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Homero (1)

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HOMERO 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen 
 
Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a 
quem chamavam o Búzio. 
O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. 
A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias 
azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e 
o seu andar era baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, 
como o próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi 
roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas. Eram daquelas conchas brancas e 
grossas com círculos acastanhados, semi-redondas e semitriangulares, que têm no 
vértice da parte triangular um buraco. 
O Búzio passava um fio através dos buracos, atando assim as duas conchas uma à 
outra, de maneira a formar com elas umas castanholas. E era com essas castanholas 
que ele marcava o ritmo dos seus longos discursos cadenciados, solitários e 
misteriosos como poemas. 
O Búzio aparecia ao longe. Via-se crescer dos confins dos areais e das estradas. 
Primeiro julgava-se que fosse uma árvore ou um penedo distante. Mas quando se 
aproximava via-se que era o Búzio. Na mão esquerda trazia um grande pau que lhe 
servia de bordão e era seu apoio nas longas caminhadas e sua defesa contra os cães 
raivosos das quintas. A este pau estava atado um saco de pano, dentro do qual ele 
guardava os bocados do pão que lhe davam e os tostões. O saco era de chita 
remendada e tão desbotada que quase se tornara branca. 
O Búzio chegava de dia, rodeado de luz e de vento, e dois passos à sua frente vinha o 
seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pêlo grosso, encaracolado e 
comprido e o focinho preto. E pelas ruas fora vinha o Búzio com o sol na cara e as 
sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos. Parava em frente duma porta e 
entoava a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas. 
Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental branco que lhe estendia um pedaço 
de pão e dizia: 
- Vai-te embora, Búzio. 
E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, 
abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma 
varanda cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio. E na varanda 
debruçava-se alguém rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, 
e atirava-lhe um tostão e dizia: 
- Vai-te embora, Búzio. 
E o Búzio demoradamente - tão demoradamente que cada um dos seus gestos de via - 
desprendia o saco do pau, desatava os cordões, abria o saco, guardava o tostão, e de 
novo fechava o saco e o atava e o prendia. E seguia com o seu cão. 
Havia na terra muitos pobres que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e 
trágicos, e que pediam esmola pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos, surdos 
e loucos, eram tuberculosos cuspindo sangue nos trapos, eram mães escanzeladas de 
filhos quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as pernas incrivelmente 
inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, braços torcidos, mãos cortadas, 
lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um murmúrio incansável de gemidos, 
queixas, rezas e lamentações. Mas o Búzio aparecia sozinho, não se sabia em que dia 
da semana, era alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros, não tinha nenhuma ferida 
e não fazia pena. Ter pena dele seria como ter pena de um plátano ou de um rio, ou do 
vento. Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza. 
O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda 
que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua 
cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o 
chão que pisavam. 
E foi assim que o vi aparecer naquela tarde em que eu brincava sozinha no jardim. A 
nossa casa ficava à beira da praia. A parte da frente, virada para o mar, tinha um 
jardim de areia. Na parte de trás, voltada para leste, havia um pequeno jardim agreste 
e mal tratado, com o chão coberto de pequenas pedras soltas, que rolavam sob os 
passos, um poço, duas árvores e alguns arbustos desgrenhados pelo vento e 
queimados pelo sol. 
O Búzio, que chegou pelo lado de trás, abriu a cancela de madeira, que ficou a 
baloiçar, e atravessou o jardim, passando sem me ver. Parou em frente da porta de 
serviço e ao som das suas castanholas de conchas pôs-se a cantar. Assim esperou 
algum tempo. Depois a porta abriu-se e no seu ângulo escuro apareceu um avental. 
Visto de fora, o interior da casa parecia misterioso, sombrio e brilhante. E a criada 
estendeu um pão e disse: 
- Vai-te embora, Búzio. 
Depois fechou a porta. E o Búzio, sem pressa, demoradamente como que desenhando 
na luz cada um dos seus gestos, puxou os cordões, abriu o saco, tornou a atar o saco, 
prendeu-o no pau e seguiu com o seu cão. Depois deu a volta à casa, para sair pela 
frente, pelo lado do mar. 
Então eu resolvi ir atrás dele. Ele atravessou o jardim de areia coberto de chorão e 
lírios do mar e caminhou pelas dunas. Quando chegou ao lugar onde principia a curva 
da baía, parou. Ali era já um lugar selvagem e deserto, longe de casas e estradas. 
Eu, que o tinha seguido de longe, aproximei-me escondida nas ondulações da duna e 
ajoelhei-me atrás de um pequeno monte entre as ervas altas, transparentes e secas. 
Não queria que o Búzio me visse, porque o queria ver sem mim, sozinho. 
Era um pouco antes do pôr do sol e de vez em quando passava uma pequena brisa. Do 
alto da duna via-se a tarde toda como uma enorme flor transparente, aberta e 
estendida até aos confins do horizonte. A luz recortava uma por uma todas as covas 
da areia. O cheiro nu da maresia, perfume limpo do mar sem putrefacção e sem 
cadáveres, penetrava tudo. E a todo o comprimento da praia, de norte a sul, a perder 
de vista, a maré vazia mostrava os seus rochedos escuros cobertos de búzios e algas 
verdes que recortavam as águas. E atrás deles quebravam incessantemente, brancas e 
enroladas e desenroladas, três fileiras de ondas que, constantemente desfeitas, 
constantemente se reerguiam. 
No alto da duna o Búzio estava com a tarde. O sol pousava nas suas mãos, o sol 
pousava na sua cara e nos seus ombros. Ficou algum tempo calado, depois devagar 
começou a falar. Eu entendi que falava com o mar, pois o olhava de frente e estendia 
para ele as suas mãos abertas, com as palmas em concha viradas para cima. Era um 
longo discurso claro, irracional e nebuloso que parecia, com a luz, recortar e desenhar 
todas as coisas. Não posso repetir as suas palavras: não as decorei e isto passou-se há 
muitos anos. E também não entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras 
mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas arrancava da boca. Mas lembro-me de 
que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam 
os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que 
chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as 
escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras 
reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os 
nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas.

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