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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA FACULDADE DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito Doutorado em Direito Público VALDIR FERREIRA DE OLIVEIRA JUNIOR DIREITO FUNDAMENTAL TRANSINDIVIDUAL AO DESENVOLVIMENTO: PROTEÇÃO INTEGRAL, SOLIDÁRIA E PLURALISTA Salvador 2015 2 VALDIR FERREIRA DE OLIVEIRA JUNIOR DIREITO FUNDAMENTAL TRANSINDIVIDUAL AO DESENVOLVIMENTO: PROTEÇÃO INTEGRAL, SOLIDÁRIA E PLURALISTA Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Direito Público. Orientador: Professor Doutor Manoel Jorge e Silva Neto. Linha de Pesquisa: Proteção Constitucional dos Interesses Transindividuais. Salvador 2015 3 O48 Oliveira Júnior, Valdir Ferreira de, Direito fundamental transindividual ao desenvolvimento: proteção integral, solidária e pluralista / por Valdir Ferreira de Oliveira Júnior. – 2015. 158 f. Orientador: Professor Doutor Manoel Jorge e Silva Neto. Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito, 2015. 1. Direitos fundamentais. 2. Políticas públicas. 2. Direito constitucional. 3. Solidariedade. I. Universidade Federal da Bahia CDD- 342.085 4 TERMO DE APROVAÇÃO VALDIR FERREIRA DE OLIVEIRA JUNIOR DIREITO FUNDAMENTAL TRANSINDIVIDUAL AO DESENVOLVIMENTO: PROTEÇÃO INTEGRAL, SOLIDÁRIA E PLURALISTA Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Direito Público, Universidade Federal da Bahia pela seguinte BANCA EXAMINADORA Manoel Jorge e Silva Neto (Orientador) ____________________________________________ Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP Universidade Federal da Bahia Saulo José Casali Bahia_________________________________________________________ Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP Universidade Federal da Bahia Ricardo Maurício Freire Soares __________________________________________________ Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA Universidade Federal da Bahia André de Carvalho Ramos ______________________________________________________ Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo - USP Universidade de São Paulo Ana Paula de Barcellos _________________________________________________________ Doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro 5 Dedico esse trabalho aos destinatários e aplicadores das normas de direitos transindividuais para que se diversifiquem as opções hermenêuticas de ampliação da sua força normativa e possibilite a construção da cultura e sentimento interconstitucionais necessários à realização do objetivo fundamental, valor supremo e direito fundamental, humano e comunitário transindividual do desenvolvimento. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço inicialmente a Deus, por tudo que representa em minha vida. Ao Professor Manoel Jorge e Silva Neto, o grande responsável por despertar meu interesse acadêmico pelo pensamento solidarista e por continuamente desafiar-me com questões essenciais à aproximação do texto constitucional brasileiro à realidade do seu povo, em especial a proteção constitucional dos interesses transindividuais. Sou-lhe imensamente grato pela paciência, zelo e preocupação demonstrados ao longo da pesquisa. Aos demais Professores do Programa de Pós-graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal da Bahia por terem proporcionado momentos de profunda reflexão teórica, com seus brilhantes ensinamentos e compromisso com a busca incansável pela transformação do Direito num instrumento de libertação, solidariedade e realização da dignidade existencial humana. Especialmente aos Professores Saulo José Casali Bahia, Ricardo Maurício Freire Soares, Dirley da Cunha Junior, Heron Santana, Mônica Aguiar, Maria Auxiliadora Minahim, Walber Araújo, Marília Muricy, Selma Santana, Alessandra Rapassi, Paulo Pimenta, Edvaldo Brito, Paulo Cesar Bezerra, Rodolfo Pamplona e Fredie Didier Junior. Aos Professores e Alunos da Universidade Estadual de Santa Cruz e Faculdade Independente do Nordeste com quem pude compartilhar o exercício da docência de Direito Constitucional, em especial aos Professores Carlos Valder do Nascimento, Eduardo Viana Portela e Laurício Alves Pedrosa pelo convívio, amizade e companheirismo. Aos Alunos e Servidores do PPGD/UFBA pela incansável luta no processo de construção de um dos melhores programas de pós-graduação em direito do Brasil e do mundo. Aos meus pais Valdir e Liete pelo exemplo constante de amor e presença em minha vida. Minhas irmãs Áurea, Valéria e Vanilda, minha tia Zilda e meus queridos sobrinhos Marlon, Giltinho, Leon, Túlio, Tácio, Morgana e Natália. Especialmente à minha esposa Mayara e aos meus filhos Gustavo e Heitor. 7 We, heads of State and Government, ...are committed to making the right to development a reality for everyone and to freeing the entire human race from want. UN Millennium Declaration O que é irreversível no Brasil como no mundo é o empoderamento dos cidadãos, sua autonomia comunicativa e a consciência dos jovens de que tudo que sabemos do futuro é que eles o farão. Móbil-izados. Manuel Castells (In: Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013). 8 RESUMO No âmbito da tese se promoverá estudo de teoria dos direitos fundamentais, humanos e comunitários em suas dimensões transindividual, dialógica e integral, buscando critérios constitucionais para otimização da proteção ao desenvolvimento através das políticas públicas e seu controle judicial. Propiciará, à luz pensamento solidarista e com fundamento na teoria normativa das políticas públicas, reflexões críticas para aumento da força normativa, social e política do núcleo axiológico fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil composto pelo sistema constitucional de proteção dos direitos essenciais à dignidade existencial humana. O modelo contemporâneo de organização e procedimento que se propõe constitucionalmente adequado ao controle judicial das políticas públicas de desenvolvimento possui bases solidaristas.Assim, compreender-se-á o desenvolvimento como solidariedade, inserido no contexto integral de proteção dos direitos fundamentais transindividuais. A análise crítica constitucional, normativamente orientada, permitirá a construção do modelo pluralista de alternativas, oferecendo, à luz do pensamento possibilista, novos caminhos para maximização dos efeitos substanciais das normas constitucionais, internacionais e comunitárias que comporá o sistema constitucional integral de proteção do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento. O dever de progresso existencial, a vedação do retrocesso, o controle da omissão dos poderes públicos, além dos critérios de aferição de inexistência, ineficiência, deficiência e insustentabilidade econômico-social das políticas públicas de desenvolvimento, serão, dentre outras, propostas de sistematização deste modelo constitucional integral de proteção, com o consequente aumento da cultura constitucional. O constitucionalismo em redes constitui novo mecanismo de democratização dos debates e demandas sociais para a sociedade multicultural na teoria de proteção integral, consolidando a ideia de cibercidadania e democracia digital . De igual modo, impõe ao Estado a desburocratização e celeridade na resposta às novas necessidades sociais, com “empoderamento” dos usuários do serviço público, transpondo sua condição de sujeito passivo das políticas públicas para cidadão solidariamente integrado ao processo de desenvolvimento. O Estado de bem-estar social clássico com seu inadequado modelo de intervenção na sociedade não mais atende às perspectivas de desenvolvimento do novo milênio. Torna-se fundamental a construção do modelo sustentável de progresso existencial humano com bases solidaristas, com intervenções no processo de distribuição das responsabilidades públicas e privadas relativas ao desenvolvimento. O direito constitucional, para além da sua expressão literal, deve constituir-se em fator positivo de estímulo ao desenvolvimento sustentável e solidarista. PALAVRAS-CHAVE Desenvolvimento humano; direitos fundamentais transindividuais; constitucionalismo integral; políticas públicas; cultura constitucional; solidariedade; empoderamento; progresso existencial. 