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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS CURSO DE DIREITO DAVI PICININI OS EFEITOS DA DECISÃO JUDICIAL PROFERIDA EM SEDE DE MANDADO DE INJUNÇÃO E AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO CAXIAS DO SUL 2013 DAVI PICININI OS EFEITOS DA DECISÃO JUDICIAL PROFERIDA EM SEDE DE MANDADO DE INJUNÇÃO E AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito no Curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul. Orientador Prof. Dr. Wilson Antônio Steinmetz CAXIAS DO SUL 2013 DAVI PICININI OS EFEITOS DA DECISÃO JUDICIAL PROFERIDA EM SEDE DE MANDADO DE INJUNÇÃO E AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito no Curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul. Aprovado em / /2013. Banca Examinadora Prof. Dr. Wilson Steinmetz (Orientador) Universidade de Caxias do Sul Prof. Me. Paulo Natalício Weschenfelder Universidade de Caxias do Sul Prof.ª Dra. Cleide Calgaro Universidade de Caxias do Sul "Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei." Carlos Drummond de Andrade RESUMO O presente trabalho objetiva analisar a constitucionalidade da atuação do Poder Judiciário na colmatagem das omissões legislativas referentes às normas constitucionais de eficácia limitada, sob a perspectiva da Constituição Federal de 1988. A previsão no texto constitucional das figuras do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão autoriza os órgãos judiciais competentes a conhecer das lacunas normativas deixadas pelo Poder Legislativo e, diante delas, adotar as providências necessárias e tendentes à sua supressão. Palavras-chave: Omissão legislativa. Controle de constitucionalidade. Mandado de injunção. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Ativismo judicial. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 7 2 BREVE HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO ....................................... 10 2.1 CONSTITUCIONALISMO DA ANTIGUIDADE ................................................. 11 2.2 CONSTITUCIONALISMO MEDIEVAL ............................................................... 14 2.3 CONSTITUCIONALISMO DA IDADE MODERNA ........................................... 15 2.4 CONSTITUCIONALISMO MODERNO ............................................................... 17 2.4.1 Constitucionalismo liberal ..................................................................................... 17 2.4.2 Constitucionalismo social ...................................................................................... 23 2.5 CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO ................................................ 26 2.6 NEOCONSTITUCIONALISMO ............................................................................ 30 3 GRAUS DE EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS ............................................................................................ 32 3.1 CONSTITUIÇÕES SINTÉTICAS E CONSTITUIÇÕES ANALÍTICAS .............. 34 3.2 NORMAS CONSTITUCIONAIS AUTOEXECUTÁVEIS E NÃO AUTOEXECUTÁVEIS ........................................................................................... 36 3.3 NORMAS CONSTITUCIONAIS DE EFICÁCIA PLENA, CONTIDA E LIMITADA .............................................................................................................. 39 3.4 OUTRAS CLASSIFICAÇÕES DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS QUANTO À SUA EFICÁCIA E AO SEU NÍVEL DE APLICABILIDADE .......................... 42 4 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA OMISSÃO LEGISLATIVA ...................................................................................................... 45 4.1 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA OMISSÃO LEGISLATIVA NO DIREITO COMPARADO ................................................................................ 49 4.1.1 O modelo alemão .................................................................................................... 49 4.1.2 O modelo iugoslavo ................................................................................................ 52 4.1.3 O modelo português ............................................................................................... 53 4.2 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA OMISSÃO LEGISLATIVA NO BRASIL ............................................................................................................. 54 5 INSTRUMENTOS PROCESSUAIS TENDENTES À SUPRESSÃO DAS OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS ................................................................. 56 5.1 MANDADO DE INJUNÇÃO ................................................................................. 56 5.1.1 Origens do instituto ................................................................................................ 57 5.1.2 Pressupostos ............................................................................................................ 60 5.1.3 Legitimidade ........................................................................................................... 63 5.1.4 Competência ........................................................................................................... 65 5.1.5 Efeitos da decisão ................................................................................................... 67 5.1.5.1 Posição não concretista ............................................................................................ 68 5.1.5.2 Posição concretista ................................................................................................... 72 5.1.5.2.1 Posição concretista individual ................................................................................. 73 5.1.5.2.2 Posição concretista geral ........................................................................................ 76 5.2 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO ................ 79 5.2.1 Pressupostos ............................................................................................................ 80 5.2.2 Legitimidade e competência .................................................................................. 82 5.2.3 Efeitos da decisão ................................................................................................... 85 5.3 A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO CONTROLE DAS OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS ............................................................ 92 6 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 103 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 1057 1 INTRODUÇÃO Não é recente a preocupação com a efetividade das normas constitucionais. Com efeito, tal inquietação é inerente à própria história do constitucionalismo, desde seu embrião na antiguidade até o neoconstitucionalismo da pós-modernidade. Nesse curso progressivo, a inconstância é uma constante: nenhum instituto jurídico se manteve intocável e idêntico ao seu original, desde os mais primários instrumentos até às modernas formas de controle de constitucionalidade, passando pela teoria da separação dos poderes e pelos remédios constitucionais. Isso porque, conforme se desenvolvia o processo de constitucionalização, foram se modificando o conteúdo e os objetos de proteção das constituições – em seu sentido lato – e, por conseguinte, sendo aprimorados os mecanismos de sua devida observância, em atendimento a essas novas exigências. A exata compreensão da problemática atual brasileira referente à ineficácia das normas fundamentais e aos instrumentos jurídicos tendentes à supressão das omissões (in)constitucionais demanda, portanto, a análise histórica do movimento constitucional, inclusive no que toca às diversas formas de garantir o cumprimento dos ditames supremos. Para tanto, também imprescindível é o estudo do contexto histórico que determinou o andamento de cada passo dessa evolução, de modo que, então, bem destacada estará a mutação camaleônica dos mecanismos de proteção constitucional e sua conformação às diferentes exigências impostas no transcurso da história. Isso porque as diferentes épocas e os diferentes lugares conferiram diferentes importâncias às suas constituições. De uma constituição não escrita a uma constituição positiva suprema e com força modificativa da realidade, longo percurso foi trilhado. Foram os problemas e as respectivas soluções, as demandas e as respectivas respostas que, no decorrer da história, delinearam a teoria da constituição. E é essa retrospectiva que fornece os fundamentos necessários ao avanço no aprofundamento da temática, seja ao estabelecer conceitos, ao conceder noções sobre as distintas constituições e seus textos ou ao revelar o tratamento dispensado às constituições pelos detentores do poder, permitindo a passagem ao estudo técnico. Superada a questão histórica, surge a necessidade de análise da questão atinente à eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. A identificação