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Yves Simon O VIAJANTE MAGNÍFICO Romance Tradução de G. Cascais Franco Segunda Edição ín-líbris Sociedade para a promoção do Livro e da Cultura Título Original: Le Voyageur Magnifique *C* _éditions Grasset ç Fasquelle, 1987 Tradução: G. Cascais Franco 1.a Edição -- 1997 2.a Edição -- 1999 Impressão e Acabamento: Imprensa Portuguesa -- Porto Capa: João Guimarães Ferreira Depósito Legal: 117312/97 -- ISBN: 972-8474-02-4 A IN LIBRIS agradece à DEUTSCHE GRAMMOPHON a cessão da imagem gráfica da capa do disco «Le Voyage Magnifique», Schubert - Impromptus/ Maria João Pires Adrien, jovem fotógrafo, está fascinado pelos lugares de começos, aqueles onde, a seus olhos, a história da humanidade acusou uma viragem: o lago Turkana no Quénia, onde tomou a posição vertical a criatura que, cessando de pertencer ao mundo animal, ia inaugurar o reino do homem. Hiroxima, onde este descobriu que podia auto-destruir-se e aniquilar o universo. Cabo Kennedy enfim, de onde partiram, em Julho de 1969, três ter- ráqueos que iam caminhar, pela primeira vez, sobre um objecto celeste que não se chamava Terra. No momento de embarcar para estes três lugares do mundo, Adrien conhece Miléna, uma jovem actriz de origem checa, impulsiva, toda virada para o imediato. «Alegre como um início de revolução», a sua história começa como todas as paixões amorosas, longe dos dramas e na ilusão da eternidade. Miléna não tarda a querer um filho. Um novo começo. Para ambos. Para Miléna que vai mergulhar na maternidade. Para Adrien, sobretudo, que se encontrará igualmente grávido mas de um outro filho, diferente, imaginário e secreto, que não mais o deixará, vagueando com ele do Quénia ao Japão, de Paris a Cabo Kennedy, estranho Viajante Magnífico. De Yves Simon, Michel Foucault disse, após a publicação de *_Oceans*, «Ele é um daqueles cuja obra me interessa enormemente, e sob todas as suas formas». Compositor, intérprete e romancista, Yves Simon é uma figura emblemática dos anos 70. Há na sua obra musical e romanesca uma homogeneidade que reside na mensagem de uma sensibilidade, e de um certo olhar sobre os outros, sobre as coisas e sobre o amor. *_Viajante Magnífico*, o seu sexto romance, foi galardoado em França com o «Prix des Libraires». Outras obras do autor: *_Les Jours en Couleurs L._Homme Arc-en-_Ciel Transit- _Express L._Amour dans l._âme Océans* Pelos seus conselhos e pela sua presença, quero agradecer aqui a Yves Coppens, José Ferré, Dominique -- A. Grisoni Delphine Lefaucheux, Chris Marker e Tatsuji Nagataki Y. S. «Chove sobre Santiago meu doce amor. No céu brilha e pulula a camélia branca do dia.» FREDERICO GARCIA LORCA «Entrámos na idade das nossas derrotas, armados de certos conhecimentos mecânicos.» JOHN DOS PASSOS à crianca sem rosto, a Pascale, a Alain Borer e Ernest Pignon-_Ernest. I -- OS -- COMEÇOS 1 Durante uma semana, Adrien caminhara ao longo do *rift*, essa fenda da terra, visível como uma fronteira, e que divide o Quénia numa extensão de vários milhares de quilómetros. Uma fractura de continente. Amanhã, deparar-se-lhe-ia de novo Nairobi, um hotel de três estrelas, casa de banho, ar condicionado. Um aeroporto. Apeteceu-lhe bruscamente café e mel. Diante do lago, sacou de um canhenho amarelo cingido por um elástico largo e escreveu: *«15 de Setembro. Lago Turkana (continuação*). ...Horas a fio a olhar e a fotografar o céu. As cores mudam a todo o momento... Vermelhos, ocres, violetas aqui, à nossa frente, grandiosos, desdobrados neste ecrã gigantesco, oferecidos por prazer, para o simples prazer de quem olha. O céu como um ecrã... Há cinco milhões de anos os primeiros homens do mundo, de tanto o contemplarem e dele quererem abeirar-se, aprumaram-se... » Ergueu os olhos e viu à sua volta as pedras, a savana estiolada. O deserto. Acrescentou: «Mas não há fósseis dos sonhos e dos olhares...» Entre a última página e a capa de cartão, uma fotografia. O rosto de uma mulher. Ela escolhera o derradeiro instante para lho dizer. No aeroporto: :, «Visto que é ao país dos começos que vais, pensa na criança... _é disso que eu agora gostaria, de um filho...» Ao fechar o canhenho, murmurou três sílabas: Mi... Lé... Na... e repetiu-as como numa confidência. No silêncio desse princípio de mundo, ele ciciava o nome de uma jovem mulher, Miléna. Miléna num deserto. 2 Cinemascópio a preto e branco. Miléna: uma rapariga que Adrien encontrara no início do Verão numa sala de cinema. No final do filme, Woody Allen corre pelos passeios de Nova Iorque, atravessa ruas, atropela pessoas e faz sinal a táxis. Ele sabe que é demasiado tarde, mas corre pela cidade a preto e branco para ir dizer a uma adolescente que não deve partir. Ela repetira-lhe porém, vezes sem conta, ao longo de toda a sua história, que o amava, mas ele armou-se em esperto e brincou aos indiferentes. Agora reage, porque sabe que ela vai apanhar um avião e afastar-se dele. É claro que podia ter corrido ao seu encontro mais cedo, muito antes, não ter hesitado, mas a ideia do guião era justamente este desfasamento: não desejar, ao mesmo tempo, as mesmas coisas. Enquanto o final de *_Manhattan* se desenrolava no ecrã, Adrien ouviu a rapariga sentada a seu lado soluçar... Ela desatara chorar, a chorar. Agora, fungava. *_Crescendo*. Adrien entrevira o seu rosto antes do início do filme, mas esquecera-o. A intensidade dos soluços fê-lo voltar a cabeça e olhar para ela outra vez. Vislumbrou cabelos meio compridos e ondulados, em alvoroço. Em redor, para manifestarem, ainda que de um modo delicado, a sua irritação, vários espectadores tinham começado a mexer- se nas cadeiras. Apeteceu-lhe passar o braço em volta dos ombros daquela jovem, e como gostava da eternidade, dizer «não faz mal, vá, chore tranquilamente até à consumação dos tempos». Mas pensou que talvez acabasse de ter um desgosto e calou-se. Ela passou mais de uma vez as costas da mão pelos olhos e por baixo do nariz. Adrien hesitou, e já que convinha ser mais prático do que romântico, estendeu-lhe, de olhos pregados no ecrã, o lencinho branco que ornava o seu casaco. Ela assoou-se finalmente. O filme terminava, e este último ruído misturou-se dolorosamente com a música de George Gershwin. Assim que as luzes se acenderam, levantaram-se e ela perguntou: -- _é seda; não é? 3 A cidade onde vivem é imensa. Uma cidade da Europa Ocidental onde em ruas e avenidas circulam milhões de indivíduos. Os corpos roçam-se, procuram-se, evitam-se também. Há olhares que hesitam ao cruzar-se nas escadas rolantes. Por vezes, um poema é escrito num guardanapo de papel e em seguida levado a uma pessoa sozinha que parece esperar alguém, rodando interminavelmente a sua colher numa chávena de café. Mas talvez ela goste de estar sozinha e não espere ninguém... A solidão. Cada qual poderia descrevê-la à sua maneira, à medida do seu sofrimento. Mas frequentemente as palavras não bastam. Não podem contar esta miséria de nos sentirmos desligados de tudo, vivendo ao mesmo ritmo que a desordem do mundo, sem nada termos de luminoso para imaginar, a fim de lutar contra essa agonia... Então, há o silêncio, que não é o mutismo. O silêncio. Esta cidade que tem um nome é antes de tudo uma cidade. Com o ruído, a multidão, nesgas de céu que se recortam entre os telhados dos prédios e pedaços de ruasque nunca são horizontes. Poder-se-ia dizer que todos os países estão ali reunidos, tantas são as raças que aí se cruzam para pronunciar as palavras de todo o mundo com sotaques diferentes... Táxi! Estação! Metro! Café! Este território dos possíveis onde incessantemente os habitantes têm o vago sentimento de que o curso das coisas pode quebrar-se e mudar a história de uma vida, segreda-lhes cada dia e cada noite o contrário: que o seu tempo aí se dispersa e aí se dissipa. Amiúde, um homem é tentado pelo louco desejo de seguir uma desconhecida durante alguns minutos para saber mais acerca da sua vida, partilhar com ela o acaso de uma montra que acaba de chamar a sua atenção, a sua espera em frente dos cartazes e fotografias de um cinema de várias salas, a sua última hesitação antes de atravessar uma passadeira para peões no preciso momento em que surge a luz verde... Nada mais imaginar a não ser este corpo que avança alguns metros à nossa frente, ataviado de roupas, caminhando pelo passeio de uma cidade da qual conhecemos alguns bairros e um vago plano de conjunto. No dia do encontro de Adrien e Miléna, um anticiclone protegia esta cidade, assim como o país inteiro, de perturbações anunciadas :, por cima da Irlanda e do Atlântico Norte. O que significava: céu azul e as margens do rio invadidas por corpos pálidos vindos ao encontro do sol. A Terceira Guerra Mundial ainda não tinha data, a Segunda terminara uns quarenta anos antes e, em circunstâncias tão excepcionais, não se hesitava em proferir as palavras «doçura de viver». 