ao longo de quatro séculos e, que atinge agora, em suas palavras “um estágio intolerável e que nos ameaça definitivamente”. Adentramos assim o panorama que irá nos conduzir diretamente para o forjar da transvalorização de todos os valores e do seio dos seus pensamentos o encontro com o niilismo levado às últimas consequências. 3.1 O ETHOS MODERNO ENQUANTO RUPTURA E VONTADE DE PODER. “A mística da revolução mostra que a tendência da modernidade à idealização sentimentalista do mal traz consigo a perda do senso das proporções e o embotamento completo da inteligência moral.” Olavo de Carvalho Faz-se importante salientar que não é possível vislumbrar os dilemas do mundo atual, por mais que este se mostre por vezes distante do seu momento originário, sem ter a devida compreensão disso que se chama 29 Cf. imagem da pintura de PieterBruegel – The BlindLeadingtheBlind (O cego conduzindo outro cego). 78 Civilização Ocidental, mundo da razão, etc. A qual tem o seu “começo” na cultura grega, na abertura e constituição de uma forma peculiar de captar e dizer o ser das coisas, fenômenos e entes existentes. Não obstante, o que significa dizer que vivemos sob a égide do paradigma científico? Em que sentido estamos ligados ao momento originário e até que ponto somos filhos e discípulos de tal logos? Nesse terceiro capítulo toma-se como objetivo, apresentar de forma sintética, alguns pensamentos que denotam certas peculiaridades quantoao ethosmoderno e, conseqüentemente, a sua influência no modo de pensar, agir e ser do homem hodierno (o homem do“mundo globalizado”). Portanto, salientar o ethos moderno enquanto constitutivo de um modo de pensar e ser do homem, sociedade e cultura é elemento precípuo para a contextualização e compreensão das diversas atividades humanas inserida numa sociedade dita “pós-moderna” onde os projetos globalistas a partir de metafísicas proposicionais almejam construir novos, homens, sociedades, valores, mundo e humanidade. Para tal, servir-se-á de alguns pensamentos, os quais se observam como característicos da constituição de um novo ethos, calcado no império do logos subjetivista, cuja imagem mais peculiar se designa com o “cogito pensante”. E o desenrolar mais vulgar se pronunciará como verdades relativas a cada sujeito que não se debruçara o mais mínimo tempo sobre a reflexão de algum tema. No entanto, se arvora absoluta e barbaramente com o direito de tudo dizer, influir e até “determinar” o rumo das coisas. Como que reinterpretando ao bel sabor de cada “sujeito” a máxima kantiana de que cada ato devesse valer como um princípio universal. Tudo isso, tendo como pano de fundo ideologias massificadoras que se pretendem ao seu modo globalizantes. Dentro desta perspectiva serão observadas, analisadasalgumas nuances dos pensamentos de: Nicolau Maquiavel, Friedrich Nietzsche e de Karl Marx/Friedrich Engels (socialismo/comunismo). Em um segundo momento abordar-se-á algumas características da cultura moderna/pós-moderna. 79 Destarte, pretende-se trabalhar o delineamento do ethos atual e assim fazer refletir acerca das possíveis conseqüências desteno laborar humano das sociedades hodiernas. Para início serão observados alguns pontos específicos do pensamento político de Nicolau Maquiavel e as conseqüências morais inerentes a tal pensamento. Já que, diferente do que diz o pensador e ativista social Karl Marx em suas famosas Teses contra Feuerbach, os pensamentos têm sim os poderes de mover o mundo, quanto a isso, os fatos ocorridos ao longo da história e, mais especificamente, no transcorrer dos últimos dois séculos são os maiores e melhores testemunhos. 3.1.1 A DISSOCIAÇÃO ENTRE POLÍTICA E ÉTICA NO FAZER HUMANO E A SUBMISSÃO DO ÉTICO AO POLÍTICO. “Não digo jamais aquilo que creio, nem creio naquilo em que digo. E se descubro algum pedacinho de verdade, trato logo de escondê-lo sob tantas mentiras que se torna impossível encontrá-los” N. Maquiavel (carta de Maquiavel a seu amigo Wichardine) Com Maquiavel pode-se dizer que estamos na antecâmara da modernidade e, é com ele que se tem o início da autonomia do estado perante o indivíduo; diga-se de passagem,um dos elementos precípuos para a caracterização do mundo hodierno. Todavia, pode-se perguntar: qual o preço de tal “conquista”? Com o pensamento dito “realista” de Maquiavel foi cortado os laços pelos quais nas gerações passadas o estado estava ligado ao todo orgânico da existência humana. O mundo político perdeu a ligação não somente com a religião e com a metafísica, porém também com todas as formas restantes de ética e cultural do homem. E permanece por assim dizer: só, num espaço vazio. Esse “Estado” em seu momento embrionário já trazia em si as mais perigosas conseqüências. É pressuposto, que não se pode imputar à Maquiavel a capacidade de compreender em seu bojo as conseqüências totais de seu pensamento político. Não obstante, não se pode aceitar a inimputabilidade das conseqüências morais do pensamento de um intelectual, principalmente dos intelectuais modernos, os quais forjaram conscientemente a mudança radical 80 do ethos humano e o resultado de tal reengenharia se fez mais presente em século passado. Uma vez que, nunca na história da humanidade o poder esteve tão acima do controle, os conceitos tão distantes do mundo concreto e o conhecimento tão refém de pequenos e perigosos grupos econômicos e/ou políticos. Nicolau Maquiavel começa a sua empreitada da construção de uma nova ciência política indo de encontro ao ethos cristão-medievo, mais precisamente, quando ele procura expressar que o modelo de valores cristão ocupa um lugar rebaixado, pois, o mesmo se encontra em oposição a toda virtù política “real”, na medida em que, no lugar de criar heróis, homens fortes canoniza somente aqueles que são brandos e humildes. Assim para o pensador florentino, os valores cristãos tornam os homens fracos e afeminados. Já o modelo preconizado pelos pagãos, esse para Maquiavel só deifica os homens fortes, gloriosos (grandes comandantes e ilustres governadores das comunidades). Portanto, o modelo racional de uso religioso que deve ser adotado por um estado que se pretenda forte e vitorioso. A partir de tal perspectiva pode-se evidenciar o uso instrumental de uma razão que procura se utilizar de elementos tradicionais do ethos em prol de uma “engenharia política” para obtenção e manutenção de um determinado Status Quo30. A religião continua sendo um elemento importante no estado maquiavélico, ela é como por assim dizer um elemento indispensável. No entanto, não é mais um fim em si mesma; não é a base da vida social do homem, mas sim uma poderosa arma para as suas ações políticas e, essa arma deve demonstrar a sua força através da ação31. 30 Tal uso da razão instrumental pode ser observado em nossa época na obra Maquiavel Pedagogo, de Pascal Bernadin. Onde o autor faz uma análise minuciosa de tudo aquilo que está exposto nos documentos oficiais dos mais célebres organismos internacionais e mostra detalhadamente que o objetivo prioritário da escola atual não é mais possibilitar aos alunos uma formação intelectual e muito menos fazê-los adquirir conhecimentos elementares. O que se pretende com a redefinição do papel da escola é torná-la nada mais do que o instrumento de uma revolução cultural e “ética” destinada a modificar os valores, as atitudes e os comportamentos das pessoas em escala mundial. Ou seja, tem como objetivo a imbecilização e domesticação dos alunos via reforma psicológica. 31 Tal pensamento começa a se concretizar num plano maquiavélico de ordem mundial e pode ser observado e descrito na brilhante obra Poder Global e Religião Universal, onde o autor, Juan Claudio Sanahuja também demonstra numa análise acurada de documentos da ONU e de outros organismos 81 O que Maquiavel intenta especificamente é demonstrar que uma religião que evita o contato com o mundo, em vez que querer organizá-lo, revela-se ser a ruína de muitos reinos e estados. Como diz o mesmo em sua obra Discurso (livro I, cap. XI), a religião só é boa se produz boa ordem; e a boa ordem é sempre acompanhada da boa fortuna e do sucesso em qualquer empresa. Aqui fica evidente a quebra do elemento transcendente e espiritual inerente à religião e o estado secular, através de um “logos” instrumental e pragmático é que deve ocupar agora todo o espaço representativo das realidades possíveis do mundo humano. Mais uma fez, pode-se claramente perceber o resultado de tal pensamento em nossa época, onde o estado se tornou o ente por essência e excelência possuidor do poder onipotente, onisciente e onipresente. Tudo dentro do estado. Nada fora do estado32. Em sua obra magna O Príncipe, não se pode contestar que a mesma contém as coisas mais imorais e que Maquiavel não tem escrúpulos em recomendar ao governante toda espécie de enganos, perfídias e crueldade. O Príncipe fala de maneira diversa sem compromisso de qualquer espécie. Ele descreve com completa indiferença os caminhos e meios de adquirir e conservar o poder político. Acerca do uso devido desse poder o livro é gritantemente omisso, assim como, não restringe esse uso perante considerações relativas à comunidade. Portanto, considerar O Príncipe como uma espécie de tratado de Ética ou manual de virtudes políticas é algo eminentemente impossível. Para Maquiavel a política não passa de um jogo e, enquanto um jogo a política é sempre jogada por meio da fraude, da mentira, da traição e felonia. internacionais (estudo de uma década) a constituição de uma nova ordem mundial (enquanto religião pagã universal) através da reforma cultural, religiosa, moral, etc. imposta via mecanismos políticos. E para isso se faz necessário a destruição dos fundamentos ético-espirituais do Ocidente, os quais residem na tradição judaico-cristã. 32 O ápice de tal pensamento se dá no século XX através da concretização dos totalitarismos: fascista, nazista e comunista. Este, mesmo transmutado em versões de vários matizes, ainda continua o seu projeto rumo à constituição de um novo mundo e uma nova humanidade. 82 Logo, cabe ao Príncipe (político33) descobrir o melhor lance, aquele que o leve a ganhar a partida. Não obstante, poder-se-ía objetar aqui, levantando o seguinte juízo de implicação ética: no jogo político, as peças que estão implicadas não são seres humanos? E os lances que são feitos não implicam na felicidade ou desgraça dos mesmos? Até onde a res publica (coisa pública) – entendida nos moldes modernos – pode eximir-se das conseqüências dos fatos e concretudes da vida real (como bem pensaram e anteriormente intituíram os Padres da Igreja)? Até onde somos livres e responsáveis pela constituição de nossa própria história? Tal ordem de questionamento se faz extremamente pertinente, na medida em que só se pode falar de: cidadania, dignidade da vida humana, direitos humanos, sujeitos éticos, etc. onde há a possibilidade e a efetividade da ação humana livre e consciente; onde se possa existir a confluência e até o conflito dos poderes e; acima de tudo, onde as vidas sejam respeitadas enquanto singularidades existentes. Nunca! Enquanto abstrações vazias, fórmulas lógicas que ambicionam atingir seres imaginários e desconhecem os cidadãos de carne e osso, os quais são passíveis de paixões, erros, incapacidades, etc. Em O Príncipe, Maquiavel tentou inculcar na mente dos governantes a sua convicção acerca da perversão moral dos homens. E isso era parte integrante da sua “sabedoria política”, a primeira condição para governar os homens, dizia o mesmoé conhecer o homem. E segundo o pensador florentino, nunca o compreenderemos enquanto estivermos sujeitos à ilusão da sua “bondade original”. Tal concepção pode ser muito humana e benevolente, mas na vida política é um absurdo. Por isso, para Maquiavel (1979) somente por meio da força é que os governantes se tornam convincentes: Os melhores alicerces de todos os estados, antigos ou modernos, são boas leis e boas armas. Mas visto que as boas leis sem as boas armas perdem a eficácia, e visto que, por outro lado, que as boas armas sempre conferirão o devido vigor a tais leis, não falaremos mais aqui de leis, mas das armas. (O Príncipe, cap. VI) 33 Dentro da perspectiva revolucionária socialista-gramsciana, o “Principe” passa a ser o estado ou partido-estado. Em nosso país, o Partido dos Trabalhadores desenvolve suas ações e estratégias dentro da concepção política gramsciana. 83 Dentro desta mesma seara, em outro capítulo da obra nos diz Maquiavel que um príncipe para chegar e se manter no poder deve, Saber ser bicho ou homem, consoante as ocasiões: e isto é-nos sugerido pelos escritores antigos, que relatam terem Aquiles e outros príncipes sido enviados, a fim de serem educados, para junto do centauro Quíron; e, como o seu preceptor era meio homem e meio bicho, tiveram de ser ensinados a imitar ambas as naturezas, de tal modo que uma não se podia conservar sem a outra. Portanto, porque é tão necessário para o príncipe aprender como deve algumas vezes fazer o papel de bicho, deve tomar como modelo o leão e a raposa: porque o leão não é suficientemente manhoso para se livrar das serpentes e das armadilhas e a raposa não é suficientemente forte para vencer o lobo; por conseguinte, ele deve ser raposa, a fim de descobrir as serpentes, e um leão, para que os lobos o temam. (O Príncipe, cap. XVIII) Com tal passagem o pensador político florentino designa a necessidade de o príncipe ser formado na arte da astúcia e da traição, pois, não se deve deixar enganar que a humanidade sozinha seja capaz de forjar política. Para Maquiavel os melhores políticos constituem um intermédio entre a humanidade e a bestialidade. Aqui se faz interessante lembrar do pensador Blaise Pascal (1979), para o qual há certas palavras que súbita e inesperadamente tornam claro o sentido de todo um livro. Destarte, a afirmação acima descrita por Maquiavel deixa clara a intencionalidade da sua teoria política. É claro que ninguém em sã consciência pode dizer que a política não tenha lidado com situações de traições, crimes, etc. não obstante, antes de Nicolau Maquiavel nenhum pensador se dedicou a ensinar a arte desses crimes, mesmo sabendo que esses atos eram cometidos, ninguém os ensinava. Que Maquiavel prometesse se tornar um mestre na arte da astúcia, da perfídia e da crueldade era uma coisa totalmente inédita e, é exatamente aqui, nas portas da modernidade que se começa a forjar um dos aspectos dominantes na constituição do ethos moderno. E a este respeito nos diz o filósofo Olavo de Carvalho (2011), Para piorar um pouco mais, Maquiavel admite que os métodos a que o príncipe deve recorrer para se impor podem ser tão cruéis e violentos que se tornam antagônicos “a toda forma de existência não apenas cristã, mas humana”. O Príncipe, em suma, não somente deve arrogar-se a autoridade de Deus, mas fazê-lo com plena 84 consciência de que esse Deus é inimigo dos cristãos e da humanidade em geral. Em bom português: ele deve fazer da imitação do diabo a nova forma da imitação de Deus, ao mesmo tempo que, posando ante as multidões como um novo Deus, as leva a crer que estão cultuando a Deus quando se prosternam ante o Príncipe-diabo. (CARVALHO, p. 88) Assim como, nos diz Olavo de Carvalho(2011, p. 82) que é desta época que começa “a completa falsificação e calúnia da história da Igreja e a construção de um modelo de estado fundado na inversão paródica do cristianismo”. A história nos revela o quanto que tal pensamento alcançou modernidade adentro. Indo dos mais variados personagens que ocuparam situação de destaque no cenário político em que viveram. Até a forma sui generis que tal “práxis política” adquiriu entre nós brasileiros e que ganhou a célebre descrição de “jeitinho brasileiro”. Sem falar é claro, o quanto a alta cultura foi destituída de valor e até de divulgação por motivos de politização de todos os meandros da vida legando ao povo brasileiro um retrocesso civilizacional (nossos alunos estão entre os últimos colocados em provas internacionais, o país está entre os mais violentos do mundo, níveis altíssimos de corrupção, etc, etc.) Pode-se dizer com A. Koyré (KOYRÉ,citado por CHEVALLIER, 1982, p. 277) que em espírito a modernidade é totalmente diferente de tudo que anteriormente houve: Com Nicolau Maquiavel, estamos de fato num mundo completamente diverso. A Idade Média está morta; mais do que isso, é como se ela nunca tivesse existido. Todos os seus problemas: Deus, salvação, ligações entre o lá e o cá embaixo, justiça, fundamento divino do poder, nada disso tudo existe para Maquiavel. Há uma única realidade, a do Estado, um único fato, o do poder. E um problema: como se afirma e se conserva o poder do Estado. [...] O imoralismo de Maquiavel é simplesmente lógica. Do ponto de vista em que ele se colocou, a religião e a moral são apenas fatores sociais. São fatos que é necessário saber utilizar, com os quais é preciso contar. É só. Dentro de um cálculo político, cumpre levar em conta todos os fatores políticos: que peso pode ter um juízo de valor sobre a soma? De nenhum modo modificar o resultado. Não se deve, pois, ignorar o sustentáculo que é o pensamento do “mestre” florentino para os nascentes “Estados Nacionais” e soberanos quanto ao quesito vontade de poder inerente à constituição e manutenção dos mesmos. Nem tampouconão se atentar para a releitura de O Príncipe feita pelo 85 comunista italiano Antonio Gramsci, no século passado, substituindo a revolução comunista nos moldes marxista (guerra aberta e violenta declarada) e implantando a revolução comunista/socialista por meio cultural de forma silenciosa (espiral do silêncio) a fim de modificar e destruir o ethos tradicional34. 3.1.2 VONTADE DE PODER, COISIFICAÇÃO E NEGAÇÃO DO OUTRO. 