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03. A circularidade da cultura jurídica (página 31 à 54)

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A CIRCULARIDADE DA CUL TURA JURíDICA: NOTAS SOBRE
O CONCEITO E SOBRE MÉTODO oJf flo
XEROY VALOR ~o
PASTA o'f
Luís Fernando Lopes Pereira ~~rRIA b"?I'04'lli;
ORIGINAL.
1. A EMERGÊNCIA DO OUTRO E A CENTRALlDADE DA CULTURA.
A História tradicional rankeana ao se separar da filosofia, propondo um
método próprio para a disciplina a partir da narrativa dos acontecimentos afim
de se tornar ciência autônoma, fragilizou-se enquanto teoria e empobreceu a
disciplina de reflexão filosófica, embora o Iluminismo e o Antiquarismo 1
tenham proposto procedimentos mais complexos de união da prospecção .
das fontes às explicações de cunho filosófico. Afinal, ao historiador alemão
"agradava-lhe ainda menos a ordem conceitual esvaecida das categorias
históricas na concepção hegeliana do mundo histórico.,,2
Dois elementos contribuíram para o sucesso do historicismo rankeano: de um
lado a influência das ciências naturais na busca de uma verdade objetiva, em
defesa da neutralidade do conhecimento e do saber histórico. Ao separar
fatos e valores, o positivismo histórico tinha a pretensão de resgatar o
passado como ele realmente aconteceu. De outro lado, o teleologismo, o
sentido prévio da história orientado para o futuro. Futuro que se caracterizaria
como ideia nova pois antes, nos gregos, tínhamos uma visão cícficrI r1rI
História. Mas a tradição oitocentista se ligou a um futuro escatológico
(tributário da tradição judoico-cristã) e sua perspectiva linear, tendo COIIIU fim
o Estado ou a Revolução.
Nos anos 50 temos uma espécie de revisão da consciência do intelectual
pelo estruturalismo, com reflexos para a História. 8raudel e o tempo hisLórico
inserem os elementos: estrutura, conjuntura e acontecimento, além de sérios
questionamentos em relação ao objetivismo.3 Este estava no centro da
pretensão historiográfica desde o século XVII: "aquilo que caracteriza a
historiografia do final do século XVII e início do XVIII é o grande número de
historiadores nos quais o principal empenho era em acertar a verdade de
cada fato mediante o melhor método de pesquisa.,,4
Entretanto, a ruptura feita pela Escola dos Annales e pelo Marxismo foram
apenas :> começo. Maiores rupturas viriam com a contemporaneidade que
1 Esta influência antiquaria pode ser vista na obra de Carlo Ginzburg e suas constantes
referências aos estudos de Arnaldo Momigliano. Ver: MOMIGLlANO, Arnaldo. Sui
fondamenti della storia ântica. Torino: Einaudi, 1984.
2 OILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. São
Paulo: UNESP, 2010.p. 50.
3 Ver FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à História do Direito. Curitiba:
Juruá. 2011.
4 Tradução livre do autor: "Cià che caratterizza la storiografia dei tardo Seicento e dei primo
Settecento e il gran numero di storici il cui principale impegno era di accertare la verità di ogni
fatto mediante il miglior metodo di ricerca." In: MOMIGLlANO, Arnaldo. op. Git.p.33-34.
afetariam diretamente o conhecimento histórico, fazendo com que o foco se
alterasse para questões mais fragmentadas e cotidianas. Para Jean
Baudrillard5 a cotidianeidade passa a ser um tempo forte e novos temas
passam a interessar a política, a história, o direito.
Dentre as grandes contribuições metodológicas, as que mais nos interessam
aqui vieram de estudos que têm em comum a emergência do tema da cultura
e mesmo sua centralidade. A título de exemplo destaco as obras que
profundamente influenciaram a historiografia brasileira dos anos 80 do século
XX, primeiro o livro de Tzvetan Todorov6 no qual o mesmo buscava um
entendimento sobre a diversidade humana, destacando a construção de uma
ideia de outro como o diferente do nós (presente também em Tristes Trópicos
de Lévi-Strauss, onde o viajante e estrangeiro são vistos como construções
7
e para quem "todo bom livro de história ...está impregnado de etnologia"s);
depois a obra de Marshall Sahlins9, na qual o autor verifica o impacto da
chegada do capitão Cook ao Hawai, defendendo a ideia de que não se pode
permanecer na perspectiva universalista de mundo, mas se deve buscar uma
leitura da chegada do branco pelos nativos e sua ótica. Aqui Sahlins combina
perfeitamente a análise da estrutura e do evento, vendo como o contato com
o europeu deu origem a conflitos internos não previstos pelo fortalecimento
que os brancos promoveram de naturais rivais do chefe, partindo do
pressuposto de que cada esquema cultural tem suas preferências e signos.1o
5 BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiOrias silenciosas; o fim do social e a
emergência das massas. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984. Poderia-se mesmo entrar na
discussão da centralidade da imagem na sociedade contemporânea, com autores como
DÉBORD, Guy. Com menta ires sur la société du spectacle.Paris: Gallimard, 1988. BUCCI,
Eugênio & KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004. KLEIN, Naomi. Sem
logo; a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2002. Isso para
não entrar em discussões sobre a cultura e condição pós-modernas.
6 Todorov apresenta uma reflexão sobre a construção histórica de conceitos como
etnocentrismo, cientificismo, relativismo, etc., a partir de autores como Montaigne e Lévi-
Strauss, para pensar a relação entre o nós (grupo social determinado) e ou Outros (os que
não têm a mesma identidade do grupo). ver: TODOROV, Tzvetan. La Conquista de
America; EI problema dei otro. México: Siglo XXI, s/data.
7 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
8 Tradução livre do autor de: "tout bon livre d'histoire ... est-il impregné d'ethnologie". LÉVI-
STRAUSS, Claude. Apud: GINZBURG, Carlo. Introdução. In: BLOCH, Marc. I re
taumaturghi; studi sul carattere sovrannaturale attribuito alia Potenza dei re particolarmente
in Francia e in Inghilterra. Torino: Einaudi, 1973.
9 SAHLlNS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. Sahlins mostra a
análise dos mitos primordiais e lendas tribais dos maoris e como estas lendas são
importantes para a compreensão da ordem atual. A ontogenia desta tribo repete a
cosmogonia em seus ritos. É por isso que a insurreição que trouxe Sir George Gry à Nova
Zelândia está diretamente relacionada com a revolta ocorrida entre 1844-46. Segundo
Sahlins "a revolta foi por causa de um mastro, que também tinha a ver com a posse da terra:
um mastro de bandeira com as cores britânicas voando ao vento sobre Kororareka, na Baía
de Islands, que foi por muito tempo o assentamento europeu mais populosos (... ) em quatro
ocasiões diferentes, entre julho de 1844 e Marco de 1845, Hone Heke, o 'rebelde maori', e
seus guerreiros da tribo Ngapuhi cortaram o mastro da bandeira." Idem. p. 85. Mas o mais
importante é a conclusão de Sahlins de que os maori não estavam lutando pela posse da
cidade ou contra a dominação britânica. Apenas lutavam contra a colocação do mastro por
seu valor simbólico e suas relações miméticas com o surgimento da humanidade.
10 Dentro da cosmogonia hawaiana existia a lenda de que os deuses voltariam a terra, mas
que logo após a sua saida, os impostores viriam e deveriam ser detidos. Por isso na primeira
Assim, defende-se aqui uma unidade entre método e conceito, sob o prejuízo
de desvios tanto interpretativos quanto aplicativos do mesmo. Afinal um
conceito de cultura jurídica a partir dos referenciais que aqui se utilizará exige
um instrumental de análise adequado, como se verá. Assim, os debates
sobre o conceito serão perpassados por notas sobre o método. Em resumo:
de um lado o debate metodológico, de como os instrumentais antropológicos,
mais complexos, plurais' e abertos seriam mais eficazes para o estudo do
Direito (como fenômeno cultural), e de outro a possibilidade de criação de
conceitos úteis ao estudo do fenômeno histórico jurídico, como o de cultura
jurídica.
2. A CIRCULARIDADE DA CULTURA JURíDICA E SUAS PISTAS: EM
BUSCA DE UMA INTERPRETAÇÃOPROVÁVEL.
Parte-se, inicialmente,de um debate acerca do ofício do historiador e vincula-
se aqui a uma busca pela coleta de provas, de pistas e indícios, de rastros
desse passado jurídico que se pretende interpretar. Caso contrário corre-se o
risco de conclusões enganadoras, cosméticas nos termos de Carlo
Ginzburg17.Busca-se, portanto, seguir os conselhos de Paolo Grossi, sobre a
necessidade de se ser historiador da experiência já que esta não deve ser
desprezada por aqueles que pretendem evitar abstrações vazias: "o
historiador da ciência jurídica não pode não ser também historiador da
experiência: detrás da ciência há sempre uma experiência que preme e
condiciona, e que não deve ser ignorada se se pretende evitar abstrações
vazias".18
A partir de tais pistas é que se pretende estabelecer relações com o geral;
relações entre universal e singular que mostram como a totalidade pode ser
apreendida pelos indícios, desde que se recomponha o restante de forma
prudente, seguindo novamente as lições de Ginzburg e seu método
indiciário19,tributário da semiótica de Pierce e da iconologia de Warburg2o.
mundo de ponta-cabeça; idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
16 Destaque para o deslocamento dos debates para as questões culturais, com posições que
variam do conceito de indústria cultural forjado por Adorno e Horkheimer ao debate de Walter
Benjamin sobre uma arte com aura e uma sem aura. Há aqui também forte influência da
psicanálise e de Sigmund Freud, principalmente em Herbert Marcuse. Ver: BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. MARCUSE, Herbert.
