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In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 Roberto DaMatta, o carnaval e a interpretação do Brasil Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Apresentação: um depoimento pessoal Em 1990, tendo reaberto minha matrícula no curso de doutoramento em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS)/Museu Nacional, redefini também meu objeto de tese, elegendo o carnaval carioca como tema. Eu já tinha escrito dois artigos sobre o carnaval, mas esse era então, para mim, sobretudo 'o' tema de Roberto DaMatta. Um assunto sobre o qual DaMatta já dissera coisas muitíssimo interessantes, talvez mesmo tudo que havia de interessante a dizer. E isso me intimidava terrivelmente… Roberto DaMatta foi meu professor no mestrado, no mesmo PPGAS, em 1978. Um professor estimulante e divertido, com quem aprendi, entre muitas outras coisas, a fazer análise estrutural. Na época, DaMatta examinava o conto de Pedro Malasartes, análise publicada como um dos capítulos de "Carnavais, malandros e heróis" no ano seguinte. Lemos Vladimir Propp, muito Lévi-Strauss e analisamos o conto de João e Maria numa versão recolhida por Sílvio Romero. Eu me fascinei pelo desvendamento das 'estruturas' que lá jaziam, de fato, sob o texto, revelando fatos à primeira vista totalmente insuspeitos. Como os sonhos, os mitos e contos revelavam a extraordinária qualidade de desdobrarem-se em múltiplos sentidos quanto mais interrogados. Meu pendor pelo simbólico, o gosto pelos mitos e ritos só se tornariam daí em diante cada vez mais claros. Em 1991, porém, depois de uma dissertação sobre o Espiritismo Kardecista (1983), e diante do que era então apenas o projeto de uma tese sobre carnaval, eu precisava 'enfrentar-me' com o autor de um livro magnífico e ousado. Um livro que foi, e é até hoje, uma libertação, trazendo a cultura e com ela a perspectiva antropológica para a ordem do dia na compreensão da sociedade brasileira. Uma extraordinária problematização dos níveis e fatos sociais que nos dão o sentido de pertencimento a uma cultura nacional; daqueles valores, modos de ser e personagens, sem os quais, como propõe DaMatta, nos falta algo de essencial e 'o mundo parece deslocado'. In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 Escrevi então o texto que segue, que enviei então ao meu professor. Imagino como deva ser difícil a experiência de quem, tendo realizado tanto, se dispõe a ouvir: há aqui um problema, há ali outro… Mas urgia tornar minha admiração pensante e falante. Eu estava diante da escrita de minha própria tese. Momento em que um mestre desaparece, depois de nos ter dito: "Olhe, aprenda a ver!", como sugeriu Marcel Proust em 'Sobre a leitura'. Almoçamos depois para trocar algumas idéias a respeito, e DaMatta, de um jeito amigo, disse-me algo mais ou menos assim: "se o carnaval é realmente esse grande tema que acreditamos, sempre há de haver muitas coisas novas para dizer". De lá para cá, quanto mais me enfronho no mundo dos ritos e mitos, mais DaMatta continua dizendo: "Olhe, aprenda a ver!"1 . Revendo-o agora, por ocasião desta homenagem aos 20 anos de publicação de Carnavais…, optei por manter o texto tal como escrito em 1991, com algumas pequenas revisões. Se fosse refazê-lo hoje, acrescentaria à discussão então empreendida, centrada na compreensão do carnaval e na formulação de uma teoria do Brasil, uma leitura mais solta e fragmentada, que explorasse a qualidade ensaística de cada capítulo e as muitas digressões em que o texto tantas vezes se abre. Pois como o carnaval analisado, o livro de DaMatta se movimenta também em múltiplos planos. Creio entretanto que, tal como está, este texto preserva seu interesse. Ao mestre, com carinho. 1 O trecho citado de Proust é "Olhe a pedra de bolonha, rosa e brilhante como uma concha! Olhe, aprenda a ver! E nesse momento ele [o autor] desaparece". Anos depois encontrei menção a essa misteriosa pedra no Werther, de Goethe (uma tradução comentada de Marcelo Backes, para a LPM/2000). O trecho de Goethe/Werther é "Falam da pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve os seus raios e reluz por algum tempo durante a noite" (p.61). E o tradutor nos explica que a tal pedra existiu de fato: "Desde os primeiros anos do século XVII se dá o nome de pedra de Bolonha ao espato pesado ou baritina, o mais importante dos derivados do Bário. A baritina foi elaborada pelo sapateiro bolonhês Vicente Casciordus que, ao calcinar uma mescla pulverizada do mineral, mais carvão e verrniz, obteve uma massa fosforecente logo depois chamada lapis salarius. Anos mais tarde, o nome foi trocado pela pedra luminosa de Bolonha". In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 Introdução2 O livro de Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro (1979), marcou época, por sua originalidade e escopo interpretativo3. Impossível, hoje, estudar o carnaval no país sem com ele dialogar. Este texto, situado no curso de minha pesquisa de doutoramento sobre o desfile das