das diferentes eficácias e dos distintos graus de aplicabilidade, bem como a discriminação entre os conceitos próximos de eficácia e aplicabilidade constituem elemento fundamental para compreensão da força da constituição no sistema jurídico e na realidade prática. Também é primordial o estudo da classificação das constituições de acordo com sua extensão: conforme tratem de uma gama 8 restrita ou ampla de matérias, os textos magnos exigem menor ou maior intervenção posterior para realização de sua eficácia. Assim, depara-se de imediato com a simbiose entre normas constitucionais e normas infraconstitucionais, ligadas que são por uma relação de mútua dependência. A legislação ordinária depende da constituição por nela encontrar seu fundamento de validade e dever obediência aos contornos nela delineados, nesses termos, dela necessita para encontrar seu espaço de conformação. Por outro lado, também a constituição depende das leis, lato sensu, na medida em que muitas regras constitucionais reclamam aprofundamento e regulamentação do conteúdo nelas inserto, ônus incumbido à legislação comum. A partir da noção de que a constituição, por si só, não se demonstra suficiente, exigindo especificidades que somente a lei ordinária poderia conferir, a doutrina passou a propor uma série de classificações das normas constitucionais conforme tal exigência. E é precisamente dessas normas constitucionais que demandam posterior atuação legislativa ordinária que surge a questão da chamada omissão inconstitucional. Esse fenômeno jurídico, decorrente da mora do legislador em integrar normas constitucionais a fim de dar-lhes concretude, resultou na constatação de que não apenas as ações legislativas poderiam ferir a constituição, mas também as omissões legiferantes constituiriam, em determinadas situações e atendidos certos requisitos, afronta ao seu texto. Dessarte, o surgimento do controle de constitucionalidade da omissão legislativa incorreu na necessidade de criação de instrumentos próprios ao saneamento da situação de inconstitucionalidade. Novas e criativas soluções têm sido implementadas nos sistemas jurídicos de diferentes países, de modo que o direito comparado fornece um rol de exemplos de meios tendentes a superar a existência de lacunas legislativas. Especificamente no que concerne ao direito brasileiro, dois instrumentos foram postos, pela Constituição Federal de 1988, à disposição da sociedade para garantir a efetivação das normas constitucionais obstadas pela inércia legislativa: o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Cada uma dessas ações constitucionais reclama um estudo próprio, das suas origens, das suas principais características, dos seus pressupostos, dos seus legitimados e do órgão competente para seu processo e julgamento. Com tais informações ter-se-á o alicerce indispensável para a análise dos efeitos da sua decisão. O exame de tais efeitos é realizado mediante diferentes abordagens, desde a questão da necessidade até a questão do conflito de princípios constitucionais, perpassando-se, ainda, pelas questões históricas, interpretativas, políticas, entre outras. Com a finalidade de se expandir a compreensão do tema, também os distintos posicionamentos doutrinários são abordados e submetidos a inspeção. Então, a 9 análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da evolução de seu entendimento sobre o tema torna-se tópico inadiável. Isso porque a decisão proferida em mandado de injunção e em ação direta de inconstitucionalidade por omissão pelos Tribunais, em especial pelo Supremo Tribunal Federal, Corte máxima do Poder Judiciário nacional, conforme os efeitos que dela emanarem, é que ditará a real eficácia de tais instrumentos em concretizar os ditames constitucionais. Contudo, a adoção de uma lógica solução concretista encontra aparente óbice no conflito de princípios constitucionais, colisão axiomática que exige ponderação para que se possa atingir uma conclusão harmônica acerca dos efeitos da decisão proferida em sede de julgamento de controle das omissões legislativas inconstitucionais. A opção por um ou outro entendimento importará em resultados que influenciarão diversamente a vida constitucional. Diante dessas reflexões, ter-se-á à disposição elementos aptos a conferir base para a análise e compreensão de ambas as ações constitucionais e dos efeitos por elas produzidos. 10 2 BREVE HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO O papel da constituição no sistema jurídico nem sempre foi o mesmo, sendo fruto de um desenrolar histórico que encontra suas raízes na Antiguidade e chega aos tempos hodiernos com todo o vigor. O estudo do surgimento e desenvolvimento do constitucionalismo lança as bases fundamentais para compreensão da relação entre os Poderes constituídos, as formas de controle de constitucionalidade e a função do Poder Judiciário nesse controle, questões imprescindíveis para a análise dos efeitos a serem atribuídos aos instrumentos tendentes a colmatar lacunas legislativas inconstitucionais. O constitucionalismo - compreendido como "o fenômeno relacionado ao fato de todo Estado possuir uma constituição em qualquer época da humanidade, independentemente do regime político adotado" (BULOS, 2009, p. 5), correspondendo à "teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos" e representando uma "técnica específica delimitação do poder com fins garantísticos" (CANOTILHO, 1998, p. 45) - não é homogêneo e imutável. Ao contrário, muitas e diversas foram e são as formas de constitucionalismo, conforme se alteram as condições de tempo e espaço. A doutrina de Bulos (2009, p. 5) divide a evolução histórica do constitucionalismo em etapas bem definidas conforme sua inserção nas quatro grandes "eras" da história europeia: Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Sem refutar essa classificação, Saldanha (2000, p. 4-7) atenta para o fato de que: [...] um processo histórico não é uma mera seqüência de pontos como se se tratasse de uma figura geométrica; não é uma seca e fria sucessão de fatos, ou de dados. O processo não tem sequer limites certos: há linhas que podem ser integradas na narrativa ou deixadas à margem, e as fronteiras são dependentes de ênfases que o historiador emprega por conta de predileções, tendências metódicas ou ângulos ideológicos. Há entrelinhas e planos intermediários. E há o problema dos inícios: o processo histórico corresponde a um certo marco cronológico, mas sempre se encontram raízes e origens que encadeiam indagações continuadas, mais as alusões a processos laderais e a elementos (ou "fatores") conexos. [...] O problema da fixação dos marcos do estudo, acima designado, se planta sobre um tema mais geral, o das periodizações históricas. É um tema com caráter metodológico, porque as formas de seccionar o tempo histórico refletem convicções a respeito de método. É certo que o velho esquema antigüidade-idade-média-tempos modernos, apesar de destroçado pela crítica culturalista-relativista do século vinte, ainda segue tendo largo uso, tanto na história de fatos e coisas como na história de idéias; mas é certo, igualmente, que seu uso vem sendo sempre temperado com ressalvas tiradas daquela crítica. Assim, se, por exemplo, dizemos que os tempos modernos, mais do que os medievais, comportam ou revelam racionalismo e individualismo, isto alude a padrões gerais de pensamento e de ação, ou a caracteres dominantes; não exclui que "antes" da modernidade tenham existido aquelas coisas, nem por outro lado significa uma separação absoluta entre tempos e tempos. 11 Com efeito, para Steinmetz, a análise do constitucionalismo sob a pouco explorada perspectiva histórica "Não se trata apenas de explicar a origem e a evolução dos direitos fundamentais, de forma linear, lógica, encadeada", mas "de narrar e compreender a conquista dos direitos fundamentais como um longo processo de lutas, tensões, contradições, de idas e vindas" (2007, p. 58)1. Tais razões levam Canotilho (1998, p. 45-6) a afirmar que "em termos rigorosos, não há um constitucionalismo mas vários constitucionalismos", sendo "preferível dizer que existem diversos movimentos constitucionais com corações nacionais mas também com alguns momentos de aproximação entre si, fornecendo uma complexa tessitura histórico- cultural". Diante disso, conclui pela existência de apenas dois movimentos constitucionais amplos e distintos: o antigo, que corresponde ao conjunto de princípios escritos ou consuetudinários alicerçadores da existência de direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitadores do seu poder; e o moderno, surgido em meados do século XVIII, que, confrontando o constitucionalismo antigo, questiona os esquemas tradicionais de domínio político. Em que pesem as críticas, a análise histórica do constitucionalismo é, ao menos para fins didáticos, melhor compreendida e mais bem visualizada a partir da separação cronológica das etapas correspondentes aos períodos históricos da Europa, classificação a partir da qual poder-se-á analisar os principais aspectos de cada fase da evolução constitucional. 