4 Alguns fotografavam rostos, outros cidades. Ele, eram os começos Pouco lhe importava chegar no dia seguinte, quinze ou um milhão de anos mais tarde. Os lugares de começos é que o atraiam. O acaso das leituras e das viagens levara-o a assinalar toda a espécie de lugares ou de acontecimentos merecedores de que se pegasse em máquinas fotográficas, bilhetes de avião, para ir até ao local onde se tinham produzido. Adrien sabia que se podia fotografar o nascimento do Sol: os rastros visíveis da explosão e as luzes fósseis continuavam a errar no Universo, afastando-se a trezentos mil quilómetros por segundo. Poderia ir igualmente a Belém, a Meca, reencontrar o rastro dos profetas, ou ainda apanhar um comboio suburbano e dirigir-se a Versalhes, regressar a Paris, descer na estação da Bastilha, seguir para as Tulherias a fim de esquadrinhar os primórdios da Revolução Francesa... Ir também ao porto de Odessa, por lá caminhar, desencantar certas escadarias célebres, descobrir uma boa alma capaz de lhe indicar onde podiam ter ido parar os pedaços do casco do couraçado *_Potemkine* e tentar subtilizar, no tempo de hoje, os segredos dos marinheiros sublevados assim como dos primeiros bolcheviques. Todavia, apenas três lugares distantes no tempo e no espaço haviam retido a sua atenção: o lago Turkana no Quénia, Hiroxima e o Cabo Kennedy, a sul da Florida. No lago Turkana tinham-se aprumado os primeiros homens, e Adrien queria imaginar que eles tinham começado por erguer os olhos para fitar o céu e sonhá-lo, nele sonhando como que mergulhados no interior de um enorme capacete de *walkman* que lhes embuçasse a cabeça, para poderem ouvir o ruído do mundo e principiarem a entender a beleza do firmamento... No Cabo Kennedy, certo dia de Julho de 1969, três terráqueos de nacionalidade americana embarcavam a bordo do satélite *_Apollo 11*, para penetrar num universo ignoto e pousar, pela primeira vez, num objecto celeste que não se chamava Terra. Em Hiroxima, fora a morte que descera do céu. Desta vez, o novo ferimento infligido à humanidade era atómico. Lugar zero, tempo zero; a 6 de Agosto de 1945 ficava- se a saber que a matéria tinha artes de libertar uma energia fulminante quando se lhe cindia o núcleo. Adrien perguntou a si próprio o que podia resultar de Hiroxima... :, Um homem novo?... Diferente, porquanto ciente doravante de que a todo o momento podia destruir-se, a ele e a todos os outros, e vir encalhar qual bando de baleias numa praia da orla do Universo. Nestes três lagares, algo entre os homens e o céu acontecera ou estava a acontecer, algo que parecia ser o prosseguimento de uma mesma obsessão, tenaz, que atravessara intacta séculos de história. «Um desejo de céu...» E era isto que apaixonava Adrien: a perseguição de um mesmo sonho ao longo de milhões de anos. Era aí que ele queria ir, aonde tais eventos tinham ocorrido, para olhar, fotografar, descobrir o que podia realmente ligá-los, e tentar resolver esse enigma do «desejo de céu» que se lhe colocara a ele, em criança... De uma maneira muito diferente. Um dia, vira um homem empoleirar-se lá no alto de um campanário para impressionar a mulher que acabava de o deixar e tentar, deste modo, seduzi-la de novo. Adrien perguntara à mãe por que motivo o homem subira, em vez de descer ao fundo de um poço ou de um precipício... A mãe respondera-lhe que ele subira a um campanário porque a conquista do céu é um velho sonho e os que sabem concretizá-lo são heróis. Toda a vitória tinha os olhos no ar... Adrien pensou então que o coração da mulher infiel batia apressadamente pelo heroísmo que lhe era oferecido, e que logo que o homem descesse ela amá-lo-ia como dantes, mais do que dantes. Mas o homem escorregou, o enigma não pôde ser resolvido. 5 Ao saírem do cinema, tinham caminhado por um bulevar. Ela falou de Tchekhov e ele adivinhou que era actriz. *_As Três Irmãs*... Devia dar uma audição e sabia de cor os três papéis. Um princípio de Junho, longe do mar, e um sol à hora dos novos quadrantes da hora de Verão. Pessoas sentadas nas esplanadas a ver passar outras pessoas. -- Gostaria de lhe dizer as últimas frases de Olga. É o final da peça... Ele detestava que lhe lessem em voz alta poemas ou capítulos de romances. Como ainda mal se conheciam, afirmou que teria muito prazer nisso. Ela acrescentou: -- Irradiam uma tão grande esperança na vida... Na vida vindoura, a nossa de hoje, que digo muitas vezes para mim própria estas palavras quando estou sozinha ou um pouco triste. Ninguém escreveria agora isto, ninguém, porque não se pensa em... Não terminou a frase. Depois, jovial, e como se fosse necessário distrair o espírito... -- Gostava de ter filhos, quatro, cinco, seis, muitos filhos para haver vida à minha volta, gritos, joelhos, esfolados, risos perdidos... Tem filhos? -- Não... Curiosamente, ele sentira-se culpado. -- ...Deve achar uma parvoíce chorar assim no cinema... -- Não, eu também estava comovido... Como você. -- Não podia estar comovido como eu. As emoções nunca se assemelham entre si. Elas são sempre bem nossas, coloridas pelas pessoas que conhecemos, pelo que estamos a viver... -- É verdade -- disse Adrien, que não tinha a mínima vontade de contrariar --, eu sentia-me comovido à minha maneira. -- E qual era a sua comoção? -- Estava triste por eles não conseguirem apaixonar-se um pelo outro, ao mesmo tempo. -- Eu estava espantada desde o início... Eles eram tão diferentes. Mas ele andava de tal modo preocupado... Por mais que ela dissesse que o amava, ele não a escutava. Devia estar ferido por alguma coisa, alguma coisa já velha, e você reparou certamente que as pessoas :, feridas nunca são tristes. Assobiam baixinho, parecem crispadas, como se estivessem habituadas a uma mágoa... São cismadoras. Ela, ela ainda não podia ter sido ferida como ele, porque era demasiado jovem... Assim, amava-o sem reflectir. -- E ele, por seu lado, reflectia na história de ambos... Era isto o desfasamento. Visto que ela o amava sem reflectir, ele tinha medo que ela pudesse, sem reflectir, nãomais o amar e deixá-lo. Então, ele brincava com ela, como se nada fosse sério entre ambos... Ele brincava e amava-a. Como Miléna ligava pouco ao que se passava à sua volta, toda absorta no que dizia, por vezes alguns transeuntes davam-lhe encontrões. Adrien teve vontade de lhe tomar o braço para a guiar como uma cega. Ela disse: -- Actualmente os homens têm medo... Sinto-o perfeitamente... Têm medo. Adrien insistiu na sua ideia, como se a não tivesse ouvido: -- O desfasamento quase nunca é entre as pessoas, é intrínseco ao ser humano. Curiosamente, pensamos, experimentamos certas coisas e agimos de modo diferente... -- Você complica tudo. Basta dizer simplesmente o que pensamos, no momento em que o pensamos. -- Sabe muito bem que isso não se passa assim... E, de resto, há tantas palavras... -- ...E nenhuns sentimentos. Nem sequer me perguntou como me chamo... -- E você não me disse o fim de *_As Três Irmãs*. -- Tem razão. Bom, primeiro Tchekhov... Mas é melhor sentar-se... Escolheu uma das esplanadas onde não havia nenhum artista de rua a expelir fogo pela boca, a cantar, ou a contar histórias. Aguardou que ele se instalasse, enquanto ela ficava de pé em frente dos fregueses, mas dirigindo-se apenas a ele... -- ...Oh, meu Deus! O tempo passará, e nós abandonaremos esta terra para sempre, esquecer-nos-ão, esquecerão os nossos rostos, as nossas vozes, ninguém saberá como éramos, mas os nossos sofrimentos transformar-se-ão em júbilo para os que vierem depois de nós; a felicidade, a paz, reinarão sobre a Terra, e dir-se-á bem dos que vivem hoje, cobrindo-os de bênçãos. Ó minhas queridas irmãs -- ela fez o gesto de tomar nos seus braços dois corpos imaginários e de apertá-los contra si --, a nossa vida ainda não terminou. Temos de viver! A música é tão alegre, tão divertida! Só mais um pouco, e :, saberemos o porquê desta vida, o porquê destes sofrimentos... Se nós soubéssemos, se o soubéssemos! Adrien sentiu-se embaraçado, ela deixara-se arrebatar pelas palavras de Tchekhov como se estivessem os dois sozinhos num lugar deserto... Uns casais e uma mulher tinham-na ouvido. Houve que sorrisse, quem aplaudisse até. Quando ela se sentou ao lado de Adrien, este disse-lhe: -- Agora, devia pegar num pires e fazer um peditório... -- Gosta de Kafka? -- ...Sim... -- Chamo-me Miléna. 6 A cidade onde caminham foi um dia chamada *_Cidade-_Luz*... Depois, com a propagação dos néones e de espíritos cheios de presunção este qualificativo deixou de caracterizá-la. Tornou-se Paris, França, no departamento do Sena, uma capital... Se, em Berlim, um muro de pedra delimita dois mundos, aqui os muros que separam o antigo e o moderno, o estranho e o barroco, são invisíveis. É uma cidade multifacetada com um rio e duas ilhas no meio; o genérico de um filme a cores que lhe prestasse homenagem mostraria, numa sequência de planos curtos, o que ela possui de mais mágico e prestigioso: uma linha de metro que atravessa a ponte de Bir-_Hakeim no percurso Étoile-_Nation, os Campos Elísios à noite vistos do Parque das Tulherias, com o obelisco da Praça da Concórdia em primeiro plano; atrás, o resplendor branco e vermelho dos carros que sobem e descem a avenida ao longo de três quilómetros, e lá muito ao fundo, ligeiramente esbatidos, num mesmo plano, embora basante afastados, o Arco de Triunfo napoleónico e as torres dos anos 80 do Bairro de la Défense. Num dia 14 de Julho, filmar-se-ia o fogo-de-artifício mais colorido, o que é lançado do Campo de Marte, perto da Torre Eiffel enfeitada de lâmpadas eléctricas... Haveria igualmente bairros estranhos: Belleville com os caracteres árabes das montras, a -- XIII circunscrição junto da Porta de Itália com os seus letreiros chineses, Beaubourg, o museu-paquete, cuja armação exterior, toda de metal, é feita de altos pilares de aço vermelho e azul, o interior do R E R1 na estação de Auber, perto da Ópera, com os seus bancos de baquelite azul, da cor da noite, os barcos-faróis que sulcam o Sena desde o entardecer, iluminando como um teatro ambulante as fachadas do século - - XIX. Enfim, antes de terminar, em plena Praça do Trocadéro, uma mulher de Maillol, nua, coberta de ouro, os seios perfeitos; haveria alguns planos dos Seis Dias com os ciclistas de Bercy, a fim de se combinarem as luzes do espectáculo e dos raios laser com os *smokings* luxuosos dos espectadores convidados, jantando sob os holofotes no meio da pista de madeira envernizada, ao passo que giram os corredores de camisolas de cetim, aplaudidos e assobiados pelos espectadores de Paris, sentados nas bancadas... :, Enquanto se projectassem estas imagens, ouvir-se-ia uma música de Debassy ou talvez a *_Chanson de Prévert*, melancólica, em homenagem a um poeta elegante, e uma voz *off* diria: «Adoro esta cidade...» 