escolas de samba no carnaval carioca (PPGAS/MN) é, portanto, um diálogo4. A primeira seção examina a construção da opção analítica do livro que traz a sociedade complexa para o centro da reflexão antropológica. A segunda focaliza especificamente as formulações relativas ao carnaval. Ritual igualitário numa sociedade hierárquica, o carnaval, segundo o autor, fala do país. É um momento privilegiado para a percepção da ambigüidade entre sistemas de valores conflitantes que constituiria o 'caráter nacional' brasileiro. Minha pergunta é específica: interessa- me perceber quais aspectos substantivos do ritual examinado - o carnaval - articulam-se a uma proposta de interpretação do Brasil, e como tal articulação se faz. I. A Antropologia entre os rituais e a sociedade nacional Carnavais, malandros e heróis situa-se num cruzamento de tradições intelectuais. De um lado, dialoga com autores chaves do pensamento social no Brasil que elaboraram ou problematizaram em sua obra representações simbólicas da nacionalidade. DaMatta expressa abertamente o desejo de ver o livro somado às contribuições de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, entre outros, na busca do entendimento daquela 'terra sem a qual o mundo fica deslocado" (op. cit. , p.34). De outro lado, o autor se insere firmemente na tradição antropológica em uma de suas vertentes clássicas: os estudos de simbolismo e ritual. No campo 2 Este texto foi apresentado no GT de Pensamento Social no Brasil, no XV Encontro Anual da ANPOCS, 15 a 18 de outubro de 1991, Caxambu, Minas Gerais, e na XVIII Reunião da Associação Brasileira de Antropologia. Belo Horizonte, abril de 1992. 3 O livro foi lançado em 1979. Agora, em 1999, está em sua quinta edição. As resenhas elaboradas na época são expressivas de sua recepção. Examinando-as constatamos porém, com surpresa, que o livro foi recebido com reticências pela antropologia (Trindade-Serra, 1981 e Fry, 1983). As resenhas francamente favoráveis vieram da ciência política (Schwartzman, 1980 e Faoro, 1980) e da crítica cultural (Merquior, 1981). Na França, ondea tradução foi lançada em 1983, o livro foi saudado por Pierre Chaunu ( 1984), David le Breton (1984), Jean Pierre Dupuy ( 1980). Em 1991, foi lançada uma edição norte-americana. 4 A tese foi transformada no livro Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: FUNARTE/Ed. UFRJ, 1994. Os artigos que escrevi sobre o carnaval entre 1984 e 1997 foram reunidos em O rito e o tempo. Ensaios sobre o carnaval. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999. In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 intelectual brasileiro, DaMatta é um dos operadores da ampliação do campo empírico da antropologia no sentido da inclusão das chamadas sociedades complexas em seu território disciplinar (Peirano, 1981)5. Carnavais, malandros e heróis reúne ensaios que marcam essa passagem na trajetória profissional do autor, até então um especialista em sociedades indígenas. É bem verdade que, já em Ensaios de Antropologia estrutural, publicado em 1973, Da Matta falava de uma "antropologia social que se pretende cada vez mais disposta a testar seus métodos e suas interpretações em áreas tradicionalmente excluídas do seu campo de estudos" (1973, p.11). E apresentava, ressaltando "a desvantagem do treinamento em somente uma disciplina visando o etudo de sociedades tribais" (op.cit, p.12), um "exercício" de análise estrutural sobre o carnaval": 'O Carnaval como rito de passagem'. Esse artigo traz, entretanto, o embrião de Carnavais, malandros e heróis, onde, seis anos depois, o autor propõe uma "sociologia do dilema brasileiro". Essa incursão da antropologia na sociedade complexa e seu encontro com vertentes do pensamento social ganha corpo na formulação da pergunta (inspirada em Gunnar Myrdal, 1944; Otávio Paz, 1976 e Louis Dumont, 1966 e 1983) sobre "o que faz o brasil, Brasil" 6. Trata-se de compreender a especificidade cultural e sociológica da participação de uma sociedade periférica num sistema mundial capitalista que, no plano dos valores, tem sua pedra de toque na ideologia burguesa da democracia e dos direitos iguais7. A identidade a ser desvendada é problemática, um dilema a ser apreendido não a partir do exame de "eventos em sua evolução temporal" , mas através de uma análise que se pensa como "uma contribuição às teorias das dramatizações e das ideologias". Citando Otávio Paz, DaMatta concorda com a pergunta: "mas para que ir procurar na história uma resposta que só nós mesmos podemos dar? Se somos nós que nos sentimos diferentes, o que nos 5 Peirano (1981) argumenta que, no plano ideológico, o processo de construção da nação no Brasil definiu parâmetros ao interior dos quais as ciências sociais 'nativas' se desenvolveram. Roberto da Matta, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Otávio velho e Antônio Cândido, são autores analisados à luz dessa hipótese. 