Cultura e psicanálise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. ADORNO, T. & HORKHEIMER,
M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
17 GINZBURG, Carla. Relações de força; história, retórica e prova. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
18 Tradução livre do autor de: "Lo storico della scienza giuridica non puà non essere anche
storicodella esperienza: dietro la scienza c'é sempre un'esperienza che preme e condiziona,
e che non deve essere ignorata se si vuole evitare vuote astrazioni."GROSSI, Paolo. Scienza
~iuridica italíana: un profilo storico (1860-1950). Milano: Giuffré, 2000. p.2.
9 GINZBURG, Carla. A micro-história; e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
20 Warburg com sua iconologia pretendia libertara análise das obras de arte das amarras da
estilística e da centralidade da avaliação puramente estética. Propunha interrogar
filologicamente os elementos figurativos da obra, considerando de modo unitário seus vários
Para o autor, as sociedades frias explicam tudo por elementos internos
(mitológicos, por exemplo) e não se alteram no contato com os outros; já nas
quentes haveria uma circularidade cultural, uma troca. Para Sahlins, se
existem estruturas sincrônicas, existem também estruturas performativas e
prescritivas, onde tudo está prescrito de saída.11 Por último, a obra de
Edward Said12 que analisa como o ocidente cria um discurso sobre o oriente,
inventando-o como seu outro '(posicionado na barbárie e naquilo que não
quero aceitar e ver em mim mesmo, sendo de certa forma, uma projeção da
minha imagem), em suas palavras: "O Oriente não está apenas adjacente à
Europa; é também (...) seu concorrente cultural e uma das suas mais
profundas e recorrentes imagens do Outro 1),'. "Outro" este perceptível como
. receptáculo de projeções, bem representativos das teses de Said são as
releituras belicosas da oposição a um outro inventado (desta vez se chama
"islã") feitas por Bernard Lewis e Samuel Huntington 14.
Essa emergência do "outro" marcante na recente historiografia, possibilitou
também uma relativização de conceitos "civilizacionais", mais que isso, ljma
historicização e interpretação dos fenômenos de nossa própria sociedade.
Ainda, tal aproximação com a Antropologia, pretende também revelar facetas
escondidas do jurídico, que carregam em si o peso da tradição e inúmeras
pistas para a compreensão histórica do fenômeno, como as questões
ritualísticas e simbólicas. A pretensão do artigo é de criar um conceito dé"
cultura jurídica e sugerir um método de pesquisa a partir de um diálogo com
tais perspectivas que podem ser chamadas de culturalistas, como também o
são. as revisões do marxismo feitas pela Nova Esquerda Inglesa 15 e pela
Escola de Frankfurt16.
chegad<l de Cook a região, o mesmo é tratado como deus e na sua volta, morto. SAHLlNS,
Marshall. op.cil.
Ú Idem. P. 74.
12 SAIO, Edward. Orientalismo; o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
13 SAIO, Edward. op Gil. p. 13.
14 Lewis cria o conceito de choque de civilizações em seu artigo, publicado na Foreign Afairs,
intitulado as origens do ódio muçulmano Uá no titulo se percebe para onde caminha o
texto.~.}, ellJ 1990 e foi apropriado com sucesso por Huntington em seu livro. No artigo Lewis
afirma: "Trata-se nada menos do que um choque de civilizações -as reações talvez
irracionais mas certamente históricas de um antigo rival contra nossa antiga herança judaico-
cristã, nosso presente secular e a expansão mundial de ambos.oÉ crucialmente importante
que nós, da nossa parte, não cedamos à provocação e que nós tenhamos uma reação
igualmente histórica~ mas também igualmente irracional contra esse rival." LEWIS, Bernard.
The Atlantic Monthly; september 1990, "The roots of muslim rage", volume 266, n. 3. P.57.
HUNTINGTON, Samuel. O choque de dvilizações. São Paulo: Objetiva, 1997. Ver a critica
de SAIO, Edward. O choque de definições (sobre Samuel Huntington). In: _' Reflexões
sobre o exilio; e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 316-336.
15 Destaca-se aqui as obras de Edward Thompson e Christopher Hill. O primeiro estuda a
formação da classe operária inglesa a partir dos motins de fome do século XVIII, destacando
o conceito como uma construção cultural e o segundo analisa a Revolução Inglesa e
particularmente as idéias radicais que circulavam naquele momento histórico. Ambos
criticam o marxismo vulgar e principalmente o estruturalismo althusseriano, abrindo espaço
para novos estudos, privilegiando a cultura. Ver: THOMPSON, Edward. A formação da
classe operária inglesa. (3V) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. HILL, Christopher. O
Como um caçador primitivo, segue-se pistas e a incerteza ocupa
preocupação central, na evidente presença do qualitativo e do individual,
tendo a experiência como base.
Na historiografia, tal inspiração viera de Marc Bloch21 que em seu livro
trabalha também com pistas, testemunhos. Na prática, inclusive, ele sempre
soube que a questão central era a da avaliação dos testemunhos, muito difícil.
e incerta - a testemunha, mesmo a ocular, muitas vezes não vê, ou vê de
maneira inexata. O tema do livro de Bloch é uma 'gigantesca falsa novidade',
a partir da qual analisa o poder real e a monarquia na passagem do medieval
ao moderno. De um lado desmistifica o milagre régio, buscando sua gênese
no desenho político-administrativo e de outro, chega a uma verdade mais
profunda, para além da crença, aquela das 'representações coletivas'.
No caso da visão das Monarquias, privilegia aqui o simbólico. Mas para
conseguir chegar a tal visão é preciso superar as análises tradicionais, afinal,
"Para compreender que coisa foram as monarquias de uma vez por todas,
para explicar sobretudo o seu longo domínio sobre o espírito dos homens,
não basta descrever, até sua última particularidade, o mecanismo da
organização administrativa, judiciária, financeira que estes impuseram a
seus súditos; não é suficiente nem mesmo analisar em abstrato ou procurar
trazer de qualquer grande teórico os conceitos de absolutismo ou de direito
divino. É preciso também penetrar nas crenças e lendas, que floresceram ao
redor da casa principesca.,,22
A mesma valorização da singularidade está presente na Antropologia e
mesmo em Bakhtin. Este, inclusive, na mesmaperspectiva de Norbert Elir.ls
não separa individual e coletivo, afinal mesmo a consciência individual pr.lm o
autor é múltipla e 3 realidade verbal heteroglótica, multiacentuéfl, ê:l
consciência individual é dialógica, multivocal e não uma unidade, como
acreditava a história da cultura tradicional e mesmo parcela da história das
ideias e das mentalidades. Em termos de método, Bakhtin se coloca contra
as grandes síntp.ses que reduzem a heterogeneidade e a diversidade a um
aspectos. Ginzburg, que estudara no Instituto Warburg, recebe deste tal influência e busca,
juntamente com Ernst Gombrich, fugir de um lado da questão da genialidade e da autoria
(presa a elementos internos) e de outro de uma "sociologização" exagerada que prende a
obra em uma espécie de "espírito de época". Ver: GINZBURG, Carlo. De A. Warburg a E. H.
Gombrich: notas sobre um problema de método. In: __ o Mitos, emblemas e sinais;
morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.15-40. GOMBRICH, Ernest.
Aby Warburg; una biografia intellettuale. Milano: Feltrinelli, 1970.
21A edição italiana da obra possui tradução e prefácio de Carlo Ginzburg. BLOCH, Marc. I re
taumaturghi; studi sul carattere sovrannaturale attribuito alia Potenza dei re particolarmente
in Francia e in Inghilterra. Torino: Einaudi, 1973.
22 Tradução livre do autor de "per capire che cosa furono le monarchie di una volta, per
spiegare soprattuto il loro lungo domínio sullo spirito degli uomini, non basta affato
descrivere, fin nel'ultimo particolare, il meccanismo dell'organizzazione amministrativa,
giudiciaria, finanziaria, che esse imposero ai loro suditi; non basta neppure analizzare in
.astratto o cercare di trarre da qualche grande teorico i concetti d'assolutismo o di diritto
divino. Ocorre anche penetrare le credenze e le leggende, che fiorirono attorno alie case
principesche." In: BLOCH, Marc. Op. Cil. p.6.
molde único. Afinal, para ele a "alteridade é a condição da identidade: os
outros constituem dialogicamente o eu que se transforma dia logicamente
num outro de novos eus.,,23
Por isso a pesquisa deve prospectar indícios e buscar a definição de uma
hipótese aceitável (ainda que conjecturai e provisória), estabelecida com
base na sua "plausibilidade, coerência e potência explicativa,,24., com a
intenção de lançar novas luzes interpretativas ao objeto, no caso, o passado
jurídico, em busca não da verdade abstrata da certeza, mas aquela da
probabilidade.