2.1 CONSTITUCIONALISMO DA ANTIGUIDADE Embora a hodierna concepção atribuída à Constituição como documento formal positivo pareça apontar para o constitucionalismo como uma criação da modernidade, a codificação das normas fundamentais da sociedade estatal em um documento escrito não se identifica com a origem do constitucionalismo, vez que organizações políticas anteriores já se haviam estabelecido sob o regime de um governo constitucional. Em tais sociedades, os limites de atuação dos detentores do poder estavam tão fortemente enraizados na cultura e, portanto, introjetados nos indivíduos, que era dispensável que fossem expressamente previstos, sendo, ainda assim, respeitados por governantes e governados. Nesses termos, 1 Embora o autor trate da perspectiva histórica dos direitos fundamentais, os frequentes pontos comuns (isso se não se tratar de verdadeira mescla ou confusão) entre a história dos direitos fundamentais e a do constitucionalismo, permite que se estenda a essa última as conclusões concernentes àquela primeira. 12 Loewenstein identifica a origem do constitucionalismo nos hebreus, que formavam uma sociedade teocrática, ou seja, na qual os súditos estavam submetidos a uma autoridade divina. Nessa forma de governo, “o governante, longe de ostentar um poder absoluto e arbitrário, estava limitado pela lei do Senhor, que submetia igualmente a governantes e governados” (LOEWENSTEIN, 1976, p. 154, tradução nossa). E é exatamente nessa Lei, ideal e não escrita, mas que fundamentava o poder – confiado por Deus a seus representantes terrenos –, que residia a constituição material desse povo. Os profetas, então, surgiram como os primeiros guardiões dessa Lei, pregando contra os detentores do poder terreno que se distanciavam do caminho da constituição moral daquela sociedade. Tal afirmação encontra exemplo histórico, que lhe dá suporte, na figura bíblica de Moisés, que, diante da negativa do faraó em liberar o povo hebreu para adorar seu deus, passou a confrontar-se com o rei egípcio. O autor também aponta a existência de um regime político constitucional na Grécia Antiga, cujos problemas, em matéria de poder, assemelham-se em muito com os da modernidade. Dentro da própria experiência grega, o pensamento constitucional se desenvolveu, também, por meio dos mais notórios filósofos, Sócrates, Platão e Aristóteles, encontrando-se patente, nesse último, a ideia de constituição, enquanto estrutura da Cidade- Estado (SALDANHA, 2000, p. 15). Nesse governo constitucional das Cidades-Estado gregas do século V a.C vigorava a democracia direta, com absoluta identidade entre governantes e governados. Tanto é assim que: [...] Todas as instituições políticas dos gregos refletem sua profunda aversão a todo tipo de poder concentrado e arbitrário, e sua devoção quase fanática pelos princípios do Estado de direito de uma ordem (eunomia) regulada democrática e constitucionalmente, assim como pela igualdade e pela justiça igualitária (isonomia). As diferentes funções estatais foram amplamente distribuídas entre diversos detentores de cargos, órgãos ou magistrados2; o poder dos últimos foi restringido por engenhosas instituições de controle. Entre elas merecem ser citadas como as mais salientes: os detentores dos cargos eram nomeados por sorteio; eram prescritos períodos curtos e rotatividades nos cargos; os detentores dos cargos não podiam ser reelegidos; todos os cidadãos ativos tinham acesso aos cargos públicos, dado que não se exigia nenhuma qualificação especial, à exceção de certos postos encarregados de tarefas técnicas. Junto a estas instituições, produto da mais consistente democracia, constituíram-se as figuras jurídicas da proscrição e do desterro, dirigidas contra aquelas personalidades da vida pública cuja popularidade poderia pôr em perigo a estrutura democrática do Estado. O poder político era assim distribuído de forma racional e, por isso mesmo, eficazmente controlado (LOEWENSTEIN, 1976, p. 155-6, traduçãonossa). 2 O termo magistrado não detinha, na Antiguidade, o mesmo significado hodierno, que limita-se no Brasil, em seu sentido restrito, a designar exclusivamente os membros do Poder Judiciário, mas abarcava todo aquele "indivíduo investido de múnus público" (FERREIRA, 2004, p. 1249) ou seja, todo o funcionário do poder público investido de autoridade. 13 Contudo, em que pese tal sistema político grego se revelar especialmente avançado – quase como um reflexo antecipado da civilização moderna no espelho da história –, não estava ele isento de problemas. Com efeito, estima-se que de uma população de 300 mil habitantes cerca de apenas 40 mil detinham o status de cidadãos, excluídos que estavam os escravos, os estrangeiros, as mulheres e os menores de 20 anos (BARROSO, 2010, p. 7). Ademais, esse fundamentalismo democrático foi levado ao extremo, ao ponto de a assembleia dos cidadãos sentir-se não submetida a qualquer limitação constitucional, exceto àquelas limitações inerentes à tradição moral da comunidade. Dessa forma, "as vantagens da democracia direta grega se converteram em vícios, vindo a fracassar ao final por mostrar-se o povo incapaz de frear seu próprio poder soberano" (LOEWENSTEIN, 1976, p. 156, tradução nossa). No constitucionalismo grego também se encontram raízes históricas do controle de constitucionalidade. "Antes, as leis dadas pelos deuses eram protegidas pelo poder sagrado da imprecação. Quando as leis foram escritas tiveram por guarda o mais augusto dos tribunais, o Areópago, aquele que tinha atribuições essencialmente religiosas" (POLETTI, 1995, p. 10). Com a retirada dos poderes do Areópago, em 462 a.C, e sua transferência à assembleia do povo, à Boulé e aos Tribunais, "a liberdade derramada sobre o povo transbordou dos seus limites", sendo necessária a criação de um "instrumento capaz de impedir que a soberania popular se transformasse num poder arbitrário ou num tirania. [...] Foi preciso criar freios à própria democracia, dentro dela mesma. Já que inexistiam controles a ela exteriores" (POLETTI, 1995, p. 10). Foi então instituído o graphé paranomón, que possibilitava a qualquer cidadão denunciar, com efeito retroativo, lei ou ato como inconstitucional ou contrário ao interesse público. Tratava-se, na verdade, de um instituto judiciário de natureza criminal, voltado à responsabilização do autor de moção que fosse julgada contrária às leis ou à constituição, sendo que três condenações acarretavam a perda do direito de fazer proposições à Assembleia. E embora para o autor da moção a prescrição ocorresse no prazo de um ano, contra a moção em si não corria prescrição, podendo ela ser anulada a qualquer tempo por uma sentença do tribunal (POLETTI, 1995, p. 11). O constitucionalismo da Antiguidade também encontra representante em Roma, tendo durado desde o século V a.C até o final do século II a.C, a começar pelo uso do termo constitutiones, que embora não diga respeito à estruturação do Estado, correspondia a normas provindas do imperador (SALDANHA, 2000, p. 17). Já naquela época foram criados dispositivos de freios e contrapesos para dividir e limitar o poder político, com controles internos – tais como a estrutura colegiada das magistraturas superiores, a duração anual dos 14 cargos e a proibição de reeleição imediata – e mútuos – como a intervenção dos tribunos frente a conduta ilegal de outro tribuno, a participação do Senado na nomeação dos funcionários e a institucionalização da ditadura constitucional, prevista apenas para determinados fins e períodos limitados – dos órgão de poder. Não obstante sua longa duração, o constitucionalismo republicano romano sucumbiu durante o domínio de César, em decorrência da concentração dos principais cargos republicanos em sua pessoa e de sua hábil manipulação e corrupção do Senado, caracterizando verdadeira monarquia (LOEWENSTEIN, 1976, p. 156-7). Não obstante o pioneirismo dessas sociedades, "é curioso observar que o constitucionalismo da Antiguidade funcionou sem a separação de funções3 e frequentemente em conflito com tal princípio" (LOEWENSTEIN, 1976, p. 56, tradução nossa), de forma que na polis grega, bem como na República romana, funções materialmente diferentes - executivas, legislativas e judiciais - estavam normalmente concentradas na pessoa de uma mesma classe de magistrados. Assim é que a separação das funções (ou dos poderes) não constituía, para os antigos, princípio essencial em um Estado de Direito. Tampouco o reconhecimento de direitos individuais, invioláveis pelo poder estatal, faziam parte da ideologia constitucional da época, de modo que a origem dos direitos individuais não coincide com a do constitucionalismo. De fato, a noção de que o cidadão - já excluída a grande massa dos que não eram considerados cidadãos - detinha direitos próprios externos ao Estado era alheia às referidas sociedades. Tanto assim é que Aristóteles, pensador político grego, numa visão naturalista ou orgânica do Estado, aduz ser o homem um animal político e social por natureza, sendo de sua essência viver na polis, onde realiza plenamente sua felicidade e desenvolve sua personalidade (1998, p. 5). 