3.1.2.1 A TRANSVALORAÇÃO DE TODOS OS VALORES “A tarefa para os anos seguintes estava traçada de maneira mais rigorosa. [...] a tresvaloração mesma dos valores existentes, a grande guerra – a conjuração do dia da decisão. Nisso está incluído o lento olhar em volta, a busca de seres afins, daqueles que de sua força me estendessem a mão para a obra de destruição. – A partir de então meus escritos são anzóis: quem sabe eu entenda da pesca mais do que muitos?...” F. Nietzsche Com Friedrich Nietzsche somos apresentados a um dos mais radicais projetos de superação da metafísica e dos valores morais que forjaram o Ocidente. Segundo suas próprias palavras (s/d), Não vejo ninguém que tenha ousado fazer uma crítica dos juízos de valor morais [...] até o momento ninguém examinou o valor da mais famosa das medicinas chamada moral: o que exigiria que se colocasse esse valor em questão. Pois bem! É esse justamente o nosso projeto. (NIETZSCHE, A Gaia ciência, § 345, P. 172.) E esse intento se dá em Nietzsche por meio de uma história descontínua dos valores morais. Para o pensador alemão os valores são humanos, existenciais, estão em constante fluxo, portanto, são históricos e nada têm os mesmos de correlação com as formas, almas eternas, etc. Ou seja, os valores não têm uma existência em si,mas sim, todo e qualquer valor não passa de uma produção, criação humana. E de acordo com o mesmo (Idem, § 301, p. 147-148), Nada que possua valor nesse mundo o possui por si mesmo, segundo sua natureza – a natureza é sempre sem valor: atribuiu-se- lhes certa feita um valor e fomos nós que o demos, nós, os atribuidores! Nós criamos o mundo que interessa ao homem! Para Nietzsche, da mesma forma acontece com os valores morais, uma vez que não existem fatos, nem fenômenos morais. Os valores não 34 Cf. obra Maquiavel, ou A confusão demoníaca, do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho. 86 passam de interpretações que os homens introduzem no mundo humano, a partir de suas existências. Sendo o juízo moral, assim como o juízo religioso tomados pelo mesmo como coisas vãs, inexistentes; ou como meras crendices, que enquanto tal, precisam ser ultrapassadas por meio de uma atitude que esteja para “além do bem e do mal”35. É em sua obra Genealogia da moral, que Nietzsche deixa clara a radicalidade de sua intenção, pois o mesmo não somente diz que a moral é falsa, como afirma que a mesma é perniciosa para a vida do animal homem. E seguindo essa linha de raciocínio procura colocar sob suspeita todo e qualquer pensamento moral, pois o pensador procura fazer ressaltar que onde existe ou existiu o pensamento moral, ali foi repreendido o valor dos fortes em prol do rebanho; o valor da vida em detrimento dos valores doentios (para ele metafísica/religião judaico-cristã). Destarte, se faz imperioso destruir a moral para libertar a vida, ou seja, com a Genealogia da moral, Friedrich Nietzsche pretende desvalorizar todos os valores até então prevalentes (clássico e judaico-cristãos). É preciso colocá-los sob suspeita, retirar sua autoridade, destruir os seus fundamentos, porque os mesmos representam a decadência. E esta é uma diminuição, um enfraquecimento do animal homem; é a transformação do tipo forte em tipo fraco; é o triunfo das forças reativas sobre as forças ativas. Para o pensador alemão é mais que evidente que os valores morais são a expressão mais clara da imoralidade no seio da vida humana, na medida em que adoecem o homem e faz preponderar o que é vil e abjeto, sufocando assim a verdadeira e vigorosa natureza animal do homem36. Não por acaso a tese central desse pensamento nietzscheano sobre a moral é a de que não existe apenas uma, mas sim uma dupla origem dos valores morais e que, essas são de oposição irredutível. Porque de um lado está a moral natural regida pelos instintos da vida, logo moral sadia, também chamada de a moral dos mestres e; de outro, está a moral antinatural que é voltada contra os instintos vitais, portanto moral doentia e que é chamada pelo pensador de a moral dos escravos; a moral de rebanhos. 35 Cf. Crepúsculo dos ídolos, Aqueles que querem tornar a humanidade melhor § 1. 36 Ibid., A moral como manifestação contra a natureza § 4. 87 De acordo com Nietzsche a sociedade moderna dominada pelos valores morais (doentios, antinaturais e do ressentimento) é a expressão cabal da vontade de destruição, da vontade de nada. Como diz o mesmo em seus escritos póstumos (NIETZSCHE, Frags. póst. Maio-junho de 1888, 17 [7]), O instinto niilista diz não; sua afirmação vigorosa é que não–ser é melhor do que ser, que o desejo de nada tem mais valor do que o querer-viver; sua afirmação mais vigorosa é que, se o nada é o que há de mais desejável, esta vida, como sua antítese, é absolutamente sem valor – condenável. Assim, enquanto vontade caluniadora e envenenadora da vida, o niilismo exprime uma vontade de nada, ou seja, uma vontade de negar, de depreciar e de degenerar a vida; vontade esta, que para o pensador alemão, fez com que houvesse o triunfo das forças reativas (miseráveis-pobres- necessitados-impotentes-sofredores-baixos-doentes-disformes=bons) contra os valores aristocráticos (nobre-belo-forte-vigoroso-potente-feliz=mal). Para Nietzsche essa moral niilista, a qual é preponderante na modernidade, é a moral que simboliza a revolta dos escravos, dos espíritos doentios e de negação de tudo que é vital. E por isso, dizer o mesmo, que torna-se então necessário que haja uma transvaloração de todos os valores rebaixados. Para que se possa de novo respirar o verdadeiro ar dos alpes que traga os ventos puros e saudáveis para a constituição dos espíritos fortes. Porque como diz o pensador: “O que é bom? Tudo o que intensifica no homem o sentimento de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo o que provém da fraqueza” (Frag. póst. Novembro de 1887 – março de 1888, 11 [414]; primavera de 1888, 15 [120]; AC; § 2). Em outro fragmento (11 [119]) Nietzsche nos diz, [...] O homem moderno crê experimentalmente ora neste, ora naquele valor, para depois abandoná-lo; o círculo de valores superados e abandonados está sempre se ampliando; cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores; o movimento irrefreável – embora tenhamos a tentação de diminuí-lo em grande estilo. No fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral; reconhece sua origem; conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum; eis o pathos, o novo tremor... A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos. O advento do niilismo é o que o pensador alemão está a decantar; o que o mesmo proclama ser som que ressoa por toda parte e deve ecoar no 88 futuro; sinais que se apresentam e devem ser decifrados, pois há muito desejam se revelar, no entanto, são sufocados pelo medo do significado terrificante das vidas e valores entregues ao sem sentido: não há valores supremos, não há essência, mundo pós-vida; o homem é apenas um animal que se adapta ao meio e os valores, enquanto criação humana, não passam de representações que designam vontades. Vontades de potência que podem designar fraqueza, deformidade, doença, etc. ou nobreza, beleza, vigor e saúde. O que o pensador alemão está a dizer é que não existe uma verdade, uma constituição absoluta das coisas, uma coisa em si. Não há princípio primeiro Deus, assim como não há fim último. Ser, Bem e Verdade são constructos de uma mente adoecida; puros reflexos de uma mentalidade que ainda crê em algo fora. O homem, a vida, as representações entorno da existência... nada disso possui significado para além do momento vivido. O eterno retorno do mesmo é a exasperação do mundo sem sentido; sem Deus; sem essência. O nunca antes visto, dado, explicado... portanto, o ser da existência é o estar-jogado! O nada de sentido que necessita de uma representação forte para que vigore enquanto mentira que se impõe. E somente assim, se torne uma “mentira-verdade” (enquanto valor moral/cultural) como resultado do projetar de uma existência que se impõe, porque dita a partir de si (vontade de potência do forte). Portanto, pode-se pensar a partir de Nietzsche a seguinte fórmula sintetizadora do niilismo: “Deus está morto! Mas o homem, enquanto vontade de potência: esse vive e é eterna representação!”. Deve-se então deixar explícito que, o intuito principal que Nietzsche está a propor a partir da Genealogia da moral é a destruição dos valores até então vigorantes e a imposição de uma nova fonte e critério de avaliação para os valores formadores da sociedade: a vida tomada como vontade de potência, Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servo encontrei a vontade de ser senhor. [...] E este segredo a própria vida me confiou: “vê”, disse, “eu sou aquilo que deve sempre se superara si mesmo”. 89 [...] Que eu deva ser luta e devir e finalidade e contradição das finalidades: ah, quem adivinha minha vontade, certamente adivinha, também, que caminhos tortuosos ela deve percorrer. [...] E aquele que deva ser um criador no bem e no mal: em verdade, primeiro, deverá ser um destruidor e destroçar valores. (Assim falou Zaratustra, II, Do superar-se a si mesmo, p. 145-147) É preciso compreender claramente não só o que pensador intenciona com tal crítica dos valores morais preponderantes, mas também perceber a dimensão do que tal pensamento intenta, seduz e induz. Se faz necessário atentar para o que Nietzsche anunciou e propôs acerca do niilismo e niilistas (Frag. póst. 11 [123]0, ou seja que, O niilismo não é apenas uma contemplação da inutilidade de tudo, nem apenas a convicção de que todas as coisas merecem cair em ruína: pondo mãos à obra, manda-as para a ruína... isso é, se quiserem, ilógico... é o estado dos espíritos e das vontades fortes, e eles não conseguem determinar-se no não „do juízo‟ – o não da ação faz parte de sua natureza. A aniquilação com a mão acompanha a aniquilação com o juízo. E aqui se faz mais uma vez pertinente salientar o pensamento de Blaise Pascal (1979), para o qual há certas palavras que súbita e inesperadamente tornam claro o sentido de todo um livro. No caso de Friedrich Nietzsche, é evidente o sentido de que, o mesmo intenciona aniquilar com a moral e todo o ethosOcidental calcado no logos grego clássico e na moral judaico-cristã, pois como o mesmo diz (11 [123] “A aniquilação com a mão acompanha a aniquilação com o juízo” e, ainda acerca do ponto culminante do perfeito niilismo ele enuncia (11 [149])que está justamente em “uma teoria que ensina o caráter absoluto e a eternidade daquela vida que provoca nojo, piedade e o prazer da destruição”. Portanto, só assim, segundo o mesmo, se pode aniquilar com tudo que ela representa de apaziguamento e “domesticação” da espécie humana, para fazer ecoar os instintos vitais adormecidos no animal homem. Eis – como própria definição nietzschiana – a filosofia a golpes de martelo! E assim com Nietzsche pretende-se ter chegado ao fim do processo de desconstrução da Ética filosófica clássica. Aqui se profetiza a pós-modernidade, sua iconoclastia, relativismos, crise de valores, desencanto com o sentido da vida e dos por quês, etc. 90 Estabelecido de forma sintética o pensamento deste, o qual é tomado como um dos primordiais “mestres” na modernidade da suspeita. Alguns questionamentos se fazem pertinentes: o que esse tipo de pensamento moral radicalizante propõe para a grande maioria dos homens que não fazem parte do rol de “super-homens” (o tipo forte)? Devem, os tipos mais baixos, os homens fracos, serem encarados como entes humanos? Quais as implicações éticas deste pensamento no seio de uma sociedade como a moderna/pós-moderna? O que a vida do pensador alemão denota de similaridade e viabilidade quanto ao seu pensamento? Pois, não fora Sócrates o Filósofo que primeiro nos chamara a atenção para a necessidade de observar a coerência e consistência entre o pensamento e a vida? E não é justamente esse um dos graves e persistentes problemas da vida hodierna, onde pensadores, “intelectuais”, ativistas, políticos, ideólogos, etc tergiversam sobre mundos possíveis, paraísos desejados, sistematizações logicamente perfeitas, Nova Ordem Mundial... no entanto as implicações concretas de tais elucubrações demonstram o mais gritante desconhecimento, desrespeito e até ojeriza quanto à realidade da vida humana com suas inadequações, teimosias, imperfeições, etc? Neste próximo tópico será apresentado de forma sucinta, outro pensamento que exercera papel preponderante nas mentes e ações de “intelectuais” e massa nos “quatro cantos” do globo terrestre e que é parte constituinte do ethos moderno vigorante. O pensamento de Karl Marx/Friedrich Engels, a ideologia socialista/comunista e o ensejo por forjar de forma arbitrária a “nova sociedade” e o “novo tipo de homem”. O estado como o novo “príncipe”, segundo, o ativista político comunista, Antonio Gramsci. 3.1.2.2MORAL E PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA: a moral enquanto reengenharia social. “Quando os reflexos das cidades em chamas forem vistos nos céus (...) e quando as „harmonias celestiais‟ consistirem das melodias da Marseillaisee daCarmagnole, tendo como acompanhamento canhões ribombantes, enquanto a guilhotina marca o tempo e as massas inflamadas gritam Ça ira, ça ira, e a autoconsciência está pendurada no poste de luz”K. Marx 91 Em seu Manifesto do partido comunista(1988), Karl Marx e Friedrich Engels explicitam acerca da história da humanidade, que A história de toda sociedade até hoje é a história de luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio comum das classes em luta. (I, Burgueses e proletários, p.66) A história vista em sua totalidade por Karl Marx e Friedrich Engels, nada mais é que a descrição dos conflitos existentes entre as classes e, a modernidade é a expressão mais cabal de tal princípio propulsionador da realidade humana, uma vez que ela simplifica e acirra tais conflitos entre duas grandes classes: burguesia e proletariado. Segundo Karl Marx, a burguesia moderna teve papel sumamente revolucionário, pois empurrou para fora do palco todas as classes herdadas da Idade Média e em seu lugar apareceu a livre concorrência, com sua correspondente constituição social e política, sob o domínio econômico e político da classe burguesa. No entanto, precisamente pela “lei da dialética histórico-materialista”, assim como a burguesia fora a contradição interna do feudalismo, o proletariado é a contradição interna daquela. Desse modo, todos os instrumentos, aparatos, armas que serviram à burguesia para enterrar o feudalismo, devem voltar-se contra a própria burguesia. Como menciona o próprio Marx (1988, p. 72) “a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trarão a morte; produziu também os homens que empunharão essas armas – os operário modernos, os proletários.” e, prossegue o mesmo dizendo que “quando a teoria ganha as massas, ela se torna violência revolucionária”. Para o pensador e ativista alemão, uma coisa é bastante evidente quanto ao caminho que deve ser tomado dentro da sociedade moderna, tanto no que diz respeito às massas, Os comunistas recusam-se a ocultar suas opiniões e suas intenções. Declaram abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados com a derrubada violenta de toda a ordem social até aqui existente. 92 Que as classes dominantes tremam diante de uma revolução comunista. Os proletariados nada têm a perder nela a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. (Manifesto do partido comunista, IV, Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição, p.99) Ou seja, para Marx e Engels o caminho para uma sociedade e mundo comunista só é possível por meio da ação violenta que trará a destruição das instituições e ordem social e, portanto, com a morte dos representantes e simpatizantes do regime em vigor (uma escatologia imanentista, materialista e atéia). Não existe meio termo! Quanto com relação ao papel dos intelectuais nos diz o pensador e ativista político alemão: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente,cabe transformá-lo” (Teses Contra Feuerbach, 1987, p. 163)37. Não cabe ao filósofo contemplar a realidade. O seu papel é o de impor a sua vontade de potência, difamar e destruir todos os valores antigos em nome do novo! ser ativista, “intelectual orgânico”, segundo a nova guinada comuno- socialista proposta pelo comunista italiano Antonio Gramsci. De acordo com este ideólogo do comunismo o mundo civilizado tem sido saturado com o Cristianismo por 2000 anos, e um regime fundado em crenças e valores judaico-cristãos não pode ser derrubado até que as raízes sejam cortadas. Diferentemente dos outros marxistas, Gramsci não cria que os operários e camponeses eram predispostos para a revolução nem tampouco para destruir a ordem existente pois, a maioria deles não possuía nenhuma consciência de classe nem lealdade a tais considerações, mas sim, a coisas como Deus, família, nação valores que os mesmos traziam guardados por uma tradição milenar; valores que denotavam uma aliança fundamental que suplantava todas as demais. Deduz então, Antonio Gramsci que o mundo civilizado havia sido saturado com o Cristianismo por 2000 anos e que este era a filosofia dominante e a fonte dos valores morais no Ocidente (Europa e EUA). Deste modo, a vida de cristãos e não cristãos estava integrada e indissociável a tais 37 Cf. Comentários à 11ª “Tese sobre Feuerbach” feita pelo filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, em sua obra O jardim das aflições, Livro III, Capítulo VI, onde o mesmo de forma inteligente, clara e didática faz uma hermenêutica do pensamento e ação revolucionários de Karl Marx, demonstrando a atualidade e vigência de tal convocação por traz de ações perpetradas por intelectuais, movimentos e partidos de esquerda. 