1 R E R: Réseau Express Régional. (*_N. do T*.) Certas manhãs, tão bem se quadra a sua cor com as fachadas pálidas dos prédios, a sua majestosa beleza e as ondas cínzeas do rio que a atravessam, o Sol parece não se ter erguido senão para ela... Hoje, um jovem de olhos extremamente claros e uma rapariga de cabelos ondulados, em alvoroço, acabam de aí se encontrar. É nesta cidade que eles habitam, que estão a viver um começo, o das primeiras palavras trocadas, de uma atracção vaga, imprecisa, e talvez deste ténue conjunto vá nascer uma história onde o céu e a terra se encontrarão, onde a vida e o imaginário se fundirão, uma vida de todos os dias pendurada às horas quase imóveis da História, uma vida que não se assemelhará a nenhuma outra, pois eles tentarão ligá-la ao tempo em que os deuses desceram à Terra e se misturaram com os homens, acabando por se lhes assemelhar. 7 Os inícios é que são misteriosos. Precisa, dolorosa, dilacerante, a morte é sempre determinável; é um traço brutal no mapa do tempo e do espaço. Destrói num ápice um conjunto de laços visíveis ou invisíveis que levaram por vezes anos, séculos, a entretecer-se. No entanto, apesar de e por causa disto, ela é a condição necessária para que a vida continue, se complexifique, criando ordens provisórias que retardam todas as vezes a crescente desordem do mundo: cada agonia de um sistema, por muito cruel que seja, é indispensável para poderem estabelecer-se novas conexões, mais fortes, mais subtis, diferentes. A morte fabrica o tempo. Uma vez pelo menos, cada um à sua maneira, Adrien e Miléna já a tinham defrontado. A mãe de Miléna morrera num acidente de automóvel, o pai de Adrien cessara de respirar depois de um cancro lhe ter invadido a garganta. Haviam chorado e o desgosto que os submergira dizia-lhes que eles estariam doravante privados de um número incalculável de palavras e de gestos, que certamente os teriam ajudado a viver de outra maneira. Melhor, talvez. Mas os inícios... Os dos encontros entre as pessoas, o que as liga entre si, os inícios de histórias de homens e de mulheres são misteriosos porque invisíveis e imprecisos, e os que as vivem em nada se apercebem deles. Esvaecem-se, olvidadas nas nossas memórias, as primeiras palavras pronunciadas, a primeira compaixão, a primeira palavra garatujada... Do seu encontro num cinema, Miléna e Adrien não iriam reter com o tempo senão a fungadela e o lencinho. E, no entanto, houvera de facto um primeiro olhar. Antes do início do filme, Adrien fora magnetizado por aquele rosto, um breve instante sem dúvida, mas a atracção produzira-se deveras. De resto, ele chegara atrasado à sessão, e como aprecia ficar de frente para o ecrã, ela tivera de se levantar para o deixar passar. Neste primeiro roçamento, ele sentira umperfume, um odor, sem demora igualmente esquecidos, pois não lhe passava pela cabeça ter de vir a recordá-los. Miléna, essa, incomodada por Adrien, notara apenas uma coisa: o jovem sentado a seu lado trazia umas calças de tecido branco e distraíra-a das primeiras imagens do filme, fazendo uma mancha clara que se destacava na penumbra. Depois tinham aparecido as imagens de Nova Iorque acompanhadas pela primeira frase de clarinete de *Rhapsody in blue*. Aí, já tudo tinha :, sido esquecido. Enterrados nas poltronas, eles estavam completamente concentrados na ficção que os arrastava para longe da sua história, e os convidava a tomarem-se por Ike e Tracy, os dois heróis do filme. Adrien e Miléna tinham sofrido por mor da morte, eles desejavam que as suas vidas continuassem, ainda que devessem a maior parte das vezes acomodar-se a elas, e esqueceriam os seus inícios. Sofrimento, desejo, acomodamento e olvido, eles eram feitos deste bricabraque bizarro onde se misturam com o quotidiano a mortificação, a cobardia e a amnésia. Restava o desejo. 8 Depois do filme, Adrien devia ir a uma festa num bairro afastado, perto dos antigos matadouros. Ele insistiu para ela o acompanhar... -- Está alguém à sua espera? Ela não respondeu e acabou por se meter no carro. No fundo, ele não sabia que palavras usar, que situação provocar para ela ficar junto de si. Passaram pelos grandes eixos da cidade. Miléna mirava os monumentos, os museus de pedra ocre-clara iluminada por projectores. -- Não nos conhecemos e estou no seu carro, ao pé de si... _é estranho. Se olharem para nós, podem imaginar que somos um casal, com projectos, um passado, segredos... Como nada sabia do que poderia resultar de um tal encontro, ele falou do seu gosto pelos começos, do «desejo de céu», das suas futuras viagens... -- Parto depois de amanhã para Cabo Kennedy, na Florida... Volto no entardecer do Verão. Como ela baixara o vidro porque gostava de sentir o vento nos cabelos, ele vira-se obrigado a elevar a voz para ser ouvido. Ela respondeu da mesma maneira... -- O que vai lá fazer? -- Vou fazer uma reportagem sobre o lugar donde partiram para a Lua os primeiros astronautas americanos. Ela fez notar que eles tinham descolado há muito tempo, e que não compreendia o interesse de lá ir agora. Adrien tentou então explicar que não eram os acontecimentos que lhe interessavam, mas os lugares onde eles se tinham produzido. -- Em Setembro, parto para o Quénia, onde os primeiros homens se aprumaram... Foi há cinco milhões de anos, tornarei a chegar demasiado tarde! -- Se gosta tanto dos começos, porque não fotografa o nascimento de uma criança? Isso é um verdadeiro início, é belo, é muito próximo, e há tantos todos os dias, que não se arrisca a chegar demasiado tarde... Acho-o complicado... Inícios, há-os por toda a parte à nossa volta, todos os dias, e são eles que devemos surpreender... -- Soltou uma risada. -- Olhe, nós acabamos de nos conhecer, :, talvez isto venha a ser uma história magnífica e você nem sequer tem a sua máquina fotográfica consigo... Em contrapartida, vai a _áfrica.... Vai à Florida... -- O que me interessa... Suba o vidro, não nos ouvimos um ao outro... -- Mas que grande rabugento, cabelinho na venta, etc... Não se zangue, diga-me lá o que lhe interessa... Ela fechou o vidro da janela. -- Bem... Por que motivo num dado momento certos macacos se aprumaram, por que motivo um foguetão partiu pela primeira vez para tão longe da Terra, por que motivo um país, o Japão, desloca hoje dos outros continentes e porquê ele, e não a Argentina, o Paquistão... -- E o que é que fotografaria no Japão? -- Hiroxima... -- Mas em Hiroxima é a morte... O contrário de uma ascensão. Ele travou brutalmente e parou. -- Você é incrível... Explico-lhe coisas apaixonantes e contradiz-me sem descanso... Cristo não deixou de subir ao céu depois de ter morrido numa cruz... Quem lhe diz que não é por causa de Hiroxima que o Japão se eleva hoje acima dos outros continentes? Miléna ficou muda e queda. Cristo! E aquela pretensão do «conto-lhe coisas apaixonantes...»! Ela continuava a achar estranho aquele gosto pelos começos, e ainda mais extravagante ir fotografá-los... -- Há duas coisas -- disse Adrien. -- As fotos e a história que eu tenho vontade de escrever com elas, sobre elas, através delas... -- Ora ai está! -- exclamou Miléna, que ele viu radiante como se ela contemplasse o mar pela primeira vez... -- Você tira fotografias e quer escrever a sua história! Ao fim e ao cabo, em vez de dactilografar confortavelmente em sua casa um romance que se intitularia *_A Conquista do Céu ou Os Começos*, é também fotógrafo para desfrutar de viagens através do mundo... -- Gosto que as palavras que escrevo estejam cheias das paisagens que elas descrevem... Só isto... E parto dentro de dois dias... -- Já mo disse, e volta no entardecer do Verão... O início de uma estação! Adrien arrancou de novo. De copo na mão, uma densa turba circulava entre as duas árvores de um pátio, pelos andares e as divisões de uma imensa casa. Alguns estavam sentados nas escadas. Uma aparelhagem arrogante difundia uma música africana. Rostos inquietos procuravam rostos para reconhecer, outros procuravam ser vistos pelos que olhavam. Numa sala :, enorme, cartazes de cinema em todas as paredes. Dançava-se, falava-se, peneirava-se... «Boa-noite, estás bom? _é espantoso uma casa destas em Paris!» Aqui e ali, um copo abanava e o conteúdo derramava-se no chão ou sobre sapatos de verniz. Adrien apresentou Miléna e sentia prazer em pronunciar o seu nome, Miléna. Por vezes, acrescentava... uma amiga. Queria absolutamente que ela conhecesse um casal, Antoine e Maria, que ele às vezes invejava por viverem uma mesma história desde há muito tempo... Os anfitriões abeiraram-se deles, abraços, Miléna sorriu-lhes. Ela parecia já ali não estar. Adrien perguntou-lhes se Antoine e Maria tinham