9 ABSTRACT On the thesis will be promoted a study of fundamental rights theory, human and community in their transindividual dimensions, dialogic and integral, seeking constitutional criteria for optimizing the protection and development through public policies and its judicial control. It will provide, in the light thinking solidarity and based on normative theory of public policy, critical reflections to increase the normative, social strength and fundamental axiological core policy of the Constitution of the Federative Republic of Brazil, comprises the constitutional system of protection of essential rights to human existential dignity. The contemporary model of organization and procedure that aims to constitutionally adequate judicial control of public development policies has solidaristic bases. Thus, development will be understood as solidarity, inserted in the full context of protection of fundamental rights. The constitutional review, normatively oriented, allow the construction of the pluralistic model of alternatives, offering the light of possibilistic thinking, new ways to maximize the substantial effects of constitutional norms, international and community compose the entire constitutional system of protection of the transindividual fundamental right to development. The existential progress duty, the seal kicker, the default control of public authorities, in addition to lack of benchmarks, inefficiency, disability and socio-economic unsustainability of public development policies will, among others, systematization of proposals in this full constitutional protection model, with a consequent increase of the constitutional culture. Constitutionalism in networks is a new democratization mechanism of discussions and social demands for multicultural society in the full protection theory, consolidating the idea of cyber citizenship and digital democracy. Similarly, requires the State to reduce bureaucracy and speed in responding to changing social needs, to "empowerment" of public service users, transposing their status as taxable person of public policies for jointly integrated national development process. The State of classic social welfare with its inadequate intervention model in society no longer meets the new millennium development prospects. The construction of sustainable model of human existential progress becomes essential with solidaristic bases, with interventions in distribution of public and private responsibilities for the development. Constitutional law, in addition to its literal expression, should become a positive factor stimulating sustainable and solidarity development. KEYWORD Human development; transindividual fundamental rights; Full constitutionalism; public policy; constitutional culture; solidarity; empowerment; existential progress. 10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade. ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade. Agrv. – Agravo. Art. – Artigo. Cfr. – Conferir. CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil. Min. – Ministro(a). ONU – Organização das Nações Unidas PPGD – Programa de Pós-graduação em Direito RE – Recurso Extraordinário Recl. – Reclamação. Reg. – Regimental. STF – Supremo Tribunal Federal. STJ – Superior Tribunal de Justiça TIDH – Tratado Internacional de Direitos Humanos TJ – Tribunal de Justiça. UFBA – Universidade Federal da Bahia 11 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 13 1.1 Delimitação do Tema 13 1.2 Proposta de Trabalho 15 2 DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO 18 2.1 Direito fundamental ao desenvolvimento e sua proteção constitucional 19 2.2 Direito ao desenvolvimento humano e sua proteção internacional 25 2.3 Direito ao desenvolvimento e sua proteção comunitária 28 2.4 Dos limites e possibilidades de uma teoria constitucional integral de proteção 31 2.5 Âmbito de proteção, conteúdo, restrições e eficácia do direito ao desenvolvimento 37 3 JURISDIÇÃO INTERCONSTITUCIONAL E DESENVOLVIMENTO 44 3.1 Diálogo interconstitucional, interconstitucionalidade e jurisdição interconstitucional 45 3.2 Neoconstitucionalismo como marco teórico da jurisdição interconstitucional 51 3.3 Estrutura interconstitucional do direito transindividual ao desenvolvimento 55 3.4 Sistema de precedentes obrigatórios na Jurisdição Interconstitucional 58 3.5 Supralegalidade e status interconstitucional dos direitos humanos 64 3.6 As possibilidades do transconstitucionalismo na Jurisdição Interconstitucional 66 3.7 Abertura hermenêutica em ambiente plural e possibilidades da diatópica 68 3.8 Neofederalismo supranacional e interconstitucional 72 4 ESTADO CONSTITUCIONAL SOLIDARISTA E DESENVOLVIMENTO 79 4.1 Introdução ao pensamento solidarista 80 4.2 Fundamentos teóricos e filosóficos do Estado Constitucional Solidarista 94 4.3 A solidariedade na Constituição de 1988 101 12 4.4 O direito ao desenvolvimento econômico no constitucionalismo solidarista 105 4.4 Desenvolvimento como solidariedade 115 5 PLURALISMO E DESENVOLVIMENTO 119 5.1 O pluralismo na construção do desenvolvimento 119 5.2 Cibercidadania e (re)construção dos espaços públicos por demandas sociais 120 6 DIREITO AO DESENVOLVIMENTOE POLÍTICAS PÚBLICAS 125 6.1 A teoria normativa das políticas públicas 125 6.2 Parâmetros de controle judicial de políticas públicas 132 6.3 Políticas públicas e direito fundamental transindividual ao desenvolvimento 136 6.4 Teorias do mínimo e máximo existencial: adoção do progresso existencial 137 6.5 Ativismo administrativo como respostas sistêmicas ao controle judicial 140 7. CONCLUSÃO 143 7.1 Síntese das teses apresentadas 143 7.2 Considerações Finais 149 REFERÊNCIAS 151 13 1 INTRODUÇÃO 1.1 Delimitação do Tema A presente tese tem por objeto de estudo o direito fundamental transindividual ao desenvolvimento. Seu propósito inicial é demonstrar que o constitucionalismo integral, plural e solidarista são pressupostos constitucionalmente adequados à transição da apatia e ausência de pertencimento do povo à sua Constituição para afirmação da sua cultura constitucional e cidadania participativa. Participação e pertencimento são pressupostos necessários à construção do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento no constitucionalismo emergente, tendo o desafio de conciliar, de forma solidária, o âmbito de intervenção estatal com o domínio da liberdade individual de autoafirmação das escolhas existenciais. A proteção (inter)constitucional ao direito fundamental transindividual ao desenvolvimento situará seu marco teórico no pensamento solidarista, agregando as conquistas do neoconstitucionalismo e aprimorando a expansão da jurisdição constitucional dos direitos transindividuais para os espaços internacional e comunitário, criando o que passaremos a denominar “constitucionalismo integral” ou “teoria integral de proteção” (modelo que estabelece diálogo hermenêutico aberto e diatópico entre as ordens interna, internacional e comunitária). Numa teoria integral de proteção, presente a expansão da jurisdição constitucional dos direitos transindividuais para o domínio comunitário e internacional, a análise sobre o âmbito de proteção, restrições, conteúdo e eficácia do direito fundamental ao desenvolvimento, recai necessariamente em abordagem zetética, integral de proteção, pluralista de alternativas e solidarista. Tal abordagem deve-se ao fato de estar o direito ao desenvolvimento sujeito às interferências dos fatores culturais, econômicos, políticos, jurídicos, sociológicos, antropológicos, geográficos e até mesmo relacionados à psicologia das massas (visão zetética). Sua proteção integral encontra-se juridicamente consolidada em espaços jurídicos dialógicos e interculturais a exemplo das ordens interna, internacional e comunitária, constituindo o direito fundamental ao desenvolvimento o valor supremo que consolida os demais direitos fundamentais necessários ao progresso existencial humano (visão integral de proteção). 14 O direito fundamental ao desenvolvimento demanda concretização pluralista de alternativas. Fenômenos como a globalização, efeitos climáticos, terrorismo, demandas sociais por novos direitos e crises econômicas devem constituir riscos calculáveis, previsíveis, inseridos e dimensionados no seu domínio normativo para melhor definição do âmbito de proteção, restrições e eficácia em sociedades complexas (visão plural). O desenvolvimento no século XXI impõe a projeção das forças produtivas num agir sustentável, a organização estatal desburocratizada, transparente e aberta aos avanços tecnológicos, além da sociedade interligada em redes democráticas de cibercidadania para consolidação de novos espaços públicos fundamentais para defesa dos valores comuns considerados essenciais ao desenvolvimento, através dos laços de solidariedade envolvendo direitos e deveres para além das nações e nacionalismos (visão solidarista). As políticas públicas de redução das desigualdades sociais e regionais, erradicação da pobreza e da marginalização, garantia do desenvolvimento nacional, construção de uma sociedade livre, justa e solidária, promoção do bem de todos (art. 3º da CRFB – norma jurídica do tipo política pública) constituem o marco constitucional determinante da atividade estatal e parâmetro de aferição de (in)constitucionalidade integral das ações e omissões do poder público. Tais ações e omissões perdem sua discricionariedade em sentido forte ao se vincularem a estes mandamentos