93 valores universais, o que por sua vez impedia qualquer idéia, projeto ou ação revolucionários como os que os comunistas pretendiam forjar. É desta observação e análise crítica que surgirá uma nova metafísica proposicional (Eric Voegelin “Para que filosofar? Para resgatar a realidade!) e estratégia revolucionária marxista: se as tentativas de revolução (dentro do Ocidente) foram infrutíferas e produziram reações contra-revolucionárias potentes e mortíferas. Seria então mais vantajoso e produtivo fazer uma revolução sutil por meio da cultura alterando e alienando de forma substancial a mentalidade coletiva da sociedade ocidental através de algumas gerações. Esta práxis vem sendo feita sistematicamente desde meados do século passado (cf. O filho radical de David Horowitz e O eixo do mal Latino- Americano de Heitor de Paola). Em nosso caso se faz importante estudar o papel da grande mídia desde os “anos de chumbo”, assim como o lugar ocupado pela emissora Globo e sua programação tele-novelística (cf. processo de formação dos intelectuais orgânicos dentro das faculdades de jornalismo, assim como demais cursos), mais especificamente observando valores e estereótipos acerca de símbolos como: homem-mulher, hetero-homossexual, cristão-ateu, sagrado-profano, pais-filhos, velho-jovem, burguês-proletário, políticos conservadores, de direita e de esquerda, etc. Observar a importância da “Teologia da libertação” e dos novos “sacerdotes” da Igreja Católica (cf. a CNBB) e sua função de esvaziamento do Sagrado nas missas, liturgia, simbolismo Cristão. O desvirtuamento dahermenêutica clássica e tradicional da Igreja e sua sobreposição por outra de matiz “crítico-revolucionária” e aproximação dos valores e símbolos pagãos,etc,. Outra importante pesquisa a ser feita é no campo da educação, mais especificamente a pedagogia sócio-construtivista que vem sendo propagada e disseminada desde a década de 60 e os seus resultados concretos na “formação” de novas gerações. Gamsci não somente é um marxista como vislumbra em tudo alcançar o tão propagado mundo melhor pensado e redigido pelo mentor do comunismo Karl Marx. No entanto, o, processo pelo qual tal projeto será executado é que se distingue dos demais, pois, para o mesmo pode e deve existir uma “hegemonia política” mesmo antes de se assumir o poder governamental (cf. a ideologia dominante nas universidades do país e os quadros formados pela 94 mesma: ver o papel da USP na formação do PT e PSDB; as temáticas progressistas das novelas da globo e suas influências) e de modo a que se possa exercer a liderança política e hegemonia não se pode contar apenas com o poder ou força material dadas pelo governo. Ou seja, para Antonio Gramsci não se deve depositar as esperanças do projeto de um mundo comunista somente no poder das armas ou do estado, mas, antes e prioritariamente seduzir as mentes infantis e adolescentes, subverter e dominar as mentes e os corações dos homens e mulheres, dos cidadãos. Trazer, corromper e subverter as mentes brilhantes dos filhos e filhas da burguesuia e colocá-los sob o símbolo da bandeira vermelha, isso sim, seria a destruição das forças anti-marxistas. O que Gramsci propõe como estratégia de ação para os gnósticos- revolucionários é que primeiro a intelectualidade orgânica crie e sistematize métodos de ocupação das instituições e das mentes dos seres humanos, transformando-os em quadros, indivíduos atomísticos, massas docilmente coagidas e direcionadas para a concretização da práxis revolucionária. Obter o domínio das instituições “burguesas: Igreja, escolas, faculdades, universidades, mídias, cultura (literatura, artes, música...) seria a forma de obter a “hegemonia cultural” e assim poder dominar, controlar e influenciar os modos de percepção, sentimento e pensamento da população. Para tal ideólogo não se faz necessário dominar todas as informações nem tampouco ser o proprietário das mesmas, bastando obter o controle das mentes que assimilam estas informações. E para que essa “hegemonia cultural” seja alcançada se faz necessário destruir os elementos da cultura tradicional. Em nosso país pode-se observar mais detalhadamente tal processo: 1º As Igrejas Católicas foram sendo des-Sacralizadas e transformadas em “ongs” politizadas, cujas funções são promover o “igualitarismo” e a “justiça social” corroendo assim os seus fundamentos onto-teológicos e as doutrinas milenares e os ensinamentos morais são negados e relativizados em prol de modismos e irrelevâncias culturais... (cf. vídeos e curso do Pe. Paulo Ricardo sobre o marxismo cultural; A crise do mundo moderno e Oriente e Ocidente, de René Guenon). 95 2º A educação em seu sentido clássico/liberal (formação genuína comprovada ao longo dos milênios) é substituída por pedagogias modernizantes e progressistas que impõem currículos escolares reducionistas (onto-axiologia) e brutalizantes onde os sujeitos se transformam em “cidadãos críticos” e construtores de uma nova humanidade e moralidade “politicamente correta. Não obstante, são incapazes, em sua maioria de interpretar os textos que lhe são apresentados e distinguir real de imaginário. E nossas faculdades vivem o drama de transitarem entre o político (caça voto) e o econômico (caça níquel) em detrimento do real. 3º Os órgãos de informação são moldados com a finalidade de serem instrumentos ideológicos de desinformação, alienação, doutrinação, massificação, embrutecimento e ignorância da população (cf. acerca do Foro de São Paulo criado em 1990 por Lula e Fidel Castro como organismo que busca resgatar na América Latina aquilo que foi abortado na URSS e que reúne partidos legais de esquerda com organizações terroristas e quadrilhas de narcotraficantes de todos os países do continente.No entanto, totalmente desconhecido pela maior parte dapopulação brasileira); assim como instrumento de assédio e descrédito das ínfimas instituições tradicionais e seus porta-vozes (verificar a título de confirmação como são vistos blogs eletrônicoscomo: mídia sem máscara, de Olavo de Carvalho, de AluizioAmorin, de Reinaldo Azevedo, etc.; assim como a revista veja...) 4º A moralidade, a consciência ética, as virtudes, os princípios fundantes das virtudes são cônscia e deliberadamente atacados por pensadores gnóstico-revolucionários e a estratégia capital gira em torno da negação da verdade, da relativização dos valores, desvirtuamento e destruição dos heróis e santos, assim como, achincalhamento permanente destes valores (o ex-presidente Lula, por exemplo chegou a ironizar a verdade dos fatos acerca do mensalão e em tom de deboche afirmar que após o seu mandato iria se dedicar a comprovar que o mesmo fora invenção da oposição burguesa...). Da mesma forma acontece com os símbolos (artistas progressistas e movimentos revolucionários utilizam símbolos cristãos como forma de ridicularização, por exemplo, urinar em estátuas de Santos da Igreja Católica, introduzir no meio de uma apresentação teatral o crucifixo no anus; paradas gays em que os Santos da Igreja Católica são expostos em banners gigantes 96 como sendo homossexuais, estátuas de Santos introduzidas na vagina e anus de ativistas do movimento LGBT em plena via pública como crítica à visita do Papa ao país, etc.,etc.,etc.. Como também acerca de nomes, personalidades tradicionais e conservadoras (o próprio nome de Jesus Cristo muitas vezes é representado como sendo mentiroso, dado aos vícios e prazeres carnais/sexuais, seja como hétero ou como homossexual). Assim comopela modificação por parte dos governos de esquerda de nomes de escolas, ruas (cf. projetos como o do vereador Pedro Paulo do PT apresentado à Câmara Municipal de Curitiba que propõe alteração dos nomes de ruas, logradouros, prédios públicos... que fizerem referências a pessoas ligadas ao tempo da ditadura militar!). Na capital da Bahia, Salvador uma escola teve o nome alterado do Presidente Médici para Carlos Mari Marighela.Sem falar na exaltação da imoralidade, do “jeitinho brasileiro” como fonte de valores do novo ethos brasileiro. Como nos diz o filósofo brasileiro – acerca de tal mentalidade e práxis revolucionárias –Olavo de Carvalho (2004, p. 108) em Jardim das aflições, O desejo, o ímpeto, a ambição – da alma individual ou das massas revolucionárias – torna-se o fundamento único de uma cosmovisão onde a teoria já não serve senão para estimular retoricamente a ação prática ou para, uma vez realizada a ação, legitimar como satisfatório o que quer que tenha dela resultado na prática. Mesmo que a ação produza efeitos totalmente diversos dos esperados, já não haverá distanciamento crítico suficiente para julgá-los, e eles serão não somente aceitos, mas celebrados pela teoria como normais e desejáveis: a teoria não tem aí nenhum valor autônomo, está reduzida ao papel de uma racionalização a posteriori de uma apologia do fato consumado. E não se pode negar o peso e a influência desse pensamentomarxiano(11ª tese contra Feuerbach) no transcorrer dos séculos XIX e XX, mais precisamente, a história desse último século não pode ser compreendida sem a forte marca dessa mentalidade revolucionáriaque em um determinado período pretendeu forjar o “novo ethos” a fórceps (o nacional- socialismo russo ou stalinismo; o nacional-socialismo alemão ou hitlerismo; o nacional-socialismo italiano ou fascismo; o nacional-socialismo chinês ou maoísmo). É importante salientar aqui, algo que especialistas podem e devem compreender, não obstante, é desconhecido da grande maioria, principalmente, dos “simpatizantes” da prosopopéia socialista que conhecem 97 tal ideologia apenas pelo propagar midiático dos quadros/intelectuais orgânicos, etc. (onde a cultura não é mais um suporte de apoio à herança nacional e sustentáculo e propiciadora de valores vivificadores do ethos, mas sim, um meio de destruir valores, fundamentos, idéias) e pela percepção subjetiva impregnada de sentimentalismo pueril, agressivo e degenerado. O marxismo e todos os matizes sociais desta ideologia revolucionária estão fundados e radicados na concepção hegeliana de dialética negativa. Ou seja, a ênfase no negativo, na destruição é o motor da ação revolucionária.A história revela aos que puderam sobreviver ou àqueles que são filhos posteriores desse período que tanto quanto Hitler e Mussolini, efetuaram Stalin e Mao Dzedong a conversão do socialismo internacionalista, de uma doutrina de classes interna em um movimento partidário global que aprecia a situação em termos da antítese inexorável, externa, entre nações burguesas e ricas, representando o capitalismo em decadência, e nações pobres à procura de independência e recursos naturais. Os “pobres” assim é que precisam de lebensraum38. A concepção de uma convergência entre os quatro parceiros totalitários se realiza, concretamente, no curto período de sua relação cordial, que vai do acordo Ribbentrop-Molotov de agosto de 1939, incluído o pacto de Não-agressão entre Japão e URSS, até o desencadeamento da Operação Barbarossa, em junho de 1941. Importante se faz ressaltar alguns aspectos da manipulação de tal pensamento, colocados em ação para a obtenção dos resultados delineados pela teoria revolucionária, proposta por Karl Marx e outros teóricos comunistas. Portanto, serão apresentados de forma sintética, alguns dos postulados que foram traçados, com objetivos psicológicos (reengenharia social), pelos líderes soviéticos e propagados em outros países onde, a revolução socialista foi implantada a fim de alcançarem êxito no processo escatológico delineado por Marx em sua explicaçãoauto-intitulada “científica” do desenrolar da história. 38 Espaço vital ou espaço para viver. Tal conceito ocupará dentro de uma conotação política o sentido de espaço necessário para a expansão territorial, que no caso do marxismo/comunismo é a demarcação global através da revolução do proletariado, dos intelectuais orgânicos, delinquentes, marginais, minorias, etc. quantos agentes forem propícios e necessários para o projeto da revolução permanente. 98 Quanto aos postulados referentes à relação que deveria existir entre as massas e o partido, pode-se salientar, com base em estudos e pesquisasexaustivos acerca dos fenômenos do totalitarismo e da ideologia por teóricos e estudiosos da extirpe de um Eric Voegelin, uma Hannah Arendt, ConstantinNöica, Ortega y Gasset, Edmund Burke, Russel Kirk, StéphaneCourtois, Nicolas Werth, Jean-Louis Panné, AndrzejPaczkowski, KarelBartosek, Jean-Louis Margolin, Carl Friedrich, Zbigniew Brzezinski, HardleyCantril, Thomas Sowell, Viktor Frankl, Andrew Lobaczewski, David Horowitz, Simon S. Montefiore, Mário Ferreira dos Santos, Olavo de Carvalho, J. O. de Meira Penna, entre outros, que: 1- Que apesar dos indivíduos viverem e se identificarem com o “Estado” ou uma Nação, estes são essencialmente instrumentos do Partido Comunista, e seus cidadãos devem ser organizados e manipulados segundo os objetivos do Partido. 2- Que a realização e o desenvolvimento máximo do indivíduo e de suas capacidades latentes podem verificar-se apenas numa sociedade socialista, coletiva, livre de peias classistas de nacionalismos; que isso representa o único e verdadeiro humanismo, sendo esta uma evolução inevitável. 3- Que o indivíduo deve ser encarado, sobretudo, como uma unidade produtiva, nem mais nem menos (uma coisa que produz). A produção,naturalmente, é para o “Estado”. 4- Que a moral individual deve equacionar-se sempre à moral comunista definida em função dos objetivos do Partido; o que é “verdadeiro”, “correto” e “justo” deve ser julgado de maneira relativa, de acordo com os objetivos e iniciativas futuras exigidas pelo processo de criação de uma sociedade comunista. Ou seja, moral, verdade e ética são relativas e o único conceito absoluto é o de “Estado”, enquanto abarcando o ideal de sociedade comunista. (cf. a forma como os mensaleirosDelúbio, ex-tesoureiro do PT e José Dirceu, ex-Ministro da Casa Civil foram condecorados pelos membros 99 do partido e seus militantes como “guerreiros” e “heróis” brasileiros ao mesmo tempo em que a sociedade estupefata e parte indignada tentavam absorver o impacto de tal fenômeno. Nas entranhas de tal governo já estavam sendo manipulados um ardil de envergadura em proporções inimagináveis: o petrolão, maior escândalo de corrução já ocorrido na história da humanidade. Por ironia do destino Lula disse que o Brasil seria, em sua gestão alçado a patamares inimagináveis) 5- O que o indivíduo considera seus objetivos e a elite do “Partido”, objetivos sociais devem estar em perfeita concordância e vice-versa.(cf. o Diretório Nacional do PT em setembro de 2009 decidiu punir os deputados federais Luiz Bassuma (BA) e Henrique Afonso (AC) suspendendo os seus direitos políticos por um ano e noventa dias, pois os mesmos resolveram tornar pública as suas posições contrárias acerca da descriminalização do aborto.) 6- Que todas as provas de lealdade dos indivíduos devem conduzir ao Partido e dele porvir, pois, nenhuma contradição ou conflitos devem ser tolerados e, que toda idéia contrária ao ideal proposto pelo “Partido” deve ser erradicada.(cf. o caso de assassinato do prefeito Celso Daniel de Santo André e a perseguição a membros da família que se viram forçados a fugir do país. Outro caso suspeito e insepulto cadáver do PT é o de toninhoprefeito de campinas. Uma importante obra a ser lida por seu teor documental é Assassinato de reputações do ex-secretário nacional da Justiça do governo Lula) 7- Que os não-comunistas em qualquer parte do mundo representarão sempre uma ameaça ao comunismo, portanto, a tendência do comunismo é um movimento de caráter globalista, pois, o seu sucesso só é possível mediante o aniquilamento das condições sócio-econômicas divergentes e conseqüentemente, os tipos de consciências que estas condições geram.(Entender por que motivos o cidadão normal, sem nenhuma prática de politização social via partidos e ONGs “progressistas” no momento em que criticam um partido, governo ou ideologia esquerdista é ridicularizado, por vezes perseguido e até execrado por militantes e intelectuais orgânicos que ocupam postos nos aparelhos do estado) 8- Que os indivíduos devem reconhecer que os fins sempre justificam os meios e que eles são sempre ditados pela elite do “Partido”.(Os 100 “argumentos” utilizados pelo PT, esquerda em geral acerca do mensalão/petrolão, Cuba, Venezuela, As Farc, os crimes cometidos em nome da ideologia na extinta URSS, China de Mao...) 9- Que os desejos legítimos das pessoas incluem apenas as satisfações saudáveis e não abrangem os caprichos e luxúrias da sociedade burguesa, tão ruinosa para ela.(ver malabarismos feitos pelo governo do PT para dizer que erradicou da miséria no Brasil 19,5 milhões de brasileiros. E que 54% da população brasileira tinha alcançado a classe média entre os governos Lula e Dilma. Critérios para pertencer à classe média é ganhar entre R$ 300,00 e R$ 1.000,00 “acima disso já é pertencer à classe alta!”. Talvez para o governo comuno- socialista possuir em casa um pinico, uma anador ou aspirina e ter um cachorro vira-lata corresponda a estar provido por tal governo de saneamento básico, saúde e segurança.) Enquanto postulados que buscam operar como constituição de nova sociedade, cidadão, etc.fica mais que evidente que, tais postuladosnegam por completo os princípios básicos revelados no ethos clássico/judaico-cristão quanto à constituição do ser do ente homem (individual e coletivamente) e de sua condição de pessoa, dignidade e da condição de sacralidade da vida humana. Deste modo, quando se veicula/intrumentaliza dentro do ethos atual conceitos como os de:“pessoa”, “direitos humanos”, “tolerância”, “dignidade”, “liberdade de expressão”, “liberdade de ir e vir”, “igualdade de gênero”, “minorias”, etc., etc., etc,;tais expressões não passam de meros topóis (lugar comum, mantra, cantos da sereia) que são apresentados como pseudo- conceitosdentro dos sistemas socialistas39destituídos do real significado para assim se tornar iscas, instrumentos retóricos de manipulação, indução, distorção e destruição da percepção da realidade e do real40. 