Há, portanto, aqui uma pretensão de interpretação feita em íntima relação
com as fontes, dentro do âmbito do provável. E esta é a diferença em relação
ao positivismo historicista: reconhece-se a necessidade de analisar, de
discutir, de dar sentido ao passado (tarefa que mesmo Hegel sabia pertencer
ao historiador, destacando a astúcia da razão25), portanto, de interpretar. Mas
a partir dos sinais. Elemento em comum a necessidade de historicizar, de
colocar o objeto no passado, em um tempo diferente do dele. Uma tarefa que
parece impossível, pois não há como se estabelecer um conhecimento
imediato com o passado, na medida em que este é algo que não existe mais.
Mas ele nos legou pistas, mensagens, logo, apenas partes nos chegam.
Pietro Costa26 nos mostra como a interpretação é obra criativa que produz
um resultado diverso e atribui sentido ao texto. Entretanto, Costa alerta
também para os perigos de uma interpretação de tendência
"desconstrucionista", para a qual a arbitrariedade da interpretação seria
absoluta -e que, em verdade destituiria de sentido a própria operação
hermenêutica. Assim, se de um lado se distancia da busca da verdade
pretendida pelo objetivismo positivista, de outro, também nega a redução do
texto histórico a um mero romance. Costa defende uma liberdade ampla de
interpretação, mas não ilimitada. A interpreta~ão feita, embora apenas uma
entre várias, deve, entretanto ser plausível2 . Daí a afirmação de que a
historiografia não é a descrição de coisas, mas atribuição de sentido: logo,
uma interpretação, que busca colher significados hermenêuticos. Trata-se de
uma viagem no tempo, viagem não linear, mas em meio a um labirinto, com
curíosas experiências de estranheza.
Há outro aspecto que necessita ser esclarecido: as fontes. Indícios, pistas,
provas são termos que por si só sugerem já uma vinculação ao fato, ao
acontecimento, a outra temporatidade da história que não a estrutura ou
conjunturâ, para usar os conceitos de Braudel28. Entretanto, os
acontecimentos ou mesmo os indícios só podem ser explicados a partir do
23 FARACO, Carlos Alberto. ° dialogismo como chav~ de uma antropologia filosófica. In:
. (org.) Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 1996.p.125.
2ll""(3INZBURG, Carlo. Jean Fouquet; ritratto deI buffone Gonella. Modena: Panini, 1996.
25 HEGEL, Georg. A razão na história. Rio de Janeiro: Centauro, 2001. .
26 COSTA, Pietro. Soberania, reprElsentação, democracia; ensaios de história do
~ensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010. •
7 COSTA, Pietro. O conhecimento dOi passado; dilemas e instrumentos da historiografia.
Curitiba: Juruá, 2007.
28 BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2007.
contexto, de sua ligação com o todo. O caso por si só não se explica e, como
não se pretende permanecer na mera narrativa, há que se estabelecer
ligações com o contexto. São exatamente tais conexões que permitirão a
leitura de um caso como anômalo (em relação à norma). Como diz Ginzburg,
a anomalia traz em si a norma, daí a maior relevância de seu estudo, pois a
análise da norma, ao contrário, não nos permite apreender a anomalia. A
atenção ao desvio, ao excepcional, abre a possibilidade de revelar algo sobre
a natureza da norma que a atenção à própria norma em si não revelaria. Para
ele, "a violação da norma contém em si (do mesmo modo que a pressupõe)
também a norma, enquanto o oposto não é verdadeiro.,,29 Afinal, de perto
toda a realidade é anômala! Mas o historiador não pode se deixar seduzir
pelas fontes e ser por elas dirigido, mas deve ter em mente que o importante
é a possibilidade que tais fontes, pistas, indícios nos dão para relacionar o
micro e o macro que em verdade caracteriza a microstoria3o. Como destaca
Walter Benjamin, "nem tudo nessa vida é modelar, mas tudo é exemplar".31
Tal opção pelo micro pode ser relacionada a outra preferência: pelo
fronteiriço, aquele que está em meio a imbricadas relações culturais com a
alta e a baixa culturas. Essa questão remete ao debate da relação entre
individuo e sociedade, enfrentada por Norbert Elias que constrói o conceito
de configuração que "serve de instrumento r.onceptual que tem em vista
afrouxar o constrangimento social de falarmos e pensarmos como se
indivíduo e sociedade fossem antagônicos e diferentes.,,32 Os personagens
fronteiriços seriam aqueles mais reveladores da ausência de dicotomias pois
encontram-se em uma posição pela qual circulam em maior quantidade
elementos da alta e da baixa culturas, como o caso de Mozart na análise feita
por Elias, que teve de incorporar elementos variados, afinal,
"A maioria das pessoas que começavam a carreira de músico não eram de
origem social nobre, mas burguesa, de acordo com nossa terminologia. Se
faziam carreira no seio da sociedade cortesã, isto é, se significa que queriam
encontrar as possibilidades de implantar os seus talentos como intérpretes
ou músicos credores, teriam que se adaptar, de acordo com sua baixa
posição, não apenas estética musicalmente, mas também suas roupas, a
totalidade de seu caráter humano ao cãnone de comportamento e
sensibilidade cortesãos.33"
29 GINZBURG, Carlo. Uma história noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p.26.
30 Primeira obra do gênero foi feita por Luiz González y González (México) Micro história de
San José Gonzalez. Ali, procurava recompor parcela do social mais próximo ao núcleo
faf"":iliar afetivo, uma história de um ponto de vista particular. Ver:González y González, Luis.
Pueblo en vi lo. Microhistoria de San José de Gracia .. México: El Colegio de México, 1968.
O método tomou força na itália dos anos 70 com os Quaderni Sforici e com historiadores
como Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg, este ultimo, o grande responsável
pela popularização desse tipo de historiografia. Ver: LIMA, Henrique Espada. A micro-
história italiana; escalas, indicios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2006.
31 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica; arte e politica. Obras escolhidas volume 1. São
Paulo: Brasiliense, 1985. p.36.
32 ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1999.p. 141.
33 Tradução livre do autor de: La mayoria de las personas que iniciaban la Carrera de músico
no eran de origen social noble sino burgLJês, según nuestra terminologia. Si hacian Carrera
en el seno de la sociedad cortesana, es decir, si querian encontrar las possibilidades de
A mesma poslçao fronteiriça é destacada por Bakhtin, para quem
Dostoievski34 teria sido o criador do romance polifônico: aquele que constrói
seus personagens a partir do encontro entre eles (inacabado, construído na
interação das vozes), ou seja, o eu se constituindo no processo de encontro
com as consciências dos outros (para ele as personagens são de certa forma
independentes do autor, gozam de relativa autonomia, em Os irmãos
Karamazov, por exemplo):
"A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra
comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como
uma de suas caracteristicas mas tampouco serve de intérprete da voz do
autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se
soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com
ela e com as vozes plenivalentes de oljtros heróis". 35
O mundo para o autor seria polifônico e a realidade do ser no mundo
dialógica. Logo, as coisas são definidas nas fronteiras, não nos pólos como
para aqueles que procuram um sistema, uma unidade. Nas fronteiras é que
vemos a unidade, pois as coisas se definem na relação, no dialogismo, no
diálogo. Aqui mais um autor que critica o idealismo, afirmando que a unidade
semântica nunca está em Lima proposição isolada, mas encarnadas em uma
consciência dialógica. .
A relação entre o todo e as partes e a necessidade de uma interpretação por
parte da história pode ser encontrada também nas obras de Dilthey que
contribuiu enormemente com a filosofia hermenêutica, ao pregar, através da
imagem do "circulo hermenêutico", que o significado do todo se dá com base
nos elementos que o compõem, mas que, ao mesmo tempo, só se
compreende cada uma das partes tomando como referência o todo.36
"Nesta multiplicidade dos valores históricos vem à tona inicialmente a
diferença das coisas que não são senão valores utilitários ante os de si
mesmo ou os próprios, valores que estão associados à consciência de si.
Esses valores são o material do mundo histórico. Eles são como sons, a
partir dos quais provém o tecido das melodias do universo espiritual. Cada
um deles assume uma posição determinada nesse tecido por meio da
relação em que se encontra com os outros. Mas ele não tem apenas a
determinidade do som segundo a intensidade, a altura e a duração, mas é
enquanto indivíduo, al~Jo indefinível, único; e isto não apenas segundo a
relação em que se encontra, mas em sua própria essência.,,37
desplegar su talento como intérpretes o músicos credores, tenian que adaptar, de acuerdo
con su baja posición, no solo su estétíca musical, sino también su vestimenta, la totalidad de
su carácter humano ai Canon cortesano de comportamiento y sensibilidad.ln: ELIAS,
Norbert. Mozart; sociologia de un genio. Barcelona: Península, 1991.p.25.
34 Para Bakhtin, em Dostoievski o mais importante 'é criar condições para o dialogo
(finalidade do processo estético) que é sempre inacabado. Por isso a construção do final se
dá com uma ruptura. Os personagens se constroem interacionalmente no livro. Ver:
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Río de Janeiro: Forense, 2008.
35BAKHTIN, Mikhail. Idem. p. 5.
36 RICKMAN, H. P. (Ed) Dilthey; selected writhings. Cambridge: University Press,
1976.p.254.
37DILTHEY, Wilhelm. op. cit. p. 254.