vindo... -- Sim, andam... -- fizeram um gesto vago... -- por aí... Uma doidivanas chegou ruidosamente e pendurou-se ao pescoço de Adrien... -- É incrível ver-te hoje, sonhei contigo a noite passada, enfim, connosco, estávamos num museu em Colónia, sabes, o museu do chocolateiro... Ludwig... O Museu Ludwig de Colónia e nós... Ela acabava de reparar em Miléna... -- Já nos conhecemos? Mas não esperou pela resposta e continuou, dirigindo-se a Adrien. -- Sabes o que disse o Presidente do último filme de Luc... Que era um ponto culminante, um deslumbramento absoluto, negro e engraçado, obcecado pelo sorriso da velocidade... O sorriso da velocidade, genial, hem? Ela desviou bruscamente a cabeça: -- Fania! Fania! Afastara-se deles para se agarrar ao braço de uma elegante negra que passava. -- Quem era? -- perguntou Miléna. -- Uma estilista... Com pouco estilo... -- São snobes que se fartam, os seus amigos... -- Não são meus amigos... -- Ele avistou Antoine e Maria. -- São aqueles que eu lhe queria apresentar. Antoine era negociante de quadros, Maria, italiana, traduzia Calvino, Del Monte, Malaparte, Carlotti... Eram um pouco mais velhos do que Adrien. Depois das apresentações e de algumas frases soltas de conversa, Miléna pareceu simpatizar com Maria, elas puseram-se a falar, afastaram-se, deixando Antoine e Adrien para trás... -- ...Não, conhecia-a há bocado no cinema... -- Ela é parecida... é bonita... com aquela moça que entra em... *_Fool* não sei quê, não achas? :, -- É actriz, julgo eu... -- Posso telefonar-te amanhã à noite, porque aqui... Todo este chinfrim... -- Tens chatices?... Telefona amanhã, depois já estarei na Florida... -- Nãosão bem chatices... Hei-de contar-te... A propósito de Estados Unidos, também lá vou. Levantei por lá uma lebre monumental. Imagina que um conselheiro de Reagan, um alto responsável do Pentágono, adquiriu a um dos maiores *marchands* de Nova Iorque um Dierick Bouts -- é um pintor flamengo do século __XVI -- pela quantia, não te assustes, de sete milhões de dólares! Cerca de cinco mil milhões de cêntimos! E eu afirmo que é uma falsificação. Ainda por cima uma falsificação grosseira, forjada no século __xx. O quadro chama-se *_A Anunciação*, e quando eu lhes... «anunciei» isto, eles não acharam piada nenhuma. Até o Metropolitan Museum, o Getty Museum, se intrometeram... Agora, o *establishment* dos negociantes de quadros nova-iorquinos apoda-me redondamente de insuportável tratante... Maria estava sozinha quando veio ter com eles. Adrien perguntou onde deixara Miléna. -- Foi-se embora... -- O quê!... Não é possível... Ele dirigira-se, sem verdadeiramente os fixar, a Antoine, Maria, Antoine, e por fim Maria... -- Consolo-a porque choraminga no cinema... Depois declama-me Tchekhov numa esplanada de café, eu já não sabia onde me meter... Agora vai-se embora sem me prevenir... E com o meu lencinho de bolso... -- Encarregou-me de te dizer adeus. -- Obrigado, és muito generosa! 9 Juntamente com Sabina, sua irmã mais velha, e o pai, Miléna chegara a Paris nos fins do Verão de 1968. Tinha oito anos e só falava checo. As últimas imagens de Praga que ela trouxera consigo eram essas raparigas de altas pernas que se bamboleavam em frente dos tanques russos, com as saias mais curtas que de costume. Para «encher de nostalgia» os soldados, explicara-lhe o pai, e para eles sofrerem terrivelmente por estarem sozinhos e longe das suas noivas. Uma outra imagem voltava incessantemente nos seus sonhos. Encontrava-se à noite numa cidade desconhecida que por vezes se assemelhava a Praga, e tentava, no labirinto das ruas e dos becos, reencontrar o apartamento onde vivia. Como não conseguia, acordava lavada em lágrimas. No Outono, quando deixara a sua cidade natal, todas as placas que indicavam os nomes das ruas haviam sido pintadas de preto. Tal como no seu sonho, os soldados estrangeiros tinham-se perdido, sem pontos de orientação, numa Praga anónima. Em Paris, as esquinas de ruas ostentavam placas azuis e brancas, mas ela não podia decifrá-las. Soube que era isto o exílio. Estar num lugar onde as ruas não têm nomes. Durante muito tempo a menina não soube que país era aquele em que se via obrigada a viver. Um país com rostos, uma língua e recordações. Na escola de Praga, começara a aprender a História da Checoslováquia. Agora, por causa de uma insignificante viagem de quinhentos quilómetros, já não era a mesma história. A tão pouca distância, descobria que os povos têm, como as pessoas, uma identidade, com uma memória, manias e um cheiro... *_Revolução/1917*. Miléna associara durante toda a sua infância à palavra Revolução à data de 1917, e eram ambas tão inseparáveis para ela como Miléna e Pallach, o seu nome próprio e o seu apelido. Em França estava tudo alterado, e ensinavam-lhe que a essa mesma palavra correspondia outro número: 1789. O pai, perante a sua perplexidade, e para ela aprender a relatividade das palavras e os meandros do pensamento do seu país de acolhimento, explicou-lhe, à maneira dele, três datas a fixar. -- 1789 é o ano em que os Franceses fizeram uma revolução e tomaram o poder aos nobres e ao rei. Eles anunciaram então :, ao mundo inteiro que os homens nascem livres e iguais... É bonito, não é? A menina disse que sim com a cabeça. -- E sabes quando foi abolida a escravatura? Somente sessenta anos mais tarde, em 1848. É incrível, não é? A menina tornou a acenar com a cabeça e disse: -- São lentos, os Franceses... -- Sim, lentos e esquisitos, pois em 1847, um ano antes de abolirem a escravatura, tinham pensado em criar... a Sociedade Protectora dos Animais! Ao ouvir isto, ela riu às gargalhadas e ficou muito contente, pois adorava gatos. Miléna soube finalmente que lograra insinuar-se completamente nesse fluxo que eram as palavras, as ruas e as comemorações de França, quando um dia sentiu um ardor nos olhos ao ouvir um orfeão tocar *_A Marselhesa*. 10 Depois de ter fugido do bairro dos matadouros, Miléna fora ao encontro do seu amigo de então, cujo apartamento dava para uma minúscula praça onde dois castanheiros e uma figueira podiam levar a crer que se estava longe de uma cidade. Dormiu aí e voltou para a sua casa no dia seguinte de manhã. No entanto, não falara de *_Manhattan*, como se o simples facto de referir aquele filme a obrigasse a incorporar uma nova personagem no argumento. Ela traía e sabia-o. Ao chegar a casa, Adrien ligou a televisão. _à distância, deitado na cama, passou de uns canais para os outros, depois acabou por cortar o som, conservando apenas aquelas sombras de realidade que buliam ante os seus olhos. Havia algo dentro dele, algo que se tinha insinuado no seu corpo... Não conseguia fitar no ecrã o rosto dos actores, os carros e as luzes giratórias que rodavam na noite... Já só ali estava um ecrã colorido, nada mais. A sua realidade de então era o outro rosto, essa outra maneira de olhar, de atirar o lado direito do cabelo para trás. De um gesto rápido. Invisível. E esse nome vindo de Praga, Praga que Kafka dera a conhecer ao mundo através de algumas cartas e uma história de amor... Ao sair do café onde lhe representara Tchekhov, ela rabiscara um número de telefone no talão da conta, mantendo, tal como fazem certas crianças, o alto da caneta voltado para fora e o bico apontado para o coração. Adrien marcou o número. Depois de vários toques, ao ouvir o som de uma voz de mulher, ele desligou, quem sabe se desiludido por uma presença e preferindo que o toque nunca mais parasse a fim de ser o acaso a fazer uma escolha em seu lugar. Um jogo. Teve o sentimento de estar em falta e permaneceu alguns instantes com o telefone sobre as pernas. Imaginou então que a voz ouvida era a de um atendedor. Voltou a marcar o número. Foi de facto uma mensagem gravada que ele ouviu a seguir... Um pormenor fê-lo sorrir... Tranquilizou-o? A voz dizia: «Não estou em casa...» E não «nós não estamos»... Após o sinal sonoro, ele desligou sem deixar qualquer mensagem, nem sequer uma respiração. As mensagens dos atendedores são enganadoras... Miléna não vivia sozinha e partilhava com a irmã umas águas-furtadas na Bastilha transformadas em apartamento elegante. Era por ser actriz e querer :, que a adivinhassem «disponível» para um eventual trabalho, que tinham ambas combinado que as mensagens seriam apenas em nome dela. Adrien encontrou no frigorífico um resto de frango, batatas fritas e um pedaço de torta de morangos. Com as janelas abertas de par em par, ouviu ao longe a sereia de uma ambulância e reparou no ruído que a sua boca fazia ao mastigar. Talvez a distância, a América, o fizessem esquecer esta primeira emoção de uma noite... Uma moça que chorava! Mas ele sabia que os encontros são raríssimos, os que emocionam, transformam e traçam uma fronteira no tempo para haver um antes e um depois. 