6 A opção pela interpretação totalizante expressa nessa pergunta sobre o 'caráter nacional' distingue o autor de outras tendências, igualmente importantes, que se consolidam na antropologia brasileira no mesmo período. Penso especificamente nos trabalhos de Gilberto Velho (1973,1975,1981). Esses trabalhos propõem a apreensão da 'sociedade complexa' a partir da ênfase na heterogeneidade e na fragmentação, focalizando especialmente as camadas médias urbanas. Para uma resenha bastante completa dessa literatura ver Salem, 1985. 7 Peirano define como questão básica para DaMatta em Carnavais, … , a pergunta: "how capitalism develops in confrontation with different cultural values" (1981, p.15). In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 faz diferentes e em que consistem essas diferenças?" (1979, p.15). Nesse primeiro momento, o álibi analítico que opõe um enfoque metodológico ainda a ser explicitado à idéia de história, privilegia uma determinada noção de história, entendida como sucessão linear de eventos, e excluída do reino dos valores de modo um tanto simplificador. A oposição tem sobretudo o propósito de clarear os contornos da abordagem proposta: DaMatta faz uma antropologia da cultura ancorada no plano dos valores: "um plano de elaboração interna do sistema. Uma zona onde se processam as escolhas que irão determinar o curso da ação após o recebimento do estímulo (seja do passado, seja do presente) e antes de ser realizada a resposta", onde se traduzem "fatos e forças universais em especificações e identidades" ( op. cit. p.15). Na perspectiva antropológica consagrada no estudo das sociedades primitivas, essa zona é o ritual, essa dimensão da vida "que dá asas ao plano social e inventa, talvez a nossa mais profunda realidade" (idem, p.31). Um ponto central da argumentação é a defesa da autonomia metodológica e interpretativa do plano simbólico ou dos valores, concebido entretanto de uma forma que importa qualificar. Entre a busca de uma identidade nacional, que situa o livro como interlocutor de tantas outras teorias do Brasil, e a incursão do instrumental teórico da antropologia no exame da sociedade complexa, o conceito de totalidade emerge como central na perspectiva proposta. Trata-se, diz DaMatta, de "ver a nossa totalidade como um drama". Mas há mais. Na sua visão, a interpretação sociológica é necessariamente uma interpretação preocupada com totalidades (idem, p.18)8. Seguindo os passos de Dumont (idem, p.22), a compreensão sociológica requer a comparação entre princípios estruturais e simbólicos internos às diferentes sociedades, comparar sociologicamente é, portanto, comparar totalidades. É preciso primeiro conhecer a lógica inerente a um sistema classificatório para então compará-lo a outro. A tarefa de fundo é a busca do universal antropológico absoluto: localizar, através do contraste e da diferença, mecanismos sociológicos implícitos e explícitos para construir e ampliar um sistema universal de tradução (p.18). 8 Peirano (op. cit, p.181) destaca três temas abordados ao longo da careira intelectual de Roberto DaMatta: o da fricção interétnica, sob a influência dos estudos de Roberto Cardoso de Oliveira; o da estrutura social dos Apinajé e das tribos Gê do Brasil Central, enquanto aluno de Harvard; e o estudo de rituais nacionais. Nessas três etapas, o conceito de totalidade, com a idéia de coerência interna a um sistema, é visto como chave. In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 Em Carnavais, malandros e heróis, uma primeira acepção da idéia de totalidade remete, portanto, às idéias, tão caras à antropologia, de sistema e de relativização. Nessa perspectiva ‘totalizante e comparativa’, o Brasil tem dois ‘outros’ como interlocutores: o princípio da hierarquia expresso no sistema social das castas na Índia, com a autonomia histórica que distingue essa civilização; e o princípio igualitário, com a fundada na noção de indivíduo e na idéia de mercado. Esse princípio se expressaria de modo especialmente claro nos Estados Unidos da América que cristalizam a idéia de uma sociedade 'capitalista,ocidental, moderna'. "O que em outros termos - já dizia DaMatta em 1973, p.17/18 - equaciona o 'tradicional' a um sistema onde o todo predomina sobre as partes, tudo lhe sendo submetido; ao passo que o 'moderno' é o sistema onde o indivíduo é o sujeito. Sabemos que tal sistema nasceu num certomomento histórico, formalmente a partir do século XIX, e que daí em diante se abriu uma brecha em nossa formação social, brecha que permite reconhecer atomizações permanentes dentro da nossa totalidade social"(1973,). Carnavais, malandros e heróis trata do conflito e da acomodação entre esses dois sistemas de valores no Brasil. O Brasil é um dilema entre o tradicional holista e o moderno individualista. Há, de um lado, um poderoso sistema de relações pessoais (a família, o compadrio, a amizade, a patronagem, o parentesco, o jeitinho, realidades sem as quais, nesse país "ninguém existe como ser humano completo"9. De outro lado, há um sistema legal moderno, inspirado na ideologia liberal burguesa, apenas aparentemente democrático pois, feito por