constitucionais. Na presente tese será demonstrado o caráter normativo das políticas públicas e, por consequência, seus parâmetros de controle judicial. O Estado Constitucional Solidarista se afirma democraticamente através do fortalecimento e consolidação dos laços de solidariedade social – pela divisão social do trabalho sustentável, por similitude, pelo pluralismo e pela justiça equânime na distribuição de direitos e deveres. O desenvolvimento é construído, aprimorado e expandido nesses laços constitucionais solidários de proteção, reflexivo das necessidades humanas existenciais em equilibro sustentável com a continuidade da vida em todas as suas formas e igual dignidade. Diante dessa primeira dedução sobre o desenvolvimento e principal hipótese de trabalho, restam as seguintes hipóteses secundárias a serem investigadas nos capítulos seguintes: (I) O direito fundamental transindividual ao desenvolvimento orienta-se pelo princípio constitucional da solidariedade; (II) A jurisdição constitucional de proteção do direito fundamental ao desenvolvimento consolida-se de forma dialógica entre as jurisdições interna, internacional e 15 comunitária possibilitando o constitucionalismo integral através da jurisdição interconstitucional; (III) Há relação direta entre aumento da cultura constitucional com consequente fortalecimento da normatividade constitucional e a presença do constitucionalismo em redes de cibercidadania criando novos espaços públicos de proteção dos direitos fundamentais; (IV) O pensamento pluralista de alternativas é adequado ao regime jurídico- constitucional integral de proteção do direito fundamental ao desenvolvimento; (V) O direito é objeto cultural que se constrói através do tratamento lógico- linguístico num processo de condicionamento recíproco entre ser e dever-ser, e que não deve estar fechado à abordagem zetética (multidisciplinar); (VI) O pensamento solidarista produz reflexos jurídicos na concretização do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento, oferecendo novas possibilidades de efetivá- lo. 1.2 Proposta de Trabalho Nosso propósito inicial é determinar qual o alcance e significado constitucional contemporâneo do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento que emerge de uma teoria integral de proteção envolvendo os espaços jurídicos interno, internacional e comunitário. No capítulo II se adiantará uma hipótese central da tese: o direito fundamental transindividual ao desenvolvimento expressa a opção do constituinte originário por inseri-lo como valor supremo da sociedade (Preâmbulo) e objetivo fundamental da República (art. 3º). Consolida a ideia de progresso existencial e reúne em seu âmbito de proteção, restrições, eficácia e conteúdo, a indivisível e constante permanência dos demais direitos fundamentais num patamar dinâmico de proteção que garanta a promoção de projetos existenciais de vida coerentes com a necessidade humana por progresso e evolução. No segundo capítulo será também realizada a análise comparativa entre as normas constitucionais e os demais documentos jurídicos internacionais e comunitários que tratam do desenvolvimento, fortalecendo a teoria integral de proteção e potencializando ajurisdição em nível interconstitucional. Seu âmbito de proteção, restrições, conteúdo e eficácia passará por 16 abordagem crítica em face do pluralismo de teorias dos direitos fundamentais, para oferecer adequada resposta à eficácia vedativa do retrocesso no contexto do direito ao desenvolvimento. O capítulo III estará dedicado a precisar os contornos da jurisdição interconstitucional de proteção ao direito fundamental transindividual ao desenvolvimento. Partindo da concepção integral de proteção, será repensada a teoria da interconstitucionalidade, agregando a dimensão internacional, diatópica e neofederativa para conformação do modelo proposto na tese. No capítulo IV cuidar-se-á dos institutos que fundamentam a compreensão do pensamento solidarista, com a prévia análise da vinculação e condicionamento recíproco entre o pensamento jurídico contemporâneo e o ideal de solidariedade, que, como ideal, transcende as barreiras da ciência do direito. Ao final será feita breve incursão nos reflexos jurídicos do pensamento solidarista em face da teoria integral de proteção, redefinindo, em alguns aspectos, o regime constitucional do desenvolvimento. Nele serão identificados os novos fundamentos teóricos e filosóficos do Estado Constitucional Solidarista, partindo das implicações da solidariedade nas decisões políticas fundamentais que impactam o direito fundamental ao desenvolvimento. O Capítulo V ficará reservado aos estudos sobre constitucionalismo em redes de cibercidadania com a construção de novos espaços públicos, além da perspectiva pluralista de alternativas para compreensão do direito fundamental transindividual ao desenvolvimento. Ao final do capítulo será feita análise sobre o novo modelo de organização estatal para o desenvolvimento, sua estrutura desburocratizada, participativa, transparente e permeável às novas tecnologias, numa realidade constitucionalmente adequada à teoria integral de proteção ao desenvolvimento em ambiente plural. O Capitulo VI encerrará a tese ao identificar o sistema constitucional de proteção e concretização do direito ao desenvolvimento através de políticas públicas, estabelecendo inicialmente novos parâmetros de aferição do seu conteúdo, como a proibição de retrocesso, o dever de solidariedade e a inaplicabilidade da reserva do possível, todos filosófica e juridicamente reorientados pelo pensamento possibilista desenvolvido por Häberle em seu Pluralismo y Constitución. Estabelecerá a normatividade das políticas públicas estabelecendo novos parâmetros de controle judicial. 17 Também abandonará a falsa perspectiva de direito ao mínimo e ao máximo existencial enquanto direitos subjetivos, adotando a perspectiva do progresso existencial, mais adequado constitucionalmente ao valor supremo do desenvolvimento. A tese em alguns momentos deixará em aberto o caminho para a concretização do direito fundamental ao desenvolvimento, compreendendo a historicidade das ideias-força que o impulsionarão, sem, no entanto, nos anularmos para que a história se revele em nosso lugar, mas refletindo dialeticamente sobre a historicidade da própria compreensão, apresentando a visão de solidariedade, cidadania e jurisdição constitucional tanto útil quanto necessária à realização do objetivo fundamental de garantia do desenvolvimento nacional para que o ser humano possa ter uma vida em progresso existencial. 18 2 DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO O presente capítulo oferece a análise situacional e prospectiva do direito ao desenvolvimento, desde sua proteção constitucional, internacional e comunitária até a definição do seu âmbito de proteção, conteúdo, restrições e eficácia enquanto direito fundamental transindividual. O contexto intelectual da ideia de progresso é formulado pela primeira vez na história por Turgot 1 em conferência pronunciada em Sorbona em 1750, onde passa a formular, pela primeira vez uma lei de progresso, antecipando em mais de cem anos a famosa lei dos três estados de Comte 2 (teológico, metafísico e positivo). Para Turgot o progresso é, todavia processo dependente em grande medida de circunstâncias acidentais, se as circunstâncias são propícias o progresso não pode ser detido, em sua concepção o fim do progresso é a felicidade e nitidamente vinculado ao conceito de liberdade, embora a ideia de progresso e liberdade seja melhor desenvolvida em Condorcet 3 . Serão Popper e Hayek, dois grandes pensadores sobre o progresso no século XX que romperão com a perspectiva de leis condicionantes do progresso. Para Hayek a razão humana é incapaz de predizer nem dar forma ao seu próprio futuro 4 . Segundo Popper não pode haver teoria científica do desenvolvimento histórico que sirva de base para predizê-la 5 . Outra forma de conceber o desenvolvimento como liberdade no novo liberalismo é aquela que sustenta que a chave do progresso encontra-se na intervenção política 6 . 1 TURGOT, A. R. J. Discursos sobre el progreso humano (1750). Tecnos: Madrid, 1991. 2 Cfr. BURRY, John. La idea del progreso. Alianza editorial: Madrid, 1971, p. 143. 3 Nesse sentido: TEJADA, Javier Tajadura. El preâmbulo constitucional. Editorial Comares: Granada, 1997, p. 188. Sobre CONDORCET como filósofo da liberdade, NISBET, R. História de la idea de progreso. Gedisa: Barcelona:1981, p. 291-299. Condorcet deixa claro que a liberdade não é possível sem igualdade, considerando a igualdade formal como insuficiente, em sua obra defende a igualdade de direitos entre homem e mulher, também combatendo o racismo e o imperialismo, em suas palavras “os povos saberão que não podem converter-se em conquistadores sem perder sua liberdade”. CONDORCET. Bosquejo de um cuadro historico sobre los progresos del espíritu humano (1795). Editora Nacional: Madrid, 1990. 