É preciso agora, falar um pouco sobre a circularidade da cultura jurídica. A
idéia é utilizar tal termo também inspirado, inicialmente, nas orientações de
Carlo Ginzburg emprestando do mesmo sua ideia de circularidade, como
exposto no estudo sobre um moleiro do século XVI:
"Pode-se ligar essa hipótese àquilo que já foi proposto em termos
semelhantes, por Mikhail Bakhtin, e que é possivel resumir no termo
'circularidade'; entre a cultura das' classes dominantes e a das classes
subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito
de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de
cima para baixo.,,38
A concepção tradicional de cultura, que muitas vezes inspira visões sobre o
jurídico, é aristocrática e prega uma aparente separação radical entre a alta e
a baixa culturas. Assim, quando um elemento das classes privilegiadas migra
para as subalternas destacam-na como degeneração.
Isso também ocorre com a análise do que poderíamos chamar de cultura
jurídica. O termo se tornou popular, de acordo com Ramón Narváez a partir
dos anos setenta, "a partir dos escritos de Lawrence Friedman, que a definiu
como uma interpretação do direito (oficial, popular e misto) e suas
instituições. (...) Friedman distingue dois tipos de cultura jurídica, a interna e a
externa,,39, que divide especialistas e senso comum. Aqui vemos a separação
entre alta e baixa cultura e a visão desta como degeneração.
Ainda, nas análises tradicionais privilegia-se o estudo das elites jurídicas, dos
grandes doutrinadores e juristas, tratados de forma celebrativa.4o E toda uma
gama de fontes é desprezada elou desqualificada, como os manuais e
demais produções que circulavam e que são considerados pelas visões
tradicionais como uma cultura inferior, mera simplificação da alta cultura e
seus eruditos debates. Isto para não falar dos processos (que em grande
número se acumulam nos Arquivos Públicos, sem análise, quando não se
perdem ...), onde se torna evidente o componente não apenas técnico e
jurídico, mas principalmente político e social de uma configuração que ainda
estava em construção, ainda longe de ter conquistado uma autonomia
mesmo que relativa.
o que temos é na verdade uma circularidade, um influxo recíproco no qual se
constituem tanto a alta cultura jurídica como a baixa. Logo, elementos
migram de uma para a outra. Circularidade que, como citada por Ginzburg,
remete a Mikhail Bakhtin que, ao analisar François Rabelais busca nele os
elementos de cultura popular que seriam a base da riqueza cultural do
Renascimento. Afinal, para ele:
38GINZBURG, Carla. O queijo e os vermes; o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 13.
39NARVÁEZ, José Ramón. Culturajurídica; ideas e imágenes. México: Porrúa, 2010. p. 7.
40 O tipo de história do Direito que encontramos, principalmente cumprindo funções
introdutória a obras dogmáticas, ou tratam do Direito como fenômeno exclusivamente legal
(reduzindo as fontes ao aparato normativo) ou quando muito, ampliam a análise para os
"grandes juristas de nossa história".
"É justamente esse caráter popular peculiar e, poderiamos dizer, radical, de
todas as imagens de Rabelais que explica que o seu futuro tenha sido tão
excepcionalmente rico, como o sublinhou exatamente Michelet. É também
esse caráter popular que explica "o aspecto não literário" de Rabelais, isto é,
sua resistência a ajustar-se aos cânones e regras da arte literária vigentes
desde o século XVI até os nossos dias ... ,,41
o método de Bakhtin interpreta a própria língua como prática sócio-histórica,
sendo que"a realidade da linguagem é sempre heteroglótica". Assim,
contesta a visão tradicional para a qual a variação linguistica é sempre tida
como determinada pela geografia, pelo tempo, por estamentos sociais ou
pelo contexto. Para ele as línguas são, portanto, sócio-ideológicas.-o que
significa que em uma língua encontram-se diversidades; dentro de um
padrão, há uma multidão de Iínçluas, pois "o signo é a arena da luta de
classes", posto que perpassado por valores, remetendo assim a sistemas de
crenças diferentes.
Assim, o conceito de signo de Bakhtin não apenas colabora com teorias
antropológicas citadas nesse texto, mas sobretudo, permite uma melhor
compreensão do fenômeno jurídico e seu valor simbólico, seu significado
para uma determinada sociedade, particularmente em sociedades complexas
como as que hoje se apresentam. O signo em Bakhtin não é neutro, mas
ensopado de valores e a semiose não é unitária, mas múltipla e heterogênea,
afinal o signo reflete e refrata.42
Assim, na circularidade de Bakhtin, os elementos da cultura popular
aparecem na alta cultura renascentista e, a partir de tal descentração
(multiplicação das formas de significado), as vozes são colocadas em um
mesmo patamar, passando a SE~rencarada a linguagem como pOlifônica,
onde a voz do autor se perde em meio às outras. Talvez tenha Bakhtin uma
importância maior que se supõe para o estudo da cultura jurídica, pois ao
analisar os discursos destaca a já citada polifonia, exceto no caso dos
discursos de autoridade, com os quais não se dialoga. Mas o Direito não é
um discurso de autoridade (mero comando coercitivo), mas guarda em si um
dialogism043 que exige o estudo de seu diverso significado em cada cultura,
afinal o espaço cultural é o espaço dos múltiplos diálogos. Sobre a dinâmica
dialógica interior e social, vale resgatar as palavras de Augusto Ponzio,
"Todos os nossos discursos, e sobretudo os nossos discursos interiores, vale
dizer, os nossos pensamentos, são inevitavelmente dialógicos (...) O dialogo
é aquele compromisso que confere lugar ao eu: o eu é esse compromisso
41 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Media e no Renascimento; o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 11987.p. 2.
42 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.
43 Toda manifestação artística e literária é dialógica. Tqda realidade lingüistica é dialógica,
pois responde e solicita resposta, atuando em um plano intra-enunciados. Todo enunciado é
dialógico e a consciência social é semiótica e multivocal de ponta a ponta, nas palavras de
Bakhtin: "nenhuma palavra ocorre sem o olhar obliquo do outro". Assim, para ele, o nosso
falar nasce da boca dos outros, no universo da heteroglossia (múltiplas linguas e múltiplas
redes dialógicas); a sentença, portanto, não é algo dado, abstrato, monológico, morto, mas
um conjunto de citações. Aqui, novamente, encontramos a superação da dicotomia
individual-coletivo, como em Norbert Elias. Ver: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e
de estética; a teoria do romance. São Paulo: UNESP, 1993.
dialógico, dialógico em um sentido substancial e não formal, e o discurso
narrativo com que se constrói a própria identidade é estruturado como um
diálogo.,,44
Essa percepção de que somos na linguagem, representada em um universo
simbólico, foi recepcionada pelos historiadores do direito por Pietro Costa em
seu estudo sobre a iurisdictio, analisando seus problemas de significado, o
que envolve uma série complexa de operações mentais, afinal, "a história da
iurisdictio é uma semântica da linguagem político-jurídica medieval.,,45 Costa
vai além, destacando que todo historiador traduz (adéqua o sentido atualiza),
assim o autor pesquisa a criação de uma nova linguagem especial,
profissional e analisa seu campo semântico. Daí falar em linguagem política
medieval46 e buscar seu núcleo definidor, encarando o poder como
possibilidade de obter obediência, inspirado por Weber47, destacando,
portanto, a relação. Costa faz a História de uma palavra: iurisdictio.
"para a cultura alto-medieval, esitaremos de falar, como fizemos para o
pensamento jurídico baixo-medieval, de uma verdadeira e própria linguagem
especial, completa, articulada, caracterizada como maneira particular de
organizar a experiência. Podemos quando muito encontrar fragmentos de
uma linguagem, mas não ainda um discurso que sabiamente tenha a
ambição de constituir-se como linguagem conclusa e completa,
tendencialmente técnica, mais ou menos de maneira ingênua, mas
obstinadamente, definidora.,,48
Costa percebe que a nova linguagem jurídica nascia com o termo iurisdictio
que para o autor pode ser traduzido como processo de poder, no qual a
linguagem do poder enquanto tal não tinha ainda encontrado um lugar ao sol
na linguagem político-jurídica e a lei ainda era interpretada como tradução da .
44Tradução livre do autor de: Tutti i nostri discorsi, e soprattutto i nostri discorsi interiori, vale
a dire i nostri pensieri, sono inevitabilmente dialogici (...) il dialogo é quel compromesso che
dá luogo all'io: I'io é questo compromesso dialogico, dialogico in un senso sostanziale e non
formale, e il discorso narrativo con cui construisce la propria identitá é strutturato come un
dialogo. In: PONZIO, A; CALEFATO, P; PETRILLI, S. Fondamenti di filosofia dei linguagio.
Roma: Laterza, 1994. p. 130. Apud: FARACO, Carlos Alberto. O dialogismo como chave de
uma antropologia filosófica. In: __ o op. cil.
45Tradução livre do autor de: "La storia di iurisdictio é una semântica deI linguaggio politico-
giuridico medievale". COSTA, Pietro. lurisdictio; semantica dei potere politico nella
pubblicislica medievale. (1100-1433). Milano: Giuffré, 2002. Per la storia dei pensiero
giuridico moderno 62. p.3.
46 "Stabilire un corpus di proposizioni (il piu possibile) formali il cui strutturale disporsi insieme
traduca Le correlazioni, Le opposizioni, il sistema dei linguaggio politico medievale."ln:
COSTA, Pietro. Idem. p. 66. .
47WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília:Editora da UnB, 1999.
48Tradução livre do autor de: "per la cultura alto-medievale, esiteremmo a parlare, come
abbiamo fatto per il pensiero giuridico basso-medievale, di un vero e proprio linguaggio
speciale, completo, articolato, caratterizzato da un proprio modo di organizzare I'esperienza.