aqueles que têm relações pessoais poderosas, na verdade serve à submissão das massas. A combinação dos dois modelos resulta particularmente perversa: "Assim, o sistema legal em sociedades com esqueleto hierarquizante, não só amplia a representatividade de amplos setores, mas tende a sufocar esses setores por meio do jogo impessoal da lei: 'Aos amigos tudo, aos inimigos a lei '" (p.20). Há, assim, como ponto de partida para a compreensão do dilema brasileiro, uma visão compacta e funcional que problematiza a sociedade nacional num esquema de valores dualista. Na dinâmica social, entretanto, esses dois sistemas de valores se sobrepõem e atuam ao mesmo tempo, configurando um jogo complexo. Essa sobreposição, que põe em movimento a sociedade brasileira, é apreendida no 9 Cabe observar aqui a justaposição das noções de hierarquia, holismo e patronagem. In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 curso do livro de duas maneiras. A primeira é pelo exame dos ritos, especialmente de um sistema ritual ideal e tripartido — os carnavais, as paradas, as procissões, no qual os carnavais merecem o forte da atenção do autor — e ainda da deliciosa análise do rito verbal tão nosso conhecido, o "Você sabe com quem está falando?". A segunda é através da discussão de um sistema de personagens que encarnam representações ideais de trajetórias sociais que dramatizam o conflito e acomodação entre os diferentes valores em jogo. O ponto é exemplificado com as análises do conto popular 'Pedro Malasartes' e do conto erudito de Guimarães Rosa "A hora e a vez de Augusto Matraga', onde a literatura é usada como forma de etnografia de um universo social. Interessa portanto a Roberto DaMatta apreender o sociedade em seu movimento. Esse é um ponto importante na análise proposta O conflito entre os dois sistemas desdobra-se na análise de um 'triângulo ritual nacional', e revela sua complexidade e sutileza através de muitos mediadores, passagens, ou como diz muitas vezes DaMatta, de inúmeras 'brechas' e 'atomizações'. Precisando o ponto da relação entre antropologia e história, DaMatta nos explica então que não se trata, na verdade, de excluir a história ou o fato histórico da análise, uma vez que os princípios sociológicos que interessa desvendar se atualizam por meio de relações e instituições em situações sociais concretas e históricas. Trata- se antes de relativizar, à la Lévi-Strauss, o que uma sociedade acredita ser o seu motor e força dominante (p.27). Não é que o primitivo não perceba o passar do tempo, ou que os antropólogos não queiram perceber a dimensão temporal dos acontecimentos; "É simplesmente que nessas sociedades tradicionais, onde o todo predomina sobre as partes (…) tudo está coerentemente colocado e totalizado, numa forma de realidade social onde o abrangente não é o tempo percebido enquanto tal (…), mas as relações sociais que, aqui, são relações totalizantes" (p.22). Emerge aqui um uso diferente da idéia de totalidade, que se refere agora à visão 'totalizante' que a sociedade tradicional tem de si mesma, e não mais à reflexão sociológica que deve sempre apreender os sistemas sociais a partir de seus princípios estruturais. Os dois usos da noção de totalidade são contíguos na argumentação: a perspectiva comparativa antropológica é 'totalizadora' (o que significa dizer relativizadora e estrutural) porque a disciplina nasceu do estudo de sociedades que In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 concebiam a si mesma como totalidades10. Porém, esses dois usos da noção de totalidade são contíguos num outro nível também. Para DaMatta, perceber a sociedade brasileira como uma totalidade no sentido sociológico é, ao mesmo tempo, instaurá-la como uma totalidade para o ponto de vista nativo, e aqui a totalidade é a nação. Vejamos o ponto com mais detalhe. O interesse do livro "Não é negar que os ritos (…) tenham uma história, mas é tomar tais manifestações para verificar seu significado social e sua posição ao longo de uma ideologia que tende a negar o tempo" ( p.24). O mundo dos ritos e dos personagens paradigmáticos sobre o qual o livro se debruça é "a esfera que gostaríamos que estivesse colocada ao longo ou mesmo fora do tempo". A argumentação conclui com uma afirmação de base durkheimiana com ênfase funcional: "Daí porque os rituais servem, sobretudo na sociedade complexa, para promover a identidade social e construir o seu caráter" (p.24). A dimensão ritual do comportamento humano aproxima sociedades primitivas e sociedades complexas, expressando nessas últimas a exigência de um lugar ao menos onde o todo predomine sobre as partes, o coletivo sobre o individual. Numa outra formulação: "(…) o problema de uma sociedade complexa como a nossa ( isto é, um sistema orientado para múltiplas visões de si mesmo e altamente individualizado) é o de criar perspectivas totais e integradas de si própria; ao passo que o problema das sociedades tribais (…) é o de inventar alternativas que possam relativizar seus comentários sociais, os quais são sempre