11 Se Adrien sentia paixão pelos começos do mundo, também é verdade que tinha dificuldade em conceber as dimensões da sua vida e a dos outros. Marianne, a rapariga com quem vivera anteriormente uma história, gostava de repetir que ele era o único homem que ela alguma vez conhecera incapaz de dizer «para toda a vida». «A eternidade», respondia ele sempre que ela lhe perguntava quanto tempo se amariam. De qualquer modo, enganara-se, visto que se haviamseparado. Mas ele sabia ser prático, e quando a agência *_Voir* se resolveu a financiar a sua reportagem dos começos, soube organizar a sua primeira viagem e verificou até à última hora cada pormenor da sua estada americana. Donald Lander, o engenheiro dos voos espaciais com quem ele se correspondia desde há várias semanas, seria na Florida o seu guia. protector e confidente nos dédalos da __NASA, dos foguetões e das áreas de lançamento. Lauder tinha-o definitivamente seduzido aquando da sua última estada em França, quando Adrien soube que ele se dirigira a Auvers-sur-_Oise junto do túmulo de Van Gogh, e jantara nessa mesma noite com Louis de Broglie, o pai da mecânica quântica. Mas Miléna? A sua aparente vulnerabilidade seduzia-o ao mesmo tempo que o aterrorizava. Quem era ela? Ele imaginou falsas pistas, uma falsa história com palavras perdidas entre corpos que não se compreendiam. Teria ela sofrido e gostaria de matar os que a amavam? Esquecê-la sem mais demora... Que mulher se escondia, encolhida no interior das seis letras do seu nome?... Preferiria Lauren Bacall em *_Paixões sem Freio* ou Jessica Lange em *_O Carteiro Toca sempre Duas Vezes*? Meteria os pés para dentro quando lhe diziam que era bonita? Seria preciso ensinar-lhe, pois ela não devia sabê-lo, que o ponto mais ocidental da Europa se situa em Portugal e se chama cabo da Roca... 12 O teatro, o palco, o espectáculo, transmitir a desconhecidos emoções que não tinham sido premeditadas por ela, eis o que apaixonava Miléna. Mas ela era mais do que isto... Uma mulher jovem, por vezes infantil e despreocupada, falando, depressa, ansiosa por dizer a alguém o que pretendia que ele soubesse sem rodeios, ao ponto de gaguejar ou inverter as palavras ou a sílabas. Outras vezes, era grave, sonhadora, com uma melancolia, insondável em todo o seu rosto, em cada um dos seus gestos, como s vivesse à beira do mundo, na fronteira dele, sabendo ver, como a Alice de Lewis Carroll, o outro lado dos rostos, e adivinhar o que podia aí dissimular-se de feio e assustador. Mas ela gostava das pessoas, gostava de as ouvir contar horas a fio as suas misérias ou as suas facécias e podia passar do riso às lágrimas com tanta convicção como rapidez. Imprecisa, ela entrara um dia numa livraria e pedira «As cem mil vergas» de Apollinaire. O livreiro, amavelmente, respondera-lhe que de momento só tinha «onze mil», mas todas disponíveis... Alguns são incessantemente dilacerados por pulsões mórbidas; as pulsões dela eram de amor. Podia ficar meses arredada do olhar de um homem, sem no entanto deixar de amar... uma criança, uma amiga, um desconhecido que lhe contasse um episódio da sua vida num café... Do mesmo modo que outros se protegem do mundo ou lhe são indiferentes, Miléna *amava*. Numa época em que sentia que os sentimentos se cobriam de véus e iam talvez desaparecer, uma noite, ela quis morrer. Não estava então nem triste, nem desencantada, apenas exaltada de amor por tudo e num desamparo de não encontrar o rosto, o objecto no qual pudesse depor esta imensa carga de gestos e de sentimentos... «Então morrer», dissera ela consigo, morrer dessa lufada insuportável saída da sua boca, das suas mãos, da sua respiração, essa torrente que ela via escoar-se em vão. Morreu deveras. Quer dizer que não fingiu, devendo a *overdose* ultrapassar largamente os limites da sua vida. Só o acaso pôs um casal no que deveria ter sido a sua derradeira trajectória, e ela acordou dois dias depois num lugar desconhecido, branco, onde rostos que não conhecia a olhavam por entre caretas. Ela ouviu: «porquê?» e disse: «eu amava», disseram: «quem?», ela repetiu: «eu amava». 13 Cada qual a seu modo, segundo o seu ardor, viveu algumas histórias. Umas de cumplicidade, outras onde a sensualidade prevalecera. Como não lhes fora possível, já em plena situação de amor, transformar esse sentimento cem vezes imaginado, para lhe dar forma e energia, eles julgaram-se condenados a viver apenas histórias pungentes. Parecia-lhes que a época que atravessavam era justamente uma das tais em que os sentimentos haviam abandonado a Terra, indo a modos que satelizar-se em torno do planeta, fora do alcance daqueles cujo coração lhes competia fazer bater. Procriação, inseminação, rim, pulmão, coração, perna, inteligência, nada parecia resistir mais cedo ou mais tarde ao *charme* discreto do artificial. Muitos se interrogaram então se as suas histórias o não eram igualmente, da mesma maneira que a sua existência ou os seus amores. *_Procuro ternura natural, desesperadamente*, foi o tipo de anúncio que apareceu nas páginas de certos jornais que sabiam misturar nas suas colunas o humor e o desespero. A vida escapulia-se, os simulacros ficavam. As salas de cinema e de concerto eram os únicos lugares onde os rituais continuavam a exercer-se, onde as palavras de amor eram pronunciadas, os sentimentos declarados, e a paixão dilacerava os corações. Alguns experimentaram nostalgia por sentimentos que nunca tinham conhecido, ou que só descobriam através dos filmes e dos romances. Outros choravam ao saber que os amores das celebridades que veneravam já não eram o que eram, mas sim idênticos aos seus, indiferentes, infiéis e passageiros. Quando afinal se julgava a aventura à mão de semear, a dos corpos, das almas, da imaginação, da invenção, cada desejo de infinito esbarrava contra limites em que ninguém pensara, mas que tinham o aspecto de Jivaros emboscados, pois a sua função era sem sombra de dúvida reduzir o sentido, o espaço e o tempo. Prostrada na contempla- ção de ecrãs, sem nunca chegar a furar um só a fim de lá entrar, toda a gente se pôs então à procura de um papel para representar, e não de uma vida para viver. Miléna disse a Sabina: -- Tenho a sensação de que se fazem gestos, se proferem palavras, porque eles são habituais numa situação, mas que no fundo de :, nós há uma terrível inquietude ao apercebermo-nos de que isso não corresponde a nada. E apavora-me um tal desfasamento. Apetecia-me tanto amar, dar, viver coisas divinas, vindas de longe, e vejo- me agir como uma estranha, sem poder entrar no interior dos meus sentimentos... Adrien dissera a Antoine: -- Estou certo de que nos lugares dos começos redescobrirei parcelas desta magia... Como santuários da história passada, foi para esses sítios que convergiram um dia todos os desejos, as vontades, as forças dos homens, na mira de se superarem, de tentarem unir o céu à terra, os deuses às solidões, as palavras aos sentimentos... Apartados do vento, do mar, das estrelas, da bruma e do orvalho, Adrien e Miléna sentiam-se vivos numa cidade, e mortos no mundo. Cidadãos de um país que não existia, europeus sem Europa. 14 Com um saco de viagem e uma mala de alumínio pousados a seu lado, Adrien fumava um cigarro enquanto esperava o táxi. O telefone tocou. Reconheceu Antoine e não teve tempo de lhe dizer que estava prestes a partir. -- Sabes, lá na festa disse-te que precisava de falar contigo. Pois bem... tinha de acontecer um dia... Conheci alguém... uma mulher e... Maria não sabe de nada, claro... Durmo à noite com ela, mas a minha cabeça está cheia das imagens da outra... Se me dissessem isto há apenas... um mês... É a primeira vez... imagina tu... Eu que julgava ser o homem de um só amor... Toda esta certeza, agora, não passa de... bosta de bisonte... De telefone debaixo do braço, Adrien tentou ir até à janela verificar se o táxi já aí vinha. Mas o fio era demasiado curto. Ficou de pé, no ponto onde parara. -- ...Não sei se é melhor acabar tudo agora... Quero eu dizer, com a nova... Chama-se Alice... Não sou capaz... Éum entendimento sexual, intelectual, em todos os planos, já vês... Todas as noites penso no nosso encontro do dia seguinte num hotel... Dantes não conhecia os hotéis de Paris, podes crer! E depois, se rompermos imediatamente, terei um pesar, a impressão de ter falhado qualquer coisa... Também digo para mim próprio... talvez se deva estar à escuta do que a vida traz... Vivi dez anos com Maria, conhecemo-nos aos vinte anos... Dez anos é um número redondo, e agora talvez tenha chegado o momento de começar uma nova vida... Há certamente círculos de harmonia com alguém que se devem interromper para nos lançarmos no desconhecido... Achas que é preferível enganarmo-nos em vez de ousarmos? _é uma pergunta que eu faço a mim próprio... -- Sim, compreendo -- disse Adrien, olhando para o relógio. -- Não, tu não podes compreender... Há tanta coisa entre mim e Maria, uma história, um filho, recordações, aniversários, prendas, férias, noites, toda a espécie de atenções... Tirei as suas fotografias da minha carteira, porque todas as vezes que estou com a outra, e pago a conta no restaurante, vejo Maria ao lado do meu cartão *_American Express* e sinto um nó na garganta... Quase tenho vontade de chorar e já não consigo digerir... Ela que foi sempre tão directa comigo, sem nenhuma reserva... Tudo isto não é mais que bosta de bisonte... Não passo de um cobarde, de um infiel... O que farias tu no meu caso? :, -- Eu... eu cá... -- Bem sei, és solteiro... Mas quando... Como se chamava ela? Ah, sim, Marianne... quando ela se foi embora andaste meses e meses à deriva... Digo para os meus botões que se optar por ir viver com a Alice, nunca mais pensarei senão na Maria, e se renunciar a esta história acabarei por estrangulá-la... É deprimente, não é? -- Antoine, quem te pede que optes? Encontraste uma pessoa, uma única, que te tenha dito, Antoine, deves escolher entre a Maria e... a Alice? Não. Então escuta quatro princípios budistas... -- Agora és budista? Só faltava mais essa... -- Não sou budista, cultivo-me, é diferente. Quatro saberes que são as chaves do