39 Ou seja, unidades fechadas de racionalidade que procuram explicar e abarcar a totalidade da realidade do mundo humano a partir dos gabinetes, das leis, dos livros e das mentes iluminadas. É o reino da metafísica proposicional que tem seu sucesso numa proporção inversa à liberdade, vitalidade, autonomia da pessoa e vida humana. 40 Cf. como exemplificação atual a agenda “politicamente correta” dos movimentos, partidos, intelectuais orgânicos e uso dos “aparelhos ideológicos” no que diz respeito a politização e pressão feitas às populações civis, com relação aos “direitos homossexuais” que vêm sendo impostos via manobras políticas e jurídicas no Brasil e demais países da América Latina (aqui se faz importante pesquisar pormenorizadamente os índices de casos de agressão, assassinatos e quem os pratica no país contra os homossexuais, como verificar manipulações e inversões de dados e fatos por parte de líderes de 101 Assim estes pseudo-conceitos e oratórias não podem simplesmente ser tomados dentro do mesmo quadro de referibilidade, o qual usualmente a tradição utilizou (em tais sistemas o que se observa é que todo fundamento onto-axiológico foi psico-logicamente rejeitado e invertido. Todavia, o mesmo não foi ontologicamente destruído uma vez que a realidade, o real independe das vontades sejam elas boas ou más; normais ou pervertidas; santas ou profanas; de direita, centro ou esquerda). Este é um dos graves e ingênuos erros cometidos pela maioria da população, que desconhece pensamentos e estratégias dos movimentos de esquerda em prol da revolução comunista (projeto globalista). Isto é muito bem denotado em obras como:O homem que amava os cachorros(2015), de Leonardo Padura Fuentes;Ponerologia: psicopatas no poder (2014), de Andrew Lobaczewky; O filho radical (2012), de David Horowitz;A guerra particular de Lenin (2008), de Lesley Chamberlain; O jovem Stalin(2008) e Stálin: a corte do czar vermelho, deSimon Montefiore (2006); Cortar o mal pela raiz (2006) e O livro negro do comunismo (1999), deStéphaneCourtis (orgs.); O jardim das aflições, de Olavo de Carvalho (2000);Tempos modernos (1994) e Os intelectuais (1990), de Paul Johnson; Tempestade sobre o mundo: a morte da liberdade na Rússia de W. S. Woytinsky (1963); 1884 de George Orwell (1984); Arquipélago Gulag de Alexandre Soljenitsen (1997); Limpeza da mente na China vermelha, de Edward Hunter (s/d); Redcocaine: thedruggingof América (Cocaína vermelha a narcotização da América41), de Joseph Douglas Jr.; etc. entre tantas outras e importantíssimas obras que versam acerca de tal assunto. movimentos, mídia epartidos políticos de esquerda, assim como, os casos de perseguição a homossexuais que não comungam com certos discursos e práticas da ideologia e líderes de tais movimentos). Como explicar que na Rússia, tais movimentos são terminantemente proibidos? Que em Cuba homossexuais são discriminados, perseguidos, encarcerados e até mortos pelo governo comunista que os governa a mais de meio século? Por que os “intelectuais orgânicos”, “movimentos sociais”, partidos e governos de esquerda nada falam! Acerca de tais atrocidades? Quem desconhece as táticas e o pensamento comunista e tenta compreender tais fenômenos pelos topóis que estes apresentam como conceitos agirá como “idiota útil”! Expressão esta cunhada por Lenin para definir os ocidentais que seguiam a ”prosopopéia” comunista. 41 Este tema em português é meramente ilustrativo, pois não há edição brasileira do mesmo. Em tal livro o autor trata das origens e do desenvolvimento da atual guerra política (comunismo) via drogas. Ao contrário de tanto livros sobre teorias conspiratórias o autor não apresenta nenhuma teoria, mas sim, provas, documentos oficiais de vários envolvidos, testemunhos de desertores e depoimentos de traficantes em processo de julgamento. É interessante, para nós latino americanos, pesquisar em particular o envolvimento dos partidos e governos “democráticos” de esquerda com os narcotraficantes da Farc (fonte documental Atas do Foro de São Paulo). O site http://www.notalatina.blogspot.com, da funcionária pública aposentada (psicóloga) é o melhor e mais completo arquivo e documentário acerca do processo 102 Os estudos, pesquisas e bibliografias acerca de tal fenômeno sãoextensas e bastante rica em informações, detalhes, fatos, documentos, etc. não justificando, portanto, o discurso nem tampouco os argumentos de ignorância costumeiramente utilizados por boa parcela dos cidadãos para tentarem eximir-se de suas responsabilidades enquanto tais. Não obstante, se faz importante salientar que, para que os líderes soviéticos/comunistas/socialistas alcancem ou não os seus objetivos de construção da decantada sociedade “mais justa”, se faz necessário que sejam observados alguns postulados quanto à natureza humana. Mais precisamente o que ela é e o que ela deve vir a ser – e aqui se torna mais específico o objetivo da mentalidade e projeto revolucionário quanto à alteração do ser do ente humano e do ethos vigente (reengenharia social/comportamental como processo necessário do projetoglobalista). Destarte, quanto aos postulados da natureza humana, pode-se destacar que: 1-As características e as peculiaridades dos seres humanos podem ser transformadas nas direções desejadas. (todo o século XX e início do século XXI demonstra tal empreitada por meio de métodos e instrumentos aplicados pela reengenharia social e, difundidos e massificados pela mídia. A este respeito conferir a obra Maquiavel Pedagogo ou o ministério da reforma psicológica, de Pascal Bernadin, editado pela Vide Editorial, 2013) 2- Que os seres humanos são pessoas bastante simples; não é preciso ter-se muito respeito por elas, ou muito medo de suas complexidades e capacidades.(conferir, em nosso caso específico, atuação de partidos como PSDB e PT seguindo fielmente a estratégia gramsciana traçada nos encontros do Foro de São Paulo desde 1990. Cf. as Atas do Foro de São Paulo se faz imprescindível para verificar as resoluçõesde tais encontros e as ações perpetradas no Brasil e demais países da América Latina pelos membros de tal organismo) 3- Que não se pode esperar que a grande maioria das pessoas saiba o que é bom para elas, ou como alcançar esse estado desejável, por isso devem ser revolucionário comunista na América Latina. Outras fontes são os sites: http://www.heitordepaola.com; http://www.midiasemmascara.org; http://www.olavodecarvalho.org; e http://www.fortalweb.com.br/grupoguararapes/index.asp dos militares da reserva. 103 dirigidas e controladas por uma elite selecionada.(cf entrevista do dep. Jean Willys sobre o Plebiscito acerca da temática “casamento gay” onde o mesmo diz: “O Plebiscito seria uma tragédia né, porque se agente for usar Plebscito pra, digamos assim, avaliar os temas principais da sociedade, agente vai ver que a população, que não é devidamente informada, não é informada de maneira correta, de maneira precisa vai, por exemplo, aprovar a pena de morte, vai aprovar a redução da maioridade penal... ou seja, agente não pode deixar na mão de uma sociedade que não é bem informada determinados temas. Então o tema do casamento civil entre homossexuais não pode ser deixado como Plebiscito porque as pessoas não estão bem informadas[...]. 4- Que de modo geral, as pessoas não são capazes de tomar decisões políticas e agir com eficiência nesse sentido. 5- Que só a elite comunista é capaz de guiar as massas “cientificamente”, por que só ela possui a exata compreensão da maneira de interpretar o marxismo- leninismo/marxismo-stalinismo... 6- Que as características dos seres humanos são em grande parte determinadas pelas situações sócio-econômicas, onde têm suas raízes e, essas situações devem ser manipuladas e controladas de tal modo pela elite, que elas afetarão a consciência dos indivíduos na maneira desejada.(engenharia social em curso perpetrada, em particular, no Brasil por meio da estratégia Gramsciana. Cf. também a obra Maquiavel Pedagogo ou o ministério da reforma psicológica, de PalcalBernadin) 7- Que as aspirações do povo podem ser manipuladas de modo a adaptar-se aos objetivos de longo alcance do “Partido”. Segundo o papel que o povo é solicitado a desempenhar em diferentes períodos e diferentes gerações, para alcançar o supremo objetivo colimado pela elite do “Partido”.(conferir métodos utilizados pelo PT, especificamente para manipulação dos “movimentos sociais” e dos intelectuais orgânicos dentro dos órgãos midiáticos, escolas, faculdades, etc.) 8- Que “pravda” (verdade e justiça) pode ser oficialmente definida, imposta e transmitida a todos os indivíduos, cujas crenças e ações serão determinadas de acordo com isso.(conferir discursos, documentos e ações do PT enquanto 104 governo. Analisar o processo em andamento da “Comissão da verdade” acerca do período da ditadura militar no Brasil) 9- Visto que toda verdade é “científica”, não existe verdade pessoal, nem verdade duradoura e eterna.(De acordo com o principal ideólogo do comunismo e ativista Karl Marx a verdade não existe... ela é uma convenção, portanto, a mesma não passa de uma construção mental que deve ser posta e imposta pelo poder político do partido/estado) Uma vez explicitados tais pressupostos, não é novidade nenhuma, portanto dizer que os mesmos foram a base e os princípios de sustentação daquilo que veio a ser conhecido como um regime totalitário que ao longo do século XX demonstrou a mais vil e abjeta ação direta (e contínua) contra a natureza, os direitos e a dignidade da vida humana. Literalmente concretizados (enquanto “pseudo-objetividade científica”) como morticínio de mais de 160 milhões de vítimaspelos regimes socialistas. Como nos diz StéphaneCourtouis, na introdução da obra O livro negro do comunismo(1999), Do que falaremos, de quais crimes? O comunismo cometeu inúmeros: inicialmente, crimes contra o espírito, mas também crimes contra a cultura universal e contra as culturas nacionais. Stalin ordenou a demolição de centenas de igrejas em Moscou; Ceasucescu destruiu o coraçãohistórico de Bucareste para construir edifícios e traçar perspectivas megalomaníacas; PolPot fez com que fosse desmontada pedra por pedra a Catedral de Phnom Penh e abandonou a selva os templos de Angkor; durante a revolução cultural maoísta, tesouros inestimáveis foram quebrados ou queimados pelas guardas vermelhas. Entretanto, por mais graves que tenham sido essas destruições, a longo prazo, para as nações envolvidas e para a humanidade inteira, em que medida elas pesam em face do assassinato em massa de pessoas, de homens, de mulheres, de crianças? (COURTOIS, p.16) Ainda acerca do mesmo, Olavo de Carvalho (2004) afirma que A capacidade das esquerdas mundiais para justificar em nome de uma utopia humanitária as piores atrocidades do regime comunista – e, exterminado o comunismo na URSS, para continuar a pregar com maior inocência os ideais socialistas como se não houvesse nenhuma relação intrínseca entre eles e o que aconteceu no inferno soviético –, é uma herança mórbida que, através de Marx, veio do epicurismo. Não é de estranhar que a evolução de um século do pensamento marxista tenha desembocado em Antonio Gramsci, o teórico do “historicismo absoluto”, que assume declaradamente aquilo que em 105 Marx estava apenas insinuado e implícito: a abolição do conceito de verdade objetiva e a submissão de toda atividade cognitiva às metas e critérios da práxis revolucionárias; a absorção da lógica na retórica, da ciência na propaganda ideológica. Também é compreensivo que, numa outra e paralela linha dessa evolução, que leva a Reich e a Marcuse, o desejo erótico, e já não a força das causas econômicas objetivas, seja a mola mestra que move o progresso e dispara a revolução. (CARVALHO, p.108) Depois de tal fenômeno não se pode negar que a ação humana, quando conduzida por uma razão instrumental desprovida de todos os laços com o ethostradicional, é capaz de levar a espécie humana ao nível mais baixo dentro da escala dos entes vivos existentes na natureza. Mesmo que este ente seja designado como “privilegiado” por ser “possuidor” da razão. Diante de ideologias como esta o que se vê é exatamente, o fenômeno da des- racionalização do ser humano; a barbarização “nua” e “crua” de todas as dimensões da realidade, mais especificamente a humana (Cf. A Invasão vertical dos bárbaros, de Mário Ferreira e As seis doenças do espírito, de ConstantinNöica). O problema com esse tipo de teoria, a qual Eric Voegelin, dentre outros estudiosos, classificam como ideologia reside justamente nas conseqüências drásticas que ocasionam ao mundo da realidade. Pois como expõe o filósofo alemão, em suas Reflexões autobiográficas (2007, p. 80-82), No plano mais imediato, toda e qualquer ideologia – marxismo, fascismo, nacional-socialismo, seja qual for; todas se mostram igualmente incompatíveis com a ciência, entendida no sentido racional de análise crítica. [...] não se pode, em hipótese alguma, ser ao mesmo tempo um ideólogo e um cientista social competente. [...] Uma segunda justificativa para o meu ódio do nacional- socialismo e de outras ideologias é bastante primitiva. Tenho repulsa ao morticínio de seres humanos por diversão. [...] a brincadeira é conquistar uma pseudo-identidade com a afirmação do próprio poder, o que se faz preferencialmente matando alguém, e esta pseudo-identidade passa a servir de substituta ao ego humano que se perdeu. [...] O terceiro motivo [...] contra as ideologias é o de um homem a quem agrada usar a linguagem claramente. Se há algo característico das ideologias e dos ideólogos é a destruição da linguagem, ora no nível do jargão intelectual de alto grau de complexidade, ora no nível vulgar. (14- Ideologia, posturas políticas e publicações, p. 80-82) Sob o julgo de tal signo mergulha-se a ciência, a cultura, os altos valores, a sociedade, a pessoa humana, na mais incerta das horas uma vez 106 que se nega os requisitos elementares para a constituição de toda e qualquer vida, conhecimento autêntico e humano. Nega-se a possibilidade mais própria do ser humano, a qual é a clarificação da realidade nos sentidos mais profundos do Ser. O que se almeja aqui com esse curto enredo das idéias, estratégias, ações e relações políticas, sociais (práxisrevolucionária) travadas dentro do século XX. É dar uma pequena demonstração como o pensamento – autonomeado e propagado como sendo “objetivo/científico” – do moderno marxismo (socialismo/comunismo)42acredita e toma como elemento primordial para as suas ações a idéia de que o nacionalismo é um instrumento válido da revolução. Por meio dessa ideologia e transe da revolução perpetrada pela ação coletiva “pseudo-consciente”, observou-se não só demonstrações dos atos mais abjetos e bárbaros, como o fenômeno singular do rebaixamento da espécie humana por meio da alienação (método de Pavlov) e negação da singularidade em prol da abstração de um novo homem (super-homem), sociedade (paraíso terrestre), etc..Não há mais pessoa humana, nem sacralidade em seu ser, mas apenas um indivíduo, um quadro, massa informe a ser modelada, direcionada, formatada, conduzida pelo regime/partido-estado. Essa idéia substancializada na cultura e veiculada por meios potentes de comunicação foi e continua sendo um importante instrumento de “(de)formação” ideológica das massas. Não por acaso, o domínio das grandes redes de comunicação em todo o globo terrestre pertencer a poucos grupos; as suas informações terem uma espécie de uniformidade padrão mesmo em países e até continentes diferentes; assim como, existir uma união de grupos políticos com conglomerados econômicos almejando a detenção do poder, veiculação e manipulação de sociedades, nações e vidas humanas. Eis um pouco desse campo complexo e enigmático, que é o fenômeno do globalismo, o qual necessita por um lado, destruir o ethos tradicional e, por outro projetar, lançar, formatar, inculcar as bases de um novo ethos por meio 42É importante, mais uma vez, lembrar do potencial vivificador/revolucionário da 11ª Tese contra Feuerbach, escrita por Karl Marx. Uma nova versão (guerra cultural) foi implantada no Ocidente pelo Instituto Marx-Engls, mais conhecida como Escola de Frankfurt (1923). 107 de ações políticas, das ações de pressão dos ditos “movimentos sociais”, re- ordenação jurídica (leia-se desmantelamento da Constituição), reestruturação geográfica e política43, uniformização dos modelos econômico-político, etc. A América Latina e mais especificamente, o Brasil, vem operando essa transmutação para o socialismo/comunismo através da revolução cultural gramsciana, que se centra na conquista da hegemonia cultural por meio de ações via “intelectuais orgânicos” (jornalistas, professores, novelistas, artistas, funcionários públicos, padres, pastores, etc.), “movimentos sociais”, ONGs, partidos políticos, sindicatos, etc. para chegar ao poder44, propagá-lo e mantê- lo. No entanto, o processo revolucionário necessita forjar uma nova moral, que ocupe o lugar da Ética tradicional (judaico-cristã) e para isso, segundo AntonioGamsci, o importante é penetrar o mais profundo possível no senso comum da sociedade, não tanto pela convicção política expressa, mas por via psicológica agir no inconsciente do senso comum. Para este comunista, na nova etapa socialista da luta pela tomada do poder, os “cidadãos” devem ser tratados como os animais nas experiências pavlovianas. Não é por acaso a ênfase na educação como um todo e, especificamente, primária dada pelos partidos/governos socialistas (especificamente os governos federais do PSDB-PT). Seja para formar osfuturos “intelectuais orgânicos”, seja simplesmente para predispor o povo aos sentimentos desejados – é muito importante que a influência comunista atinja a sua clientela quando seus cérebros ainda estão tenros e incapazes de resistência crítica45. 