coletivos, totalizantes e, assim, absolutos (…)" (op. cit, p.239). DaMatta propõe-se, de certo modo, como que a ajudar a sociedade brasileira a resolver o problema cruciante de uma sociedade complexa (no caso também dividida entre os valores conflitantes da hierarquia e do igualitarismo) a pensar-se como totalidade. Como a sociedade brasileira pode ser reconhecida no plano ideológico e cultural como uma nação? Para tanto, é preciso resolver o problema metodológico de propor o 'caráter nacional' de uma sociedade fragmentada, heterogênea e, no fim das contas, histórica, através do estudo dos rituais e dos personagens paradigmáticos. Diante da idéia de heterogeneidade e fragmentação sociais, o autor contrapõe a idéia de que o ritual, em seus múltiplos planos, é justamente a instância que permite totalizar. Diante da idéia de historicidade, afirma- se a possibilidade de revelar valores decisivos de sociedades históricas através de 10 Ver a respeito Marcel Mauss, 1978 e Louis Dumont, 1966,1983. In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 uma análise que suspende, por meio de um artifício analítico, essa dimensão da temporalidade. Essas opções definem o plano específico onde se desenrola a reflexão do livro. Para dizer o muito que há a ser dito, DaMatta interpreta o ritual na esteira de sua dimensão cósmica, definidora de regiões cuja modificaçãoacarretariam, não uma revolução, mas a perda do sentido de nossa continuidade enquanto grupo. Um ritual específico, entretanto, se sobressai. Impossível pensar o Brasil sem o carnaval ou o futebol: "(…) no futebol falamos de nós mesmos através do confronto com os outros e pelos outros ( os adversários), enquanto no carnaval falamos com nossa própria consciência na forma de múltiplos grupos e planos ( …) que fazem parte do nosso universo e sistema" (p.25). está esboçada a metonímia central do livro: Carnaval = Brasil11. Metonímia que tende a naturalizar em alguma medida a idéia de nação. Pois se o exame do ritual, ao suspender o tempo histórico, permite o resgate e a instauração de uma totalidade - um universo de valores nacional - a natureza histórica da noção de nação é também abstraída do argumento. Ao pensar um sistema de valores que caracteriza o Brasil através do carnaval, Da Matta problematiza também a familiaridade, o senso comum, e assume, de modo inequívoco, a identidade de antropólogo nativo, refletindo sobre suas próprias crenças e experiências. Não há no livro uma etnografia do carnaval no sentido clássico. A análise do tema incorpora dois bons estudos de caso: os livros de Goldwasser (1975) e o de Leolpoldi (1978). Com base na experiência de campo em culturas indígenas, DaMatta já escrevera também uma bela reflexão sobre a pesquisa de campo em antropologia e sua dialética entre o familiar e o exótico (1978). Em Carnavais… entretanto, o 'campo' é, sobretudo, o imaginário social de um cotidiano nacional. O uso da idéia de atores sociais para designar personagens paradigmáticos do drama brasileiro indica esse deslocamento de um nível de abstração para outro, no qual a análise efetivamente se situa. Nele, DaMatta se movimenta, com sólida bagagem antropológica, entre fontes eruditas e populares, questionários de pesquisa de alunos, observação do carnaval de rua no centro do 11 Esta é uma opção de leitura, que é também a de Trindade-serra e Capinan (1981). Merquior (1981) toma como central em Carnavais… o ensaio "Você sabe com quem está falando?" Esse rito verbal e o carnaval são na verdade complementares, representando respectivamente a ordem e seu avesso. Ambos igualmente reveladores dos mesmos princípios fundamentais. In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 Rio de Janeiro, comentários sobre rotinas subitamente desbanalizadas, digressões generalizantes, numa cultura a que pertence e, ao mesmo tempo, desvenda. O uso quase literário da condição de nativo, imbricado no desenvolvimento da argumentação, o tom coloquial, incisivo e reiterativo, associado ao hábil manejo de teorias antropológicas, caracteriza o livro, e é responsável, creio, pela sua extraordinária criatividade. II. O carnaval entre a igualdade e a hierarquia A comparação do carnaval de Nova Orleans, representativo da sociedade norte-americana, com o carnaval do Rio de Janeiro, representativo do Brasil (capítulo III) assegura o nível de generalidade da argumentação na abordagem do ritual carnavalesco. O carnaval de Nova Orleans, localizado, é a especialidade dessa cidade. O carnaval do Rio de Janeiro é parte de uma festa compacta e generalizada. A ordem do desfile em Nova Orleans é classista, demarcando hierarquias. No Rio de Janeiro, o desfile é um concurso, reino do desempenho e não da sbstância (p.125). Nessa comparação, emerge claramente o princípio social da inversão próprio do rito carnavalesco. Numa sociedade igualitária, temos um carnaval aristocrático, numa sociedade hierarquizada e autoritária, temos um carnaval igualitário (p.132). O carnaval de Nova Orleans, com suas krewes aristocráticas e seu