não sofrimento: saber aceitar, saber fazer, saber dar, saber sentir... No caso presente, retenho os dois primeiros... Saber aceitar e saber fazer. Tens de aceitar, é importante, ouve-me bem, tens de aceitar esta nova situação: estás embeiçado pela Alice e ainda gostas da Maria. É só depois, quando tiveres aceite este novo dado que, aqui para nós, não é dramático, duas mulheres... que deverás agir, mas... Desculpa, chamei um táxi... vou ver se já chegou... Uma pausa. -- ...Dizia eu... No que toca ao teu horário é um bocado complicado, naturalmente, Alice nos hotéis e Maria em casa, mas isso é secundário. Só deves tomar uma decisão depois de teres aceite esta nova situação. Não actues sem aceitar, entendido? Quanto ao resto, falaremos logo que eu volte. Aceita, e ocuparás assim o teu tempo todo... -- É verdade, estarei em Nova Iorque na próxima semana por causa do assunto dos quadros falsos... Telefona para o Méridien se por lá passares... Desligaram ambos. «Mas porque é que ele falou em bosta de bisonte» -- interrogou-se Adrien, ao entrar no táxi. 15 Num ecrã de vídeo, Adrien viu o foguetão afastar-se da Terra. Girândola de chamas, contagem decrescente, *insert* sobre a sala de controlo, Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Mike Collins, três terráqueos de nacionalidade americana deixam o seu planeta para serem os primeiros da História a pousar na Lua. Estamos na manhã de 19 de Julho de 1969, sete horas e sete minutos, hora local. Rostos das esposas. Uma das três leva a mão à boca e mordisca os dedos. A órbita terrestre a atingir encontra-se a 190 quilómetros deste ponto da Florida que, por sua vez, se situa a 28.o de latitude norte e a 81.o de longitude oeste. Um pouco menos de dez horas mais tarde, precisamente às dezassete horas e seis minutos, o satélite *_Apollo 11* irá de novo afastar-se à velocidade de 39.000 quilómetros por segundo, para correr desta feita, em plena noite, até ao seu objectivo final: o *mar da Tranquilidade*. Por intermédio desse guia refinado e competente que era o engenheiro Donald Lauder, a agência espacial americana pôs à disposição de Adrien toda a espécie de documentos, vídeos, fotos, bandas sonoras... Desde o seu primeiro encontro, no grande *hall* de recepção, eles tinham contraído amizade e durante uma semana Adrien fotografou as áreas de lançamento, os hangares de foguetões, o céu, o oceano Atlântico ali mesmo ao pé, o _L_E_M, o próprio satélite, não faltava nada, nem sequer os fatos-macaco brancos que o mundo inteiro vira em directo nesse dia e nessa noite de Julho de 69. Ele trabalhava com uma *_Hasselblad* cromada de formato 6 x 6, quadrada, perfeitamente adequada para fotografar o céu e os objectos verticais. Concentrado em tudo o que observava, julgava-se em missão, como encarregado de apurar o segredo dos começos. _à noite, encontravam-se para jantar. Donald apresentou Patrícia, a sua mulher, a Adrien. Eram um pouco mais velhos do que ele e viviam numa casinha à beira de um pinhal. Falaram de Walt Whitman, Jack London, Niels Bohr, Woody Allen, e imaginaram a sinopse de um livro que contaria o impensável encontro entre Albert Einstein e Arthur Rimbaud. Improvisaram logo uma sequência imaginada para Patrícia. *_Arthur*: Está reencontrada... *_Albert*: O quê? *_Arthur*: A eternidade... :, *_Albert*: Mas o tempo e o espaço nada significam para além do que percebemos... *_Arthur*: Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior à eternidade. *_Albert*: Parece-me difícil desvendar o jogo de Deus. Mas não posso acreditar que ele jogue aos dados. A diferença entre passado, presente e futuro não passa de uma ilusão, ainda que seja uma ilusão tenaz. *_Arthur*: Tenho os olhos fechados à vossa luz. Sou um animal, um negro... *_Albert*: O melhor, é um sono bem ébrio na praia. *_Arthur*: Ela está, portanto, reencontrada... *_Albert*: O quê? *_Arthur*: A eternidade. É o mar misturado com o sol. Sentiam-se contentes, Patrícia rira muito durante a cena, e nessa noite eles despediram-se depois de terem desencantado um título para a sua futura colaboração. « (Uma gravitação no Inferno» A estada de Adrien chegava ao fim. Entrementes, em segredo, Dona preparara- lhe um encontro excepcional. Enquanto não tivera a certeza de que podia realizar-se, calara-se. Hoje, sabia a resposta e rejubilava por ir anunciar a sua surpresa. Almoçavam pela última vez num *fast-food* à beira do mar. -- Voar é um velho sonho -- disse Donald -- , mas estou convencido de que há uma obsessão mais violenta, intensa e arcaica e que engloba e supera este antigo mito de ícaro. É o desejo de penetrar o céu, não para planar e viajar como as aves de um lugar para o outro, mas para ligar a Terra ao Cosmo, ao Universo. É este o primeiro sonho do homem sobre a Terra. Lembre-se do Génesis... Foram os filhos de Noé, salvos do Dilúvio, que empreenderam a construção de uma torre que seria uma cidade cujo cimo alcançasse o céu «afim de obterem renome e de não ficarem dispersos à superfície da Terra». E Deus - - que é versado em matéria de soberania -- viu muito em breve que no interior desta torre, todos os homens unidos, falando a mesma língua e armados de um sonho único, seriam capazes de atingir o seu alvo, o céu, e desapossá-lo do seu poder. Então, Ele desceu para ver essa famosa cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam e disse: «Eles formam um só povo e têm uma mesma língua, e foi isto que empreenderam. Agora, nada os impediria de fazer tudo o que tivessem projectado Confundamos as suas línguas, a fim de nunca mais se entenderemDonald acrescentou: -- Como vê, para a Bíblia, a obsessão divina é que a Humanidade se erga como um único homem à conquista do céu! Ele desatou a rir: -- Deus morreu e os seus sacerdotes também, mas o sonho subsiste. Adrien, seduzido: -- ...E os foguetões de hoje são os bisnetos de Noé que continuam a partir ao assalto do céu... -- ...Os foguetões não passam de objectos fabricados por homens, que eles lançam ao céu como pedras, mas estão vazios de humanidade. A Babel moderna dos netos de Noé é Nova Iorque, e ela nunca pôde alcançar o céu, porque não podia descolar... Por excesso de violência, de lutas, de antagonismos, de diversidade. A próxima etapa importante da conquista do céu não será nem um foguetão nem uma cidade, mas antes, em meu entender, um país solidário, unido, dotado dos mesmos sinais e de uma única linguagem, que desta vez descolará em peso a caminho do céu. Hoje, só existe um capaz de tal... Por ser o primeiro da era pós-industrial... Não está a ver? Adrien sabia que Donald se referia ao Japão, mas quis dar-lhe o prazer de prosseguir solitariamente a sua demonstração para chegar às conclusões que ele próprio tirara nas últimas semanas, desde que pensava nesse projecto. Donald julgou vislumbrar embaraço e voltou a cabeça. Empurrou os óculos para o alto do nariz e continuou: -- Os foguetões que lançamos são simultaneamente a culminância e as derradeiras imagens das tecnologias pesadas do século __XIX. Toda a indústria nascida desse século se baseou na força, no músculo, nas chaminés de fábrica, na luta de classes, nos antagonismos entre operários e proprietários, no capitalismo selvagem, desenfreado. Hoje, a matéria-prima estratégica da indústria já não é o carvão, o aço, o petróleo ou qualquer metal raro, mas a matéria cinzenta. E há hoje um país que lê mais do que os outros, que viaja mais do que os outros, que está mais informado do que os outros, um país onde as empresas empregam cinco ou dez vezes mais dinheiro que em nenhum outro lado na formação do seu pessoal... Este país tem o coeficiente intelectual mais desenvolvido do planeta, em suma, este país aposta não na força de trabalho, mas na única matéria-prima que possui, na inteligência. Este país, onde você irá dentro em breve, é uma ilha no fim do mundo, uma ilha, como Manhattan, mas, ela sim, descolará, estou certo disso, pois a inteligência é a leveza e possui todos os poderes... -- ...O Japão -- disse finalmente Adrien. -- Olhe, já me esquecia, tenho uma surpresa para si. Amanhã, num rancho perto de Santa Fé, no Novo México, tem um encontro marcado... importante. Às 18 horas, Neil Armstrong espera por si... Boa sorte! 