43 Cf. A teoria eurasiana do prof. Alexander Dugin, mentor do líder russo Putin e o cérebro por trás da política externa russa. Uma de suas encarnações materiais é a Organização de Cooperação de Shangai, que reúne: Russia, China, Quirziquistão, Cazaquistão, Uzbequistão, Tajiquistão e pretende ser o centro de uma reestruturação do poder militar mundial. 44 Tudo pensado e articulado pelo órgão criado em 1990 (Foro de São Paulo), por Fidel Castro e Luiz Inácio (lula), uma engrenagem consciente e subversiva das democracias para a conquista e instalação continental de uma união das repúblicas socialistas (a pátria bolivariana decantada pelo “presidente bufão” Hugo Chaves). 45 Bastante reveladoras a este respeito são as obras: 1984, de George Orwell e, limpeza da mente na China vermelha, de Edward Hunter. 108 Como exemplo atual em nosso país pode-se apresentar o projeto de reeducação sexual que visa modificar a percepção e quiçá a natureza sexual de crianças, jovens e adolescentes brasileiros46. Desde os anos 60 a educação brasileira vem sofrendo mudanças significativas a partir da revolução gramsciana perpetrada pelo ativista social Paulo Freire, onde a destruição de princípios, estrutura hierárquica, metodológica, etc. da educação tradicional, clássica tidas como opressora, burguesa, aristocrática, etc. foram substituídas por uma nova pedagogiaauto- nomeada libertária:do oprimido, da autonomia (nivelamento e até supremacia dos “educandos” frente aos educadores e estrutura formal da educação). Não se pode negar que tal pedagogia é uma realidade incrustada no seio da sociedade brasileira, assim como, a hegemonia cultural gramsciana domina o universo cultural e educacional do país. Afinal de contas ela vem sendo implantada desde os “anos de chumbo”. Não obstante, deve-se perguntar: por que diante de tal pedagogia humanista os nossos estudantes, em exames educacionais de nível internacional estão entre os que obtiveram notas vexatórias? Nacionalmente, isto não só é conhecido, como também se apresenta enquanto uma realidade trágicômica. Por exemplo, dos 65 países examinados no Programa Internacional de Avaliação de Alunos de 2009, o Brasil ficou em 53º lugar em leitura e 57º em matemática. Ficamos abaixo de “super-potências” como Azerbaijão, Cazaquistão e Trinidad e Tobago, não obstante,como diz o filósofo Olavo de Carvalho: “nenhum povo está tão preocupado com o futuro e a felicidade da humanidade quanto nós brasileiros (mantra do politicamente correto Brasil e mundo afora). Como adolescentes, vivemos sob o julgo de nossos sentimentos e, acreditamos que nossas subjetividades sejam, de fato, o padrão e critério objetivo que deva organizar, administrar e dirigir o mundo. Como disse o “intelectual orgânico” Paulo Freire, educar tem pouco a ver com ensinar a ler e a escrever. É antes de tudo preparar o cidadão47 para 46 Conferir material audiovisual preparado pelo “MEC” para ser distribuído nas escolas do país e estrategicamente, disponibilizado antes na internet. Idéia esta veiculada nos EUA pelo teórico da escola de Frankfut, Herbert Marcuse, na década de 50, através da obra Eros e civilização. 47 Leia-se membro, quadro, simpatizante da ideologia/partido esquerdista. 109 que ele seja transbordante de consciência social, cidadania e eleitor entusiasmado do partido-estado (o novo príncipe/a religião estatal). Não apenas é desastrosa a educação (politizada) de nossos jovens, que saem das escolas em sua maioria analfabetos (literais ou funcionais). O que significa dizer que serão excluídos das reais possibilidades de autonomia intelectual, psíquica e moral necessárias para ocupar os maiores e melhores cargos da sociedade (mesmo que sejam forjadas/impostas cotas para iseri-los no mercado de trabalho e, manipuladas versões da história e realidade a fim de isentar os mesmos de suas irresponsabilidades e incapacidades). Restando aos mesmos, os aparatos medíocres e imorais da pressão psicológica e até física junto a professores, coordenação, direção... para obterem o que intelectualmente não estão aptos para fazer, nem tampouco desejam lutar honestamente para conseguir. Este é um fenômeno preocupante que vem crescendo e se apresenta de forma drástica enquanto analfabetismo funcional de boa parcela dos alunos que ingressam no nível superior das IES brasileiras. Os jovens/estudantes, de modo geral são cada vez mais mimados com direitos (falsa noção de inclusão) e excluídos do mundo real onde inteligência, autodisciplina, limites, conhecimentos são elementos constitutivos e necessários para a formação de homens, mulheres, adultos capazes e conscientes (visão esta criticada por ser “tradicionalista”, “conservadora”, “arcaica”, “direitista”...). Jovens “educados” a partir das perspectivas revolucionárias dos anos rebeldes (1960), por “filosofias” de pensadores como Herbert Marcuse (intelectual da escola marxista de Frankfurt e mentor da revolução sexual, movimento hippie, revoltas estudantis), Nietzsche (destruição dos valores morais e instigação das pulsões/valores “realmente” humanos), Marx (luta de classes e destruição dos valores burgueses, religião...), entre tantos outros. Há muito que não respeitam nem reconhecem valores/tradição (disciplina, limites, comportamento sexual, seu corpo, etc.) nem tampouco indivíduos que as representem (pais, professores, velhos, autoridades, etc.).E os resultados são drásticos e dramáticos para toda a sociedade.Como medida de atuação relevante, a este respeito, os “políticos” brasileiros estão para 110 aprovar uma nova lei que busca cônscia e deliberadamente exacerbar o poder das crianças e jovens sobre os seus pais48. De certa forma, estes fenômenos são tratados na primeira metade do século XX, de forma clarividente nos escritos de personalidades com ampla formação clássica, como o crítico literário austríaco Otto Maria Carpeaux em A idéia das universidades e a idéia das classes médias, obras reunidas Vol II e o filósofo Basco Ortega y Gasset em A rebelião das massas, assim como, em nossa época, pelo filósofo Olavo de Carvalho em obras como: O imbecil coletivo I e II e, O jardim das aflições. Hoje a sociedade brasileira como um todo colhe os resultados da opção feita pela sua “elite intelectual”, da drástica ruptura com o ethos tradicional e a implantação megalomaníaca de um novo ethos, uma nova sociedade. A “criação” via mentes “iluminadas” de um novo homem e humanidade, sem a menor preocupação com suas conseqüências no mundo real. Enquantoresultados objetivos, a este respeito, a realidade das escolas brasileiras (públicas e privadas) vem demonstrando a incapacidade de formação intelectual (como também psíquica e moral) da quase totalidade de seus jovens e um nível crescente e alarmante de violências (psicológicas, morais, físicas) perpetradas por estes, contra aqueles que pareçam representar qualquer autoridade. Qualquer estudo responsável verificará que em nenhuma civilização antiga o ethos foi constituído tendo a Política como um fim. Isto também foi denotado pelo ethos grego, mesmo sabendo que a política é uma dimensão constitutiva (ontológica) do ser do ente homem, esta nunca foi erigida como a dimensão mais importante na formação da vida individual e até social. Basta observar,enquanto fato, que até bem próximo de nosso tempo as atividades religiosas eram bem mais importantes e ricas em símbolos da cultura e realidade constitutiva da vida dos indivíduos e sociedades. Isso 48 É interessante a este respeito pesquisar o número de atos delinqüentes, gravidez “indesejada”, práticas de abortos, uso de entorpecentes e ingresso no mundo marginal pelos adolescentes de nosso país a partirdos anos 80 e, principalmente, da politização enviesada exercida na vida da população civil e dos jovens. Assim como, da concomitante retirada da autonomia e poder educacional dos pais sobre seus filhos. Processo e projeto amplamente implantado pelos regimes socialistas: URSS, China, Alemanha nazista... 111 porque, todas as grandes civilizações foram forjadas a partir do rico cabedal de símbolos contidos nas mesmas. A política como um fim último; como “destino inevitável” da modernidade é uma invenção moderna e tem como um de seus mentores intelectuais Nicolau Maquiavel; a sua encarnação em figuras como Napoleão Bonaparte, Carl Schimit. E seu devaneio macabro se dá em personalidades totalitárias como: Lenin, Stalin, Hitler, Mao Dzetung, Fidel, Che Guevara, PolPot, etc. A politização de todos os âmbitos da vida humana é uma declaração cabal do fim da civilização e o início da barbárie (os grandes escritores da modernidade, leia-se, clássicos, foram capazes de antever tal fenômeno), pois, se tem a institucionalização da força, da violência (psicológica, moral, física), da mentira, da corrupção, da canalhice, etc. e, a concomitante destruição dos reais valores e princípios éticos superiores capazes de constituir o humano em nós e, uma comunidade realmente humana. Porque seguindo e aprofundando a seara aberta por Maquiavel o que deve ser levado em conta na política, é a obtenção e manutenção do poder, não importando os meios para adquiri-lo devendo apenas o político (partido- estado) se precaver de ser flagrado em seus atos “ilícitos”49. É assim que o século XX se torna o século mais sanguinário da história da humanidade. Nele tudo é politizado: sexo, educação, religião, lazer, vida privada, sentimentos, valores, etc.. O não engajamento de qualquer indivíduoé enquadrado como alienação, portanto, não fazer parte de, estar a margem de. É assim que se pode vislumbrar o poder de um “intelectual orgânico” e da “revolução cultural/pedagogia da libertação” junto à massa ingênua, mas fervilhando por agir dos jovens (fase vulnerável da formação do indivíduo em que pertencer a um grupo e ter um ideal representam o “sentido nobre da vida”). Mário Ferreira dos Santos tinha consciência da importância e seriedade da Educação. Assim como, do perigo que a baixa cultura, demagogias, 49Para nós brasileiros, o ilícito, o imoral, etc. tanto em vida pública como particular já passou a ser designado com o status de esperteza. Tal teatro de horrores constituiu-se em espetáculo tragicômico que sangra e aniquila a possibilidade de qualquer vida saudável, seja de pessoas, instituições, profissão, comunidades, sociedade, nação/país. 112 ideologias são capazes de produzir em um país. Principalmente em sua juventude. Daí o mesmo nos dizer em Rumos da Filosofia atual no Brasil: autos retratos (1976, p. 416-17) – importantíssimo trabalho idealizado e concretizado pelo ilustríssimo Prof. e Dr. Pe. StanislavsLadusans (Letônia) – que, Quanto à juventude brasileira, este é o mais grave de nossos problemas [...] Dado o baixo grau de cultura que temos, nossos estudantes passam a formar uma elite intelectual, o que demonstra uma inferioridade em que nos encontramos. Na história, a juventude sempre é o que decorre da sua natureza, apresentando aspectos positivos (pela sua capacidade de ação e idealismo) e negativos (pela sua irreflexão, pelo seu despreparo e apressamento, que a leva a cair, facilmente, nas malhas dos grandes agitadores e a servir aos interesses de demagogos e políticos). Em todas as épocas da humanidade, uma parte da juventude mais ativa tendeu à luta a favor de más causas, facilitando-as. Foram os jovens que destruíram o Instituto Pitagórico, condenaram Sócrates, perseguiram Anaximandro, Aristóteles, assassinaram Hipátia de Alexandria e perseguiram Santo Alberto, S. Tomás de Aquino, S. Boa Ventura, quando mestres na Universidade de Paris; que uivavam pelas ruas pedindo a cabeça de Dante, de Savanarola, de Giordano Bruno; que acusavam Pasteur de “charlatão” e atiravam pedras em Einstein. Esses jovens são ativos, eficientes na sua parte destrutiva. Mas há também uma juventude construtiva. Então, o que nos cabe fazer é orientar a juventude brasileira, dar-lhe suficiente Sabedoria clara, positiva, concreta, de modo a imunizá-la contra tendências niilistas, para que possa por a sua capacidade de ação e de idealismo em algo concreto que beneficie o país. Fora disso, nada dará resultado. O filósofo Mário Ferreira não só é atualíssimo em sua fala, como demonstra de forma direta aquilo que uma mente voltada para a compreensão da realidade é capaz de oferecer-nos. Infelizmente, a sociedade hodierna brasileira padece por não haver a devida acuidade moral, a atenção e o exercício concreto e responsável (intelectual, político e ético) por parte de sua elite, para o desenvolvimento da educação no Brasil. Um fato recente em nosso país e que corrobora com este fenômeno de politização e esvaziamento do sentido da política, da educação, da ética, etc. foi apresentado no discurso pronunciado pelo senador Demóstenes Torres na Tribuna do Senado dia 21 de junho de 2011. Onde o mesmo fez denúncias graves do material (Coleção Viver Aprender) distribuído nas escolas do país, pelo MEC. No discurso proferido (aproximadamente 20 minutos) o senador procurou destacar momentos relevantes deste material quanto ao seu 113 conteúdo, que apresentava passagens onde se fazia perceptível a promoção de: racismo, prostituição, incesto, estupro, pedofilia e agressão física e moral a professores. Além de fazer apologia, enaltecimento do MST e propaganda do partido e governos do PT. Como bem diz o filósofo e jornalistabrasileiro Olavo de Carvalho (1987), a inversão de valores é um dos objetivos prioritários da revolução gramsciana, na fase da luta pela hegemonia. E Gramsci é neste sentido um autêntico marxista/comunista, pois para o mesmo não basta derrotar a ideologia burguesa, é preciso extirpar, junto com ela, todos os valores e princípios herdados de civilizações anteriores, que ela de algum modo incorporou e que se encontram no fundo do senso comum50. E Olavo de Carvalho, em sua obra A revolução cultural e a Nova Ordem Mundial,fala que Trata-se enfim de uma gigantesca operação de lavagem cerebral, que deve apagar da mentalidade popular, e sobretudo do fundo inconsciente do senso comum, toda a herança moral e cultural da humanidade, para substituí-la por princípios radicalmente novos, fundados no primado da revolução e no que Gramsci denomina “historicismo absoluto”. Uma operação dessa envergadura transcende infinitamente o plano da mera pregação revolucionária, e abrange mutações psicológicas de imensa profundidade, que não poderiam ser realizadas de improviso nem à plena luz do dia. O combate pela hegemonia requer uma pluralidade de canais de atuação informais e aparentemente desligados de toda política, através dos quais se possa ir injetando imperceptivelmente na mentalidade popular toda uma gama de novos sentimentos, de novas reações, de novas palavras, de novos hábitos, que aos poucos vá mudando de direção o eixo da conduta.(CARVALHO, 1987 51 ) Como bem atesta o filósofo brasileiro, para Gramsci a pregação revolucionária aberta tem pouco valor, mais importante é a inoculação camuflada e sutil das novas idéias e valores morais. Papel doutrinariamente exercido em novelas, telejornais e programas midiáticos (principalmente a rede globo de televisão). Jornalistas, professores, cineastas, músicos, psicólogos, 50 Por trás do movimento gayzista (atualmente na ordem do dia), por exemplo, os intelectuais orgânicos buscam dominar, ridicularizar e aplacar os valores ético-morais do cristianismo (família, casal, casamento...). Quando muito estes valores tradicionais e seus adeptos poderão existir, apenas em âmbito privado. Um pouco de pesquisa acerca dos homossexuais dentro dos regimes comunistas revelará as atrocidades que os mesmos sofriam. Cuba ainda os encarcera e manda-os para o paredão. Ou seja, os homossexuais não passam de um instrumento (idiotas úteis) para a causa “revolucionária”. 51 Esta citação foi retirada de uma versão da obra digitalizada e não possui numeração de páginas. 114 conselheiros familiares, padres, pastores, funcionários públicos, etc. representam o exército de elite gramsciano. Usando um termo do pensador contemporâneo Michel Serres (2003), no entanto, buscando ampliar o mesmo no sentido de captar o mais amplamente possível esse novo ethos, pode-se, literalmente dizer que estamos vivendo o período da “hominiscências”, ou seja, estamos inseridos, conscientes ou não; desejosos ou não, no meio de um projeto de outra humanidade possível. Somos assim por dizer, “co-partícipes”, como sujeitos uma minoria e como objetos a ser manipulados, a grande maioria, de um projeto nunca antes perpetrado na história da humanidade, o qual é o de reengenharia social. Mais uma vez deve-se levantar uma inquisição de natureza ética a tal tipo de pensamento gestado pela mentalidade revolucionária socialista: por ventura é o ethos de natureza revolucionária, que possa ser modificado ao bel sabor dos desejos e projetos de uma elite, um partido, um “povo”, umageração, uma “filosofia”? Onde na história do Ocidente/Oriente o culto do negativo, da destruição (dialética hegelinana-marxista), foi capaz de erigir a humanidade no homem? Quais as conseqüências morais de tal empreitada na vida concreta de homens, comunidades, sociedades, países que aderiram a tal ideologia? Pode o homem refazer, reconstituir continuamente sua morada espiritual (oikos), uma vez que o ethos é em sua característica ontológica intrinsecamente de natureza conservadora e tradicional52? No próximo tópico buscar-se-á adentrar na especificidade de um fazer humano, o qual é o da cultura dentro de um ethos fortemente marcado por um dos elementos caracterizadores da modernidade, o capitalismo. Mais especificamente, a mesma será observada de forma crítica enquanto, 52 Por conservadora/tradicional deve-se entender uma natureza fundada em princípios alicerçados no real e confirmados ao longo das gerações. Define-se pelo senso de continuidade temporal, pela ojeriza às súbitas mutações revolucionárias, pelo desejo de preservar a integridade do legado civilizacional por baixo das lutas e traumatismos ideológicos. Seus princípios dentro do quadro político, são: 1- Ninguém é dono do futuro; 2- Cada geração tem o direito de escolher o que lhe convém, de aprender com as experiências, sem, contudo, comprometer o futuro das novas gerações: filhos, netos... por atitudes temerárias e irresponsáveis de “gerações supostamente escolhidas”; 3- Nenhum governo poderá fazer nada que o seguinte não possa desfazer; 4- Nenhuma proposta revolucionária é digna de ser debatida como alternativa respeitável em um quadro político democrático; 5- A democracia, enquanto governo das tentativas experimentais, sempre revogáveis e de curto prazo é o oposto da política e mentalidade revolucionária. 