rei, recoloca um princípio de diferenciação num meio onde o credo oficial o exclui legal e juridicamente. Aqui, o carnaval, cujo símbolo é o malandro, introduz, no mundo fechado da moralidade brasileira, uma relativização através da multiplicidade de códigos e eixos classificatórios que o regulam (p.134). Focalizando o Brasil, e completando a percepção dessa sociedade, DaMatta situa o carnaval num triângulo ritual que incorpora também as paradas e procissões. Os três são modos básicos de ritualizar no/o mundo brasileiro. O ritual é definido de modo "gradualístico", por meio de contrastes com o mundo diário que definem pontos de vistas específicos sobre o mundo social. Ao deslocar elementos e relações, o ritual focaliza e traz à consciência aspectos recorrentes da realidade social. A atenção analítica concentra-se nas oposições básicas entre seqüências de ações dramáticas elaboradas em todo ato cerimonial ou ritual em compatibilidade com o mundo cotidiano (p.36). In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 O Dia da Pátria, o carnaval e as festas religiosas salientam aspectos críticos de uma mesma realidade (p.52). A parada reforça rotinas diárias de ordem e respeito, confirma regras do mundo das hierarquias e dos caxias. O carnaval conjuga posições e aproxima-se das relações jocosas do dia-a-dia. É uma construção da brincadeira, que suspende temporária e controladamente as regras vigentes (p.40). As festas religiosas, o vértice menos elaborado na análise do triângulo ritual proposto, são rituais de neutralização que correspondem à relação cotidiana da evitação. Carnaval e dia da Pátria, feriados nacionais, dramatizam valores globais e críticos da sociedade brasileira. Anualmente reencenados, os dois ritos remetem a temporalidades distintas, num exemplo da multiplicidade de calendários em operação simultânea na "sociedade complexa e industrializada". Articulam-se a partir de uma série de contrastes. O Dia da Pátria, na semana que lhe é consagrada, é um rito histórico, de sentido unívoco. O uniforme iguala e corporifica. O carnaval, além de nacional, é cósmico. Seu tempo, semelhante ao das procissões, é universalista e transcendente. A fantasia, elemento que constrói seus personagens, distingue e revela desejos escondidos, o passado e as fronteiras simbólicas da sociedade brasileira. Seu foco é o ilícito, os "interstícios do sistema". O ator é o povo, a vertente mais desorganizada da sociedade civil: "A ênfase é, assim, no encontro e no cerne mesmo da sociedade em sua vertente criativa e fundamental que sempre se representa pelo que nós chamamos de popular" (p.47). Esse privilégio do popular na discussão do nacional traz para a cena uma tradição marginal ao desenvolvimento das ciências sociais no país: a dos estudos de folclore (Cavalcanti e Vilhena, 1990 e Cavalcanti et al. 1992). Não é gratuita a presença na bibliografia de autores como Amadeu Amaral, Édison Carneiro, Câmara Cascudo, Sílvio Romero. No caso da análise do conto de Pedro Malasartes, o folclore é usado, via análise estrutural, como fonte popular. Por sua vez, o tema carnaval era, até que DaMatta o engrandecesse, assunto específico dos estudos de folclore, incluído nos chamados folguedos. DaMatta elabora também, em novos termos e nova roupagem, uma crença romântica cara a essa área de estudos: a de que o popular abriga a essência da nacionalidade. A própria pergunta que abre o livro - "O que faz o brasil, Brasil?" - pode ser lida como uma variação da In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157problemática modernista tal como formulada por Mário de Andrade, que buscava no folclore a "brasilidade" como necessária intermediação da participação do país no "concerto internacional das nações" (Moraes, 1978). Está certo que paradas e procissões, festas com dono, também são populares, mas o carnaval, a festa sem dono por excelência, o é numa medida superior, permitindo uma visão mais completa da nacionalidade. Festa dos destituídos e dos dominados, o carnaval é como "uma imensa tela social onde as múltiplas visões da realidade social são simultaneamente projetadas" (p.92). A polissemia carnavalesca conjuga representantes simbólicos (ou reais) de campos antagônicos e contraditórios, e é isso o que "constitui a própria essência do carnaval como ritual nacional" (p.49). Embora exista um local especial para os desfiles de escola de samba, a 'rua' , em seu sentido mais genérico, e em oposição à 'casa' (repressentativa do mundo privado e pessoal), é o local próprio do ritual. Paul Rigger (cap. II), herói de Jorge Amado que se sente brasileiro quando samba na rua e surra em casa a amante francesa que o traiu, é personagem paradigmático da equação entre sambar = rua = descontrole e massificação e surrar = casa = controle = autoritarismo. Essa oposição categórica, proposta como ordenadora do universo social brasileiro, possibilita o uso metonímico do carnaval do Rio de Janeiro (representado, por sua vez, pelo desfile das escolas de samba) como representativo do Brasil. É