4 HAYEK, F. A. Los fundamentos de la libertad. (1959). Unión Editorial: Madrid, 1991, p. 59-60. 5 POPPER, Karl. La miséria del historicismo. Tratus: Madrid, 1961, p. 12. 6 Cfr. TEJADA, Op. Cit. p. 200. No livro de Freedem, The new liberalism, se mostra a origem desta tese na Inglaterra graças a obra de Hobson e Hobhouse. HOBSON fascinado pela ideia de uma sociedade em progresso contínuo, sustentou a necessidade de que a ideologia liberal evoluísse no sentido de acelerar o progresso mediante a ação dos poderes públicos. HOBHOUSE manteve a tese de que havia chegado a hora de utilizar os avanços do conhecimento e o Estado democrático para o cumprimento do que denominava finalidade social. Resumidamente, para tornar possível a continuidade do progresso é necessário criar um Estado capaz de intervir mediante políticas de redistribuição nos processos sociais. 19 A formulação da expressão direito ao desenvolvimento e sua bases conceituais foram formuladas pelo senegalês Keba M’Baye7 em conferência inaugural do Curso de Direitos Humanos do Instituto Internacional de Direitos do Homem de Estrasburgo de 1972 8 . Contemporaneamente, Amartya Sen conceituará desenvolvimento como expansão das liberdades substantivas. Assim, o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação da liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos 9 . O desenvolvimento consagra-se no novo milênio como a questão central da humanidade, núcleo convergente das principais teorias e movimentos sociais nos contextosglobal, local e regional, produzindo reflexos jurídicos na democracia, liberdade, segurança, propriedade, saúde, educação e mais acentuadamente no sistema de proteção aos direitos de solidariedade (transindividuais). 2.1 Direito fundamental ao desenvolvimento e sua proteção constitucional O direito fundamental ao desenvolvimento representa, para além de doutrina do progresso existencial, o marco unificador dos direitos fundamentais presentes e dos demais direitos humanos e comunitários convergentes para seu sistema aberto e integral de proteção. Ele é fruto de nova geração de direitos que reclama sua integral proteção num regime solidarista. Corretamente identificado como direito de solidariedade ou direito de terceira geração/dimensão, assume feição transindividual. Na Constituição da República Federativa do Brasil o desenvolvimento possui diversas perspectivas sistêmicas, o que lhe permite dialogar com outras normas constitucionais em ambiente plural de possibilidades normativas. É tratado como valor supremo, objetivo 7 M’BAYE, Keba. Le droit au développement comme un droit de l’homme. Revue des droits del’homme, v. V, 1972, p. 505-534. 8 Cfr. PELLOUX, Robert. Vraiset faux droits de l’Homme. Revue du Droit Public et de la Science Politique em France ET à l’étranger. Paris: Libr. Générale, 1981, p. 61; ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Direito ao Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 197; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 59. 9 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 17-18. 20 fundamental, direito fundamental transindividual e princípio estruturante de diversos regimes constitucionais, desde o ambiental ao econômico, sua tarefa e concretização não são simples. Para conhecer suas principais potencialidades sociais e normativas é necessário referir-se ao sistema constitucional aberto, plural e democrático no qual está inserido e principalmente, repensar a equívoca decisão da nossa jurisdição constitucional que atribuiu ineficácia jurídica ao preâmbulo constitucional. A Constituição Federal de 1988 divide-se estruturalmente em sua forma codificada em: Preâmbulo Constitucional, Dispositivos Constitucionais Fixos (art. 1º ao 250) e Dispositivos Constitucionais Transitórios (ADCT – art. 1º ao 98). Em sua Estrutura não codificada (integrando parte do bloco de interconstitucionalidade 10 ) divide-se em: Dispositivos Constitucionais decorrentes (conforme art. 5º, §2º, CRFB) que são os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição Federal, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, exceto os Tratados Internacionais de Direitos Humanos incorporados na forma do art. 5º, §3º da CRFB, que constituem os Dispositivos Constitucionais equivalentes ou direitos fundamentais equivalentes. Conforme o citado §3º do art. 5º, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos decorrentes (art. 5º, §2º) e equivalentes (art. 5º, § 3º) possuem o mesmo status interconstitucional (dialogam com as demais normas constitucionais e comunitárias em idêntico patamar deontológico, passando por ponderação no patamar axiológico objetivando a melhor proteção do ser humano no contexto ontológico de aplicação). Surgem, no nosso ordenamento jurídico, duas categorias de Tratados Internacionais de Direitos Humanos, na incorreta visão do Supremo Tribunal Federal 11 , uma com status 10 Fazendo referência em nível interconstitucional à conhecida expressão bloco de constitucionalidade (utilizada pela primeira vez em 16 de junho de 1971 em decisão do Conselho Constitucional da França que integrou à Constituição de 1958 a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e o Preâmbulo da Constituição de 1946. Nesse sentido: FAVOREAU, Luis; LLORENTR, Francisco Rubio. El Bloque de la Constitucionalidad. Madrid: Civitas, 1991). O bloco de interconstitucionalidade é formado por normas de direitos humanos, fundamentais e comunitários, com forte vínculo intersistêmico, plural e unitário de proteção, destituído de hierarquia recíproca e inserido num processo hermenêutico diatópico. 11 A tese da supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos prevaleceu no Supremo Tribunal Federal no RE 466343/SP. Para a compreensão das diversas correntes doutrinárias sobre a posição desses tratados no ordenamento jurídico verificar o voto vencedor do Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Prevaleceu a tese da 21 supralegal e infraconstitucional – art. 5º, §2º e outra com status constitucional – art. 5º, § 3º. Em nosso ponto de vista, já explicitado, os direitos humanos qualquer que tenha sido o seu processo de incorporação à ordem interna, não estão situados no plano deontológico em patamar inferior, tampouco superior aos direitos fundamentais e aos direitos comunitários. A Constituição Federal de 1988 é pluritextual (possui mais de um conjunto normativo ou articulado que determina seu conteúdo formal e material) por força da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, incorporada nos termos do art. 5º, §3º da Constituição por decreto legislativo equivalente à emenda constitucional (Decreto nº 6.949, de 25.8.2009 Publicado no DOU de 25.8.2009), e a esse se soma o conjunto de Tratados Internacionais de Direitos Humanos incorporados à ordem interna pelo procedimento exigido à época em que não se fazia presente o citado § 3º do art. 5º da CRFB. O desenvolvimento encontra-se referido no preâmbulo constitucional brasileiro de 1988 como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos nos seguintes termos: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Os preâmbulos constitucionais estabelecem as ideias-força fundamentais que conduzem o texto constitucional e neles estão estabelecidas diversas normas jurídicas de conteúdo impositivo, pois nos preâmbulos constitucionais encontramos a síntese do sentimento constitucional criador da nova ordem jurídica fundamental. Possuem eficácia como qualquer outra norma constitucional 12 . infraconstitucionalidade (estão abaixo da Constituição) e suprelegalidade (estão acima das leis) dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos (nos termos do art. 5º, §2º da CRFB). Quanto aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos incorporados nos termos do art. 5º, § 3º da CRFB, estes possuem status constitucional (ex: Tratado Internacional de Proteção à Pessoa Deficiente)e passam a integrar norma constitucional fora do texto constitucional formal-codificado. 12 Também defendem a relevância jurídica do preâmbulo constitucional: SILVA NETO, Manoel Jorge. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 218; CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito 22 Segundo Jorge Miranda, a doutrina distribui-se entre três posições: A tese da irrelevância jurídica (o preâmbulo não se situa no domínio do Direito, situa-se no domínio da política ou da história); a tese da eficácia idêntica à de quaisquer disposições constitucionais (é também conjunto de preceitos); entre as duas a tese da relevância jurídica específica ou indireta, não confundindo preâmbulo e preceituado constitucional (participa das características jurídicas da Constituição, mas sem se confundir com o articulado) 13 . Para Jorge Miranda, o preâmbulo é parte integrante da Constituição, com todas as suas consequências; dela não se distingue nem pela origem, nem pelo sentido, nem pelo instrumento em que se contém. Distingue-se (ou pode distinguir-se) apenas pela sua eficácia ou pelo papel que desempenha. Tudo é constituição em sentido formal 14 . O Conselho Constitucional Francês admite a fiscalização de constitucionalidade em face da violação aos princípios do preâmbulo. Este, porém, não foi o entendimento da nossa Corte Constitucional. O Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 2076-5/AC, de relatoria do Ministro Carlos Veloso, trazendo lições de Jorge Miranda, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e José Wilson Ferreira Sobrinho, decidiu pela tese da irrelevância jurídica do preâmbulo. Afirmou o relator em seu voto: “O preâmbulo, ressai das lições transcritas, não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte (...). Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica. Importante observar que Jorge Miranda não se filia à corrente defendida pelo Ministro relator da citada Ação Direta de Inconstitucionalidade, apesar de ter sido citado entre as lições transcritas. A tese da irrelevância jurídica é rechaçada por Jorge Miranda e acolhida pelo Supremo Tribunal Federal. A opção pelos valores supremos de concretização dos direitos sociais e individuais, da liberdade, da justiça, do bem-estar e da igualdade, torna tais valores, princípios constitucionais de eficácia plena, judicialmente exigíveis, afinal, como afirmado no próprio preâmbulo, esta é a razão de existência do Estado Democrático. Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 108; BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. Porto Alegre: FABRIS, 1993, p. 38-39. Edvaldo Brito relaciona aqueles que defendem a função normativa do preâmbulo: Aristides Milton, Carlos Maximiliano, João Barbalho, José Duarte, Georges Vedel, Georges Burdeau, Jorge Miranda e Josaphat Marinho. Pensam contrariamente: Aurelino Leal, Corwin, Hans Kelsen, Paulo Bonavides, Pedro Lenza e Alexandre de Moraes. 13 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 437. 14 MIRANDA, Jorge. Op. Cit. p. 437-438. 23 Outro não foi o caminho adotado pela Constituição espanhola de 1978, que trouxe no preâmbulo diversos preceitos que expressam a opção constituinte pela ideia de progresso e desenvolvimento. Opção que se depreende da análise semântica de seus termos (consolidar, fortalecer, progresso, avançada). Conforme Javier Tejada, dito progresso alcança sua plenitude de significado em sua concepção global, como progresso social e político, aplicada ao conceito de democracia 15 . A constituição brasileira de 1988 caracteriza o desenvolvimento como valor supremo da sociedade. Ao estabelecer no contexto do seu preâmbulo, uma ordem objetiva de valores constitucionais vinculantes, passa a constituir o desenvolvimento como decisão política valorativa (wertentscheidungen), que expressa conteúdo axiológico universal com validez para todos os âmbitos do direito. O desenvolvimento concretiza essa expressão valorativa (decisão axiomática) no próprio texto constitucional como norma objetiva de princípio (objektive Grundsatznormen), como direito fundamental transindividual (direito subjetivo de solidariedade frente ao Estado e dotado de eficácia horizontal interprivada) e como objetivo fundamental (norma programática ou política pública). O art. 3º da Constituição Federal de 1988 estabelece dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o de garantir o desenvolvimento nacional. Trata-se de norma fundamental programática, vinculante objetivamente para os poderes públicos (com importante função sistêmica institucional, assumindo deveres de proteção e garantia do progresso existencial, além de intervir positivamente nos processos político, judicial, formativo das leis, econômico e administrativo) e subjetivamente para a sociedade (em termos de direitos e deveres de solidariedade). Esse objetivo fundamental cresce em dimensão normativa e importância interconstitucional quando edifica sua proteção em níveis também comunitário e internacional, como se expressasse necessidade comum da humanidade. Nesse sentido, o constituinte originário de 1988, no art. 4º, IX, estabeleceu o princípio de cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Progresso e cooperação somam-se de forma indissociáveis à prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II). 15 TEJADA, Javier Tajadura. El preâmbulo constitucional. Editorial Comares: Granada, 1997, p. 175 et seq. O autor apresenta uma dupla perspectiva para o progresso: setorial (progresso da economia e da cultura) e global (sociedade democrática avançada), Op. Cit. p. 176. 24 Os direitos humanos são pressupostos necessários ao progresso humano e condição necessária para formação dos laços de solidariedade entre povos e nações. O artigo 4º da Constituição Federal estabelece princípios estruturantes de regência das relações internacionais e realça orientação internacionalista jamais vista na história constitucional brasileira 16 . Insere programaticamente (norma do tipo política pública) em seu parágrafo único a busca por uma “comunidade latino-americana de nações” através da integração econômica, política, social e cultural. Constrói, também de forma inédita, o marco jurídico-constitucional comunitário. Ao inserir no mesmo dispositivo constitucional (art. 4º) as orientações internacional e comunitária, presente a abertura integrativa dos direitos fundamentais (art. 5º, § 2º) ao regime de comunitário e internacional de proteção ao progresso e ao desenvolvimento existencial humano, nossa ordem constitucional consagrou o interconstitucionalismo multinível (constitucional, internacional e comunitário). O avanço contínuo do conhecimento humano é condição fundamental do desenvolvimento. A vinculação das atividades de ensino, pesquisa e extensão e consequente divisão social do progresso, situa a perspectiva solidarista para o desenvolvimento sustentável na revisão das metas educacionais, onde a educação para o progresso humano produz reflexos jurídicos na compreensão do direito fundamental à educação. Os objetivos fundamentais (normas programáticas constitucionais ou políticas públicas constitucionais) servem como paramentos de aferição da constitucionalidade das demais políticas públicas (normas programáticas infraconstitucionais). A sustentabilidade ambiental coloca a humanidade consciente dos riscos que devee é capaz de assumir para o progresso. Posturas muitas vezes indemonstráveis, como o princípio da precaução (deixar de agir diante da incerteza científica), podem conduzir a momentos em que, numa análise contextual, o deixar de agir poderá demonstrar-se infinitamente mais catastrófico do que decidir arriscar-se diante da incerteza, principalmente quando as possibilidades de proteção evidenciam-se mais favoráveis ao comportamento ativo. O raciocínio para garantia e proteção de objetivos fundamentais, dentre eles o desenvolvimento, é necessariamente análise de riscos e estabelecimento de metas estabelecidas em políticas públicas projetadas por sistema organizativo, que deve ser capaz de oferecer 16 Nesse sentido: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 95. 25 respostas coerentes com o sistema interconstitucional e integral de proteção do progresso existencial humano – não é tarefa fácil. A sociedade é por demais complexa para adoção de modelo universal, muito menos nacional para suprir eficazmente suas necessidades, daí a importância do modelo pluralista de alternativas proposto por Peter Häberle e a hermenêutica diatópica de R. Panikkar. O crescente avanço tecnológico presente no século XXI constitui fator favorável ao desenvolvimento. Impulsionada pelas redes de indignação e esperança 17 que se formaram entre os jovens das diversas nações do mundo por meio das redes sociais em luta por direitos e democracia, a internet permitiu a consolidação de novas formas de exercício de cidadania e luta por progresso existencial. A Constituição em sua abertura principiológica de escolhas normativas conduz inegavelmente ao pluralismo e a solidariedade como fatores determinantes da integral proteção do progresso existencial humano. 2.2 Direito ao desenvolvimento humano e sua proteção internacional A Comissão de Direitos do Homem da ONU em 1977 apontou o direito ao desenvolvimento em relação à cooperação internacional. No âmbito da UNESCO, em 1978, o direito ao desenvolvimento foi inserido na Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais. Em 1981 a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, aprovada na 18ª Conferência de Chefes de Estado e Governo, reunida no Quênia, dispôs em seu artigo 22 o direito ao desenvolvimento 18 . A Organização das Nações Unidas passa a adotar em 1986 através 146 Estados favoráveis, um voto contrário dos Estados Unidos da América e oito abstenções (incluindo Alemanha, Reino Unido e Japão) a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Logo em seu artigo 2º estabelece: “a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser ativa participante e beneficiária do direito ao desenvolvimento”. 