6- A total erradicação da mentalidade revolucionária é a condição para a sobrevivência da liberdade: individual e coletiva no mundo. 115 produtora de massificação, alienação, destruição de patrimônios: culturais e naturais, identidades,etc. CAPÍTULO IV – A CULTURA DENTRO DO ETHOS GLOBALIZADO. 116 “O homem é o valor fundamental, algo que vale por si mesmo [...]. De todos os seres, só o homem é capaz de valores, e as ciências do homem são inseparáveis de estimativas” Miguel Reale Como fora dito anteriormente, no início do terceiro capítulo, não é possível uma compreensão do mundo hodierno sem ter uma devida noção da historialidadeocidental percorrida ao longo dos séculos. Esta historialidade pode por muitos aspectos ser observada a partir do itinerário da razão, como também via desenvolvimento dos meios e instrumentos que os homens utilizaram para suprir, organizar e ordenar a sua existência. E aqui se faz importante salientar o fenômeno da técnica, da tecnologia, a qual exerceu e ainda exerce um papel fundamental na história da modernidade, porque, através do uso da mesma se tem a pretensão não só de transformar a natureza, mas acima de tudo, dominá-la, como procurou expressar Sir Francis Bacon no seu nasciturno. Esse saber, segundo Karl Popper, enquanto poder se transformou a partir da modernidade em nova “religião”53, a qual trouxe a promessa de um paraíso terrestre e a esperança de um mundo melhor que os homens poderiam construir por si mesmos a partir do conhecimento. E não seria um equívoco dizer que a história da modernidade, também pode ser descrita como a história das transformações, alienações, explorações, etc. do ser humano. Transformações estas, que em sua grande maioria, seja no aspecto individualista ou coletivista nada mais fez que obter como resultado final a coisificação do ser humano. Porque não se pode esquecer que com a modernidade e seu ethoscalcado no projeto de um novo mundo e novo homem, destinados pelo “saber racional mágico” ao progresso,tem-se início ao processo instrumental da cultura de massificação da vida e espécie humana (capitalismo e os variados matizes de socialismos). 53 Deve-se então, está atento para o significado deste termo religião na modernidade, pois, o mesmo, não tem nenhuma intencionalidade de re-ligar o homem a DEUS; mas sim, em desviá-lo de sua rota; em construir uma nova “ontologia” tendo o “homem” como centro e senhor de todas as coisas. Para isso, se faz necessário matar DEUS! 117 Como bem dissera Bruno Latour em sua obra Jamais fomos modernos (LATOUR, 1994, p.15) “A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou jornalistas”. O que nos interessa aqui dentre tantos aspectos é aquele que é marcado pela idéia historicista de progresso; pela capacidade de transformação e utilização da natureza em meios de obtenção de riqueza. Assim, ver-se-á uma revolução proporcionada por uma nova forma de ver, agir e pensar do homem (era dos humanismos54), a qual está alicerçada em um novo aparato tecnológico, o qual será propiciador e gerador de riquezas. No prólogo a A condição humana (2000), Hannah Arendt traça de forma magistral a atual situação em que se encontram homem hodierno constituidor de uma racionalidade, a qual, não somente é criadora de culturas, mas de pensar e até forjar projetos para novos mundos possíveis e, a natureza, a qual o mesmo, de certa forma pertence e está ligado. Diz-nosa mesma(2000, p. 10): A terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço, nem artifício. O mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar <artificial> a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, <sob o microscópio, o líquido seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores> e <alterar (-lhes) o tamanho, a forma e a função>; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida para além do limite dos cem anos. 54Abase do humanismo é de que não existe um Deus Todo Poderoso, Criador e Sustentáculo da vida, os humanistas acreditam que o homem é seu próprio deus. Acreditam que os valores morais são relativos, inventados de acordo com as necessidades de um povo específico, e que a ética também é situacional. Os Humanistas rejeitam a moral e a ética Judaico-Cristã, tais como as contidas nos Dez Mandamentos, tidos como “dogmáticos”, “fora de moda”, “autoritários” e um atraso ao progresso da humanidade. No humanismo a auto-realização, a felicidade, o amor e a justiça são encontrados por cada homem individualmente, sem referência a nenhuma fonte divina. Dentro da ética Judaico-Cristã não existe e não pode existir auto-realização, felicidade, amor ou justiça na Terra, que não seja, em última análise, relacionada com um Deus Todo Poderoso, Criador e Provedor. 118 Hannah Arendt toca na questão central que perfaz os tempos modernos, o qual é o do sentimento de rebelião do homem moderno para com a sua condição existencial humana, na forma e medida em que lhe foi dada. Compreendida esta, dentro da cultura secular moderna como um dom gratuito vindo do nada; e que, portanto, o mesmo deseja trocar por algo que lhe seja próprio, no sentido de essência e existência projetada pela razão meramente humana (humanismo gnóstico). Como nos diz o filósofo contemporâneo alemão Eric Voegelin (1982), esta é a época dominada pelo gnosticismo, a qual é caracterizada pelo sentimento de ódio à realidade como tal e, por isso, deve ser transformada através da revolução permanente dos costumes, hábitos, desejos; enfim, do pensar, agir e ser do ente homem (reengenharia social). Assim, como na história mítica acerca do rei Midas, a modernidade é fortemente marcada por essa cultura de uma racionalidade que a tudo deseja transformar. A contemplação amorosa que constituiu a base do conhecimento antigo clássico e medievo, assim como forjou o tal ethos, foi abrupta e radicalmente alterada a partir da modernidade. E tal alteração, diga-se de passagem, não se deu por meio de um acirrado debate científico, mas sim, pela deliberada negação do “antigo” em prol do “novo” enquanto paradigma. Desta forma, sutil e sofismaticamente pretende-se dizer que o “antigo”, o “clássico”, etc. foi superado, quando, na verdade, ele foi soterrado por várias camadas de engodos e artifícios subjetivos para não vir a tona e demonstrar a farsa do teatro em palco modernista. Onde pseudos: “intelectuais”, “filósofos”, “teorias científicas”, “pedagogias”, etc. podem vigorar, justamente pela falta de substancialidade e critérios objetivos, concretos na formação intelectual, psíquica e moral dos indivíduos. O pensador alemão e mentor de uma variante do pensamento e ativismo radical, Karl Marx deixa explícita tal “filosofia de vida/praxis revolucionária” na célebre 11ª tese contra Feuerbach “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. Destarte, a ciência de saber desinteressado passa a ser um conhecimento funcional instrumentalizado; o cientista, mero funcionário do “Estado” ou de grandes conglomerados econômicos. Claramente, tem-se um 119 salto regressivo no ser da ciência, cientista, etc., pois, de saber desinteressado, passa-se a funcionário de ideologias. Não por acaso o ethosmoderno-contemporâneo se constituir como altamente materialista, gerencial e tecnicista, individualista e centrado nos seus mais humanos (razão) desejos de produção de riquezas/poder. Seja por meio da ciência ou da economia diretamente falando, assim como, de uma centralização usurpadora do poder sobre coisas, pessoas, vidas (política). Se o elo entre nós contemporâneos (pós-modernos) e os originários de nossa civilização não tivesse sido rompido de forma tão abrupta e radical, talvez não tivéssemos incorrido neste reducionismo primário. Pois como nos dissera o Filósofo Aristóteles há mais de dois milênios atrás “o ser se diz de várias maneiras”. Assim, ganhamos em técnica, em números; em poder manipulador e gerencial, mas perdemos no tocante à razão em sutileza, qualidade, perspicácia, humildade e noção de unidade. Biólogos estão redescobrindo Aristóteles e percebendo a grandeza do seu saber, da sua filosofia. O que fora criticado até por “filósofos” como sendo uma física rudimentar e ultrapassada (acerca do livro sobre a física de Aristóteles), hoje é compreendida por estes cientistas como uma sofisticada metodologia científica. A modernidade e os modernos (humanistas, progressistas...) se mostram incapazes de compreender a sua própria origem e, como uma criança/adolescente mimados destroem aquilo que não podem dominar através da “vontade de potência” instituída como deusa55. É exatamente acerca deste aspecto que se deve procurar refletir:como pode em tal ethos onde a racionalidade se propõe a ser funcional-utilitária, a razão captar o sentido complexo e diverso do ser constituinte das coisas que compõem a realidade em sua totalidade. E não suplantar em nome de um fazer meramente funcional, o qual opera sobre o signo do ter-poder, a existencialidade daquele que é tomado enquanto indivíduo/profissional e tem assim por dizer, reduzida a sua condição de pessoa humana, que é em si dotado de ser? 55 Eis a dialética negativa a forjar os seus filhos e frutos. Irônica e perversamente a foice e o martelo não estão a serviço da edificação, mas sim, servem ao reino do abismo que se alimenta insaciavelmente da destruição. 120 Eis um brutal rebaixamento ontológico, o qual a modernidade com o seu projeto gnóstico de uma razão imanentista colocou no seio de uma “nova história da humanidade”. Vimos no capítulo anterior a célebre sentença socrática, a qual expressa que “uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. Estamos tão distante de tal época, que se parece quase impossível alcançar o real significado do que quis dizer-nos o sábio grego. Dividimos,compartimentamos, esvaziamos, reduzimos, tornamos valores e pessoas superficiais, criamos e nos aprisionamos em mundos virtuais por incapacidade de encarar o mundo real, etc.. E assim para nós torna-se imperceptível o que tal sentença está a dizer. Não por acaso o ethostradicional está repleto de chamados, enunciados, enfim, sentenças que procuram chamar à consciência os homens envoltos e absortos nas coisas enquanto meros fenômenos. Mas como é possível ouvir e até compreender tais chamados se nesta novaera a consciência passa a ser um elemento que subtrai a espécie humana? Se a consciência é vista como subterfúgio, fraqueza, envenenamento e aniquiladora do animal homem? Assim como, instrumental de um aparelho ideológico que busca nada mais que policiar e alienar para conseguir a obtenção e manutenção de poder. Dentro de tal repositório de suspeitas qualquer mente ou é paralisada ou então aniquilada. Eis o “reino da matilha” hobbesiano, no entanto, se observarmos atentamente no mundo animal entre os entes da mesma espécie, não se vê tal fenômeno tanto em grau de intensidade como de proporção. Não sem motivos nos depararmos com escritos originários da Civilização Ocidental, onde se pode ouvir sentenças como: “... De bom grado falo aos que sabem, dos que não sabem me escondo.” (ESQUILO, Agamenon, 38s.) ou a sentença oracular Heraclítica (1999, p. 59) a nos dizer, Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com este Logos e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com as palavras e as obras, iguais às que levo à cabo, discernindo e dilucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem 121 acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono. O que nos interessa com o enunciar desta sentença é atentar-se para o ignorar da maioria dos homens, quanto à sua condição de Ser humano dotado da condição racional e, sem a qual se faz impossível o mesmo constituir a sua natureza de ser humano. Natureza esta que não é dada, mas precisa ser constituída ao longo de sua existência em meio à natureza e ao mundo. É dentro desta searada tradição inaugurada pelo logos filosófico e filosofia clássica grega,que se busca aqui dialogar e refletir em meio à crise que campeia em mundo hodierno. Faz-se importante salientar também, que, não se pode entender a profundidade constitutiva deste ente humano se não se atentar para aquilo que o cristianismo enquanto uma boa nova traz e incorpora ao ethos, que é a noção de pessoa, a qual será trabalhada conceitualmente pelos filósofos da Igreja. Não obstante, em meio ao fazer dasmais diversas atividadeshumanas, pode-se deparar muitas vezes com um rebaixar do estatuto e dignidade da pessoa humana (prostituição física, psicológica, moral, intelectual; condições inadequadas para o trabalho, desrespeito e inversão dos direitos elementares do ser humano, inversão hierárquica do ser colocando o contingente sobre o necessário, etc.), porque o fundamento de tais relações rompe de maneira cirúrgica a ligação entre a pessoa que tem estatuto e dignidade (humana) e o indivíduo, o qual é delineado em sociedade moderna/pós-moderna enquanto figura atomística como número (objeto-coisa-massa). Não se pode deixar de observar que a condição de ser humano em tal época está diretamente ligada à condição laboral que o indivíduo possui dentro da sociedade. Assim como, da ideologia política a qual ele está inserido/submetido. A modernidade/pós-modernidade se mostra então como uma época que é caracterizada pela desconstrução, ruptura, massificação e reducionismo. O que impede a efetivação da constituição do ser do ente homem. Vive-se uma época onde a morbidez é sintomática. O espírito da corrupção e destruição é erigido ao plano de princípio constituinte. 122 E de forma mais profunda, exatamente por ter sofrido na carne e na alma os horrores do regime totalitário socialista, o filósofo romeno ConstantinNoica em sua obra As seis doenças do espírito, declarar que Ao lado das doenças somáticas, que conhecemos há séculos, e das doenças psíquicas, identificadas mais recentemente, devem existir outras, de ordem superior,às quais chamaremos doenças do espírito. Nenhuma neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o sentimento de nosso exílio na terra ou de nossa alienação, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o “furor” econômico ou político, a arte abstrata, o “demonismo” técnico, nem talvez aquele formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domínios da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade. (NOICA, 1999, 23) No próximo tópico serão analisados estes fenômenos constitutivos de tal época que é denominada de pós-moderna, a partir da perspectiva crítica delineada por pensadores como: Stuart Hall, Manuel Castells e Evilázio Teixeira. 4.1 MASSIFICAÇÃO, DESCONSTRUÇÃO E REDUCIONISMO “O homem como único ente, que só pode ser enquanto realiza o seu dever ser, revela-se como “pessoa” ou unidade espiritual, sendo a fonte, a base de toda a Axiologia, e de todo processo cultural, pois pessoa não é senão espírito na autoconsciência de seu pôr-se constitutivamente como valor” Miguel Reale Em sua obraA identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall apresenta o processo da globalização como “um complexo de processos e forças de mudança” (2003, p. 67). Tais processos atuam de maneira global e transpassam as barreiras e fronteiras geográficas, nacionais, políticas, culturais integrando e remodelando em novas combinações espaço-temporais comunidades, organizações, povos. Por traz da idéia de aldeia global, este novo mundo humano interconectado, as culturas, os povos, as nações e até as vidas são resignificadas em função de uma nova ordem mundial de matiz preponderantemente político-econômica. 123 Impera em tal época a necessidade radical de tudo transformar. Uma destas transmutações é a do sentido ontológico de identidade. Daí ouvirmos nas discussões travadas no campo da teoria social que As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. (HALL, p. 7, 2003) Tal fenômeno é designado de crise de identidade, a qual é parte integrante de um processo muito mais amplo de transformação que vem deslocando as estruturas e dinâmicas fundamentais das sociedades modernas, abalando assim todo o quadro referencial que dava aos indivíduos uma base estável para a vida humana no mundo social. Enquanto que no aspecto econômico globalizante tudo isto se perfaz pela dinâmica e fluxo dos capitais voláteis e transações estratosféricas que num simples comando eletrônico pode fazer ruir toda historialidade de um povo, cultura ou nação. Desta forma, a vida humana e sua milenar história de constituição das civilizações passam a estar a mercê dos “jogos simbólicos” constituídos pelo homem moderno e tão bem desenvolvido e aprofundado pelo homem “pós- moderno”. Em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall se utiliza da seguinte citação de Giddens(2003, p. 72), Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população, dominadas pela presença – por uma atividade localizada... A modernidade separa, cada vez mais, o espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão “ausentes”, distantes (em termos de local), de qualquer interação face-a-face. Nas condições da modernidade..., os locais são inteiramente penetrados e moldados por influências sociais bastante distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente aquilo que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas que determinam sua naturezaOnde procura fazer explicitar em nossa época o fenômeno da desconstrução do símbolo espaço-tempo tão arraigado na cultura tradicional dos povos. 