2.2 CONSTITUCIONALISMO MEDIEVAL Como o constitucionalismo Antigo desconhecia campos autônomos da personalidade humana reconhecidos pelo Estado e livres de sua intervenção, a proteção a importantes direitos individuais veio a ser estabelecida apenas na Idade Média, com a Magna Carta de 1215, que representa o grande marco do constitucionalismo medieval, ao prever os princípios da legalidade e da legalidade tributária, da vedação ao confisco, da 3 Loewenstein refere que a teoria que atualmente se costuma designar de separação dos poderes estatais é na verdade a distribuição de determinadas funções estatais a diferentes órgãos do Estado, razão pela qual prefere utilizar a expressão separação de funções ao invés de separação de poderes (1976, p. 55-6). 15 proporcionalidade das penas, da liberdade de locomoção e do devido processo legal. Como garantia a essas liberdades foi instituído o direito de queixa ao monarca ou seus representantes e, no caso de não prestação de satisfações por eles dentro de quarenta dias, formalizou-se a possibilidade de o povo embargar-lhes e atacar-lhes, inclusive apoderando-se de seus castelos (COMPARATO, 2010, p. 95-9), a identificar uma origem rústica do controle da omissão do poder estatal. Redigida durante o reinado de João I, também ironicamente conhecido por João Sem Terra, trata-se de uma convenção firmada entre esse monarca inglês e seus súditos revoltados. Seu fundamento, portanto, é o acordo de vontades, ainda que o rei a tenha disfarçado com a roupagem de outorga de direitos (FERREIRA FILHO, 2005, p. 4). Embora tenha sido legalmente válida por apenas três meses - vindo a ser ressuscitada nas reedições de 1216, 1217 e 1225 - e, mesmo dentro desse trimestre, seus termos não tenham sido devidamente executados (HOLT, 2003, p. 1), constitui ela um dos mais fortes antecedentes da constituição escrita, ideia que se consolidaria apenas mais tarde, com as constituições francesa e americana. Também frequentes por toda a Europa durante a Idade Média foram os forais ou cartas de franquia, que guardavam em comum com os pactos a forma escrita e a matéria acerca da proteção a direitos individuais. Esses direitos, todavia, tinham como destinatários tão somente homens determinados e não o ser humano em sentido universal (FERREIRA FILHO, 2005, p. 4-5). 2.3 CONSTITUCIONALISMO DA IDADE MODERNA Outros documentos ingleses fazem parte da história do constitucionalismo, não perdendo, contudo, seu caráter de pacto, embora celebrados séculosdepois, durante a Idade Moderna. Entre eles têm especial relevância a Petition of Rights, de 1682, o Habeas Corpus Act, de 1679 e o Bill of Rights, de 1689, todos consagrando direitos individuais e estabelecendo limites ao poder monárquico. Enquanto o primeiro restringiu-se a recordar o rei de alguns dos princípios já estabelecidos na Magna Carta, o segundo tratou de regulamentar o instituto do mandado judicial (writ) em caso de prisão arbitrária, que já existia na Inglaterra havia séculos (embora sem regras processuais adequadas) e que veio posteriormente a ser conhecido por habeas corpus. O terceiro, a seu turno, além de retomar algumas das resoluções da Petition of Rights, "representou a institucionalização da permanente separação de poderes no Estado, à qual se referiu elogiosamente Montesquieu meio século depois", institucionalização, essa, que seu deu mediante a fortificação dos poderes do Parlamento e a 16 declaração de que a eleição de seus membros deveria ocorrer de forma livre (COMPARATO, 2010, 100-10). Com isso, o Bill of Rights foi pioneiro em pôr termo ao regime da monarquia absolutista que vigorava na Europa desde o movimento renascentista. A partir de então, da união dessas duas raízes, que são o constitucionalismo e a defesa das liberdades individuais, desenvolveu-se a plântula do que mais tarde viria a ser a frondosa árvore do Estado democrático constitucional. E foi nesse contexto do constitucionalismo da Idade Moderna que a teoria da separação dos poderes foi criada e adotada para fazer frente ao absolutismo monárquico em prol dos ideais do liberalismo político, nos séculos XVII e XVIII (LOEWENSTEIN, 1976, p. 56). Com efeito, em 1748, é publicado Do Espírito das Leis, de Montesquieu, obra a partir da qual se solidifica essa separação das funções estatais. Escreve o iluminista francês: Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado. [...] Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares (1996, p. 167-8). Já prevendo a nocividade que uma separação estreme dos poderes estatais poderia gerar, o autor tratou de pensar num modo de evitar excessos no exercício das funções próprias de cada poder: a atribuição de funções atípicas a eles, o que mais tarde passou a ser conhecido por sistema de freios e contrapesos, no qual os poderes detêm meios para conterem-se mutuamente. Embora estabelecendo formas de controle aos Poderes Legislativo e Executivo, o filósofo deixou de fazê-lo em relação ao Judicial, considerado por ele desprovido de relevância política e que somente veio a deter a possibilidade de interferência em outros poderes a partir do modelo americano de controle judicial de constitucionalidade, materializado no famigerado caso Marbury v. Madison. 17 Não obstante a formulação desse controle recíproco e da ideia da tripartição dos poderes, com a inclusão de um poder julgador, Montesquieu vê esse poder como subsidiário e de menor importância. Para ele, "os juízes da nação são apenas, como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor" (MONTESQUIEU, 1996, p. 175), expressamente referindo que os tribunais são inferiores ao poder legislativo, sendo o poder de julgar de certo modo nulo. Essa compreensível desconfiança no Judiciário, recém pensado como poder independente, é justificada no fato de que, na França de então, o cargo judicial era tratado como propriedade, sendo herdado, comprado e vendido livremente, e portanto, exercido pela aristocracia, que detinha os privilégios e as condições econômicas para esse comércio. Tanto é assim que o próprio Montesquieu herdou o cargo de juiz de seu pai e, posteriormente, de seu tio, vindo a vendê-lo doze anos depois (TRUC, 1973, p. 9). Ademais, o juiz não estava adstrito às normas, podendo decidir com base nos costumes, na doutrina ou mesmo na equidade. É nesse contexto histórico que a teoria de Montesquieu visava evitar tais abusos, submetendo o juiz ao legislador. Tanto é assim que "a aristocracia judicial foi um dos alvos da revolução [francesa] não só por sua tendência a identificar-se com a aristocracia da terra, mas também por seu fracasso em distinguir claramente entre aplicar a lei e fazer a lei" (MERRYMAN, 1989, p. 38, tradução nossa). 2.4 CONSTITUCIONALISMO MODERNO 2.4.1 Constitucionalismo liberal Efetivamente, o constitucionalismo moderno (assim chamado, não obstante historicamente situado na Idade Contemporânea), cujos marcos históricos e formais são a Constituição Americana de 1787 e a Constituição Francesa de 1791 - aquela resultado da luta pela independência e essa da Revolução de 1789 -, confere ao poder legislativo uma condição sobressalente, como se verá. É durante essa fase do constitucionalismo que se sedimenta a noção de constituição escrita4 e de limitação do poder estatal através da previsão positiva de 4 Embora a consolidação da forma escrita das constituições tenha partido desses dois documentos, outros textos positivos de natureza constitucional foram editados antes deles, como é o caso da Regeringsfom sueca, de 1631; das Fundamental Orders of Connecticut, de 1639; do Agreement of the People inglês, de 1647; e do Instrument of Government inglês de 1654. Isso se não se tiver que conceder o mérito da primeira constituição escrita aos japoneses. A diferença desses documentos daqueles ingleses formulados durante as Idades Média e Moderna é 18 direitos e garantias fundamentais. O ideário dessa fase do constitucionalismo consiste, basicamente, na integração das doutrinas que sustentam o povo enquanto detentor do poder, a separação dos poderes, a existência de direitos inatos ao homem e o liberalismo (DANTAS, 2009, p. 47-8). E é esse ideário em que firmado o constitucionalismo moderno que enforma o Estado então nascente, contrário ao Estado Absolutista: o Estado de Direito legal e liberal. Assim é que o constitucionalismo moderno se revela como o fundador do Estado de Direito, ou seja, o Estado que pauta suas ações e omissões com base no direito estabelecido. A adoção do princípio da legalidade - como forma de contenção do arbitrário exercício de poder do Ancien Régime -, ao qual estavam submetidos os Poderes Executivo e Judiciário, acabou por subjugá-los ao Poder Legislativo, cuja prevalência seria marca característica do constitucionalismo moderno até o início do século XX. A essa exaltação da figura do legislador correspondiaa supremacia do parlamento em detrimento da supremacia da constituição. Tanto é assim que nesse período histórico o "Legislativo não estava jungido à