16 O deserto. O *_Thunderbird* castanho-claro rodava com todas as janelas fechadas e o ar condicionado no máximo. Um deserto, vermelho. *_No desire*. Adrien, fascinado pela estrada rectilínea que, lá muito à frente, encontrava o céu, só fitava este conjunto estrada/deserto/céu. Um espaço entre duas dimensões, intermediário entre vida e morte, o espectáculo de uma vida virgem de todo o sentimento. Nem mágoa, nem esperança, o lugar estético da indiferença, sumptuoso, melancólico, vazio. Algumas placas lembravam a regra do *freeway*, 55 *_MILES/_H*, emblemas americanos e, por si só, toda a América. Como esse néon tremeluzente do Moon Motel onde ele passara a noite, perto do aeroporto de Santa Fé. Andar, ouvir o deslizar do carro na camada de ar abrasadora, fascínio, andar como arrastado por um desejo sem objectivo, tragado pela profundeza, um só anelo: que não houvesse fim. Andar para sempre sem segredo, sem memória, com uma moral a duas injunções: velocidade limitada, seguir a faixa branca do macadame... Por vezes surgiam montanhas, pousadas no solo, sem contrafortes nem esbatimento, artificiais. Outras vezes, um casebre de madeira, miserável, um cavalo e um automóvel estacionados, lado a lado. Uma linha eléctrica acompanhava a estrada... Sem descanso, Adrien repetia para si próprio, eis a América, eis a América... Um contrário da Europa, porquanto gigantesca no seu espaço. Libertos das extensões, os olhos entre o céu e a terra fixavam uma linha de horizonte imaginada, a cabeça direita. Como reencontrar uma simples expressão de Miléna neste lugar fora do tempo? Este lugar onde as recordações não são mais que miragens de calor. Ele olhou para o banco vazio à sua direita e tentou imaginar pernas, um corpo, um braço pousado por detrás de si. Um corpo de Miléna na América... Tentava reconstruir a imagem de uma mulher que mal conhecia enquanto ia ao encontro do primeiro homem que caminhara sobre a Lua. 17 -- Pensei na minha mãe e na Humanidade... Fora sem hesitar que Neil Armstrong respondera à pergunta de Adrien: -- Em que pensa aquele que pisa o solo lunar, sabendo que é para o resto de toda a nossa história o primeiro a fazer isso? Político e quinquagenário, de cabelo ralo e rapado, o astronauta aguardara o fotógrafo francês numa cadeira de lona, à beira de uma piscina cujo contorno, em mosaico, desenhava quadrados de xadrez. _à chegada, levou-o a visitar a casa de madeira vermelha de sequóia, e convidou-o a refrescar-se e a descontrair-se na água Veronesa do tanque. Nadaram como se já se conhecessem desde há muito e Armstrong, ao referir-se a Lauder, afirmou entre duas respirações que era o único engenheiro das suas relações que sabia falar tão bem da teoria quântica como dos poemas de Gérard de Nerval... -- Sabe que Nerval traduziu o Fausto de Goethe e se enforcou numa rua de Paris, de loucura... Louco dos seus sonhos? Saíram da água e, diante de dois copos de sumo de frutos fresco, Armstrong respondeu à primeira pergunta de Adrien. -- ...Não pensei na bandeira, na América... Tudo isso era secundário. Na minha mãe, porque todas as vezes que me vi em perigo, ou que uma honra me recompensou, foram sempre para ela os meus primeiros pensamentos. Instintivamente... ...Na Humanidade também, ou seja, do primeiro ao último homem, porque tinha o sentimento de que, graças a esse gesto em vias de se cumprir -- em si mesmo banal, que consiste em pôr o pé em qualquer parte -- , eu ia ser para sempre o primeiro de toda a história da Terra a fazê-lo. O pé esquerdo2 -- esclareceu ele numa risada. E contrariamente a tudo o que precedera, preparação para o solo, simulações de ausência de força de gravidade ou de atmosfera lunar, considerávamos então, os meus dois colegas de equipa e eu, tal aventura como um jogo, mas eu sabia nesse preciso instante que ia produzir-se um acontecimento prodigioso e hesitei, ou melhor, esperei, um, dois segundos talvez, para aproveitar este derradeiro lapso de :, tempo e concentrar todos os recursos da minha memória, todas as faculdades de memorização do meu corpo e do meu espírito para que em cada instante da minha vida eu pudesse reencontrar o que ia produzir-se. O acontecimento e o ambiente, aquele céu novo, a Terra iluminada na noite por cima das nossas cabeças, aqueles cenários desolados e comoventes, brancos, lívidos, aqueles arremedos de montanhas, afiladas... Depois tudo se desvaneceu de novo. No momento de pousar o pé, já encetado o meu gesto, duvidei. Pensei que tudo aquilo era um sonho e que, tal como Little Nemo, ia dar comigo debaixo da minha cama. Porquê eu? E foi então que o orgulho substituiu esta dúvida insidiosa. Vi-me, aureolado, solitário no meio dos homens sobre a Terra e repeti baixinho: porquê eu? E muito mais que um campeão chegado em primeiro lugar, senti-me 2 Em certos países, é sinal de resolução iniciar uma empresa com o pé esquerdo. (N. do T.) o eleito de um poder que nos ultrapassava,aos engenheiros, políticos e outros... *_Eleito*... Quando pousei finalmente o pé, o orgulho invadia todo o meu corpo. Armstrong bebeu um gole de sumo. -- Lauder persuadiu-me a encontrar-me consigo quando me falou desse projecto... Os inícios, os primeiros homens em _áfrica, o primeiro foguetão lunar, Hiroxima... O que é que liga tudo isto, é capaz de mo dizer? -- É esse o objectivo do meu trabalho. Fotografo, encontro-me com pessoas que fazem narrações, registo, anoto... -- Como deve saber, a bomba de Hiroxima foi concebida em segredo muito perto daqui, do outro lado do Rio Grande, em Los Alamos... Adrien esboçou um vago gesto. -- ...e no dia 19 de Julho de 1945, duas semanas antes de Hiroxima, a primeira bomba atómica do mundo explodiu num deserto um pouco mais acima, na White Sands, ao lado de Alamogordo. Bob Wilson, um dos engenheiros que lá trabalharam, morreu como Nerval, louco. Grandes farrapos vermelhos misturaram-se com o azul do céu. Os dois homens calaram-se. Adrien voltou a uma das perguntas de Armstrong: -- Ainda não sei o que liga tudo isto, mas torno a evocar esse dia 21 de Julho de 1969, o seu dia... Da Terra, foi o primeiro espectáculo em mundo-visão, visto em tempo real e aplaudido no próprio instante por vários milhares de milhões de indivíduos que reconheciam através deste acontecimento um sinal de progresso para a Humanidade, aguardado desde há milhões de anos. Vi-o na televisão em casa de uns vizinhos; era noite, quatro horas da manhã, eu tinha onze anos... E o meu pai e a minha mãe, toda a gente chorou... Pois o que fazia sentido, :, não era tanto a cadeia de invenções e de tecnologias que tinham logrado conduzir o seu foguetão ao mar da Tranquilidade, nem o facto de você, Armstrong, pousar o seu famoso pé, mas o entusiasmo dos milhares de milhões de ouvidos e de olhos virados para os aparelhos de rádio e de televisão, em cada fuso horário do planeta, de dia e de noite, perscrutando o bom desenrolar da operação e que se apropriavam orgulhosamente, tal como você, de uma parcela desse êxito para com ele se alegrarem. -- É realmente muito simpático da sua parte, Adrien! -- Ele ria... -- Assim, dezassete anos mais tarde, vem desculpabilizar-me do meu orgulho... -- Voltou a rir. -- Sabe, tenho algo de extremamente concreto a dizer-lhe: estou com fome. Convido-o a vir à margem do rio, a um pequeno restaurante mexicano, há-de ver... -- Eu cá, tenho uma pergunta idiota para lhe fazer... Aceita... que eu fotografe o seu pé, o esquerdo, com este ceu? -- *_OK*. E quanto à legenda, será... Pé de Neil Armstrong com sol poente... Tirou-se a fotografia. Eles vestiam-se enquanto dois colibris, esvoaçando ali perto, aspiravam a água açucarada que o proprietário do local preparava todos os dias em sua intenção. 18 Ingerira uma cápsula de *_Tranxène*, mas quando chegou a sua vez de entrar em cena, o nervosismo acometeu-a de novo. Pavoroso. Via-se a si própria representar, ouvia-se falar. Ela assistia ao espectá- culo de Miléna a interpretar Irina, uma personagem de Tchekhov. Uma rapariga mais velha do que ela dava-lhe a deixa. Acto III. Patético, sem excesso... «Contenção», indicava Tchekhov... -- Em breve farei vinte e quatro anos, há já muito que trabalho, o meu cérebro ressequiu-se, emagreci, desfeei-me, envelheci, e nada, nada, nenhuma satisfação, e o tempo passa... Teve vontade de chorar. Não por causa das palavras que pronunciava, mas porque só depois de chegar ao fim da tirada é que conseguira sentir-se longe de Paris, num palco de teatro, a dar uma audição. Frágil e forte, ela conseguia enfim ser Irina. Lá da sala, o encenador agradeceu-lhe e pediu-lhe para voltar no dia seguinte, à mesma hora. Sem mais comentários. Tinham sido convocadas dezoito actrizes para o papel de Irina. Uma hora mais tarde, Miléna soube que só três voltariam no dia seguinte. Esta boa notícia foi mais eficaz que o *_Tranxène*: a ansiedade desapareceu. Ela entrou no Café Le Lucrèce, em frente do teatro, com a moça que lhe dera a deixa. Toda sorridente. Bebeu um café de uma assentada, depois encomendou outro: -- Nunca sei o que hei-de tomar quando entro num café, por isso peço um café! A moça chamava-se Anne e fora escolhida na semana anterior para interpretar Olga. Chovia. Elas permaneceram um bom bocado no café. Mas a barulheira do *flipper* acabou por irritá-las e, apesar da chuva, puseram-se a andar pelo bulevar fora. Chuva quente e amena de Junho... Fizeram paragens debaixo dos toldos de lojas ou nas esplanadas protegidas dos cafés. Refugiaram-se, quando a chuva redobrou, numa entrada de cinema. Não se exibia aí *Manhattan*, mas Miléna sentiu vontade de falar de Adrien. Disse ela: -- Conheci um rapaz, há uma semana... É curioso, não se passou nada e penso muito nele... Tinha um ar ao mesmo tempo tão presente e ausente. A princípio, meteu-me um pouco de medo por causa do seu olhar... Olhos brilhantes, febris, um olhar que sonda cada pormenor, :, sem dar mostras disso... Eu sentia-me observada, julgada... E, agora, sinto-o vulnerável, embaraçado com tudo. Anne afirmou que era a fluidez da recordação que transformava as primeiras impressões e que se devia desconfiar do distanciamento... Miléna disse: -- Até sonhei com ele... Vi-o tentar apanhar uma criança que corria de sandálias à beira do oceano, ele dizia-lhe que voltasse, mas a criança corria, corria... A dada altura a criança desapareceu na areia, como por magia, e ele levou as mãos à cabeça, puxando o cabelo para trás Chorava, contemplando o céu... A chuva parou, elas caminharam de novo. Um sujeito jovem abordou-as dizendo que saíra da prisão nessa mesma manhã... Elas passaram indiferentes. -- _é um sonho esquisito -- disse Anne. -- Os homens são por vezes tão bizarros... Eu, por mim, vivo sozinha com um filho. Queria à viva