Potremo semmai trovare frammenti di un linguaggio, ma non ancora un discorso che
consapevolemente abbia I'ambizione di costituirsi a linguaggio conchiuso e completo,
tendenzialmente técnico, piu o meno ingenuamente, ma ostinatamente definitorio." In:
COSTA, Pietro. lurisdictio. op. cil. p. 97.
ordem já dada da sociedade. Por isso fala em jogo entre símbolos de
legitimidade e de validade.
Essa percepção da dinâmica comunicacional da cultura jurídica aproxima
Costa novamente de Bakhtin, para quem cultura é conjunto de processos
interacionais, fazendo com que todas as atividades culturais (entre elas a
jurídica) tenham um chão único: a dinâmica comunicacional. Na cultura (esse
chão comum) existem diferentes I9sferas das atividades sociais. Logo, sua
pergunta não é sobre em que consiste a atividade jurídica, mas como a
cultura jurídica constrói tal esfera. Afinal, as esferas de atividades sociais,
que se alteram, .produzem gêneros que são tão móveis quanto a cultura e
quanto mais heterogênea a sociedÇ3demaior a complexidade das esferas e
dos gêneros. Ao abándonar' G filtro da linguagem única e abstrata nos sugere
a nós, historiadores do direito, o abandono da visão do fenômeno jurídico
presa a estatalidade; elemento frequente nas críticas de Paolo Grossi, para
quem Direito não exprime o ~stado, mas a sociedade, caracterizando-se
como realidade complexa, como ord~namento do social.49
O mesmo Grossi faz um interessante paralelo entre a linguagem e o Direito,
afirmando' que os dois têm uma plataforma comum, os dois possuem
dimensão intersubjetiva e ambos 'secaracterizam como instrumentos que
ordenam a dimensão social do sujeito: "a linguagem permitindo uma eficiente
comunicação, o direito uma pacífica convivência". Ainda,. em ambos o
componente do acolhimento tem a vantagem sobre a obediência. Assim, as
instituições, por exemplo, passam a. ser vistas como nó de relações
organizativas, funções e valores, com vocação pluralista (ordenamento como
referente de uma sociedade complexa).
A mesma relação com a língua é feita por Savigny citado por Dilthey, "Língua,
hábitos, constituição, direito não possuem nenhuma existência separada,
eles não são senão forças e atividades pãrticúiares de um povo, ligadas na
natureza de maneira inseparável.,,5o
Logo, a análise da cultura jurídica em uma sociedade complexa deve seguir
orientações que possibilitem a construção de uma interpretação (aberta,
complexa e provisória) do fenômeno juridico como fenômeno cultural e, como
tal, constituído a partir de influxos recíprocos internamente ao campo jurídico
e fora dele. Afinal, recorrendo a Geertz, "a .questão central colocada pelo
florescimento do pluralismo jurídico no mundo moderno - ou seja, a questão
de como devemos compreender o ofício do Direito, agora que suas
variedades tornaram-se tão descontrolada mente misturarias -em grande
parte, escapa à sua sala de aula e às suas fórmulas.,,51
49 GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de janeiro: Forense, 2006.
50 DILTHEY, Wilhelm. Op. CiLp. 45.
51 Tradução livre do autor de: "The central issue posed by the f10rescence of legal pluralism in
the modem world -namely, how ought we to understand the office of law now that its varieties
have become so wildly immingled-Iargely, escapes its rather c1assroom formulae." In:
GEERTZ, Clifford. Local Knowledge. USA: Basic Books, 1983.p. 221.
Circularidade que já os clássicos estudiosos do Brasil Colonial, para
permanecer na atual área de interesse do autor, conheciam bem. Charles
Boxer52 e os demais brasilianistas sempre trataram de nosso pais como
parcela do Império Português, componente de uma imbricada rede de
circularidade de ideias, mercadorias e pessoas.53 O mesmo ocorrendo com
Sérgio Buarque de Holanda, que, inclusive, destaca o fato de Portugal ser um
histórico local de passagem54 e Gilberto Freyre,55 que teve sempre a
sensibilidade de situar o Brasil em relação a outras colônias e mesmo em
intercâmbio com estas, mesmo no que diz respeito a questões que compõem
a esfera cultural e que não são tradicionalmente analisadas, como as
questões simbólicas. Freyre destaca, por exemplo, a roupa dos magistrados:
"Eram os principais magistrados brasileiros, e não apenas os ministros, que
se revestiam, então, para o exercicio de suas funções, de becas 'ricamente
bordadas', vindas do Oriente. Se o hábito faz sempre o monge, a justiça por
eles administrada ou distribuída era antes a patriarcal que a estatal nas suas
inspirações, a que considerava antes a familia que o indivíduo ou o Estado.
E a julgar pelas leis -então dominantes num pais patriarcal como o Brasil- a
favor da propriedade dos homens por homens, da subordinação quase
absoluta das mulheres aos maridos e dos filhos aos pais, de defesa da
religião como valor político e familial, e não apenas individual ou pessoal.,,56
A cultura oriental, para ele, teria influenciado a do Bras!l, impregnada de
familismo, patriarcalismo, religiosismo ou misticismo. Embora não entre
explicitamente no debate, destaca uma cerca circularidade cultural, como
entre os hábitos abaixo descritos,
"Fora também oriental o rito de se reverenciarem, em solenidades oficiais,
com zumbaias caracteristicas do extremo respeito dos governados pelos
governantes, quando não as pessoas, os retratos dos monarcas ou dos
52Ver: BOXER, Charles R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70,
1981. Ainda, apenas para citar os mais conhecidos: SCHARTZ, Stuart. Sovereignity and
society in colonial Brazil; the High Court of Bahia and its judges, 1609-1751. Los Angeles:
UCLA Press, 1973. Este um estudo clássico sobre o Tribunal da Relação da Bahia e ainda,
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa; a Inconfidência mineira: Brasil e Portugal
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Todos situam o Brasil em sua relação com os
demais cantos do Império português.
53Interessante nesse sentido é sua visão da luta contra os holandeses, tratada por ele como
uma luta global, afinal, "a luta luso-holandesa, que começou com os ataques a Principe e a
São Tomé em 1598-1599, terminou com a conquista das colônias portuguesas do Malabar
em 1663 (...)"BOXER, Charles R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa:
Edições 70, 1981.p. 120.
54HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. .
55 Freyre, mais vinculado às questões culturalistas por ter estudado com Franz Boas na
Universidade de Columbia (NY), absorve deste a negação do determinismo e do
evolucionismo, destacando, portanto, a questão cultural. Por isso se dedica a uma história do
cotidiano e da cultura, desprezando tudo da história político-administrativa e militar, vendo o
português como um mestiço, em profundo elogio da colonização, enxergando no Brasil uma
sociedade original e multirracial criada nos trópicos, como obra do gênio português. Ver:
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. São Paulo: Global, 2006.
56FREYRE, Gilberto. China Tropical; e outros escritos sobre a influência do Oriente na
cultura luso-brasileira. Brasília: Editora da UnB, 2003. p. 60.
.•.
príncipes (prática que a protestantes mais severos pareceu tão repugnante
quanto a do beija-mão nos palácios reais). Oriental o costume de se
ajoelharem todos na rua à passagem da Rainha ou de qualquer dos
Príncipes da Famílía Real; (... ) ou o de a gente servil curvar-se diante do
senhoril em gestos que se tornaram conhecidos entre nós por aquele nome
indiano: zumbaias. Zumbaias também trocadas entre iguais na classe, na
I . I .57raça e na cu tura reglona .
Mesmo a recente historiografia nacional que se debruça sobre o período
colonial recuperou a ideia de circularidade e a mesma é visível em obras com
as de Ronado Vainfas58, Mary Del Priori59, Laura de Mello e Souza60 e
Ronald Raminelli61. Característica comum às obras aqui referenciadas é a
opção também pela cultura como foco da circularidade.
Os autores que tratam do tema da circularidade tendem a buscar uma
superação da já citada dicotomia radical entre alta e baixa culturas,
valorizando desta forma o elemento cultural e possibilitando a percepção de
forma mais evideote. Isso está presente também em outros autores que
tiveram forte influência sobre a historiografia brasileira, como o Já citado
Edward Thompson e a Nova Esquerda Inglesa e Robert Darnton6 , apesar
das diferenças entre suas interpretações acerca da ideia de circularidade. Em
particular em 'Thompson, a cultura popular é vista a partir de uma tendência
coletiva, em que o individual só é perceptível quando inserido no grupo.
Desta forma, o uso da categoria cultura jurídica nos remete a preocupação
com a questão da alteridade, da diferença, em outros termos, com a
antropologia. Há, portanto aqui, uma centralidade do conceito de cultura que
pressupõe, no caso da cultura jurídica circulante no Brasil, um intercâmbio
entre os diferentes níveis, reforçando a pluralidade e a complexidade.
3. A DIMENSÃO CULTURAL DO JURíDICO E O CONCEITO CULTURA
JURíDICA.
Mas o termo cultura aqui necessita de maior precisão. Já foi dito que não se
adota um conceito rígido de cultura que separe a cultura de elite da popular,
entretanto, é preciso afirmar que cultura aqui não é vista como propriedade
57 FREYRE, Gilberto. China Tropical; Op. Cit. p.80.
58 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pf:!cados; moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio
de Janeiro: Campus, 1988.
