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KEILA KOVALSKI FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA: A DESBIOLOGIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA PONTA GROSSA 2007 2 KEILA KOVALSKI FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA: A DESBIOLOGIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA Monografia apresentada ao curso de Direito do Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora Professora Sueli Maria Zdebski PONTA GROSSA 2007 3 KEILA KOVALSKI FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA: A DESBIOLOGIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA Monografia apresentada ao CESCAGE - Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais – Faculdade de Direito, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito e avaliada pela banca examinadora: ____________________________________________ Prof. . Izabella Rodrigues Martins ____________________________________________ Prof. Tamima Gobbo Tuma _____________________________________ Prof. Maurício Wisnieswski 4 À minha mãe, Maria Scolimoski Kovalski, pela compreensão e ajuda em todas as horas. À minha amiga Mariana Almeida, in memoriam, pelas palavras positivas que nunca me deixaram desistir. Às amigas, Anielle, Ionara e Veridiana, pelo incentivo e apoio constantes. E principalmente ao meu irmão Draiton Jaime Kovalski, in memoriam, que sempre me incentivou para estudar e ao qual devo, em grande parte, o que hoje sou. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, pois, o que seria de mim sem a fé que tenho nele. Aos meus pais que com muito carinho e apoio não mediram esforços para que eu chegasse até esta etapa de minha vida. À professora Angelita que foi tão importante no desenvolvimento desta monografia. À professora e orientadora Sueli Maria Zdebski por seu apoio no amadurecimento dos meus conhecimentos e conceitos que me levaram a execução e conclusão desta monografia. À amiga Débora Eliane Calari Nunes pelo incentivo que tornou possível a conclusão desta monografia. Aos professores: Izabella Rodrigues Martins, Maurício Wisnieswski e a Tamima Gobbo Tuma, que gentilmente aceitaram participar e colaborar com este trabalho fazendo parte da banca. 6 Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. (Antoine de Saint-Exupéry) 7 KOVALSKI, KEILA. Filiação Socioafetiva: Desbiologização das Relações de Família. Ponta Grossa. 2007. Monografia. (Graduação – Bacharelado em Direito) – Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais, Ponta Grossa, 2007. RESUMO A Constituição Federal, ao acabar com a distinção ente os filhos havidos ou não do casamento, ao reconhecer como família tanto a edificada pelo casamento, como a formada pela união estável ou pela comunidade constituída por qualquer dos pais e seus descendentes, denominada família monoparental, nuclear, pós-nuclear, unilinear ou sociológica, fundamentada na busca do ideal da felicidade, do esmero, do carinho e da comunhão plena de vida e de afeto, deu ensejo ao surgimento da filiação socioafetiva a qual veio dividir o espaço social e jurídico com a filiação biológica, sendo a filiação socioafetiva determinada pela posse de estado de filho onde se prima pela dignidade da pessoa humana, dando aos filhos o direito de viver com pessoas que, além de lhe sustentarem materialmente, são capazes de amá-los, transmitir carinho e respeito. Assim, família não é mais somente aquela fundada em laços sanguíneos, mas, sobretudo aquela que, mesmo não tendo a linhagem sanguínea, passa a ser vista como uma comunidade de afeto, ressaltando-se que o intuito não é o de descaracterizar a paternidade biológica, mas ressaltar a importância do afeto em todo o tipo de ralação familiar. Palavras-chave: família, filiação, paternidade, afeto. 8 KOVALSKI, KEILA. Affective filiation Partner: Desbiologização of the Relations of Family. Thick Tip. 2007. Monograph. (Graduation - Bacharelado in Right) - Center of Superior Education of the General Fields, Thick Tip, 2007. ABSTRACT The Federal Constitution, when finishing with the distinction being the had children or not it marriage, when recognizing as family in such a way the built one for the marriage, as formed for the steady union or the community constituted of any of the parents and the its descendants, called monoparental, nuclear, after-nuclear, unilinear or sociological family, based on the search of the ideal of the happiness, it care, the affection and of the full communion of life and affection, gave tries the sprouting of the socioafetiva filiation which came to divide the social and legal space with the biological filiation, being the definitive socioafetiva filiation for the ownership of state of son where if cousin for the dignity of the person human being, giving to the children the right of living with people who, beyond supporting to it materially, are capable to love them, to transmit affection and respect. Thus, family is not more only that one established in sanguineous bows, but, over all that one that, exactly not having the sanguineous ancestry, passes to be seen as an affection community, standing out itself that intention is not to deprive of characteristics the biological paternity, but to all stand out the importance of the affection in the type of familiar ralação. Kew-words: family, filiation, paternity, affection. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .........................................................................................................................1 1 A FAMÍLIA...........................................................................................................................13 1.1 CONCEITO .........................................................................................................13 1.2 A EVOLUÇÃO NORMATIVA DAS RELAÇÕES FAMILIARES ...............................14 2 A FILIAÇÃO ........................................................................................................................19 3 A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA.........................................................................................24 3.1 ASPECTOS GERAIS ..........................................................................................24 3.2 A AFETIVIDADE .................................................................................................28 3.3 A DESBIOLOGIZAÇÃO.......................................................................................31 3.4 A POSSE DO ESTADO DE FILHO .....................................................................36 3.4.1 Elementos constitutivos da posse do estado de filho ................................37 3.5 ESPÉCIES DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA...............................................40 3.5.1 A Adoção.........................................................................................................403.5.2 Filhos de criação ............................................................................................41 3.5.3 Adoção à Brasileira ........................................................................................41 3.5.4 Filiação eudemonista no reconhecimento voluntário e judicial da paternidade e da maternidade .........................................................................................42 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................43 5 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 49 INTRODUÇÃO Tem o presente trabalho a finalidade de fazer uma explanação no que diz respeito à evolução do conceito de família no decorrer do tempo, enfatizando a importância da relação sócio-afetiva entre pais e filhos, reafirmando o afeto como 10 ponto importante e suficiente para determinar uma verdadeira relação de paternidade. Observa-se que nos tempos mais remotos, só se admitia chamar de família, homem e mulher que estivessem ligados pelo matrimônio e os filhos havidos dentro desse matrimônio. É o que se pode ver do Código Civil de 1916, que em seu capítulo II tratava da Família Legítima, rotulando os filhos havidos fora do matrimônio como ilegítimos, espúrios, incestuosos e adulterinos. Vê-se então que o matrimônio tracejava os limites de quem deveria integrar a paisagem cultural e fruir os direitos que eram provenientes dele. Assim, os filhos de pessoas casadas entre si tinham a qualidade de filho e podiam usufruir de todos os direitos de uma relação chamada então de legítima, em detrimento daquelas pessoas que nasciam de um casal que não tivesse certidão de casamento, independentemente do motivo, as quais eram execradas pela sociedade e não tinham direito algum perante o ordenamento jurídico. Todavia, com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, houve grandes modificações em tais conceitos, pois, tendo como princípio a dignidade da pessoa humana, coibiu toda e qualquer forma de preconceito quanto aos filhos havidos fora da relação matrimonial, dando a esses filhos os mesmos direitos e qualificações, inclusive aos filhos adotivos. Assim, com a mudança havida no pensamento da sociedade, evoluíram-se também as normas, eis que o Direito deve se ajustar à sociedade onde é aplicado e, tanto é assim que, no Capítulo que fala sobre a filiação, no Código civil de 2002, foi retirado o termo legítima, eis que todos os filhos, quer biológicos ou afetivos passaram a ser legítimos. 