constituição e, consequentemente, o Estado de Direito estava longe de merecer a qualificação constitucional, reduzindo-se a um Estado legal ou legislativo", caracterizado, assim, "pela primazia de um direito que se reduz à lei" (DANTAS, 2009, p. 47) e por um fetichismo pela regra jurídica. Essa teoria, aglutinando a supremacia do parlamento e a primazia da lei, encontrava substrato político no capitalismo nascente, cuja burguesia detinha o maior número de representantes (eleitos através de sufrágio censitário) no parlamento e, por essa razão, não necessitava buscar outros direitos senão os expressos nos atos próprios do legislativo. Ademais e ainda atendendo aos interesses mercantis, o Estado de Direito do constitucionalismo moderno, além de legal, era liberal, caracterizado por um constitucionalismo liberal voltado à defesa de direitos fundamentais em face do poder político, direitos esses, naturais, anteriores ao Estado, superiores às leis positivas, universais e situados no âmbito de autodeterminação individual que o Leviatã não poderia penetrar. Tanto, à época, foi adotada essa visão jusnaturalista, que a Declaração Francesa de 1789 expressamente refere reconhecer e declarar os direitos que enuncia e não constituí-los. Enquanto para John Locke, tido por pai do liberalismo político, o cerne dos direitos individuais jazia na propriedade privada5, para Jean-Jacques Rousseau a liberdade ganhava que esses não são uma outorga real ou um acordo de vontades, mas criação de próprio impulso (LOEWENSTEIN, 1976, p. 158). 5 Locke refere que "embora as coisas da natureza sejam dadas em comum, o homem, sendo senhor de si mesmo e proprietário de sua própria pessoa e das ações de seu trabalho, tem ainda em si a justificação principal da propriedade; e aquilo que compôs a maior parte do que ele aplicou para o sustento ou o conforto de sua 19 especial relevo6. Dessa forma, a liberdade, então elevada a valor supremo, era um dos principais direitos fundamentais inalienáveis do homem, abarcando a trilogia clássica das liberdades individuais: a liberdade religiosa, que desvinculava o indivíduo da tutela clerical e da coação sobre sua consciência; a liberdade econômica, que legitimou a ideologia do laissez fair mediante a santificação do direito de propriedade e de liberdade de contrato; e a liberdade política, arma útil contra os privilégios latentes do rei e contra os grupos socialistas e oclocráticos que disputavam o poder político (LOEWENSTEIN, 1976, p. 390-5). Além desses, outros direitos são citados nas declarações americana, de 1776, e francesa, como o direito à vida, à igualdade, à segurança e à resistência à opressão. Num primeiro momento, entendeu-se que as altas abstração e indeterminação desses direitos exigiriam, para seu exercício, uma regulamentação do legislador, que lhes conferiria normatividade e sem a qual não produziriam efeitos jurídicos. A referência à interpositio legislatoris é uma constante na Declaração Francesa, que, adotando a concepção rousseauniana de lei enquanto expressão da vontade geral7 e não obstante referir que os homens nascem livres, subordina o exercício dos direitos de liberdade aos atos legislativos, como quando impõe à liberdade os limites determinados em Lei (art. 4.º), quando determina que a manifestação das opinião não perturbe a ordem pública estabelecida pela Lei (art. 10.º), cujos abusos dessa liberdade de expressão são aqueles previstos na Lei (art. 11.º). Também a respectiva Constituição Francesa estabelece a liberdade aos cidadãos de se reunirem pacificamente e sem armas, cumprindo as exigências das leis de polícia (art. 3.º). A liberdade era então vista não como o poder fazer tudo o que a lei não proíba, mas o de poder fazer tudo, nos limites da lei, de forma que, não estabelecidos tais limites, não há parâmetros para o exercício da liberdade. Esse núcleo de direitos, correspondendo aos chamados direitos de primeira geração (BOBBIO, 2004, p. 206-9) ou, modernamente, primeira dimensão, tinha também por característica a qualidade de direitos negativos ou de abstenção, cujo conteúdo material era "definido por um dever de não atuação e não intervenção do Estado, tendo em vista que o constitucionalismo moderno, como já acentuado, foi erigido contra o Estado, tido por inimigo dos direitos naturais e sagrados do homem, fazendo-se mister reduzir a sua atuação" existência, à medida que as invenções e as artes aperfeiçoaram as condições de vida, era absolutamente sua propriedade, não pertencendo em comum aos outros" (1999, p. 108). 6 Para Rousseau "O homem nasceu livre e, no entanto, em toda parte, está sob ferros" (2012, p. 23), "sua liberdade lhes pertence, ninguém tem o direito de dispor dela, a não ser eles mesmos" (2012, p. 32). 7 Para Rousseau, "enquanto vários homens reunidos se consideram como um só corpo, eles têm uma só vontade, que se refere à conservação comum e ao bem-estar geral" (2012, p. 179): a vontade geral. Dessarte, a vontade geral não é geral por ser de todos mas por ser a mesma, sendo que "o que generaliza a vontade é menos o número de vozes do que o interesse comum que as une" (2012, p. 65). 20 (DANTAS, 2009, p. 107). Esse dever de abstenção, como decorrência da atribuição de juridicidade aos direitos fundamentais, veio, mais tarde, a suplantar a doutrina da regulamentação das liberdades, concebendo a ideia de autoaplicabilidade desses direitos e pregando que os "direitos fundamentais de índole institucional" são "direitos dotados de âmbito de proteção estritamente normativo (normgeprägter Normbereich), que, por isso, carecem de concretização legislativa específica" (MENDES, 1999a, p. 214). O absenteísmo estatal estendia-se, inclusive, à liberdade econômica, impondo ao Estado a intervenção mínima no mercado e na ordem econômica, encontrando fundamento teórico em Adam Smith, considerado o pai do liberalismo econômico, para quem o indivíduo "procura apenas seu próprio ganho, e neste, como em muitos outros casos, é só levado por uma mão invisível a promover um fim que não era parte de sua intenção", sendo indesejável a intromissão dos governos na produção e no comércio, ao argumento de que "O estadista que procurasse dirigir os particulares sobre a maneira que deveriam empregar seus capitais [...] exerceria uma autoridade que não poderia ser seguramente assumida" e que seria extremamente perigosa nas mãos de um homem que tivesse a insensatez e a presunção de exercê-la (2008, p. 181). E foi precipuamente esse ideal que caracterizou historicamente as revoluções da época como revoluções burguesas. Tal a importância que os direitos fundamentais detinham que a Declaração Francesa dispôs, em seu artigo 16, que "qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição". Assim é que - embora a Constituição Americana, em seus sete artigos originais, estabelecesse tão somente a organização daquele Estado, não mencionando direitos dos cidadãos e não sendo, portanto, na concepção francesa, considerada constituição -, desde então até os dias atuais a enunciação de direitos fundamentais passaram a pertencer à própria essência da constituição, sendo incorporados em todas as constituições francesas e brasileiras. Conforme antes retratado, à essa época a Constituiçãonão era tida por superior. Tanto é assim que, em 1863, Ferdinand Lassale defende que a essência de uma Constituição reside na "soma dos fatores reais do poder que regem uma nação" (2008, p. 17). Partindo dessa concepção, identifica ele duas constituições: "a constituição real e efetiva, integralizada pelos fatores reais de poder que regem a sociedade, e essa outra constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar folha de papel" (2008, p. 23). Nesses termos, Constituição positiva deve obediência hierárquica à Constituição dita real, devendo corresponder à descrição exata da realidade. Nas palavras de Calmon Dantas, nesse período a 21 Constituição era destituída de caráter jurídico e reduzida a mero documento político (2009, p. 132). Nessa senda, escreve o autor: Por conseguinte, evidencia-se que o legislador detinha a ampla e livre disposição dos direitos fundamentais, podendo torná-los absolutamente inócuos apenas pela inércia, ou defraudá-los e descaracterizá-los, o que se soma à concepção de lei como expressão da vontade geral, naturalmente boa e insuscetível de voltar-se contra a própria nação, além da restrita interpretação conferida à teoria da separação dos poderes, compondo o quadro da supremacia do Parlamento ou do legicentrismo, frustrando a aptidão libertária e emancipatória dos direitos individuais. [...] De qualquer sorte, a dependência da lei se enquadra num âmbito mais amplo de supremacia do legislador em que a lei é entendida como garantia e não como expressão do poder do Estado, ocasionando a redução do estado de Direito ao Estado legal à medida que a lei se torna expressão de todo o direito (DANTAS, 2009, p. 106-7). E essa dependência da lei, além de encontrar causa na baixa densidade normativa dos direitos individuais, era resguardada pela vedação de acesso direto às constituições