como ritual da rua e da polissemia que o carnaval carioca simboliza o carnaval nacional12. Na reinvenção do espaço citadino promovido pelo carnaval, a rua é domesticada. A decoração redefine a cidade integrando-a "num grande número de subdivisões, cada qual com seu coreto, sua banda e sua população. Todos brincando e se articulando num espaço que passa a ser pessoal, comunitário ( no sentido de Victor Turner), e sobretudo criativo, permitindo dar vazão a individualidades de bairro, de classe e categoria social " ( p.89). Uma multiplicidade de eventos ocorre simultaneamente: "Loucura, porque estamos na 'rua', que subitamente, se torna um lugar seguro e humano. Loucura, finalmente, porque nosso mundo social, tão preocupado com as hierarquias e as lógicas do 'você sabe com quem está falando?' está oferecendo mais abertura do que aquelas em que podemos realmente entrar" (p.91). É assim 12 Obviamente casa e rua são tipos ideais. A dicotomia supõe gradações, pois o desfile promove um fechamento no carnaval de rua. No clube, por sua vez, o fechamento é relativo, pois os ingressos são comprados. Dentro de cada um desses espaços se reproduz a casa e a rua. In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 que, pelas ruas da Avenida Rio Branco passeia, em repentinos deslocamentos dos níveis da narrativa de Carnavais…, o brasileiro que "brinca o carnaval", celebra "coisas difusas e abrangentes, coisas abstratas como o sexo, o prazer, a alegria, o luxo, o canto, a dança" (p.92). O grande desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é examinado de mais perto, revelando em sua organização um traço decisivo da nacionalidade. Essas organizações espontâneas constituem "um modo de dialogar com as estruturas de relações sociais vigentes na realidade brasileira. É nisso que reside, provavelmente, sua autenticidade, sua permanência". Diferentemente dos blocos, as escolas ultrapassam sua base territorial. Focalizam o pobre, entretanto "promovem uma sistemática integração das classes no seu desfile altamente complexo" (p.96). O ritual do desfile propriamente dito tem, como elementos básicos, os processos de massificação e individualização dos figurantes em relação de inversão com o cotidiano da escola13. A estrutura formal das escolas, que gerencia a rotina diária e constitui seu núcleo central, é totalmente ligada às redes locais e de vizinhança que fundaram a organização. Nesse plano, "a escola suprime individualidades e fica poderosamente ordenada em torno do poder autoritário e patronal de seu presidente, como acentua Leolpoldi (1978) (…)". No carnaval, porém, o desfile "(…) permite o desencadear de individualidades enquanto grupo corporificado, em oposição a outros grupos do mesmo teor" (p.102/103). Na época da preparação do carnaval, forma-se, sobre a estrutura central, uma outra, mais aberta, que congrega a cúpula carnavalesca, presidentes de alas e componentes de modo geral. Essa outra estrutura, como a "cauda de um cometa" compõe uma ordem muito mais flexível e difusa, uma área voltada para o mundo exterior (p.103). Aqui o ponto central do capítulo II, o 'Carnaval em Múltiplos Planos': essa estrutura dual e conciliatória, que articula a passagem do cotidiano ao ritual, capaz de juntar casa (o núcleo) e a rua (a periferia), é genuinamente nacional. É um elemento básico na definição social das associações formadas em sociedades com um forte componente hierárquico (p.104). Nessas associações (o bloco, a 13 A bateria, por exemplo, massifica, pois desfila como grupo compacto. Ela produz, entretanto, o que uma escola tem de mais particular, o seu ritmo, a sua batida. As alas, que agregam ricos e pobres, os de dentro e os de fora, são todas nominadas e individualizadas. Podem entrar em aberta competição mas sempre de modo controlado, pois devem contribuir para o todo. A figura do 'Destaque' seria uma forma extrema de individualismo. In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 escola, a tenda espírita, quem sabe o partido?, o clube de futebol) , uma ideologia igualitária é superimposta a um 'núcleo familístico, patronal, autoritário", no qual a ideologia é claramente hierárquica: "Não se trata pois de sociedades no sentido liberal (…). São de fato agremiações familísticas ou patronais, onde o espaço gerado pelo grupo é que transforma em gente ( ou pessoa), o indivíduo que a ela pertence. É pois, o grupo que constitui a pessoa, e não a união igualitária que faz o grupo"(p.104). A indivisibilidade impediria que os marginais do mercado de trabalho - "nossos biscateiros e empregados domésticos"- fossem vistos e tratados com o respeito e a consideração que merecem. Ao dividí-los em pessoas, o carnaval permite com que sejam de um lado explorados, e de outro considerados. Temos aqui, nos diz Da Matta, os ingredientes fundamentais do patrimonialismo e da patronagem "na sua sofisticada dialética de explorar e respeitar, desonrar e considerar". (p.135/136). Ao garantirem o controle de seu centro organizacional, ao mesmo tempo em que se abrem