59 DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.
60 SOUZA,Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz; feitiçaria e religiosidade
~opular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. .
1 RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização; a representação do indio de Caminha a
Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
62 Destaque para seus estudos sobre a Enciclopédia e sobre a "baixa literatura",
demonstrando uma maior relação desta com as idéias dos revolucionários franceses que
aquela. Mostra aqui, portanto, as raízes populares da Revolução e de suas idéias. Ver:
DARNTON, Robert. Boemia literária e Revolução; o submundo das letras no Antigo
Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. DARNTON, Robert. O Iluminismo como
negócio; história da publicação da enciclopédia. (1775-1800). São Paulo: Companhia das
Letras, 1996 .
material ou mesmo educação formal, mas como modos de comportamento
nas ações63 como destaca Elias, cuja posição busca superar a dicotomia
clássica entre natureza e cultura. Para ele,
"o homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social. (... )
é que a cultura não pode ser condiderada nem simplesmente justaposta nem
simplesmente superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em
outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova
ordem.,,64
É preciso superar as visões tradicionais de cultura, muito proxlmas a uma
ideia de mercadoria (nas sociedades capitalistas), como destaca Alfredo
Bosi, criticando tal visão reificada que cumpre, segundo ele, a função de
diferenciação social (alguns têm outros não). Mas "cultura é um processo. A
palavra cultura traz em si uma raiz Latina: vem do verbo colo, que significa
"cultivar a terra". (... ) Diferentemente dos gregos, cuja palavra mais próxima
de cultura é paidéia: aquilo que se ensina a criança. (... ) Mas qualquer
consideração que se faça, implica, no fundo, na ideia de trabalho.,,6~
Esse trabalho de construção de padrões de comportamento, vinculados a
grupos sociais com regras e habitus, novamente remete a Elias e mesmo a
Freud e sua ideia de bildung66. Para ele, o sujeito culto-cultivado (ideia de
cultura muito próxima, para os alemães do XIX, do de civilização, de luta
contra a natureza, perceptível tanto em Freud como em Elias) seria aquele
que se construísse (internamente, o que se refletiria externamente), em
processo de introjeção de valores, normas, comportamentos em sua relação
com a sociedade.
Esse conceito se aproxima dos debates aqui destacados da Antropologia
cultural que encara a cultura também como uma construção de habitus (ritos,
práticas sociais, linguísticas, etc ... ) de determinados grupos. Assim, a
Antropologia e a História se apoximam, na medida em que o objetivo das
duas passa a ser a busca da particul;:)rioriop., da diferença. A Antropologia
busca a diferença no espaço e a História no tempo. Segundo Bernard S.
Cohn "historiadores e antropólogos têm um objeto de estudo comum, a
'alteridade'; um campo constrói e estuda a 'alteridade' no espaço, o outro no
tempo. Ambos os campos têm concordância no que se refere a texto e
contexto.,,67
Novamente Pietro Costa68 ao estabelecer uma ponte com a antropologia,
afirma se comportar frente aos textos de saber jurídicos como o
63Ver: ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador; uma história dos costumes. Rio de Janeiro:
Zahar, 1990.
64 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 41-2.
65 BOSI, Alfredo. Cultura como tradição. In: BORNHEIM, Gerd. (org.) Tradição/Contradição.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. p. 38-39.
66 Ver sobre a relação das teorias freudianas com a cultura: MEZAN, Renato. Interfaces da
pesicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; FREUD, Sigmund. O mal estar na
civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
67 COHN, Bernard S. History and Antropology: the state of play. In: Comparative studies in
society and history. Cambridge, 1980.
68 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia; Op. Cil.
entomologista frente às abelhas: seguindo-as diligentemente, diria
amorosamente, o vôo, os hábitos, a vida; sem, entretanto, pretender entrar
na colméia para colaborar na produção de mel. Citando Remotti, salienta que
História e Antropologia enfrentam o mesmo desafio da diversidade (uma em
relação ao espaço, outra ao tempo), empregando ambas instrumentais
linguísticos sugeridos pelas culturas às quais os pesquisadores pertencem. O
historiador deve agir como um bricoleur, que tem consciência de que a
metalinguagem que utiliza não possui um alto valor teorético, e não pode
visar a um alto grau de generalidade. Como todo intérprete, o historiador
toma o passado empregando a linguagem, as categorias, os preconceitos do
seu presente. .
No outro lado da relação com a Antropotgia, Franz Boas (que sofre
influências de Hegel e Dilthey). tende a atribuir um certo valor a história, pois
busca não apenas compreender a dinâmica das socied~des existentes, mas
"também como elas se tornaram aquilo que sãp (... ) a matéria-prima da
antropologia é tal, que ela precisa ser uma ciência histórica". 69
Novamente a questão do processo e da construção, elaborada em amplo
campo de circularidade, e que exige uma visão mais alargada de cultura,
afinal
"invenções, vida econômica, estrutura social, arte, religião e moral, todas
estão inter-relacionadas. ( ... ) Os fenômenos sociais são de tal
complexidade, que 'me parece duvidoso que se possa encontrar qualquer lei
cultural válida. As condições càusais das ocorrências culturais repousam
sempre na interação entre indivíduo e sociedade". 70
A Antropologia cultural reforça o que foi dito anteriormente, quando se tratou
do método da microstoria e sua pretensão de relação entre macro" e micro,
quando trata da necessidade de estudos particulares, empíricos, para a partir
deles arriscar (sempre com prudência) certas conclusões. Em Bóas vemos
essa tendência à empiria: "os fenômenos de nossa ciência são tão
individualizados, tão expostos a acidentes externos, que nenhum conjunto de
leis pode explicá-lo".71 Ou, em outros termos, "seu sentido só pode ser
compreendido por uma análise penetrante dos elementos humanos
presentes em cada caso". 72
A luta de Boas é contra as tendências abstratas das ciências. sociais que
tendem a buscar leis sociais que explicariam a reação do individuo à cultura,
mas também contra certa naturalização de comportamentos, crenças, valores
etc. que se constituem como patrimônio cultural de uma sociedade, grupo ou
Nação e que, ao serem naturalizados, têm como consequência a redução
daqueles que não compartilham tais habitus a uma condição de subumanos e
semianimais. Entretanto, segundo o autor é preciso investigar "quantas de
nossas linhas de comportamento - que acr~ditamos estar profundamente
69 BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 104.
70 BOAS, Franz. Idem.p.103-107.
71 BOAS, Franz. Idem. p.106.
72 BOAS, Franz. Idem. p.107.
Mas, mais que isso, nessa obra o autor dialoga especificamente com o
Direito, encarando tal fenômeno também como elemento passível de
interpretação posto que pautado em formas simbólicas próprias que dialogam
com outras. Assim, o direito seria mais uma maneira de imaginar o mundo
em meio a outras, como a arte, o senso comum etc. Só que o direito seria
uma representação normativa, fundamentada em uma forma própria de
imaginar como deveriam ser as coisas (a lei) e como elas são (o fato), a partir
do que se constrói um "sentido de justiça" que é sempre específico, "local",
em dependência de como se relacionam fato e lei nos diferentes contextos
culturais. Afinal, "direito, tenho dito (.00) é saber local; não apenas em termos
de lugar, tempo, classe, e variedade de discursos, mas também de acento
(... ) é esse complexo de caracterizações e imagens, histórias sobre eventos
moldados em ima~inações sobre princípios, que eu tenho chamado de
sensibilidade legal." o Desta forma, o .
"Direitoé religado às outras grandes formações culturais da vida humana -
moral, arte, tecnologia, ciência, religiões, a divisão do trabalho, história. (00.)
Como outras instituições de longa permanência - religião, arte, ciência, o
estado, a familia - o Direito está em processo de aprendizado para
sobreviver sem as certezas lançadas fora.,,8
Assim, compartilha das angústias deslél~, em um mundo no qual o.dissenso é
maior que o consenso e onde culturas e sentidos de justiça vários convivem
lado a lado, configurando aquilo que Geertz chama de "pluralismo jurídico,,82
Direito como dimensão simbólica que também foi destacado por Savigny na
referência feita por Dilthey, "o corpo do direito é composto pelas 'ações
simbólicas, nas quais supostamente surgem ou perecem as relações
jurídicas.' 'Sua seriedade e sua dignidade correspondem à significância das
próprias relações jurídicas.' Elas são 'a gramática propriamente dita do direito
nesse período.,,83
Por isso o estudo comparativo do direito "não pode ser uma forma de reduzir
diferenças concretas a abstração da existência de atributos comuns,,84Afinal,
para Geertz, direito é também um saber local que constitui a sociedade:
80Tradução livre do autor de "Law, lha been saying, (... ) is It knowledge; local not just as to
place, time, c1ass, and variety of issue, but as to accent (... ) It is this complex of
charaterizations and imaginings, stories about events casts in :magery about principies, that I
have been calling a legal sensibility" GEERTZ, Clifford. Local Knowledge. Op. Cit. p. 215.
81Tradução livre do autor de "Law is rejoined to the other great cultural formations of human
life - morais, art, technology, science, religions, the division of labor, history. ( ... ) Like just
about every other long-standing institution - religion, art, science, the state, the family- law is
in the process of learning to survive without the certitudes that launched i1."GEERTZ, Clifford.
Local Knowledge. op. ci1. p. 217-219.