pelos juízes, por serem eles apenas a "boca da lei" e não da constituição. Não obstante, em 1787, o federalista ianque Alexander Hamilton formaliza a ideia de supremacia da constituição, por meio da instituição do controle de constitucionalidade, duas das principais contribuições - ao lado da positivação e rigidez constitucionais, do federalismo e do presidencialismo - da Constituição norte-americana à história do constitucionalismo. Escreve então o notório advogado que "a Constituição deve prevalecer sobre a lei ordinária", de forma que "consequentemente, não será válido qualquer ato legislativo contrário à Constituição", sendo do Poder Judiciário - por ser ele o menos perigoso dos Poderes - o "dever de declarar nulos todos os atos contrários ao manifesto espírito da Constituição" (2005, p. 470-2). A tese de Hamilton - que apenas pôde ser aceita por seus pares em decorrência da tradição de direito consuetudinário daquele país, que não via na lei a fonte exclusiva do direito - veio, pouco mais tarde, em 1803, a embasar uma das decisões mais emblemáticas acerca do controle de constitucionalidade: aquela proferida pelo juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos John Marshall no caso Marbury v. Madison. Na ocasião, obtemperou o Chief Justice: Não se presume que um cláusula inserta na Constituição seja destinada a não produzir nem um effeito, e, pois, tal interpretação é inadmissível, salvo quando fôr imposta litteralmente. [...] A questão, se uma resolução da legislatura incompatível com a Constituição, póde tornar-se lei do paiz, é uma questão profundamente interessante [...], mas, felizmente, de nem uma difficuldade proporcional á sua magnitude. Para resolvel-a, basta o reconhecimento de certo principios que foram longa e optimamente estabelecidos. [...] 22 É uma proposição por demais clara para ser contestada, que a Constituição veta qualquer deliberação legislativa incompatível com ella; ou que a legislatura possa alterar a Constituição por meios ordinários. Não há meio termo entre estas alternativas. A Constituição ou é uma lei superior e predominante, e lei immutavel pelas formas ordinarias; ou está no mesmo nível conjunctamente com as resoluções ordinarias da legislatura e, como as outras resoluções, é mutavel quando a legislatura houver por bem modifical-a. [...] Certamente, todos quantos fabricaram constituições escriptas consideram taes instrumentos como a lei fundamental e predominante da nação e, conseguintemente, a theoria de todo o governo, organizado por uma constituição escripta, deve ser que é nulla toda a resolução legislativa com ella incompatível (1997, p. 23-25). Embora nova declaração de inconstitucionalidade somente viesse a ser declarada mais de cinquenta anos depois, esse aresto deu os fundamentos à consolidação do controle jurisdicional de constitucionalidade, um dos mais eficazes instrumentos para determinar a observância do texto constitucional. Dessa sorte é que, excetuando o modelo norte-americano e citando Acosta Sánches, afirma Dantas que o constitucionalismo moderno foi um constitucionalismo sem constituição (2009, p. 65-6), em que se confere ao legislador uma onipotência prática e real, ao mesmo tempo em que se afirma estarem seus poderes restringidos por estreitos limites, que podem ser ultrapassados ad libitum (MARSHALL, 1997, p. 27). E é dentro desse contexto do primeiro momento do constitucionalismo moderno que se encontram as Constituições Brasileiras de 1824 e 1891, fortemente influenciadas pelas Constituições Francesa e Americana e pelo ideário liberal. Com efeito, a primeira Constituição pátria, a Constituição Politica do Imperio do Brazil, de 25 de março de 1824, dispõe em seu artigo 178 que "É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos." E foi a previsão desses direitos fundamentais em textos constitucionais que fez com que, nessa época, também se constitucionalizassem os remédios contra o abuso do poder. Posto que não constem na Constituição Americana de 1787 e na Constituição Francesa de 1791, as Constituições Brasileiras de 1824 e 1891 estabelecem instrumentos de garantia: a primeira ao deferir a todo cidadão o direito de apresentar aos Poderes Legislativo e Executivo reclamações, queixas ou petições e até expor qualquer infração da Constituição (artigo 178, inciso XXX); a segunda ao positivar o instituto do habeas corpus, "sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder" (artigo 72, § 22). No que diz respeito ao controle de constitucionalidade, esse somente foi instituído oficialmente pela Constituição de 1891, ao prever que o Presidente da República poderia negar sanção a projeto de lei quando o julgasse inconstitucional (artigo 37, § 1.º) e que caberia recurso ao Supremo Tribunal Federal quando se contestasse a validade de 23 leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição (artigo 59, § 1.º, alínea b), muito embora a Constituição de 1824 já previsse que "a Assembléa Geral [correspondente ao atual Congresso Nacional] no principio das suas Sessões examinará, se a Constituição Politica do Estado tem sido exactamente observada, para prover, como fôr justo" (artigo 173). O constitucionalismo liberal, inserto que está no liberalismo clássico, valoriza o abstencionismo do Estado, o individualismo e a proteção do indivíduo, bem como a valorização da propriedade privada. Na mesma linha, Dantas anota que esse primeiro momento do constitucionalismo moderno foi enformado pela doutrina do liberalismo e consistiu "na limitação ao exercício do poder político e à consagração dos direitos fundamentais, até então restritos às liberdades e a alguns direitos políticos, conferidos a parcela do povo" (2009, p. 74), tudo mediante a ação de um Poder Legislativo forte e supremo. Eforam exatamente o ideal liberal e a crença num legislador bom e justo os principais fatores que acabaram por corromper esse modelo constitucional, que logo passou a mostrar falhas e injustiças incontornáveis. 2.4.2 Constitucionalismo social Naquele contexto liberal, já no século XIX, o filósofo francês Henri Lacordaire proferiu sua célebre frase: "entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta" (GOMES, 1998, p. 26). De fato, o abuso dos direitos de liberdade, em especial da liberdade econômica, acabou por submeter toda uma classe aos mandos dos proprietários dos bens de produção, gerando concentração de riqueza e desigualdade social, problemas que eram agravados pela defesa da abstenção estatal. A "mão invisível" do mercado, tendenciosa, puxava para baixo o prato da balança onde repousavam os interesses burgueses: a capacidade de autorregulação do mercado não passava de um mito. Diante desse quadro fático, o Estado é, então, chamado a intervir na atividade econômica, com a finalidade de evitar tais abusos e de promover a satisfação das condições mínimas de existência dos seus cidadãos: o Estado que se quis afastar, a fim de proteger o indivíduo da força do Leviatã, é agora demandado a agir, a fim de proteger o indivíduo da força dos demais indivíduos. Assim é que Dantas observa que: Se o Estado de Direito no constitucionalismo moderno, enquanto legal e liberal, voltou-se para a contenção ao exercício do poder da administração e do Judiciário, tornou-se premente a necessidade de estender tais limites também ao legislador. E 24 não só ao Estado no exercício do poder político, sobrevindo, da mesma forma, a limitação do exercício abusivo do poder econômico, seja para a preservação do próprio sistema, seja para a superação da Questão Social. E essa nova luta se estabelece sem que tenha sido integralmente vencida a batalha anterior, agregando-se as dificuldades e tornando ainda mais complexos os desafios postos ao constitucionalismo diante da sua pretensão de erigir um Estado de Direito que seja constitucionalmente adequado ao contexto político, social e econômico (2009, p. 171). Dessa forma, assim como no constitucionalismo liberal o Estado de Direito era um Estado liberal, no constitucionalismo social o Estado de Direito caracterizou-se como Estado social. Nessa mesma linha, refere, ainda, o autor que a previsão em "textos constitucionais de uma estruturação da ação pública e das políticas públicas sobre a ordem econômica, destinando-se a promover a intervenção estatal idônea a dirigir a atividade econômica para os objetivos constitucionalmente consagrados" (DANTAS, 2009, p. 190), deu origem ao constitucionalismo social, que tem como marcos iniciais formais a Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. O surgimento do constitucionalismo social nesse período encontra fundamento histórico: o período entreguerras - durante o qual perdurou esse primeiro ciclo do constitucionalismo social - foi marcado por um agravamento da questão social, como decorrência do conflito bélico e da consequente desestabilização econômica, o que demandou a participação estatal para remediar o problema. A despeito disso, o constitucionalismo social tem antecedentes históricos que remontam ao sistema de proteção aos pobres instituído pelas Poor Laws inglesas, que datam de 1601 e perduram até a primeira metade do século XX. Também a própria Constituição Francesa de 1791 estabelece em seu artigo 3.