11 Nesse contexto insere-se então a filiação sócio-afetiva, haja vista a tamanha importância que é atribuída atualmente ao afeto, quer para a identificação dos vínculos familiares, quer para definir os vínculos de parentesco, sobrepondo-se, quando em confronto, ao vínculo biológico, isto é, entre os vínculos de convívio e afeto e os vínculos biológicos, aqueles, em certas circunstâncias, são bem mais importantes do que estes, caracterizando então o fenômeno chamado desbiologização. José Bernardo Ramos Boeira1 foi muito feliz ao afirmar que, "A paternidade passou a ser vista como uma relação psicoafetiva, existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas, sobretudo, afeto, amor, dedicação e abrigo assistencial reveladores de uma convivência paterno-filial, que, por si só, é capaz de justificar e identificar a verdadeira paternidade". Assim, não são bastantes os genes, bem como não são suficientes os laços sanguíneos para que se declare a filiação ou para que se caracterizem as obrigações entre pais e filhos, uma vez que pai é efetivamente aquele que cria e não aquele que só concebe. Atos de afeição e solidariedade são suficientes para demonstrar a existência de um vínculo de filiação, muito mais do que simples relações biológicas. Ora, a família, além de fonte de obrigações e de direitos parentais é, acima de tudo, célula primordial da legitimidade afetiva. Diz Luiz Edson Fachin2 que, o que determina a verdadeira filiação não é a descendência genética, e sim os laços de afeto que são construídos (...). Ressalte-se ainda o que diz Giselda Hironaka3 sobre a família, 1 BOEIRA, José Bernardo Ramos.Investigação de Paternidade, Posse do estado de filho, paternidade sócio-afetiva. Livraria do Advogado, 1999. p. 53 2 FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos de Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 216 e 219. 3 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e Casamento em Evolução, in Revista Brasileira de Direito de Família – nº 1 – Abr.-Mai.-Jun/99, Editora Síntese, pág. 8. 12 Biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou patrilinear, monogâmica ou poligâmica, monoparental ou poliparental, não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago, se o de pai, se o de mãe, se o de filho; o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal (...). A lição que fica é de que a coisa mais bonita é o sentimento que norteia uma criança no caminho do respeito a si mesma, do respeito aos outros e ao mundo (...). 13 1) A FAMÍLIA 1.1) CONCEITO Segundo o Dicionário Brasileiro Globo, família é o conjunto de pessoas que vivem na mesma casa. Boeira4 afirma que, biologicamente, família é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum, ou seja, unidos por laços de sangue. Em sentido estrito, a família representa o grupo formado pelos pais e filhos, todavia, tais conceitos se mostram frios e sem fundamento, se não se levar em conta, como já dito anteriormente, os laços de afetividade que unem esse conjunto de pessoas, pois, não são suficientes simples laços de sangue se não houver laços de afeto, visto que a família tem um papel de imprescindível importância para a formação da pessoa e para sua integração no meio social. Assim, ficará mais bem definido o que é a família quando ela for vista como o espaço mister para garantia de sobrevivência, de desenvolvimento e da proteção integral dos filhos e demais membros, independente de como é composta ou da forma como vêm se estruturando, desempenhando ela um papel decisivo na educação formal e informal, pois é dentro dela que são absorvidos os valores éticos e humanitários e onde se aprofundam os laços de solidariedade. Nas palavras de Bellocchi5, é sensato que a família abarque a criança, o adolescente e o idoso, desde que lhe são insertas no conceito e na vivência, as fraternidades morais, 4 Op. cit. p. 19 5 BELOCCHI, Roberto Antonio Vallim. A Constituição da República e a Família. In: Rev. Consulex Ano VII, nº 161, 2003. CD-ROM 14 psicológicas, emocionais, de ajuda e de colaboração daquelas fases da vida, acabando por ser, como um todo, proclamada a célula fundamental que rege a formação de sistemas pertinentes à promoção da sociedade de pessoas e da grandeza do Estado. Diz o mesmo autor ainda que o artigo 226 da Constituição da República encerra máxima que, tradicionalmente, orienta o Direito Civil brasileiro no que tange à família, sob os diversos aspectos que a notabilizam, inclusive como instituto venerável no contexto da organização social de um povo encartado no dinamismo daevolução terrena: "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". 1.2) A EVOLUÇÃO NORMATIVA DAS RELAÇÕES FAMILIARES O sentido jurídico de entidade familiar passou, no período compreendido entre 1916 e 1988, por um grande processo de transformação, como já dito anteriormente. Segundo Viviane Girardi6 “(...) o direito privado de família, possui uma vinculação direta e imediata com valores vigentes e aceitos por uma determinada sociedade em um determinado momento histórico”. Ressalte-se o que diz Luana Babuska7, Na transição do século XIX para o XX, iniciou-se a construção jurídica do primeiro Código Civil brasileiro. O modelo de família apresentado à época era o de uma parcela social representativa, os detentores do poder, pessoas pertencentes a famílias de proprietários de escravos, fazendeiros e senhores de engenho8. 