à participação de todos no ritual, as escolas de samba servem de "arena de mediação entre segmentos com interesses social e politicamente contrários"(p.105). A brecha aberta no sistema pela inversão carnavalesca concilia diferenças, produz uma "harmonização das desigualdades" (p. 134/135). O carnaval transforma marginais e inferiores (muito significativamente chamados, no Brasil, de 'indivíduos', ou seja alguém sem ninguém e sem posição social) em "pessoas"; e transforma as pessoas (que são donas do sistema) em indivíduos (uma massa indiferenciada de cidadãos com os mesmos direitos para cantar, dançar e brincar) 14. No ritual carnavalesco, o idioma hierárquico da sociedade se transforma em linguagem competitiva, igualitária e compensatória. Em sua fase mais dramática, tal qual nos ritosde passagem, o carnaval cria "uma realidade que não está aqui nem lá; nem fora nem dentro do tempo e do espaço que vivemos e percebemos como 'real'(…) uma zona de alta ambiguidade (…) num mundo que se especializou no controle da mudança social radical'(p.117). Nessa subversão temporária, e básica, a hierarquia é submetida a uma recombinação passageira. O carnaval, "comentário complicado sobre o mundo social brasileiro" 14 DaMatta reconhece plenamente o quanto essa igualdade carnavalesca é problemática, revelando a dificuldade de um mundo de indivíduos no Brasil. Ela provoca surtos de hierarquização pela violência e pelo rito verbal do "Você sabe com quem está falando? (p.135) In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 (p.68), dramatiza e acomoda a tensão entre o princípio hierárquico e o princípio igualitário ambos cruciais na sociedade nacional. II. Conclusões Carnavais, malandros e heróis, original e ousado, tem grande poder de persuasão. No que tange a análise substantiva do carnaval, esse ritual emerge claramente como um dispositivo simbólico capaz de articular redes sociais amplas e diferenciadas. Essa capacidade de mediação, ligada ao princípio da inversão e ancorada na dimensão cósmica e popular e na polissemia da festa carnavalesca, articula-se na análise de Roberto DaMatta a uma pergunta sobre um Brasil que se deseja uma "totalidade". O carnaval torna-se desse modo o espelho de uma nacionalidade, cujo conteúdo cultural se revela no exame da relação entre cotidiano e ritual na organização do carnaval carioca. É inevitável, nessa perspectiva, o esmaecimento de dimensões básicas da existência das chamadas sociedades complexas: a diversidade e a historicidade15. É como uma fotografia tirada num momento especialmente revelador de um drama, que não nega todos os demais momentos, mas reserva-se o direito dizer alguma coisa de especialmente importante. Quando DaMatta diz, à la Durkheim, que o ritual permite totalizar, ele está dizendo que, para além da fragmentação e da heterogeneidade, é lá que podemos encontrar um sistema de valores, ou melhor, o movimento gerado pelo conflito entre sistemas de valores que define a nacionalidade. É preciso totalizar justamente porque a sociedade é heterogênea. Feita a operação, a heterogeneidade esmaece. A realidade diferentemente apreendida, lida e dramatizada no triângulo ritual nacional ou num sistema de personagens característicos é, afinal, sempre a mesma realidade: a sociedade hierárquica que incorpora de forma perversa os valores democráticos modernos, aquilo que faz o brasil, Brasil. Lá estamos nós, capturados num retrato revelador, com nossos carnavais, malandros e heróis, com nossa ambigüidade, violência e conciliação. Numa leitura estática, a pergunta sobre a nacionalidade, aliada à intenção generalizante da abordagem e a suspensão consciente da historicidade e 15 Vale notar que é apenas na década de 1980 que os estuds antropológicos sobre ritual voltarão sua atenção para a relação entre história e estrutura. Ver Kelly J.D. e Kaplan, Martha (1990). In O Brasil não é para principiantes. Carnavais malandros e heróis, 20 anos depois. (Orgs. Laura Graziela Gomes, Lívia Barbosa e José Augusto Drummond). RJ: Ed FGV, 2000. pp. 143-157 diversidade, torna o carnaval o símbolo integrador de uma imagem de Brasil na coerência aprisionante de um dilema. Porém, esse dilema, feito da superposição dos sistemas de valores hierárquico e igualitário, é sobretudo a fonte do movimento da sociedade brasileira, que se resolve desdobrando-se num sistema ritual e simbólico altamente criativo e original. Até quando nos debateremos nos quadros desse dilema? Como reinventaremos mudança e permanência no tempo que há sempre de vir? Carnavais… é sempre um novo convite à leitura, a muitas leituras. Bibliografia CAVALCANTI, Maria Laura V. C. O Mundo Invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no Espiritismo. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1983. __________.Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro, FUNARTE/ Ed. UFRJ, 1994. __________. O rito e o tempo: ensaios sobre o carnaval. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1999. 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