17 Cfr. CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 18 Art. 22 – 1. Todos os povos têm direito ao desenvolvimento econômico social e cultural, no devido respeito à sua liberdade e identidade, e na igual fruição da herança comum da humanidade. 2. Os Estados têm o dever de assegurar, individual ou coletivamente, o exercício do direito ao desenvolvimento. (Expressão isolada sobre o desenvolvimento, ainda distante da sua contemporânea concepção de direito transindividual, esteve presentes na Carta da ONU de 1945 em seu art. 55 – condições de progresso e desenvolvimento econômico). 26 O preâmbulo da Declaração de 1986 conceitua o desenvolvimento como processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes. Trata-se de direito inalienável, indivisível e interdependente que situa o ser humano como participante ativo e beneficiário do seu processo de construção. O art. 2, 3 da Declaração impõe o dever e direito estatal de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento e reafirma a participação ativa, livre e significativa de todos os indivíduos no desenvolvimento e na distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes. A Declaração da ONU estabelecerá as bases solidaristas e cooperativas para assegurar o desenvolvimento e eliminar seus obstáculos. Propõe nova ordem econômica internacional baseada na igualdade soberana, interdependência, interesse mútuo e cooperação entre todos os Estados. Nasce para os Estados a responsabilidade primária pela criação das condições nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao desenvolvimento (art. 3, 3) e o dever de eliminar os obstáculos ao desenvolvimento resultantes da falha na observância dos direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais (art. 6, 3). Na destacada visão de Flávia Piovesan, a concepção contemporânea de direitos humanos caracteriza-se pelos processos de universalização e internacionalização destes direitos, compreendidos pelo prisma da sua indivisibilidade 19 . A Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, afirma em seu parágrafo 5º: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com mesma ênfase”. A universalidade, interdependência e inter-relação também ocorrem no nível interconstitucional entre os direitos humanos, fundamentais e comunitários no ambiente pluralista, solidário e integral de proteção. 19 PIOVESAN, Flávia. Direito ao desenvolvimento – desafios contemporâneos. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (Coordenadoras). Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte: Editora Forum, 2010., p. 100. 27 Afirmará Flavia Piovesan, aproximando-se da visão habermasiana de democracia, que “não há direitos humanos sem democracia e nem tampouco democracia sem direitos humanos”20. Essa premissa se confirma facilmente com a simples análise estatística dos indicadores de desenvolvimento nos países de índole democrática. As crises globais (climáticas, econômicas e endêmicas, apenas para citar algumas) reforçam a necessidade primordial de manutenção de laços de solidariedade entre as nações. Criam a atmosfera propícia à expansão das conquistas civilizatórias para o desenvolvimento conjunto dos países (sem protagonismos), estabelecendo deveres correspondentes de cooperação na construção da ordem global(izada) de desenvolvimento equitativo das nações desenvolvidas e em progresso para o desenvolvimento. Presente uma série de Tratados Internacionais de Direitos Humanos indivisivelmente conectados à proteção integral ao desenvolvimento, a concretização do citado direito fundamental transindividual encontra-se integrada de forma multinível e interconstitucional com tais documentos jurídicos transnacionais e mais aproximadamente a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento no âmbito da ONU. No plano internacional, a solidariedade entre as nações constituirá a base existencial de construção e progresso dos Estados Constitucionais Cooperativos. Rüdiger Wolfrum insere a solidariedade como princípio estrutural emergente no sistema internacional de proteção da paz, no direito ambiental internacional e no ambiente de intervenção e assistência humanitária 21 . O Consenso Europeu para o Desenvolvimento de 20 de dezembrode 2005 em seu parágrafo 13 estabelece: “Solidarity. Global challenges must be managed in a way that distributes thee cost and burdens fairly in accordance with basic principles of equity and social justice. Those who suffer or who benefit least deserve help from those who benefit most”22. 20 Op. Cit. p.100. 21 Cfr. WOLFRUM, Rüdiger. Solidarity amongst States: an emerging structural principle of international Law. In:PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (Coordenadoras). Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte: Editora Forum, 2010, p. 57-72. Nessa mesma obra coletiva, porém mais direcionado ao contexto do direito internacional do desenvolvimento: DANN, Philipp. Solidarity and the Law of Institutional Development Cooperation. p. 73-93. 22 “Solidariedade. Os desafios globais devem ser geridos de uma forma que a distribuição dos custos e responsabilidades aconteça de acordo com os princípios básicos de equidade e justiça social. Aqueles que sofrem ou que beneficiam menos merecem a ajuda dos que mais se beneficiam " 28 A parte inicial do Consenso de Monterrey é dedicado a uma concreta lista de deveres internos para os Estados receptores (nota 23, parágrafos 10-19). Essa lista cobre uma série de aspectos, como garantia de consistência das políticas públicas macroeconômicas, aumento da produtividade e práticas de boa governança, cuidar de instituições democráticas sólidas de combate à corrupção. Conforme Phillip Dann, responsabilidade mútua entre as nações é importante elemento dessa ideia 23 . 2.3 Direito ao desenvolvimento e sua proteção comunitária A proteção comunitária ainda é projeto embrionário na União Sul-Americana. Faz- se presente no direito comum da União Europeia. Assim, faremos breve análise crítica do direito comunitário europeu, com vistas à expansão da rede comunitária latino-americana. Portanto, o que virá a seguir será muito mais propositivo que propriamente elucidativo da realidade comunitária local. O direito comunitário não é como o direito internacional público, trata-se, na lição de Konrad Hesse de complexo jurídico autônomo, dotado de índole própria, cujo fundamento de validez é sua proveniência do poder comunitário público 24 . Sua validez intra-estatal assenta- se sobre a decisão constitucional para a instituição em ato coletivo das comunidades 25 . Ocorre em nosso sentir, o fenômeno político de transnacionalização de parcela da soberania dos Estados formando a dinâmica soberania compartilhada supranacional do bloco comunitário. Percebe-se claramente que a retomada dos espaços transnacionais comunitários pelo direito constitucional ocorre sempre em virtude de proteção deficiente dos direitos fundamentais. Nesse sentido, observa-se o vasto debate na jurisprudência alemã (BVerfGE 37, 271; 58, 1; 73, 339) discutindo a reserva imanente do art. 24 da Lei Fundamental de Bonn para proteção dos direitos fundamentais em face do seu conteúdo essencial, quando a proteção comunitária não for suficiente, estabelece-se, em nosso ponto de vista, inadequada cisão entre as ordens constitucional e comunitária, intervindo a norma constitucional enquanto o standard de direitos fundamentais, geralmente obrigatório, do direito comunitário ainda não possui nível 23 Solidarity and the Law of Institutional Development Cooperation. Cit. p. 83. 24 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. da 20ª edição alemã de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 96. 25 HESSE, Konrad. Cit. p. 97. No direito alemão a autorização constitucional de participação encontra-se no art. 24, alínea l, da Lei Fundamental. No direito brasileiro, conforme já citamos, no artigo 4º, parágrafo único da Constituição Federal. 