6 GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, filiação e afeto. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 23. 7 SILVA, Luana Babuska Chrapak da. A paternidade socioafetiva e a obrigação alimentar. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 364, 6 jul. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5321>. Acesso em: 03 jul. 2007. 8 À época da elaboração do Código Civil, os detentores do poder eram representados por trezentas ou quatrocentas mil pessoas pertencentes a famílias de proprietários de escravos, fazendeiros e senhores de engenho, segundo o censo de 1872. 15 Funcionando a família como uma unidade de produção por ser a atividade rural preponderante àquela época, quanto mais componentes tivesse, maior seria a força de trabalho, onde o homem, além de pai e marido, detinha autoridade como chefe de família incumbido de zelar por ela e, por conseqüência, os demais membros eram inferiorizados, devendo respeito e obediência ao homem, o qual era o responsável pela dirigência de suas vidas. Esse domínio visava à proteção de interesses familiares, sendo então os casamentos arranjados, baseados em nomes de família e carreiras profissionais e, segundo a autora acima citada, o sexo e a idade eram os fatores determinantes do papel que cada membro desempenharia no grupo, relegando a segundo plano interesses pessoais de modo a perpetuar essa família transpessoal. Assevere-se o que diz Viviane Girardi9, que o casamento vinha de acordos realizados entre os patriarcas, os quais faziam promessas de casamento entre seus filhos visando unicamente à preservação da tradição e ao crescimento econômico dos clãs envolvidos. Ainda, segundo Orlando Gomes10 O Código refletia ao tempo de sua elaboração, a imagem da família patriarcal entronizada num país essencialmente agrícola, com insignificantes deformações provenientes das disparidades da estratificação social. Sob permanente vigilância da Igreja, estendida às mais íntimas relações conjugais e ao comportamento religioso, funcionava como um grupo altamente hierarquizado, no qual o chefe exercia os seus poderes sem qualquer objeção ou resistência a tal extremo que se chegou a descrevê-la como um agregado social constituído por uma marido déspota, uma mulher submissa e filhos aterrados. Observa-se então que o casamento era a fonte única da constituição da família e, se o casamento estivesse fadado ao insucesso, a alternativa seria o desquite que, todavia, não determinava o fim de seu vínculo jurídico, resultando 9 Op. cit. p. 28 10 GOMES, ORLANDO. O Novo Direito de Família. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1984. p. 64. 16 então que, qualquer outra relação havida, seria tida como extraconjugal não merecendo qualquer reconhecimento jurídico, tudo isso com o intuito de que o matrimônio devia ser mantido, mesmo que a duras penas, sacrificando-se assim os interesses pessoais dos cônjuges, sendo que conceitos, como afeto e carinho, nessas ocasiões não deveriam ser considerados. Citando ainda a autora acima, diz ela que, o matrimônio permanece como força determinante quanto à filiação, manifesta através da presunção pater is est, segundo a qual a prole é, por conta do casamento dos genitores, considerada legítima e digna de proteção legal. Neste sentido, ressalte-se o que diz Carbonera11, desta forma, a garantia da estrutura familiar apresentada se dava pela observação tanto da necessidade de matrimonialização como no modelo de legitimidade dos filhos, pautado na proibição do reconhecimento dos extramatrimoniais e na atuação da presunção pater is est. Assim, no limiar do século XX, o Código Civil Brasileiro trazia consigo a noção da família patriarcal e hierarquizada. Segundo Julie Cristine Delinski12 Tal concepção do agregado familiar impôs uma regulamentação do direito positivo de forma que deixa margens a ficções – de amor conjugal perpetuo, de paternidade marital, de filhos havidos somente na constância do casamento, de fidelidade -, impossibilitando assim, o reconhecimento de filhos extramatrimoniais e favorecendo a família decorrente de casamento, bem como os filhos provenientes de relação matrimonial. Assim a família conhecida como patriarcal, ou seja, a codificada, era hermeticamente fechada, estática e perene, a qual se perpetuava no tempo, sem dar qualquer importância à realização pessoal de seus membros, conforme leciona Viviane Girardi13. 11 CARBONERA, Silvana Maria. O Papel Jurídico do Afeto nas Relações de Família. In: FACHIN, Luiz Edson. (coord.). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 281. 12 DELINSKI, Julie Cristine. O Novo Direito da Filiação. São Paulo: Dialética, 1997. p. 16. 13 Op. cit. p. 28. 