º a criação de um "estabelecimento geral de socorros públicos para criar as crianças expostas, aliviar os pobres enfermos e prover trabalho aos pobres válidos que não o teriam achado", bem como de "uma instrução pública comum a todos os cidadãos, gratuita em relação àquelas partes de ensino indispensáveis para todos os homens". Contudo, foi somente a Constituição Francesa de 1848 que traçou o primeiro esboço do que viria a ser, mas tarde, o Estado Social, dispondo, em seu artigo 13, sobre o desenvolvimento do trabalho, da educação primária gratuita e da educação profissional, sobre a relação de igualdade entre patrões e empregados, bem como sobre a assistência a crianças abandonadas, deficientes e idosos. Esse núcleo de direitos corresponde ao que Bobbio denomina de direitos de segunda geração (ou dimensão), dentro dos quais "dá-se destaque especial ao direito ao trabalho, que para ser protegido em seus vários aspectos - o direito a um salário justo, o direito ao devido descanso, à proteção das mulheres e das crianças - invoca a contribuição do 25 Estado" (2004, p. 207). Se "os direitos de primeira geração, em um primeiro momento, eram direitos das classes proprietárias", de modo que "o Estado liberal não incorporava as grandes massas", "com o advento do Estado Social, houve um processo de generalização dos direitos fundamentais, com ampliação dos titulares dos direitos políticos e a positivação de direitos sociais" (STEINMETZ, 2007, p. 62). Tais pretensões passaram a exigir não só ação legislativa, como, não raras vezes, medidas administrativas, através da ação do Poder Executivo, que detinha os recursos e as condições para a concretização desses direitos (MENDES, 1999a, p. 47). Com isso, o Executivo começou a ganhar corpo, expandindo-se até mesmo sobre o Legislativo, o que culminou com a instalação dos regimes totalitários vigentes à época da 2.ª Guerra Mundial. Não há se confundir, todavia, Estado autoritário e Estado social, este voltado à realização de prestações e à redistribuição da riqueza (DANTAS, 2009, p. 226). A previsão positiva dos direitos sociais nas Constituições não foi, contudo, suficiente para sua observância, uma vez que os Poderes estatais, em especial o Legislativo e o Executivo, não estavam vinculados a efetivação desses direitos. Nesse sentido, anota Dantas: Inicialmente persistiu a problemática exclusão do legislador quanto a quaisquer limitações, não ocupando o foco das preocupações e reflexões constitucionais, obstaculizando a efetiva construção do Estado Social, a sua transição do texto para a realidade, que ficaria ao livre talando do Poder Legislativo. Disso se depreende que o constitucionalismo social, responsável pela transformação do estado de Direito Liberal em Estado de Direito Social, continuou com a penhorada crença na racionalidade, bondade e legitimidade do legislador, apresentando-se, também, como Estado legal; todavia, essa legalidade, pelas próprias características do Estado Social, teve de ser transferida também ao Poder Executivo, descortinando outra série de problemas que antes não se puseram. O Estado de Direito Social será, também, um Estado legal, só que não apenas do Parlamento, mas também do Executivo, tornando os direitos fundamentais, ainda mais dependentes do legislador, esteja ele legitimado democraticamente, esteja ele legitimado finalisticamente. No primeiro caso, tem-se o Parlamento; no segundo, o Executivo. A supremacia do legislativo cede em face da hipertrofia do Poder Executivo (2009, p. 172). Com isso, a teoria da regulamentação das liberdades, surgida e superada durante o constitucionalismo liberal, ressurge com outra feição, desta vez voltada aos novos direitos, os direitos sociais. A necessidade de interpositio legislatoris para a realização desses direitos, somada à resistência do Poder Judiciário ao constitucionalismo social, conduziram à inevitável debacle da Constituição de Weimar. Essa forte oposição ao constitucionalismo social advinha especialmente da classe dominante, a burguesa, que, diante da intervenção 26 estatal no mercado e da prestação social mediante cobrança de tributos mais elevados, tinha reduzida sua margem de lucro. Também durante o período entreguerras surge um outro modelo de Estado Social: o Welfare State, ou Estadode Bem-Estar Social, sustentado pelo plano econômico do New Deal estadunidense. No Brasil, o modelo constitucional social reverberou diretamente na Constituição de 1934, que a partir do artigo 115, estabeleceu diretrizes para a ordem econômica e social, prevendo os casos de intervenção do Estado na economia e elencando uma série de direitos trabalhistas, molde que foi repetido na Constituição de 1937. Diversos desses direitos, contudo, estavam sujeitos à normatização legislativa. Tanto é assim que a Constituição de 1934 dispõe que "A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho", sendo que "A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador", no que foi seguida pela sua sucessora, que menciona expressamente em seu artigo 137 os preceitos a serem observados pela legislação trabalhista. Essa submissão dos direitos sociais ao legislador não se fez, contudo, acompanhar dos adequados instrumentos tendentes a permitir o seu exercício no caso de omissão legislativa. E embora a essa época - mais precisamente na Constituição Austríaca de 1920, aperfeiçoada pela reforma constitucional de 1929 - Hans Kelsen já houvesse pensado o controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, esse modelo de controle judicial somente veio a ser implantado no Brasil na Constituição de 1946 e apenas em 1965, por meio da Emenda Constitucional n.º 16. 2.5 CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO O constitucionalismo contemporâneo tem origem na segunda metade do século XX, com a queda dos regimes político-autoritários, estes instaurados a partir da hipertrofia do Poder Executivo que se fortificava desde o início desse século. Com a redemocratização dos países que sofreram intervenção totalitarista, havia uma dívida histórica a ser adimplida, com o que os textos constitucionais passaram a ostentar conteúdo programático, com a proposta de dirigir a economia. Nessa senda, obtempera Dantas: Além disso, eram patentes as manifestações de socialidade e a expressão de objetivos, ao que se acrescentava um valioso rol de direitos fundamentais, dentre os quais o elenco dos direitos sociais. Para que tais dispositivos não ficassem apenas no papel, não se transformassem em álibi simbólico para justificação do status quo, houve a necessidade de refundação da reflexão teórica em derredor da constituição, do que proveio a teoria da 27 constituição dirigente, sustentando a vinculação do legislador através de uma nova compreensão renovada das normas programáticas. Apenas assim os programas, as direções e os direitos sociais, econômicos e culturais poderiam lograr uma atuação no sentido de transitá-los do texto para a realidade (2009, p. 313). Exemplos dessa fase do constitucionalismo são, a Constituição italiana de 1947, a Lei Fundamental de Bonn (Constituição Alemã) de 1949, a Constituição portuguesa de 1976, a espanhola de 1978 e a brasileira de 1988. Assim, o constitucionalismo contemporâneo está centrado na ideia de constituição programática, fundada em normas que estabelecem programas e metas de ação a serem atingidos pelo Estado e detendo importante conteúdo social. Amplia-se o rol dos direitos a serem protegidos e promovidos pelo Estado e surgem os direitos difusos e coletivos, que se convencionou denominar de direitos de terceira geração. Do embate entre a tese Estado de Direito liberal e a antítese Estado de Direito social surge a síntese Estado Democrático de Direito, agregando a liberdade defendida por um e a igualdade protegida pelo outro. Embora a noção de normas constitucionais programáticas tenha surgido durante o primeiro ciclo do constitucionalismo social, em especial com a Constituição de Weimar, o entendimento a essa época era de que tais regras eram destituídas de caráter jurídico. Até então "prevalecia o entendimento de que as normas constitucionais não seriam propriamente normas jurídicas, que comportassem tutela judicial quando descumpridas, mas sim diretivas políticas endereçadas sobretudo ao legislador" (BARROSO, 2010, p. 86). Diante dessa frustração dos mandamentos constitucionais, Konrad Hesse opõe-se expressamente à caracterização da Constituição jurídica como mero pedaço de papel, conforme proposto por Lassale, ao defender que a Constituição detém força normativa. Disse ele, em 1959: A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. [...] Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes na consciência geral — particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional —, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). [...] A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen). [...] 