29 adequado de proteção compatível com as exigências estabelecidas no marco constitucional interno. A inadequação reside apenas na falta de diálogo interconstitucional, onde a proteção insuficiente ou deficiente em nível comunitário poderia ser suprida através da integração dialógica com as normas constitucionais internas no próprio espaço comunitário e vice-versa. A cisão institucional entre as ordens internacional, constitucional e comunitária não parece ser a melhor solução. O direito comunitário não deve buscar primazia sobre o direito nacional como pressuposto da capacidade funcional da comunidade 26 . O pressuposto da sua capacidade funcional reside no diálogo interconstitucional diatópico destituído de hierarquia, objetivando sempre a melhor proteção do ser humano. A base cooperativa de criação de uniões supranacionais orienta-se por uma carta de direitos que amplia e reconhece tantos os tratados internacionais de direitos humanos quanto os direitos fundamentais dos Estados que solidariamente compõem a Comunidade de Nações. A União Europeia, nos termos do art. 6º do Tratado de Maastricht, respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, enquanto princípios gerais de direito comunitário. A falta de uma teoria integral dialógica de proteção de direitos multinível acarreta alguns equívocos conceituais. O primeiro deles é identificar direitos essenciais à dignidade existencial do ser humano no âmbito comunitário, ora como direitos fundamentais, ora como direito humanos, afastando-lhe o caráter de autonomia dogmática. O direito comunitário é formado não apenas por normas de organização e procedimento, mas fundamentalmente por normas atributivas de direitos aos cidadãos supranacionais, que vão desde o voto e a participação na composição da comunidade e instituições, até a garantia de progresso existencial em solidariedade com seus concidadãos. A preocupação comunitária encontra-se mais diretamente associada à proteção de direitos transindividuais, conectados aos problemas transfronteiriços. Porém, a inter-relação, sistematicidade, interdependência, unidade e indivisibilidade dos direitos humanos, fundamentais e comunitários sobelevam a atuação comunitária para o contexto integral de proteção dos direitos em nível interconstitucional. 26 Em sentido contrário, em defesa da primazia como pressuposto da capacidade funcional: HESSE, Konrad. Cit. p. 98. 30 O Direito ao desenvolvimento reencontra e amplia seu âmbito de proteção 27 no direito comunitário. A ideia de progresso e desenvolvimento é estruturante da própria identidade constitutiva da comunidade de nações, encontra tipificação expressa nos principais documentos jurídicos das uniões supranacionais. O Acordo de Cotonou (Acordo 2000/483/CE) de parceria entre os Estados de África, das Caraíbas e do Pacífico e a Comunidade Europeia e seus Estados-Membros trata das relações de cooperação da União Europeia com vistas ao desenvolvimento econômico, social e cultural dos citados países. Em oito de setembro de 2000, a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração do Milênio, com o compromisso de adesão a um projeto mundial de redução da pobreza extrema sob todas as suas formas. Associados à Declaração do Milênio, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio são os seguintes: Reduzir a pobreza e a fome no mundo; Garantir o ensino primário para todos; Promover a igualdade entre homens e mulheres; Reduzir a mortalidade infantil; Melhorara saúde materna; Combater o HIV/AIDS e outras doenças; Assegurar a sustentabilidade ambiental; Participar numa parceria mundial para o desenvolvimento28. Conforme dados da própria União Europeia, ela contribui com 55% da ajuda pública ao desenvolvimento mundial 29 . A atividade da União Europeia na área do desenvolvimento não é apenas compromisso político fundamental no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, é essencialmente compromisso jurídico-comunitário assumido em seu Tratado constitutivo (artigo 178). 27 A definição do âmbito de proteção de um direito fundamental responde a pergunta acerca de que atos, fatos, estados, sujeições, situações ou posições jurídicas são protegidos pela norma que garante o referido direito (Cfr. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 72). 28 Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao Comitê Econômico e Social Europeu de 12 de abril de 2005. COM (2005) 132 final. 29 Comunicação citada. p. 2. 31 Os laços de solidariedade interconstitucionais entre a ordem interna, internacional e comunitária para garantia de proteção integral ao desenvolvimento, são por demais intensos, para permitir o inadequado isolamento das jurisdições e organizações estatais na proteção de direitos e atribuição de responsabilidades. 2.4 Dos limites e possibilidades de uma teoria constitucional integral de proteção Conforme observa Flávia Piovesan, uma das maiores fragilidades do sistema internacional de direitos humanos atém-se às dificuldades de implementação de direitos – o chamado implementation gap. Nesse sentido, destaca-se o desafio de implementação do direito ao desenvolvimento 30 . Destaca-se a importante advertência de André de Carvalho Ramos: Sem uma teoria sistematizada de direitos humanos repleta de marcos de orientação para decisões futuras, deslegitima-se o próprio intérprete internacional, que muitas vezes terá que avaliar atos estatais aprovados por maiorias democráticas, mas violadores de direitos humanos de minorias 31 . Nesse sentido, buscamos aliar ao desafio da implementação de direitos a teoria sistematizada de proteção integral. O “constitucionalismo integral” ou “teoria integral de proteção” nasce da necessidade de promover a organização sistêmica multinível para proteção de direitos fundamentais, humanos e comunitários (direitos interconstitucionais). Os direitos interconstitucionais, em sua maioria, possuem conteúdos axiológicos coincidentes e em todos os casos, igual hierarquia deontológica. Porém, são protegidos institucionalmente por jurisdições diversas (constitucional, internacional e comunitária), que marcam seu ponto de vista normativo sobre o conteúdo, alcance, limites e possibilidades hermenêuticas fora do sistema solidariamente integrado de jurisdições e distante das realidades locais. 30 PIOVESAN, Flávia. Direito ao desenvolvimento – desafios contemporâneos. In: PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado (Coordenadoras). Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte: Editora Forum, 2010, p. 106. 31 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 29. André de Carvalho Ramos destaca, na mesma passagem, a importância de sistematizar uma teoria baseada na iuris prudentia para que possamos expor as insuficiências e tibiezas das decisões dos intérpretes internacionais, que não podem nunca ser invocadas com temor reverencial ou como definitivo argumento de autoridade. (a teoria da decisão em nível interconstitucional será tratada no próximo capítulo). 32 Equivocadamente, as diversas jurisdições (interna, internacional e comunitária) estabelecem justificação heurística para sobrepor-se às demais jurisdições. Perdem-se no inútil debate sobre o monismo versus dualismo, buscando para si inadequado protagonismo, quando esse deve residir no ser humano e sua integral proteção. A teoria integral de proteção estabelece diálogo hermenêutico aberto e diatópico entre as ordens interna, internacional e comunitária no âmbito da jurisdição interconstitucional. Numa teoria integral de proteção, presente a expansão da jurisdição constitucional dos direitos transindividuais para o domínio comunitário e internacional, a análise sobre o âmbito de proteção, restrições, conteúdo e eficácia do direito fundamental ao desenvolvimento, recai necessariamente em abordagem zetética, integral de proteção, pluralista de alternativas e solidarista. Aproxima-se da perspectiva integral de proteção os deveres solidários dos particulares na promoção do direito ao desenvolvimento. Hoje o Direito Privado reapresenta- se, conforme Giorgio Oppo, como direito sim dos particulares, mas dos particulares uti cives; direito dos particulares como portadores da sua própria singularidade, mas também da necessidade de comunicá-la aos outros; da necessidade de isolar-se (que é algo a ser respeitado) mas também de associar-se; da necessidade de defender a própria personalidade, mas também de desenvolvê-la na comunidade que a enriquece e não a comprime 32 . As garantias instrumentais de proteção dos direitos, presentes no sistema interconstitucional, são legitimamente utilizáveis no seu universo amplo de aplicação. Desta forma, seria possível ao Ministério Público de qualquer país, propor Ação Civil Pública perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizando-se dos instrumentos jurídicos constitucionais, internacionais e comunitários de proteção mais eficazes do bloco de interconstitucionalidade. É reciprocamente possível a aplicação do controle de convencionalidade presente na jurisdição internacional no âmbito interno de cada país. A jurisdição interna de proteção integral dos direitos humanos, fundamentais e comunitários, em face do art. 5º, § 2º (cláusula de abertura) combinado com o art. 102, III (controle difuso), ambos da Constituição Federal, possibilita aos magistrados brasileiros o exercício do controle difuso de convencionalidade. 