17 Todavia, já a partir de meados do século XX, começa a se extinguir a família patriarcal e hierarquizada, onde a autoridade marital passou a dar lugar a uma parceria sentimental, buscando a realização afetiva dos cônjuges, como função primordial ao lado da tarefa de educação, sustento e boa formação da prole, nas palavras de Julie Cristine Delinski14. Diz Flávio Tartuce15, Assim sendo, pode-se utilizar a expressão despatriarcalização do Direito de Família, já que a figura paterna não exerce o poder de dominação do passado. O regime é de companheirismo ou colaboração, não de hierarquia, desaparecendo a figura do pai de família (patter familias), não podendo ser utilizada a expressão pátrio poder, substituída, na prática, por poder familiar. Conforme Maria Berenice Dias16, O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a palavra afeto no Texto Maior como um direito fundamental, podemos dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana. Assim, nítido está que o comportamento social e a vida familiar evoluíram. Nas palavras de Viviane Girardi17, As relações de convivência familiar e social já não são mais as rigidamente estabelecidas pelo Código Civil de 1916, em que o modelo único de família, fundado na desigualdade e sustentado pelo patriarcado, tinha na figura do homem a concentração do poder econômico e social da família. A família contemporânea não se conforma mais com as atribuições rigidamente estabelecidas pela qualidade de se ser homem ou mulher. (...) A família contemporânea não é mais (e somente) o lugar da perpetuação dos laços de sangue e da preservação do nome e patrimônio dos antepassados, finalidades estas que, outrora, se constituíam na razão de se “nascer e de se permanecer em família”. Há quem diga que, com as mudanças havidas na família, esse instituto se encontraem crise, atribuindo problemas de desordem social ao desregramento da 14 Op. cit. p. 18. 15 TARTUCE, Flávio. Novos princípios do Direito de Família brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1069, 5 jun. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8468>. Acesso em: 07 jul. 2007 . 16 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 66. 17 Op. cit. p. 23 18 família, todavia, esta jamais deixou de ser a célula mater da sociedade, eis que sempre será ela o marco inicial para o estabelecimento do cidadão e a partir dela é que se desenvolvem outras relações sociais, as quais vão se estabelecendo ao longo de sua existência. Conforme traz Viviane Girardi em sua obra18, com o rompimento do monopólio do casamento pela Constituição Federal de 1988, deu-se azo para que fossem acolhidas outras formas de organização familiar, alicerçadas no afeto e na solidariedade. Assim, houve uma sensível mudança no núcleo familiar, deslocando seu centro de constituição do princípio da autoridade para o princípio da compreensão e do amor, atendendo-se assim à promoção da dignidade da pessoa humana. Com razão Guilherme Calmon Nogueira da Gama19 quando diz que, Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com base em idéias pluralistas, solidaristas, democráticas e humanistas. 18 Op. cit. p. 34 19 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Filiação e reprodução assistida:introdução ao tema sob a perspectiva civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo [org]. Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 520. 19 2) A FILIAÇÃO Dentro desse contexto, feitas breves considerações sobre a família como um todo, cumpre-se, desse ponto em diante observar como ficaram as relações entre pais e filhos no decorrer de tantas mudanças havidas, conforme o que já fora explanado no capítulo anterior. Assim, traz-se aqui, antes de tudo, uma consideração muito interessante sobre a filiação, nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho20, Ter filhos é uma experiência única e, embora acompanhada de imensas dificuldades, essencialmente gratificante. Quem passa por ela no momento certo da vida, enriquece-a muito. Como antes de transmitir conceitos e valores é preciso clarificá-los, preparar alguém para viver em sociedade importa reestruturar-se internamente. Acompanhar de perto o crescimento de novo ser da espécie, contribuindo de modo decisivo para sua formação, desperta o sentimento de responsabilidade pela preservação e renovação de uma herança cultural milenar. Mostrar o mundo para o filho é redescobri-lo nos seus perdidos detalhes: depois de crescer, agente só se recorda que a lagarta se metamorfoseia em borboleta, e tantas coisas mais, ao falar disso com ele. Ter filhos, vivenciando intensamente a relação, é rejuvenescer. (...) Para dar conta de educar crianças e adolescentes como se deve, é preciso estabilidade emocional e psíquica. Os pais que não as têm, ganham a oportunidade de conquistá-la. A experiência da paternidade ou maternidade não pressupõe necessariamente a geração do filho. Ela é tão ou mais enriquecedora, mesmo que a criança ou adolescente não seja portador da herança genética dos dois pais. (original sem grifo). O termo filiação deriva do latim “filiatio”, traduzindo-se pela relação de parentesco que se estabelece entre os pais e o filho em linha reta, gerando o estado de filho. O Código Civil Brasileiro de 1916 classificava os filhos em legítimos e ilegítimos, classificação essa proveniente da necessidade de se preservar o núcleo familiar, ou ainda, mais que isso, a real intenção era mesmo de se preservar o 20 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 5, p. 144. 