124 Tal fenômeno em tempos hodiernos denota o que se pode chamar de “destruição do espaço através do tempo”. E assim fenômenos globais como este vão enfraquecendo certas formas de identidades culturais, nacionais e introduzindo e reorganizando outros laços de identificação e unificação cultural. A este respeito nos fala Stuart Hall (2003, p. 74) que, Alguns teóricos culturais argumentam que a tendência em direção a uma maior interdependência global está levando ao colapso de todas as identidades culturais fortes e está produzindo fragmentação de códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente e na diferença e no pluralismo cultural [...] Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidade de “identidades partilhadas” – como “consumidores” para os mesmos serviços, “públicos” para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas das outras no espaço e no tempo. Destarte, a medida que as culturas, locais, regionais, nacionais vão sendo expostas às influências externas de um modelo globalizante, torna-se cada vez mais difícil de manter as características tradicionais, os elementos culturais que a tanto tempo deram o sentimento de unidade, etc.. Porque o fluxo de informações, de imagens explodem numa intensidade e velocidade tal – as quais são produzidas sob medida para se infiltrarem e transformarem as culturas – que a conservação das identidades culturais é praticamente nula. Dentro de uma época que é caracterizada pelo fluxo de informações constante e cada vez mais aprimorada; onde a economia ganha contornos a cada dia mais global e se constitui pelo fluxo e troca quase instantâneos de informação, capital e comunicação cultural. Tais fluxos passam a regular e a condicionar a um só tempo consumo e produção de bens. É o que Manuel Castells chama de sociedade em rede, onde a produção e o tráfego de informações não se encontram regulamentados por instâncias meramente nacionais. Excede-as e por vezes é muito mais ágil e potente que as antigas instâncias geradoras de poder. Como nos diz Manuel Castells (2002, p. 39-40), No fim do segundo milênio da Era Cristã, vários acontecimentos de importância histórica transformaram o cenário social da vida humana. Uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias de informação começou a remodelar a base material da sociedade em 125 ritmo acelerado. Economias por todo o mundo passaram a manter interdependência global, apresentando uma nova forma de relação entre a economia, o estado e a sociedade em um sistema de geometria variável. [...] o próprio capitalismo passa por um processo de profunda reestruturação caracterizado por maior flexibilidade de gerenciamento; descentralização das empresas e sua organização em redes tanto internamente quanto em suas relações com outras empresas. [...] Em conseqüência dessa revisão geral, ainda em curso do sistema capitalista, testemunhamos a integração global dos mercados financeiros [...] Dentro desta nova perspectiva e fenômeno da globalização, mais precisamente tomando o seu aspecto econômico, observa-se que a liberação paralela de forças produtivas da revolução informacional tem gerado e introjetado na sociedade um padrão de modificação intenso que por um lado pode-se denotar como proporcionador de desenvolvimento, riquezas, comodidades, qualidade de vida, etc. Todavia, o mesmo também produz a consolidação de bolsões de miséria humana na economia global, a destruição sistemática de parte considerável do ecossistema do planeta terra. Não se pode deixar de perceber que concomitante às transformações tecnológicas e econômicas, também vêm ocorrendo em mundo hodierno as mudanças drásticas da vida humana dentro da sociedade. O que dizer do fenômeno da violência cada vez mais crescente (50 mil mortes por no Brasil, um país que não está em “guerra”), assim como o crescimento exorbitante da corrupção nos diversos setores da sociedade brasileira e em especial no setor público. O fenômeno da miséria que aplaca milhões de vidas ao redor do globo terrestre (a maior parte do continente africano e de países da América do Sul), a proliferação em todas as sociedades modernas das doenças psicossomáticas, a “politização” e concomitante banalização dos valores éticos. Assim como da vida humana que passa a ser subjugada, subtraída e reestruturada a partir de novas estruturas sociais (engenharia social). Segundo Manuel Castells as estruturas sociais emergentes nos domínios da atividade e experiência humana se encontram estruturadas em torno de redes, as quais constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e, concomitantemente operam na difusão da lógica de redes que modifica de maneira substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura. 126 Para Manuel Castells (2002, p. 566), As redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, [...] que compartilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores ou objetivos de desempenho). [...] Redes são instrumentos apropriados para a economia capitalista baseada na inovação, globalização e concentração descentralizada; para o trabalho, trabalhadores e empresas voltadas para a flexibilidade e adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e reconstrução contínuas; para uma política destinada ao processamento instantâneo de novos valores e humores públicos; e para uma organização social que vise a suplantação do espaço e invalidação do tempo. E ainda mais, pois a morfologia das redes, segundo o pensador espanhol, também é fonte de drástica reorganização das relações de poder. Daí o mesmo dizer que As conexões que ligam as redes (por exemplo, fluxos financeiros assumindo o controle de impérios da mídia que influenciam os processos políticos) representam os instrumentos privilegiados do poder. Assim, os conectores são os detentores do poder. Uma vez que as redes são múltiplas, os códigos interoperacionais e as conexões entre redes tornam-se as fontes fundamentais da formação, orientação e desorientação das sociedades. A convergência da evolução social e das tecnologias da informação criou uma nova base material para o desempenho de atividades em toda a estrutura social. (2002, p. 566) Esta base material, a qual está constituída por redes é que define os processos sociais predominantes e, conseqüentemente é quem dá a forma à estrutura social. Sendo assim, ter acesso ao Know-how tecnológico é de fundamental importância para a produtividade e competitividade, dentro da nova economia organizada em redes globais de capital, gerenciamento e informação. Estes e outros fenômenos que são possíveis de perceber na sociedade humana hodierna demonstram muito além do processo de mudança inerente à espécie homem, a qual é e está inserida na história enquanto constituidora de cultura. O fato e fenômeno novo da desconstrução não somente de um ethos milenar, mas também e principalmente, da humanidade do ente homem, a qual se vê subtraída em prol de uma racionalização matemática que a tudo 127 transforma em objeto, que por sua vez é destinado ao mercado e deverá ser comprado, trocado, utilizado, reciclado e por fim descartado. Eis o homem e a humanidade mais uma vez postos em frente ao enigma da esfinge: “decifra-me ou devoro-te”.O nosso tempo tem se mostrado como o mais árduo e difícil dentre os tempos outrora vividos e enfrentados pela espécie humana. O que marca este tempo presente, o qual denominam de pós-moderno? Muito se fala acerca deste fenômeno chamado “pós-modernidade” e dentre tantos sentidos que lhes são atribuídos, pode-se dizer que a sociedade na qual vivemos é fortemente marcada pela comunicação generalizada, é a sociedade dos meios de comunicação (mass media). Em Aventura pós-moderna e sua sombra (2005, p. 80), Evilázio Teixeira nos diz que, A análise da pós-modernidade está intimamente ligada à dinâmica da modernidade como tal, enquanto processo concluído. Para Váttimo, a modernidade deixa de existir quando – por múltiplas razões – desaparece a possibilidade de se falar de história como uma entidade unitária. Com Marx e Nietzsche a idéia de história, entendida como decurso unitário, se dissolve. A deficiência da idéia de história carrega consigo o colapso da idéia de progresso. Se por um lado a pós-modernidade encarna um caráter de produção e veiculação maciça de informação (massificação). Por outro, ela é parte e processo de uma crise gestada na modernidade, a qual tem por intuito cônscia e deliberadamente a destruição de todo edifício ontoteológico constituído em períodos clássico e medievo. Com pensadores como Marx e Nietzsche tal intento se torna muito mais claro. Não como “crítica radical” como intencionam mostrar alguns estudiosos e intérpretes destes pensadores, mas sim, enquanto “vontade de potência” que encarna o ideal destruidor para dos escombros “desta velha e moribunda civilização” criar o super-homem, a classe escolhida para “forjar” a nova sociedade. Assim o termo “pós-moderno” quer fazer anunciar de dentro da modernidade a verificação de uma crise. O instinto niilista diz não! É a ruptura e negação do ser em prol do nada. 128 Segundo Félix Torres o fenômeno da pós-modernidade deve ser entendido como um sintoma, pela sua aparição e pelas suas posições (TORRES apud TEIXEIRA, p. 89, 2005). Para o pensador francês Lyotard(LYOTARD apud TEIXEIRA, p. 89, 2005), Pós-moderno indica simplesmente um estado de alma, ou melhor, um estado de espírito. Poder-se-ia dizer que se trata de uma mudança de relação no que se refere ao problema do sentido: diria, simplificando muito, que o moderno é a consciência da ausência de valor em muitas atividades. O que é novo seria o não saber responder ao problema do sentido. Destarte o mesmo procura chamar a atenção para um aspecto importante que marca esta nova época, o qual é que os relatos de legitimação que até então haviam funcionado no período da modernidade começavam a ruir e, este declínio implicava na necessidade da constituição de uma nova “ordem”, de uma nova legitimidade para dar suporte à sociedade do futuro. Ainda em Aventura pós-moderna e sua sombra, Teixeira se utiliza do pensamento de Gilles Lipovetsky, para dizer acerca de tal época; Para Gilles Lipovetsky “é no curso dos anos setenta que o pós- modernismo revela suas características maiores com seu radicalismo cultural e político, seu hedonismo exacerbado [...]. cultura de massas hedonista e psicodélica que não é mais que aparentemente revolucionária [...]. longe de estar em descontinuidade com o modernismo, a era pós-moderna se define pela prolongação e a generalização de uma de suas tendências constitutivas, o processo de personalização, e correlativamente pela redução progressiva de sua outra tendência, o processo disciplinário. (LIPOVETSKY apudTEIXEIRA, p. 90, 2005) O que deve se depreender de tal passagem é que de um mundo outrora organizado passa-se agora para um mundo carente de significado (unidade). Não havendo um “sentido objetivo” prepondera então o sentimento de desencanto do mundo e dentro desta perspectiva está presente um pluralismo que se manifesta também como relativismo. Não existem estruturas, valores, leis objetivas, pois tudo é criação humana e enquanto realidade, nada mais é que o produto do jogo das forças. 129 E dentro desta nova sociedade secular, as “verdades” e os “valores”, assim como a natureza e a política nada possuem de correlação ou fundamento com o divino. Vive-se então numa época onde preponderam os “objetos” e, não por acaso, em época de economia, informação e cultura global a questão do consumo ganha contorno e relevância inimaginável, fazendo com que tudo esteja submetido ao seu ritmo e sucessão contínuos, como presas indefesas a consumir e acumular dos seus signos em busca de alcançar a “felicidade”. E assim o império da mídia na fabricação contínua e exacerbada das imagens vai submetendo os indivíduos-massa ao processo tirânico de alienação. Vive-se deste modo em um teatro dos horrores onde tal espetáculo é produzido e encenado por profissionais que invadem todas as fronteiras e conquistam todos os domínios da vida humana: tanto particular como coletiva. E de forma cônscia e deliberada passam a organizar e sistematizar a vida inerte dos indivíduos dentro da sociedade. Daí para J. Baudrillard vivermos na cultura do simulacro que nos molda em um mundo de pseudo-gratificações frustrantes, que cria falsas expectativas onde jogam combinações artificiais de significantes e significados. É o mundo do pseudo-acontecimento em que se perde o referencial pelo código; onde o objeto domina e prepondera sobre o ser do ente homem. No entanto, este mesmo objeto precisa a cada instante ser destruído para fazer surgir um novo em seu lugar (fabricação-destruição e mitificação). Assim a pós-modernidade ao adotar como elemento constitutivo os modos: fragmentário, desconstrutivo, descontínuo, etc. (pensamento débil segundo Lyotard), procura denotar que não há uma existência unitária e os múltiplos conteúdos com que se ocupa, não passam de fuga e projetos que se equivalem na falta de perspectiva e de profundidade. No dizer de Martin Heiddeger (Ser e tempo, 1998)acerca do dasein (ser-aí/ente homem), todo e qualquer pro-jetar humano sempre se descamba na impossibilidade de seu ser, uma vez que o homem é um ser para a morte. Diante da existência humana colocada, imersa em tal labirinto, faz-se mister então a emergência de um pensar para ser onde a dimensão ética constitutiva dente ente e de sua realidade sejam elementos intrínsecos. Daí a 130 busca do diálogo no próximo tópico com o pensamento ético do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos. 4.2 A ÉTICA COMO DIMENSÃO PRECÍPUA PARA A RECONSTITUIÇÃO DO SER DO ENTE HOMEM. “Nós hoje estamos numa crise, não de ética, estamos numa crise de moral, e esta crise na moral está por uma má visualização da diferença entre Moral e Ética.” Mário Ferreira dos Santos A Ética como fora designada no primeiro capítulo deste trabalho é um modo de ser intrínseco e constitutivo do ente homem, o qual se perfaz dentro de sua historialidade e está intimamente atrelada a uma existência consciente e deliberada, portanto, a um sujeito ético. Não se trata, então, de um mero código regulatório, da imposição de um conjunto de valores de um grupo sobre outro, etc. (morais). Quando se buscou dialogar com o pensamento clássico-medievo, não era intenção impor um pensamento em relação a outro (o passado em relação ao presente), ou os clássicos contra os modernos/pós-modernos. A intenção mais precisa foi a de buscar em momento de crise atual de todos os matizes (inclusive de perspectiva moral onde predomina uma visão, um discurso e uma prática relativistas), um diálogo com as fontes originárias onde a percepção do homem enquanto estrutura real e conceitualse apresenta de forma integral (não se pode deixar de perceber aqui, obviamente, certa limitação e incongruência no ethos grego onde surge tal revelação acerca do Ser e mais especificamente do ser do ente homem). Esta compreensão evidentemente já traz em seu bojo as conquistas humanistas que épocas vindouras serão capazes de fazer e que, compreensivamente, nenhum gênio ou época, por mais genial que seja será capaz de abarcar.Portanto, estará sempre incompleta e necessitando de remodelamentos, acertos, etc.. A dialética intrínseca e inerente ao Ser (conforme a filosofia clássica: Sócrates, Platão e Aristóteles). Destarte, o aporte conceitual que nos é dado pelos filósofos clássicos, em um primeiro plano se encontra na capacidade que lhes foi inerente de dar o salto no ser, ou seja, de compreender, analisar, conjecturar e acima de tudo 131 demonstrar racionalmente o sentido, o como e o porquê da existencialidade humana no que tange aos valores constituintes da sociedade e do indivíduo. Pois os gregos foram o povo para quem a dimensão do conhecer se deu de forma dramática e tensa; uma existência que exigia o sentido e significado através do logos do seu existir e não meramente estar-aí. Como nos diz o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos (2003, p. 105): 56 Ao ser humano cabe a frustrabilidade de certos atos, que pode ele fazer ou não. Os animais dizem sempre sim à natureza. O homem, porém, pode dizer não. Nesse não está o índice de sua grandeza, a abertura de sua elevação, mas também o primeiro passo para os seus erros. O homem pode frustrar o dever-ser. O dever-ser dos animais é fatal porque eles obedecem aos instintos. Mas o do homem é frustrável, porque ele é inteligente e dispõe da vontade. 