28 Se os pressupostos da força normativa encontrarem correspondência na Constituição, se as forças em condições de violá-la ou de alterá-la mostrarem-se dispostas a render-lhe homenagem, se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranqüilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade (1991, p. 15-25). Nesse sentido é que Canotilho, seguindo os passos de seu mestre, vem posteriormente, em 1982, a utilizar a expressão constituição dirigente, afirmando a força atuante do direito constitucional e destacando o valor do direito como instrumento de direção social (1994, p.27-9). Assim, observa Calmon Dantas que o dirigismo constitucional configura "a continuidade do processo de luta instaurado contra os excessos e abusos do poder econômico pelo constitucionalismo social, podendo ser reputado como um constitucionalismo social de segunda geração, ou como um segundo movimento do constitucionalismo social" (2009, p. 41) e apresenta-se "como uma proposta de reflexão destinada a solucionar o problema fundamental da falta de efetividade" das normas constitucionais programáticas (2009, p. 251). Também refere o autor que a prevalência da legalidade, enquanto ato resultante da atividade legislativa, típica do Estado de Direito liberal e do Estado de Direito social, soçobra diante do advento do Estado Democrático de Direito, por encerrar este a noção de Estado Constitucional, no qual "estão firmadas as condições para a afirmação, a consolidação e a resistência do dirigismo constitucional, como também do neoconstitucionalismo" (2009, p. 227). Ciente dessa teoria, Barroso (2010, p. 86-7) aponta que, "Sedimentado o caráter normativo das normas constitucionais, o Direito contemporâneo é caracterizado pela passagem da Constituiçãopara o centro do sistema jurídico, onde desfruta não apenas da supremacia formal", como igualmente de supremacia material e axiológica. A faculdade de legislar passa a se tornar dever de legislar para aquelas matérias previstas pela Constituição: o Poder Legislativo passa a estar vinculado às normas impositivas de obrigações estatais. A dilatação do núcleo de direitos constitucionalmente previstos que exigem a ação estatal, associada à teoria da vinculação do legislador, fez surgir uma nova problemática: a questão das omissões inconstitucionais, consubstanciada na inércia legislativa ilegítima. Contudo, não apenas o Poder Legislativo omitia-se. Também o Poder Executivo, responsável pela implementação dos programas constitucionalmente previstos e legalmente regulados, deixava de agir quando obrigado a tal. Como visto, em cada fase da evolução do constitucionalismo, a previsão de novos direitos impunha a criação de novos instrumentos 29 tendentes à remediar a violação a esses direitos. Não foi diferente no constitucionalismo contemporâneo: o surgimento da questão acerca das omissões inconstitucionais trouxe consigo a necessidade de fiscalização desse non facere. Conforme refere Barroso: Em termos de direito positivo, o fenômeno da inconstitucionalidade por omissão só recebeu previsão nos textos constitucionais, e mesmo assim timidamente, a partir da década de 70, com sua incorporação à Constituição da então Iugoslávia (1974) e à de Portugal (1976). Nada obstante, em sede jurisprudencial, o tema já vinha sendo discutido em alguns países desde o final da década de 50 e início da década de 60, como na Itália e na Alemanha. E também na Espanha, a partir da Constituição de 1978. Nesses países, a fiscalização da omissão tem sido efetuada pelos tribunais constitucionais, independentemente da existência de qualquer norma regendo a matéria. No Brasil, o tema da inconstitucionalidade por omissão foi amplamente debatido nos anos que antecederam a convocação e os trabalhos da Assembleia Constituinte, que resultaram na Constituição de 1988. A nova Carta concebeu dois remédios jurídicos diversos para enfrentar o problema: (i) o mandado de injunção (art. 5º, LXXI), para a tutela incidental e in concreto de direitos subjetivos constitucionais violados devido à ausência de norma reguladora; e (ii) a ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º), para o controle por via principal e em tese das omissões normativas (2011, p. 54-5). A criação recente desses instrumentos de controle constitucional determina um protagonismo judicial ainda pouco desenvolvido e aceito doutrinária e politicamente, frente à teoria da separação dos Poderes. Contudo, como se verá, essa timidez inicial tem, aos poucos, cedido espaço para um Poder Judiciário mais ativo diante dos problemas sociais. Diante dessa manifestação despontante do Judiciário, conclui Streck que: no Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos); no Estado Social, a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de realizar políticas públicas e sustentar a intervenção do estado na economia; já no estado Democrático de Direito, o foco de tensão se volta para o Judiciário. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tensão passou para o Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previsto na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito (2001, p. 54). Tal característica do constitucionalismo contemporâneo, embora recente em termos históricos, tem se consolidado durante o atual movimento constitucional que a doutrina denominou neoconstitucionalismo. 30 2.6 NEOCONSTITUCIONALISMO A partir do início do século XXI tomou corpo uma nova teoria constitucional, o neoconstitucionalismo, que tem por objetivo não apenas limitar o poder político e prever políticas públicas, mas tornar efetivas as normas previstas no texto da Constituição, a qual adquire, de vez, o caráter de norma jurídica, dotada de imperatividade, superioridade e centralidade. De acordo com Barroso, três são os marcos fundamentais que deram suporte ao surgimento do neoconstitucionalismo: o histórico (pós-guerra e processo de redemocratização), o filosófico (pós-positivismo) e o teórico (força normativa da Constituição, expansão da jurisdição constitucional e reelaboração da interpretação constitucional) (2010, p. 245-67). Observa o doutrinador que em tais marcos "estão contidas as ideiais e as mudanças de paradigma que mobilizaram a doutrina e a jurisprudência nesse período, criando uma nova percepção da Constituição e de seu papel na interpretação jurídica em geral" (2010, p. 245). Para Agra, o modelo normativo desse novel movimento constitucional "não é o descritivo ou deontológico, mas o axiológico. No constitucionalismo moderno a diferença entre normas constitucionais e infraconstitucionais era apenas de grau, no neoconstitucionalismo a diferença é também axiológica" (2008, p. 31). Também aponta o autor a diferença de ideologias entre tais etapas históricas, atribuindo ao primeiro o caráter ideológico de limitar o poder e ao segundo o de concretizar os direitos fundamentais. E continua, afirmando a importância do Poder Judiciário no alcance dessa meta: Os direitos fundamentais se configuram como os mais importantes elementos para a configuração do neconstitucionalismo. Quando o processo de expansão da atuação da jurisdição constitucional se ampara sobre seus fundamentos, até mesmo as decisões que incidem em controversas searas políticas encontram respaldo na sociedade, desempenhando o órgão que exerce a jurisdição constitucional um papel de guardião dos direitos agasalhados pela Constituição. No atendimento das demandas sociais pós-modernas, a jurisdição constitucional é chamada a incidir cada vez de forma mais constante na seara política, chegando, inclusive a desempenhar uma função normogenética, quando um direito fundamental não puder ser exercido por falta de regulamentação do legislador infraconstitucional (2008, p. 32). Tal afirmação encontra substrato fático na previsão, dentro da Constituição Federal de 1988, dos institutos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção, aos quais, embora inicialmente tenham sido atribuídos efeitos inócuos, hodiernamente são concedidos efeitos mais materializantes pelo Supremo Tribunal Federal, como adiante se verá. Assim, o neoconstitucionalismo firma a importância do Poder 31 Judiciário na guarda da Constituição, atribuindo-lhe, para tanto, os poderes necessários à sua relevantíssima função. De seu tímido papel, o Poder Judiciário passa a exercer papel fundamental dentro do contexto das relações de poder. Por sua vez, a Constituição, de mero documento político retrativista da realidade, adquire lugar no centro e no cume do ordenamento jurídico, irradiando seus efeitos, tal como uma antena, não apenas sobre as normas infraconstitucionais, mas também sobre a própria realidade, atuando nela como elemento modificativo e condicionante. 32 3 GRAUS DE EFICÁCIA E APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS Como alhures mencionado, a Constituição, inicialmente destituída de caráter jurídico, passou, no pós-guerra, a deter força normativa. Na mesma linha, assevera Barroso que "Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se, assim, o modelo adotado na Europa
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