20 patrimônio familiar, fato esse que fez com que os filhos fossem catalogados de forma cruel por aquele diploma, sendo que, felizmente toda essa discriminação, conforme diz Fabio Ulhoa Coelho21, é coisa do passado, como ver-se-á a seguir. Segundo o Código Civil de 1916, eram considerados filhos legítimos aqueles nascidos de pais casados entre si quando da concepção, ou seja, a filiação legítima seria a decorrente da união de pessoas ligadas pelo matrimônio válido ao tempo da concepção ou resultante de união matrimonial que veio a ser invalidada posteriormente, estando ou não de boa-fé os cônjuges, conforme o que expressa Maria Helena Diniz22. Assim, o antigo Código no seu artigo 337, revogado pela Lei 8.560/92, conceituava como legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda que nulo ou anulado, se fosse contraído de boa-fé, sendo que a Lei 6.515/77 admitiu que mesmo não sendo contraído de boa-fé, os filhos seriam legítimos. O princípio adotado por aquele diploma baseia-se no fato de que pai é aquele demonstrado pelas justas núpcias. Assim, a presunção era de que o filho da mulher casada fora concebido pelo marido. Segundo Silvio de Salvo Venosa23, A lei presume a filiação legítima com fundamento nos dados científicos. Desse modo, se o filho nasceu até seis meses após o casamento, presumimos ser legitimo. Se o nascimento ocorrer antes dos 180 dias, não opera a presunção. Entendemos que é de seis meses o período mínimo de gestação viável. Fora desses períodos, ainda que possam ocorrer nascimentos, a presunção não opera. Desta forma a filiação legítima que concedia ao gerado o status de filho legítimo era assegurada pela evidência do casamento civil ou matrimônio. Unicamente os filhos que fossem descendentes de um casal, casados entre si, eram aceitos pela sociedade e se encaixavam no padrão desejado pelas 21 Idem. p. 146. 22 Diniz, Maria Helena. Código Civil Anotado. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p.317. 23 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 6. p. 232. 21 pessoas, sendo a eles e somente a eles, atribuídos todos os direitos inerentes da filiação. Da lei extrai-se o fato de que, mesmo havido antes do estabelecimento do vínculo matrimonial, com este estabelece-se o vínculo de filiação, sendo que então o nubente era considerado pai por presunção não lhe sendo concedida a possibilidade de contestar sua paternidade, pois considerado legítimo aquele que mesmo nascido antes do prazo de 180 dias ou posterior aos 300, foi registrado pelo suposto pai uma vez que este, ao assumir o matrimônio estando ciente do estado gravídico, indiretamente estará assumindo o filho como seu não lhe cabendo o direito de contestar a paternidade. Assevere-se o fato de que o legislador legou a filiação legítima à data de sua concepção, considerando-se concebidos na relação matrimonial os nascidos cento e oitenta dias após o estabelecimento da convivência matrimonial bem como os nascidos dentro do período de trezentos dias posteriores à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite ou anulação, de tal modo que o novo ser poderia ter sido gerado anteriormente ao matrimônio, pois que se tem por presunção ter sido concebido na constância do casamento. Já os filhos que não fossem concebidos dentro do casamento eram considerados ilegítimos, dividindo-se estes emnaturais, quando os pais não possuíam impedimentos para o casamento e espúrios, quando havia qualquer impedimento onde os pais então não poderiam contrair matrimônio, subdividindo-se em espúrios adulterinos, onde o impedimento residia no fato de um dos pais já ser casado com uma outra pessoa, tendo violado assim o dever de fidelidade, e espúrios incestuosos, quando os pais possuíam algum grau de parentesco. 