32 OPPO, Giorgio. Diritto privato e interessi pubblici. In: Revista di Diritto Civile, 1994, n 1, p. 26. No mesmo sentido, repensando a responsabilidade sob essa mesma perspectiva: RICOER, Paul. Lê Concept de Responsabilité. Essai d’Analyse Sémantique. In: Lê Juste. Espirit, 1992, p. 41-70. 33 No controle difuso de convencionalidade a questão interconstitucional é prejudicial (deve ser decidida pelo juiz antes de julgar o pedido principal), trata-se de incidente de interconstitucionalidade (por atingir direito humano ou comunitário que a República Federativa do Brasil resolveu proteger). Voltaremos ao tema do controle de convencionalidade no capítulo seguinte. A teoria integral de proteção impõe a responsabilidade dos participantes do processo judiciais envolvendo direitos interconstitucionais em contraditório cooperativo. As novas concepções de devido processo legal cooperativo e de garantia do contraditório fazem-se presentes no § 139 da ZPO 33 Alemã que trata da condução material do processo. O art. 266 do CPC de Portugal estabelece que a condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperarem entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Os dispositivos acima indicados refletem o que denominamos cooperative due process,que também se faz presente no Novo Código de Processo Civil francês, em seu art. 16: O juiz deve, em todas as circunstâncias, fazer observar, e observar ele mesmo o princípio do contraditório. Ele não pode considerar, na sua decisão, as questões, as explicações e os documentos invocados ou produzidos pelas partes a menos que estes tenham sido objeto de contraditório. Ele não pode fundamentar sua decisão em questões de direito que suscitou de ofício, sem que tenha, previamente, intimado as partes a apresentar suas observações. Contemporaneamente relativiza-se o antigo postulado: dá-me o fato que te darei o direito. Mesmo questões de direito (submetidas à intensa atividade interpretativa e criativa por parte dos sujeitos processuais) devem submeter-se ao contraditório cooperativo, principalmente numa teoria integral de proteção de direitos humanos, fundamentais e comunitários, onde o(s) titular(es) dos direitos são os verdadeiros protagonistas do processo de concretização da norma 33 (1) O órgão judicial deve discutir com as partes, na medida do necessário, os fatos relevantes e as questões em litígio, tanto do ponto de vista jurídico quanto fático, formulando indagações, com a finalidade de que as partes esclareçam de modo completo e em tempo suas posições concernentes ao material fático, especialmente para suplementar referências insuficientes sobre fatos relevantes, indicar meios de prova, e formular pedidos baseados nos fatos afirmados. (2) O órgão judicial só poderá apoiar sua decisão numa visão fática ou jurídica que não tenha a parte, aparentemente, se dado conta ou considerado irrelevante, se tiver chamado a sua atenção para o ponto e lhe dado oportunidade de discuti-lo, salvo se se tratar de questão secundária. O mesmo vale para o entendimento do órgão judicial sobre uma questão de fato ou de direito, que divirja da compreensão de ambas as partes. (3) O órgão judicial deve chamar a atenção sobre as dúvidas que existam a respeito das questões a serem consideradas de ofício. (4) As indicações conforme essas prescrições devem ser comunicadas e registradas nos autos tão logo seja possível.Tais comunicações só podem ser provadas pelos registros nos autos. Só é admitida contra o conteúdo dos autos prova de falsidade. (5) Se não for possível a uma das partes responder prontamente a uma determinação judicial de esclarecimento, o órgão judicial poderá conceder um prazo para posterior esclarecimento por escrito. 34 no ambiente plural de possibilidades e democrático de intérpretes, na conhecida formulação teórica de Peter Häberle. O princípio da cooperação também decorre da boa-fé processual, que é standard institucional de conduta, princípio que agrupa certas regras que exigem determinada atuação das partes em suas relações, determinando postura ética e socialmente valorada de cooperação e lealdade objetivando o exercício dos deveres solidários de proteção dos direitos interconstitucionais envolvidos. Outro aspecto relevante da teoria integral é o estabelecimento do standard inicial de proteção ou delimitação prévia do conteúdo essencial. O núcleo intangível dos direitos humanos, fundamentais e comunitários deve ser preliminarmente identificado e imediatamente protegido em nível judicial, legislativo ou administrativo, antes de qualquer tomada de decisão. Mantida a proteção do conteúdo essencial, a determinação do âmbito de proteção, conteúdo e eficácia passará por processo democrático e cooperativo de decisão estatal, argumentativamente orientado por processos transparentes de ponderação. A teoria integral de proteção, com direitos inseridos numa complexidade estrutural multinível de interconstitucionalidade, assume relevância o modelo de intervenção estatal solidária, onde se busca o pleno desenvolvimento com o compartilhamento de tarefas e responsabilidade, em grande parte, assumidas pelo Estado, de outro lado, vinculadas às empresas transnacionais e ao setor privado interno em função do seu dever transindividual de promoção do desenvolvimento social, cultural e econômico da sociedade que possibilitou a expansão do seu capital. A teoria de proteção integral é receptiva à teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas – eficácia horizontal direta. Essa tese foi defendida inicialmente na Alemanha por Hans Carl Nipperdey, a partir do início da década de 50. Nipperdey justifica sua afirmação com base na constatação de que os perigos que espreitam os direitos fundamentais no mundo contemporâneo não provem apenas do Estado, mas também dos poderes sociais e de terceiros em geral 34 . A teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais foi desenvolvida originariamente na doutrina alemã por Günter Dürig, em obra publicada em 34 SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: BARROSO, Luis Roberto. A nova Interpretação Constitucional - Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 220 35 1956 35 , trata-se de construção intermediária entre a que simplesmente nega a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais e aquela que sustenta a incidência direta destes direitos na esfera privada. Diante da multiplicidade de empresas transnacionais com relevante participação no processo econômico produtivo, sua vinculação direta à garantia do desenvolvimento é algo inseparável da teoria integral. Hoje, importante segmento da doutrina alemã, vem defendendo a tese de que a doutrina dos deveres de proteção do Estado, em relação aos direitos fundamentais, constitui a forma mais exata para solucionar a questão da projeção destes direitos no âmbito das relações privadas, entre eles, autores com Joseph Isensee, Stefan Oeter, Klaus Stern e Claus-Wilhelm Canaris 36 . Canaris, em obra dedicada ao estudo das relações entre os direitos fundamentais e o direito privado, defende a natureza “imediata” da vinculação do legislador de direito privado aos direitos fundamentais e a eficácia normativa destes como proibição de intervenção e imperativos de tutela 37. Canaris refuta a doutrina da “eficácia imediata em relação a terceiros”, mas afirma uma imediata vinculação do legislador de direito privado aos direitos fundamentais. Para o autor, só deve falar-se de eficácia imediata em relação a terceiros se os direitos fundamentais se dirigem imediatamente contra sujeitos de direito privado, como no caso do art. 9º, nº 3, 2ª frase, da Lei Fundamental alemã 38 . Diferentemente de Canaris, entendemos que, destinatários das normas dos direitos fundamentais são, não apenas o Estado e os seus órgãos, mas também os sujeitos de direito privado, mesmo quando a norma fundamental não esteja dirigida imediatamente a estes últimos, porém, decorra do sistema interconstitucional de proteção e seja razoável, adequada, necessária e proporcional em sentido estrito a sua aplicação interprivada, para melhor proteção ao bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão numa relação jurídica entre particulares. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária demanda um conjunto de tarefas conformadoras, direcionadas a assegurar a dignidade social do cidadão através da igualdade de oportunidades. A justiça social e distributiva fortalecida pelos laços de 35 DÜRIG, Günther. Grundrechteund Zivilrechtsprechung. In: MAUNZ, Theodor. Festchrift für Hans Nawaiasky. München: Beck, 1956. p. 157 et seq. 36 SARMENTO, Op. cit. p. 236 37
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