57 E porque se dão tais coisas? As razões são simples: o homem não é um ente imutável e eterno. É um ente mutável e temporal. Sua vida é um longo itinerário, um longo drama, porque ele atua e sofre sucessivamente uma longa realização dramática, porque ele age e faz, ele prefere e pretere. Por isso, ao longo da sua práxis, da sua prática, o homem avalia valores. Destarte, a dimensão ético-política tão viva e tragicamente denotada na vida de Sócrates é antes de tudo uma compreensão ontológica. E não pode ser devidamente compreendida se não se toma como medida de avaliação que toda e qualquer existência é uma existência que carrega em si o drama da ação, participação e responsabilidade por seu agir-participar-existir. O que se buscou salientar no primeiro tópico, do primeiro capítulo, entre outras coisas é que em Sócrates o existir traz consigo o peso do exame, uma vez que é necessário fazer escolhas, e que, por conseguinte estas escolhas implicam em conseqüências em sua vida particular, mas também exercem um poder de implicar em vidas outras que não só a sua, de seus familiares e amigos. Elas muitas vezes trazem conseqüências de dimensões muito mais amplas que abarcam a vida da sociedade, da pólis, da nação, etc.. Infelizmente, esta compreensão, maturidade e responsabilidade perante os atos diante de outros cidadãos, instituições, etc. é algo cada vez mais raro em nossa sociedade. Uma vez que autoridades, líderes, homens/mulheres mais “maduros” têm demonstrado total descaso, 132 infantilidade, irresponsabilidade e incompetência para atuarem ou ocuparem determinadas posições sociais dentro da sociedade em que vivem. Então Sócrates não é aqui o filósofo, enquanto personagem histórico singular (sem deixar de ser é claro!), mas o indivíduo, a pessoa humana, o cidadão. Portanto, trata-se de uma universalidade, um homem que é e representa todos os seres humanos. Daí nos achegarmos ao sábio, filósofo, homem grego, ser humano para dele não somente escutar, mas participar, dialogar, refletir, examinar como nos pede o Filósofo e, compreender o real sentido do que o mesmo designa como Paidéia. A educação em Sócrates ultrapassa o mero sentido da especificação, do pragmatismo, da massificação e alienaçãoimpostos emethos dominante. Pois se percebe que tal estrutura vigorante tanto reduz, priva como é incapaz de dar conta da totalidade, abrangência, integralidade do ser desteentechamado Homem. E sem ela, não há a possibilidade do vir-a-ser do humano. Da mesma forma e numa clarificação e sistematização dos conceitos e vivência filosófica (cidadania), Platão e Aristóteles dão continuidade e abrangência ao caminho proposto e aberto por Sócrates na seara do Ser. Pois entendem os mesmos que não há caminho para o homem fora do ser, mas sim ignorância, desvio, barbárie e destruição na incompreensão deste. E sendo o homem o ente para quemo ser se des-vela no conhecer. Toda e qualquer existência que transite pelo esquecimento do Ser representa a possibilidade da derruição e morte do ser humano no animal homem. Não há eticidade onde não haja a possibilidade do conhecer, a liberdade para o agir; nem tampouco em códigos normativos que se assentam em descrição e prescrição limitadas a certas esferas da realidade (técnicas, temporais, geográficas, culturais, materiais...), na imposição dos modismos e/ou valores perpetrados pelos tecnocratas que almejam a administração pragmática do mundo (nova ordem mundial). Não se pode deixar de perceber que em toda vida técnica humana (ativa e factiva) estão presentes os valores e os desvalores do homem. Assim, cada ato deste ser humano é mais ou menos digno segundo possua mais ou 133 menos valor. E a dignidade dos atos continuados enquanto um Bem na constituição do ser humanomarca o seu valor (Aristóteles). Não obstante, se não são atendidos os requisitos elementares quanto à formação dos cidadãos dentro desta compreensão e o ethos se alicerça numa equação onde se observa simples e geometricamente a relação custo- benefício ou destruição da individualidade e singularidade da pessoa humana. Visões estas: de matiz econômico-utilitarista (a qual tem imperado como valor nos últimos séculos) ou político-totalitário e, portanto, reducionistas. Então, perde-se a real dimensão de que toda vida prática gira em torno da Ética. Daí nos falar Mário Ferreira dos Santos (2003, p. 107) que, 62 Razão tinham, pois, os gregos antigos que punham o Direito, a Economia, a Sociologia, a Técnica e a Arte como inclusas e subordinadas à Ética, porque os atos humanos estão sempre marcados de eticidade. [...] ora os antigos ao distinguirem essas disciplinas e as colocarem subordinadas à Ética, não subordinavam totalmente e absolutamente, porque há uma parte de cada uma dessas disciplinas, que é tipicamente própria das disciplinas, que é a sua parte específica. A Ética, então, funcionava em relação a essas disciplinas na mesma relação de gênero para espécie. Torna-se então de maior importância compreender que à Ética cabe o estudo do dever-ser humano. Enquanto que à Moral cabe a descrição e a prescrição de como se deve agir para realizar aquele dever-ser. Se a Moral é variante, a Ética é invariante. Exatamente por isso, podem os homens se equivocarem quanto à eticidade de certo ato e estabelecer um costume (moral) que nem sempre é conveniente ou se mostra exagerado. Quando um indivíduo vê em outro indivíduo não uma pessoa humana, mas apenas um meio para adquirir certo bem, posse, riquezas, poder; um meio para satisfazer os seus desejos particulares e, tal atitude pode ser vislumbrada enquanto um “ethos”. Têm-se demonstrado um ato moral (que pode ser motivado pelas circunstâncias, ambiente, etc.) que muitas vezes é aceito e até justificável perante a sociedade, no entanto, constitui-se o mesmo como eticamente falho. Mas, numa sociedade em crisemoral, onde a percepção ética é rebaixada ou aniquilada, passa-se a ter uma percepção errônea da Ética, como bem falara Mário Ferreira, pois, iguala-se esta que é invariante ao patamar da Moral que é variante, factível, caduca, sujeita a erros porque não consegue 134 manter as suas normas e estas já não correspondem à realidade da vida atual, logo, quem sofre as conseqüências de tal decaimento é a Ética. Como bem esclarece o filósofo Mário Ferreira dos Santos (2003, p. 109), 64 Aqueles que dizem que a Ética é vária porque a Moral é vária, confundiram a Moral com a Ética. Essas confusões provocaram inúmeros mal-entendidos e promoveram muita agitação entre os que desejavam atacar a Ética. Há costumes convenientes e inconvenientes apenas a uma parte da humanidade, mas o que é ético é universal e deve ser aplicado a todos. A Ética deve ser consagrada ao universal. Destarte, deve-se salientar que por sermos homens e não animais temos que considerar o testemunho de nossa situação. Não podemos, portanto, por meio de nossa animalidade renunciar a humanidade, a qual é perfectivamente superior. Da mesma forma que não podemos em vida afirmar uma em detrimento da outra. O animal em nós não impede que nos elevemos, que haja grandeza em nossos atos. É óbvio que por sermos humanos somos deficientes, falhos, limitados, passíveis de erros. Todavia, a nossa vida prática ao longo da história da existência humana tem demonstrado que podemos sim progredir, alcançar estágios mais altos que os animais, alguns de nossos semelhantes e até e principalmente, com relação a nós mesmos. É evidente que é muito mais fácil ser indiferente, se acovardar, ser injusto, imoderado, inconseqüente, omisso, medíocre... Destruir, derruir é mais fácil e requer menos esforços do que construir, se elevar. No entanto, enquanto homem temos a possibilidade do entendimento, da vontade e do amor. Diferentemente dos animais que dizem sempre sim aos instintos que o regem, nós seres humanos, temos de empregar a nossa inteligência, a nossa vontade, e dirigir o nosso amor. Exatamente por este motivo é que o ser humano é fundamentalmente ético na sua ação. A ascensão do homem exige, portanto, esforço, coragem. Não por acaso a cultura e o ethosgrego, assim como o cristão-medievo, estão repletos de heroicidade, pois os corajosos são aqueles tipos de homens que se 135 dedicam a aumentar o seu saber, a purificar a sua vontade e aperfeiçoar o seu amor. A Ética assim conclama o homem a assumir a tarefa de se elevar por meio da aceitação do dever perante atitudes que honrem e dignifiquem a vida e o status de ser humano. Uma vez que ao covarde cabe o deter-se ante o que se deve fazer por temor aos riscos e, portanto, negar-se a cumprir os seus deveres e escamotear-se por entre justificativas e argumentações falsas. Atitudes indignas de um Homem. Nenhum indivíduo da espécie humana nasce ético, obviamente, mas, enquanto ser humano traz o mesmo a capacidade de conhecer e, na capacidade de conhecer desenvolver a habilidade para melhor agir. É assim que do animal homem pode-se elevar para o patamar de ser humano e a partir da compreensão, consciência e existência que se paute pelos princípios da eticidade, tem-se não só a constituição de um ser moralmente ético, mas também e concomitante a de um cidadão, um profissional. 136 CONSIDERAÇÕES FINAIS “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso” Heráclito O primeiro capítulo deste trabalho monográfico teve como objetivo procurar denotar a Ética enquanto dimensão constitutiva do ente homem. Dimensão esta que se não compreendida em sua complexidade e importância traz como conseqüência para indivíduo, comunidade, sociedade sérios danos. Porque não há possibilidade de qualidade nas relações (individuais e coletivas), responsabilidade perante os atos, respeito para com pessoas, contratos, serviços, justiça, etc., enfim, eticidade nas ações humanas se não há um ethosque seja propiciador e forjador de homens maduros capazes de agir segundo a excelência da natureza de tais atos. Homens que sejam capazes de dominar suas vontades e serem servos de suas consciências éticas, (Aristóteles/ethos cristão) a fim de alcançarem, desenvolverem a plenitude da natureza humana. Como bem compreendera Sócrates (Apologia..., Críton, etc.) e descrevera Platão a ordem social possui estreita relação com a ordem da alma individual, ou seja, não é possível se chegar a uma sociedade onde as relações sejam responsivas, equânimes, justas se os indivíduos não possuem uma formação íntegra, sólida e baseada em princípios éticos. Ou seja, para Sócrates, assim como para Platão uma alma desordenada não é capaz de gerar ações ordenadas. Aristóteles por sua vez, procura explicitar tal pensamento aprofundando o olhar sobre os tipos de figura moral que existem e compõem a pólis. Então há o problema do vício, da intemperança que leva o homem a agir de forma desregrada, segundo o estagirita é o homem do consumo, do gozo que vive em função de saciar os seus desejos. Para o Filósofo este tipo de homem não compreende o sentido do discurso coletivo (moral/ético), pois o olhar do outro enquanto uma alteridade 137 não lhe diz coisa alguma, não o afeta. Este eu egoísta é presa de seus próprios desejos e tem apenas a si próprio como medida de todas as coisas. Numa sociedade marcada pelo individualismo, pelo consumo, pelos apelos dos discursos populistas (massificantes), pela alienação, pela indiferença, perseguição e até exclusão cônscia e sistemática aos homens virtuosos (spoudaios) o ethos se apresenta como forte impossibilitador da constituição de indivíduo e cidadão éticos (homens maduros). Mas há também, segundo o pensamento de Aristóteles a figura do incontinente, aquele que compreende a regra sabe distinguir entre o certo e o errado enquanto atos e relações sociais, no entanto, por mais que o mesmo discurse, revele ter conhecimento acerca do peso e valor de seus atos, a sua vontade é ineficaz, pois não é dominada pela razão prática, mas sim fruto de um mau uso da razão ou do ímpeto por trás da ação. Acerca doethoshodierno preponderante o que se pode relatar?Éo mesmo capacitador da formação de homens continentes, temperantes? Está tal ethos preocupado em formar pessoas que tenham a real dimensão do seu ser; que sejam capazes de se auto-determinar, de assumir as responsabilidades perante os seus atos, etc.? Ou está o mesmo designado a produzir indivíduos, que estejam propensos aos chamados sedutores do mercado, ou, aos discursos e paradigmas da ordem do dia propagados por partidos, personalidades políticas e mídia (presas fáceis do novo deus todo poderoso: partido-estado)? Não sem sentido então, Aristóteles dizer que o domínio de si, assim se faz importante para que se possa vislumbrar, quiçá! ação e sujeito éticos. O que em mundo hodierno já se constitui como um feito hercúleo e denota a pessoa como diferenciada entre os demais indivíduos que compõem tal comunidade/sociedade. E isto já o distancia da massa medíocre que não o compreende e nem deseja compreendê-lo. Mas o autodomínio não é em si ainda designador de um sujeito ou virtude ética, pois conforme nos fala o Filósofo, somente na erradicação completa dos desejos excessivos e maus é que há a possibilidade da virtude ética. A continência do desejar e querer tem de ser transformada em temperança, uma disposição interior que marca e qualificaos nossos atos e, 138 portanto, liberta o sujeito ético da mera obediência a uma regra. Para movê-lo por uma apreciação e disposição (amor) ao que é reto (belo) conforme ao logos. Aristóteles, deste modo, procura salientar que um sujeito verdadeiramente ético não é um mero seguidor de normas sejam estas, advindas de qualquer das instâncias que compõem a sociedade. Um sujeito ético deve ser senhor de seus atos e deve ser capaz de inventar as maneiras e as possibilidades para que o reto e justo aconteça, mesmo se a sua integridade física for colocada em jogo (Sócrates/Cristo). Destarte, Sócrates, Platão e Aristóteles procuram descrever a filosofia como uma atividade e conhecimento que está em oposição e resistência contra a desordem que abarca a sociedade. Não por acaso se denotar a filosofia platônica enquanto um esforço para restaurar a ordem da civilização helênica por meio do amor à sabedoria. Torna-se extremamente significativa a imagem aludida na Alegoria da caverna, quando por meio da mesma se procura dialogar e fazer refletir que a busca do conhecimento (amor à sabedoria) não deve ser compreendida, representada pelo viés de uma doutrinação da ordem reta (abstração/sistema). Mas sim como a luz da sabedoria que incide sobre a luta da alma com as forças existenciais que a puxariam para baixo, na direção do pólo da morte espiritual (metaxy). Daí então se compreender que para Sócrates, assim como para Platão e Aristóteles vigora a idéia de que não é a excelência do corpo (o que falar do culto hedonista na sociedade hodierna) que torna a alma boa, mas a alma boa é que fará com que o corpo se torne o melhor possível. Embora o explicitado acima, não se deve incorrer na ingenuidade de achar que umindivíduo, um profissional (uma profissão) não possam viver sem uma preocupação de dimensão ética. Assim como, pensar que um povo, uma sociedade, um paísnão possam ter existência sem denotar os requisitos básicos de civilização para as suas relações (são inúmeros os exemplos em mundo hodierno em especial em nosso país: níveis altos de corrupção, insegurança, mortes, falta de profissionalismo/ética, etc.). 139 Exatamente isto é relatado, demonstrado corriqueiramente em nossa sociedade (jeitinho brasileiro), onde “profissionais” desonestos, políticos corruptos, sociopatas travestidos de homens públicos, “adultos” irresponsáveis, etc. não somente se eximem dos seus deveres, como na maioria vezes conseguem obter lucros com suas ações eticamente reprováveis. Não obstante, se deve salientar: que tipo de profissional é possível dentro de tal ethos? Que tipo de agentes, sujeitos farão parte desta atividade? Sob quais modalidades de ações e alicerçadas em quais tipos de valores? Pois não se pode esquecer que as maiores atrocidades contra a humanidade foram gestadas em século passado e, a história de tal fenômeno bestial não foi devidamente expurgada do seio da humanidade. Pelo contrário, ainda vive e se transmuta, justamente por falta do devido processo de julgamento da realidade ocorrida em passado recente. Sem o conhecimento e a depuração da verdade não há possibilidade de se falar em constituição efetiva e integral do ser humano. Se não se tem a real compreensão do ser do ente homem, do ser da Ética enquanto constitutiva da humanidade deste e, por conseguinte propiciadora da comunidade, sociedade e cultura humanas. Não há a possibilidade de se falar propriamente em humanidade (eticidade) nos atos/relações travados entre os homens e concomitantemente entre profissionais. Por isso os projetos globalizantes que procuram a todo custo forjar uma meta-humanidade em mundos cada vez mais distantes da realidade onde os códigos morais são designados pela funcionalidade inerente aos modelos e princípios gerenciais dos tecnocratas. Que amam máquinas, programas, projetos, cálculos, e em tudo vêem a partir do princípio lógico com fins de alcançar metas, fazer riquezas, etc.. Mas odeiam a realidade enquanto possibilitadora do engano, do erro, da subversão humana frente a mundo racionalmente administrado (projetos totalitários/globalistas). Uma Ética que não seja capaz de subverter os frios códigos morais para fazer emergir o humano em seu vigor e amplitude de nada vale. Até porque, sendo Ética é princípio que incita, norteia e acolhe o homem em meio às mais diversas situações conflitantes que a existência proporciona ao ser humano. 140 E em meio às adversidades que parecem querer derruir o humano no ente homem, ela é norte impulsionador que teima em elevá-lo, que impõe o dever da superação constante e busca indicar o caminho da superação do homem, para alcançar a excelência do humano no mesmo. Portanto, engendradora de homens fortes, vigorosos, virtuosos. Assim é que todo e qualquer projeto para uma sociedade, antes de pensar acerca dos elementos econômicos, dos bens e riquezas materiais/naturais, etc. deve voltar-se para a compreensão do homem, da dignidade da vida da pessoa humana. Daí então trabalhar a educação dos seus indivíduos de maneira a propiciar uma formação que seja eficiente na constituição de homens (homens, mulheres, adultos e jovens) moralmente responsáveis e, que tenham a capacidade e o discernimento da eticidade por trás de todas as relações humanas. Não de meros indivíduos atomizados, quadros formatados para desempenharem certas funções de acordo a princípios que se baseiam em contingências momentâneas e falsamente são erigidos, elevados a princípios universais (cidadania politizada). 141 REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Sto. A cidade de Deus. Rio de Janeiro Vozes, 1990. ARENDT, Hannah. Ética e política. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006. _________, A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UNB, 1990. ____________. Metafísica; Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1979. ____________. Política. Brasília: UNB, 1997. ARON, R. Mitos e homens. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959. 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