força um filho e o meu companheiro não queria. Então, sem prevenir, deixei de tomar a pílula... -- Acho isso indecente! -- ...Não. De qualquer modo ele abandonou-me pouco depois, sem saber que eu estava grávida. Nunca mais o vi... De resto, tanto se me dá. Diante de um estabelecimento estava parado um grupo de pessoas, todas elas de olhos pregados no interior, através da montra... No momento em que as duas raparigas passavam, houve como que um movimento de despeito expresso por um «oh» desiludido e braços que se tinham levantado para logo se deixarem cair. -- _é o Campeonato Mundial de Futebol -- disse Anne. -- Mas se se voltarem a ver? -- perguntou Miléna. -- Ele julgará que se trata do filho de outro. É o meu segredo... Anne dissera isto muito tranquilamente. Miléna: -- Só as mulheres é que têm o dom de tais segredos. Eu prefiro que o meu filho tenha um pai e uma mãe... é a minha maneira de ver... Despediram-se em frente de uma estação de metropolitano. Os passeios estavam molhados. Miléna passou uma mão pelo cabelo e atirou-o para trás. _à noite, em casa, Miléna abriu o seu álbum de fotografias. A irmã estava de serviço no hospital. Observou atentamente os rostos. O seu pai Ivan, Sabina, ela própria Miléna, alguns dos seus namorados. Inscrevera a lápis branco legendas que a fizeram rir. Datas esquecidas... Miléna olhava os seus diferentes rostos de menina, em seguida de mulher jovem. «O que é que mudava?» -- perguntou a si própria. :, O que aprendia ela em cada dia da vida e do mundo, sobre como viver? Interrogou-se também se progredia e se aprendia a interpretar melhor o silêncio dos outros. Carregou na tecla de registo do seu pequeno gravador e pôs-se a falar, de olhos no tecto, deitada na cama... -- Você está na América, eu estou em Paris. Tenho de lhe devolverum lencinho, é o meu único pretexto para voltar a vê-lo... Esta noite penso em si, e se não me desse ao trabalho de lhe gravar estas palavras, você jamais o saberia... Seria um instante que existiu para mim, mas não para si... Por ora, tal pensamento é um segredo, e se eu lhe entregar um dia esta *cassette* será uma autêntica prenda, pois o melhor que temos para oferecer são os nossos segredos... Espanto-me de o tratar por você, eu que digo «tu» tão facilmente... Gosto desta delicadeza, que não é uma distância... Ponho-o assim numa categoria onde está sozinho: o homem a quem eu trato por você, e com quem sonho à noite... Hei-de contar-lhe esse sonho do oceano e da criança... É verdade, esta noite penso em si como quando se imagina um país, uma cidade onde se sonha ir... Passear, flainar, uma cidade do imaginário onde sabemos que poderíamos viver, emigrar... As histórias de amor são sempre histórias de emigrados que momentaneamente encontraram um país de asilo... Nesta noite de meados de Junho eu pensava em si... E você? 19 Na sala do Restaurante Oaxaca, três mexicanos tocavam uma valsa triste. Trémulos na guitarra, trémulos na voz, trémulos no som. Por vezes o cantor acentuava as gravações entre o *mezza voce* e o forte, e alguns convivas viravam-se para o palco, a aplaudir. Bem vistas as coisas, ele exagerava um nadinha... _à chegada, serviram-lhes dois copos de *mescal*. -- É o outro álcool do México, não tem nada a ver com a *tequilla* -- disse o astronauta --, já vai ver, põe-nos a cabeça quente... Neil Armstrong era um tipo interessado por tudo, culto, requintado, de uma extrema educação. Embora estivesse habituado há uns bons quinze anos a responder a toda a espécie de entrevistas, e sobretudo a recusá-las, manteve-se atento durante todo o serão aos pormenores, tanto aos da refeição como aos que emanavam do seu convidado. Escutava, fazia perguntas... Adrien, esse, tomava notas, fotografava, registava. Ele não tardara a reparar que a diferença de idades, em vez de o prejudicar, ajudava-o. O antigo astronauta gostava de falar, gostava de comunicar os seus conhecimentos e as suas reflexões. Sob o efeito das viagens orbitais, ou seja, do facto de olhar de cima e de longe toda esta arquitectura terrestre de sentimentos, conflitos e oposições, o legítimo orgulho de ser um herói da conquista espacial devia ter sido relativizado sem demora, para dar lugar ao seu quase contrário, a humildade... -- Os campos de concentração nazis continuam a obcecar os Alemães, mesmo os que ainda não tinham nascido... Quando se anda na auto-estrada, um pouco antes de Munique, e se avista à direita uma placa como todas as outras, mas onde está inscrito *_Dachau*, nunca se fica indiferente... Dever-se-ia falar mais frequentemente de Hiroxima, disse ele. Poucos americanos lhe falarão nisso, mas Hiroxima é uma mancha na nossa memória... Veja bem, este país, os Estados Unidos da América, país da democracia, da liberdade, capaz de destituir um presidente por mentira, este país é o primeiro e o único a ter utilizado a arma atómica sobre populações civis! O primeiro país da história a ter feito isto... Um dos músicos deu uma volta por entre as mesas com um *sombrero* na mão. Armstrong fez um gesto na direcção de Adrien significando... Deixe! E meteu lá dentro uma nota de dez dólares. :, -- Em minha casa, há bocado, falei-lhe desse engenheiro, Bob Wilson, que morreu de loucura. A mulher dele é que me contou isto... Na noite de 6 de Agosto de 1945, Wilson, que acabava de saber no laboratório que a «Operação Manhattan» fora bem sucedida e que o *_Boeing Enola Gay* largara de facto a tal bomba sobre Hiroxima, meteu-se no seu *Dodge* e seguiu para a vivenda que o exército lhe arrendara, nas colinas de Los Alamos. Quando lá chegou, desatou a vomitar, a vomitar. A mulher despiu-o, enfiou-lhe um roupão e preparou-lhe um banho. Enquanto a água enchia a banheira, ela voltou para junto dele, e aí, sentada num divã, deitou-o e aconchegou-lhe a cabeça contra si, contra o seu ventre. E fitou esta cabeça imaginando a quantidade de saber acumulada naquele cérebro, tão perto da sua pele de mulher, contra o seu calor... Todo esse saber e essa longínqua destruição que acabava de sobrevir! A rádio ainda não dissera nada. Mas ela adivinhara que a América e o Ocidente acabavam de ganhar a guerra. O saber e a destruição... O homem que ela amava endireitou-se, mirou-a, olharam os dois um para o outro, e ela soube desde logo que ele era uma personagem de tragédia. Nunca mais ele proferiu uma palavra. Nunca mais sorriu. Nunca mais ergueu a cabeça para o céu. Quando saíram do restaurante, a orquestra atacou *_Blue Moon*. -- Isto é para mim -- disse Armstroog a rir... -- Faz parte dos meus direitos em todos os lugares públicos com orquestra. -- Talvez em Paris lhe tocassem... -- (Adrien pôs-se a cantar) -- *_Le soleil a rendez-vous avec la lune, mais la lune n.est pas là et le soleil attend*... É uma velha canção de Charles Trenet. -- Trenet era aqui muito conhecido nos anos cinquenta... Como Edith Piaf, Yves Montand... Já dentro do carro, Armstrong contou que os seus pais o tinham levado uma noite ao Carnegie Hall de Nova Iorque. Aí cantava Trenet... -- Tenho um disco dele em 78 rotações... *_Douce France, cher pays de mon enfance*... Trautearam a música sem se lembrarem do resto da letra. Rasgando a noite, o *_Cadillac* preto ladeou durante um quilómetro o Rio Grande, antes de bifurcar a caminho do rancho e da casa de sequóia. -- Sabe o que eu cantava na cabina Apollo com Aldrin e Collins? O êxito do Verão... *_Get Back*, dos Beatles! 20 Nova Iorque, ao anoitecer. O quarto de hotel dá para as árvores de Central Park. Do outro lado, os edifícios da 5.a Avenida e os do East Side. Só faltava o clarinete de Gershwin para reconstituir o genérico de *_Manhattan*... Miléna? Adrien escrevia. Rememoração das conversas. Neil Armstrong, Donald Lauder. Arrumação de tudo o que fora visto, ouvido. *_Cassettes*, notas manuscritas num canhenho cor de laranja fechado com um elástico, rotulagem e classificação dos filmes Illford e Eastmancolor. «Nova Iorque, a Babel dos netos de Noé...» -- dissera Lander. Mas ele esquecera-se de falar do fascínio que exerce esta beleza, as nuvens que se reflectem nos edifícios- espelhos, o aço, o vidro esfumado, o calor sufocante, os táxis amarelos com tiras axadrezadas de lado, o polícia a cavalo na Avenida das Américas... Durante toda a tarde Adrien caminhara, fotografara, tornara a caminhar, tomara o metropolitano e táxis... Fotografara o reclamo a néon para a cerveja Budweiser, o patrão de *cofee-shop* grego, com um dente da frente prateado, os distribuidores cromados de guardanapos de papel, o avesso das máquinas de ar condicionado, a pilha de *_Washington Post* pousada ali mesmo no passeio por um pequeno ardina da 48.a Rua, o *diplodocus* do Museu de História Natural, os fatos de linho claro dos transeuntes, os vendedores de rosquilhas... Como um holograma, cada parte ou pormenor de Nova Iorque era Nova Iorque inteira. Vinham sereias distraí-lo nas suas reflexões. Miadelas eléctricas, inumanas, trágicas. Ele não podia coibir-se de imaginar o acidente, a *overdose* de mal. A morte que assalta a vida a cada instante. Assim que chegara, telefonara para o Hotel Méridien. Antoine ausente. Recado deixado. Ao longo de todo o dia, Adrien estivera sucessivamente sozinho, feliz... feliz, sozinho... Feliz por estar nesta cidade eriçada de arranha-céus, esses foguetões que não tinham partido, como se Cabo Kennedy ali começasse. Feliz por esta energia, este cataclismo colorido de loucura contida
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