82 Na verdade o termo é "legal pluralism". GEERTZ, Clifford. Local Knowledge. op. cit.
~.220.
3 DIL THEY, Wilhelm. Op. Ci1.p. 45.
84Tradução livre do autor de: cannot be a matter of reducing concrete differences to abstract
commonalities. GEERTZ, Clifford. Local Knowledge. op. ci1. p.223.
fundadas na natureza humana - são na realidade expressões de nossa
cultura e estão sujeitas a alterações produzidas por mudança culturaL,,73
Assim, o conceito aqui utilizado de cultura foca sua análise nos processos de
construção cultural na relação entre indivíduo e sociedade74. Mais que isso,
desnaturaliza elementos e busca a valorização de traços que poderíamos
chamar de simbólicos. Elementos que caracterizam o ser humano, de acordo
com Ernst Cassirer75. Ele resgata um círculo funcíonal para explicar o
funcionamento dos seres vivos: o círculo é composto por dois sistemas, o
sistema receptor e o reagente. O receptor recebe os estímulos e o reagente,
reage. Entretanto, no caso dos seres humanos o sistema se complexifica,
amplia-se quantitativa e qualitativamente. Surge nos seres humanos um
sistema intermadiário, que é o simbólico. Assim, o homem não reage aos
estímulos como os animais, mas responde (de maneira particular,
determinada por seu sistema simbólico, composto por sua estrutura psíquica,
valores, sentimentos, etc ... ). A resposta humana seria, portanto, não
exatamente relacional a seu estímulo, mas a sua dimensão simbólica.
Ora, se a realidade pode ser lida como sistema de símbolos, signos, isso nos
aproxima das ideias de Clifford Geertz, que em A interpretação das
culturas 76, defende que os fenômenos culturais devam ser tratados como
sistemas significativos e, portanto, passíveis de interpretação, daí que seu
método ser conhecido como "abordagem interpretativa". Essa perspectiva
também abdica das grandes generalizações, típicas dos grandes modelos
explicativos, em favor de um conhecimento contextualizado.
Em seu outro livro77 destaca o caráter simbólico da dominação política,
dando à figura do líder carismático novo sentido, valorizando outras fontes e
métodos de análise, como no caso da interpretação feita do poder do
Imperador D. Pedro 11por Lilia Moritz Schwarcz78 e da República brasileira
por José Murilo de Carvalh079, textos que mostram que as fronteiras entre a
antropologia e a história se tornam cada vez mais tênues.
73 BOAS, Franz. Idem. p.109.
74 Esta relação entre individuo e sociedade é também tema recorrente nas ciências sociais.
De um lado temos os clássicos da sociologia que tendem a reduzir o papel individual a
meros coadjuvantes em um processo mais amplo que os conduz (como no caso das classes
de Marx); de outro, a busca de uma excessiva autonomia individual, como em alguns
estudos de sociologia da arte em que a autoria se torna central e os termos genialidade e
invenção correntes. Norbert Elias rompre com tal dicotomia, posicionando individuo e
sociedade de forma relaciona!' Ver: ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Op. Cit.
75 CASSIf ~ER, Ernst. Antropología filosófica. México: Fondo de Cultura Económica, 1963.
76 GEERTZ, Clifford. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
77 No qual destaca a compreensão da compreensão, termo que revela as bases
epistemológicas e metodológicas de uma antropologia embasada na hermenêutica
gadameriana e ricoeuriana. Ver: GEERTZ, Clifford. Local Knowledge. USA: Basic Books,
1983.
78 No caso da autora, professora titular de Antropologia na USP, os métodos vêm da mesma,
com destaque mesmo para as fontes: a coleção de imagens do Império brasileiro. Ver:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador; D. Pedro 11, um monarca nos Trópicos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
79 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas; o imaginário da República no Brasi!.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
"Tomadas juntas, essas duas proposlçoes, que Direito é saber local não
princípios fixos e que ele é constitutivo da vida social e não reflexivo, ou de
toda forma não apenas reflexivo, da mesma, leva preferencialmente a uma
visão pouco ortodoxa sobre em que os estudos comparativos deveriam
consistir: tradução cultural.,,85
Assim, a cultura jurídica deve ser buscada na circularidade cultural, evitando
as visões dicotômicas e suas consequências. Mas tratou-se aqui também de
questões de método: encarar o direito como fenômeno cultural (e produto de
uma circularidade que se alimenta mesmo de outras fontes) que possui,
portanto, dimensões mais profundas que as diagnsoticadas pelas análises
tradicionais (simbólicas, imaginárias, ritualísticas). Logo, destacou-se a
dimensão cultural do jurídico e aproximou-se um pouco mais do conceito de
cultura jurídica.
4. OS LIMITES DO DIÁLOGO: A ESPECIFICIDADE DA CULTURA
JURíDICA
Mas o termo cultura aqui é adjetivado de jurídica. Isso pretende destacar, de
um .~ado, () necessidade de especificidade de um estudo volLéluo para as
formas jurídicas, desprezadas pela historiografia tradicional e de outro os
limites de uso dos instrumentais da antropologia e mesmo da micros/oria.
Afinal, o estudo da História do Direito tem suas especificidades e não pode
virar uma antropologia do juríclir.086, 01.1seja, uma visão antropológica sobre o
fenômeno jurídico, pois SP. segue a ideia de Paolo Grossi87 de que existe uma
especificidade no fenômeno jurídico, ou nos termos que tem se tratado aqui,
na cultura jurídica.
Assim, há que se ter certos cuidados com as transferências de conceitos da
antropologia para o estudo do Direito, como o de cultura (jurídica). A ressalva
é feita novamente por Paolo Grossi, em relação a estudos sobre a Idade
Média:
"É certo, como fazem Duby e outros historiadores, orientar o olhar sobre a
relação de dádiva como reveladora de tantas certezas de fundo do medievo
feudal, mas não é certo examinar e manejar essa relação apenas sob a luz
85 Tradução livre do autor de: "Taken to.gether, these two propositions,that law is local
knowledge not placeless principie and that it is constructíve of social Iife not reflective, or
anyway not just reflective, of it, lead on to a rather unorthodox view of what the comparative
study of it should consist in: cultural translation." GEERTZ, Clifford. local Knowledge. op.
cit. p.218.
86 Fala-se aqui em antropologia do jurídico pois reforça-se a separação dicotômica entre as
disciplinas, o que não ocorreria no uso do termo antropologia jurídica, pois esta pressupôe já
um dialogo relaciona I entre os dois.
87 Para Grossi, "a dimensão jurídica é uma dimensão autônoma da realidade, porque o
'jurídico' é um seu valor típico e específico" In: GROSSI, Paolo. História da propriedade; e
outros ensaios. São Paulo: Renovar, 2005.
das iluminadoras investigações etno-sociológicas de Mareei Mauss. A dádiva
como construção juridica está preparada para oferecer ao historiador social
esclarecimentos indicações penetrantes.,,8
A ideia é seguir esse caminho de diálogo. Como faz António Hespanha em
texto no qual usa exatamente o conceito de dádiva de Mauss para analisar as
trocas (simbólicas e não) na corte portuguesa do Antigo Regime, sobre a
economia da graça.89 Afinal, se não é possível reduzir a dimensão jurídica a
apenas um objeto de recorte da antropologia ou da história social, destas
entretanto, não é possível se apartar, afinal, deve-se evitar os riscos de se
cair em uma visão essencialista do direito que daria ao conceito uma idéia
imobilizante, como nos ensina novamente Hespanha:
"Normalmente, os historiadores do direito -posto que provêm do território
dos juristas- crêem no direito, isto é, crêem na existência de uma realidade
normativa substancial, dotada de uma natureza por si, definida uma vez por
todas (em sua intenção extremada), mesmo se submetida (e é este já um
processo das últimas décadas) a determinações do contexto social e
político.,,90
Pode-se, portanto, partir "do direito" (como saber local), mas com a
necessidade de investigar o contexto que permitiu a formação (relacional) da
cultura jurídica, seja ele social, político, religioso, etc. Entretanto, a cultura
juridica trataria do conjunto de prüticas, saberes, ritos, crenças, imaginários e
técnicas da configuração jurídica, formada não apenas pelos especialistas
que compõem o corpo técnico vinculado a essa configuração social, mas por
outros que os cercam e mesmo por estranhos de outras configurações.
Assim, a cultura jurídica se formaria, como já destacado, a partir de uma
interação com a sociedade e com as demais configurações sociais que se
aproximam ou se distanciam do jurídico, conforme o contexto. É o que
ocorre, por exemplo, com a Igreja, com o pensamento religioso, que tem uma
influência direta e indireta na culllura jurídica, aumentando sua área de ação
88Tradução livre do autor de: "E giusto, come fanno Duby e altri storici. puntare lo sguardo sul
rapporto di donazione come rivelatore Iji tante certezze di fondo dei medioevo feudale, ma
non é giusto esaminare e maneggiare quell rapporto soltanto alia luce delle pur illuminanti
indagini etno-sociologiche di Mareei Mauss. La donazione come costruzione giuridica é in
grado di offrire alio storico sociale chiaramenti e indicazioni penetranti." GROSSI, Paolo.
Storia sociale e dimensione giuridica. In: __ (org.) Storia sociale e dimensione giuridica;
strumenti d'indagine e ipotesi di lavoro. Milano: Giuffré, 1986.p. 11.
89 HESPANHA, António Manuel. A politica perdida; ordem e governo antes da
Modernidade. Curitiba: Juruá, 2010.
90Tradução livre do autor de: "Normalmente, gli storici dei diritto -posto che provengono dai
territorio dei giuristi- credono nel diritto,. cioé credono nella esistenza d'una realtà normative
sostanziále, dotata di una natura a sé, definite una volta per tutte (nella sua intenzione
estrema) anche se sottomessa (ed é questo già un progresso degli ultimi decenni) a delle
determinazioni dei contesto sociale e politico." HESPANHA. António Manuel.
L'interdisciplinarità di fonte a una definizione relazionale dell'oggetto della storia giuridica. In:
GROSSI, Paolo (org.) Storia sociale e dimensione giuridica;op. ciL p. 313.
ou diminuindo, conforme o contexto. A contribuição do historiador do direito
está exatamente na análise dessa cultura jurídica e de como a mesma
interage com a sociedade. Mas o objeto deve ser recortado e o olhar a ser
projetado sobre o mesmo deve ser histórico-jurídico, embora acrescendo
novas fontes e emprestando métodos diversos dos tradicionais.
A ideia de cultura como construção nos leva a buscar uma interpretação
satisfatória de tal construção e é aqui que a contribuição da antropologia e
dos marcos teóricos usados é fundamental. Ao trabalhar com a ideia de
circularidade, busca-se na verdade, a raiz popular do fenômeno (e é a busca
de Bakhtin, Ginzburg, Darnton, etc.), destacando aspectos de sua construção
que por si só estabelecem pontes com outros aspectos sociais. Assim a
cultura juríDica deixa de se confundir com o pensamento jurídico dos grandes
nomes dessa configuração e passa a ser visto como elemento fruto de
complexas formas de construção que envolvem procedimentos de fluxos e
influxos entre a alta e a baixa culturas. Afinal, novamente de acordo com
Hespanha,
"A história do direito não é apenas a história do direito conhecido e oficial. A
história do direito praticado ou do direito das comunidades camponesas,
designado como 'direito dos rústicos' pelos juristas eruditos, constitui, ele.
também, um domínio da história jurídica, por discreta que seja a
historiografia estabelecida nas Faculdades de Direito sobre esses sujeitos."
91
A tarefa, portanto, daqueles que pretendem aplicar o conceito que aqui se
constroi de cultura juridica, é de buscar essa cultura jurídica dos rústicos,
daqueles personagens mais fronteiriços que, em termos de alta e baixa nos
evidenciam de maneira mais clara, os elementos circulantes do fenômeno.
Para tal, novas fontes e métodos são exigidos e a nova historiografia jurídica
brasileira tem se dedicado ao tema e procurado contribuir com novas formas
de se analisar o assunto e se debruçado sobre fontes antes desprezadas,
produzindo estudos e~dé:lrecedores sobre a cultura jurídica brasileira, em
particular em sua fase de formação. Destaque para os estudos de Ricardo
Marcelo Fonseca sobre a construção de uma cultura jurídica nacional
(construção de uma modernidade jurídica), com a preocupação em analisar
os currículos das Faculdades como componente direto da montagem dessa
cultura92 ou de dessacralizar as canônicas visões acerca dos grandes
juristas.93 Ainda, estudos como os de Samuel Barbosa, sobre os manuais e
91 Tradução livre do autor de: "L'histoiredu droit n'est pas seulement I'histoire du drait savant
et official. L'histoire du droit pratiqué ou du drait des communautés paysannes, désigné
comme 'droit des rustiques' par les juristes érudits, constitue, elle aussi, une domaine de
I'histoire juridique, si discréte que soit I'historiographieétablie dans les Facultés de Orait sur
les pareils sujets." HESPANHA, António Manuel. Une 'nouvelle histoire' du Orait?
In:GROSSI, Paolo. (org.) Storia sociale e dimensione giuridica; op. ciLp. 326.
92 FONSECA, Ricardo Marcelo. A formação da cultura juridica nacional e oscursos jurídicos
no Brasil do século XIX: relendo os traços do bacharelismo juridico. Revista do Instituto
dos Advogados do Paraná, v. 35, p. 581-600, 2007.
93 FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade
do século XIX. Quaderni Fiorentini per la storia dei pensiero giuridico moderno, v. 35, p.
339-369, 2006. Ver também: FONSECA, Ricardo Marcelo. Teixeira de Freitas: um
outras produções que circulavam no Brasil do final do século XIX94 e de
Airton Seelander95 sobre literatura jurídica portuguesa do final do antigo
regime, mostram uma preocupaç{lo com a amplíação da visão acerca da
cultura jurídica,tratando implícita ou explicitamente do problema da
circularidade cultural. Afinal, se há um elemento em comum é a busca dessa
faceta nova da cultura jurídica. O que não deve ser confundido com qualquer
pretensão de cunho (nem mesmo culturalmente) "nacionalista", como
algumas experiências que buscam a particularidade da cultura jurídica local
para reforçar e legitimar as elites coloniais. Mas, ao contrario, buscar os
elementos populares e mesmo culturais evidentes na configuração jurídica.
Novos personagens que podem nos oferecer pistas importantes para a a
compreensão da cultura jurídica de uma determinada comunidade, como têm
sido o caso também da recente historiografia latinoamericana. Para citar
apenas dois exemplos, destaca-se José Ramón Narvaez96 e suas incursões
pela cultura, estabelecendo pontes entre as produções culturais e o direito,
além de estudar o próprio fenômeno como cultural; e Andrés Botero Bernal
que relaciona os textos dos periódicos com processos judiciais.97 Assim, a
busca pela cultura jurídica exige a compreensão de que a mesma se forma
circularmente, o que impele o historiador a mergulhar em atos praticados por
personagens juridicamente mais fronteiriços, ou seja, busca dos
"atos da realidade cotidiana -contratos, testamentos, atos processuais - que
aprisionam, conservam e evidenciam em seus naturais imbricamentos
juridicos os vestigios talvez mais vivos da instância social que os produziu,
vestigios, traços, que todavia um exame não especificamente jurídico corre o
risco de permanecer irremediavelmente desfocado.,,98
Assim, a busca desses elementos e sua relação com a alta cultura jurídica
jurisconsulto "traidor" na modernidade jurídica brasileira. In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, ano 172, n. 452, 2011. p. 341-454.
94Samuel Barbosa analisa como os diversos media textuais são mais do que veiculos de um
saber, mas modelam (selecionam e estabilizam) um tipo de comunicação juridico-politico
sobre as instituições. Os media textuais são os livros de doutrina, compêndios, sebentas,
traduções da doutrina estrangeira, relatórios ministeriais e provinciais, colunas jurídicas em
periódicos, comunicação parlamentar (discursos, debates, pareceres). Algumas dessas
fontes não foram estudadas na sua função performativa (como as sebentas, as traduções e
as colunas juridicas). Ver: BARBOSA, Samuel Rodrigues.
95 SEELANDER, Airton Cerqueira Leite. As prelecções de Ricardo Raymundo Nogueira
(1746-1827): alguns aspectos do discurso pró-absolutista na literatura jurídica portuguesa do
final do antigo regíme. p. 87-114. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
ano 172, n. 452, 2011.
96 NARVÁEZ, José Ramón. Cultura jurídica; ideas e imágenes. México: Porrúa, 2010.
97 BERNAL, Andrés Botero. (org.) Causas Célebres y derecho; estúdios jushistoricos sobre
la literatura, prensa, opinión pública y processo judicial. 'Medelin: Universidad de Medelin,
2011.
98 Tradução livre do autor de: "atti della realtà quotidiana -contratti, testamenti, atti
processuali- che imprigionano e serbano ed evidenziano nelle loro connaturali intelaiature
giuridiche le tracce forse piú vive delle istanze sociali che li hanno prodotti, tracce che tuttavia
un esame non specificamente giuridico rischia di lasciare irrimediabilmente sfocate."ln:
GROSSI, Paolo. (org.) Storia sociale e dimensione gíurídica; op. cit. p. 11.
para a verificação dos elementos circulantes, pode oferecer pistas para a
melhor compreensão de um fenômeno cada vez mais complexo e menos
unitário.
Ainda, para se interpretar os elementos que se solidificam como valores de
uma cultura jurídica, é preciso também recorrer a análises típicas da
antropologia: ampliar a análise do fenômeno jurídico para o estudo de suas
representações simbólicas, por exemplo. Campo de pesquisa que oferece ao
historiador do direito uma vasta gama de fontes iconográficas que devem ser
analisadas com o já citado método iconológico de Aby Warburg e Ernst
Gombrich. A interpretação dessas pistas oferecem ao historiador uma
dimensão mais profunda do jurídico pois nela transparecem de forma mais
evidentes elementos imaginários e significativos da cultura jurídica em foco.
Ainda, o estudo dos rituais que acompanham os atos jurídicos, carregados de
significados a serem interpretados e analisados, podem oferecer indícios
preciosos para a compreensão das mudanças e permanências verificadas na
cultura jurídica. Entretanto, tais análises exigem um conhecimento contextual
da configuração jurídica que foge aos antropólogos e pedem ao jurista que se
abra a tais diálogos e traga para a fronteira do conhecimento sua voz. Dessa
forma, ao trazê-Ia, poderá também ouví-Ia, a partir dos outros chamados para
o diálogo.
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