22 Os filhos ilegítimos, por não estarem enquadrados nos moldes requeridos pela sociedade de então, não eram sequer reconhecidos pela lei, eis que a ilegitimidade os despia da condição jurídica de filho. Segundo Luana Silva24, Nesse contexto de preservação familiar, apenas os filhos concebidos por genitores casados foram reconhecidos perante a sociedade. Alegando uma suposta paz familiar, que para a sociedade seria abalada com o público reconhecimento de um adultério ou de relações incestuosas praticadas por seus membros, não se reconhecia aos filhos extranupciais direitos básicos à sobrevivência, relegando-os à execração pública em virtude de um comportamento tido como altamente reprovável, praticado por seus pais ao gerá-los, que se convencionou manter segredo. A culpa - ou crime dos pais - foi, então, punida na pessoa dos filhos. O artigo 355, do antigo Código dispunha que o filho ilegítimo podia ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente, admitindo-se, todavia, apenas três formas de reconhecimento voluntário da filiação extramatrimonial, quais sejam, no próprio termo de nascimento, mediante escritura pública ou por testamento. Dentre estas possibilidades, incidem algumas peculiaridades, como por exemplo, a de que o reconhecimento do filho poderia preceder seu nascimento e que tal reconhecimento não poderia ser subordinado a condição ou termo. Nesse aspecto, apenas os filhos naturais poderiam ser reconhecidos, sendo que os espúrios ficaram à margem do Código, não se permitindo seu reconhecimento. Da mesma forma ocorria com a família "ilegítima", ou seja, aquela constituída fora do casamento, deixando o direito de reconhecê-la, como se realmente não existisse. Vê-se assim que o sistema imposto pelo Código anterior, especialmente em relação à filiação extramatrimonial, era absolutamente patriarcal, fundado exclusivamente no casamento, contendo regras que já nasceram velhas e que já necessitavam de profundas alterações, dentre as quais, algumas já ocorreram e 24 Op. cit. 23 outras ainda ocorrem no seio da sociedade, verificando –se isso pela série de modificações inseridas pela legislação infraconstitucional brasileira acerca da filiação extramatrimonial, culminando com o advento da Constituição Federal que extirpa de vez qualquer discriminação entre os filhos havidos ou não na constância do casamento, prescrevendo em seu artigo 227, § 6º que os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Todavia, apesar de todas as inovações trazidas na seara do Direito de Família, percebe-se que existem ainda algumas discriminações, ainda que disfarçadas, em relação aos filhos biológicos e os filhos não biológicos, assim considerados, os biológicos aqueles que levam a herança genética de quem consta como pai e mãe no seu registro de nascimento, sendo natural, se a concepção derivou de relação sexual entre os genitores, ou não natural quando a concepção foi realizada in vitro e a filiação não biológica aquela em que os gametas, ou mesmo um deles, não foram fornecidos pelas pessoas identificadas como pai e mãe no registro de nascimento, chamada filiação por substituição, sendo também não biológicas as filiações sócio-afetiva e adotiva, nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho25. 25 Op. cit. p. 148. 24 3) A FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA 3.1) ASPECTOS GERAIS Segundo Fábio Ulhoa Coelho26, A filiação sócio-afetiva constitui-se pelo relacionamento entre um adulto e uma criança ou adolescente, que, sob o ponto de vista das relações sociais ou emocionais, em tudo se assemelha à de pai ou mãe e seu filho. Se um homem, mesmo sabendo não ser o genitor de criança ou adolescente, trata-o como se fosse seu filho, torna-se pai dele. Do mesmo modo a mulher se torna mãe daquele de quem cuida como filho durante algum tempo. Vê-se que, com tantas mudanças havidas, o critério afetivo assume relevante papel na identificação da filiação, já que, muitas vezes a paternidade ou maternidade biológica não é capaz de substituir a convivência necessária para que se construam laços de afetividade permanente. Esse tipo de filiação tem como marco importante, um conjunto de atos de afeição e solidariedade, companheirismo, amor e cordialidade, os quais demonstram com evidência a existência de um vínculo de filiação entre filho-pai-mãe. Segundo Leila Donizetti27, citando Jédison Daltrozo Maidana, (...) ser pai ou mãe na complexidade que esses termos comportam, será sempre aquele ou aquela que, desejando ter um filho, acolhem em seu seio o novo ser, providenciando-lhe a criação, o bem-estar e os cuidados que o ser humano requer para o seu desenvolvimento e para a construção de sua individualidade e seu caráter. Aquele que se dispõe a assumir, espontaneamente, a paternidade de uma criança, levando ela ou não a sua carga genética, demonstra, por si só, consideração e preocupação com o seu desenvolvimento. Será que, posteriormente, seria justo, sem a análise de outras circunstâncias, desconsiderar um vínculo dessa grandeza por uma simples divergência genética? 26 Idem, p. 160. 27 DONIZETTI, Leila. Filiação Sócioafetiva. Direito à Identidade Genética. Rio de Janeiro: Lúmen Jures, 2007. p. 38. 25 Configurando-se a filiação socioafetiva, a ela ligam-se tanto os pais, como os filhos, deixando o pai de ter o direito à posterior negatória de paternidade com base na inexistência de transmissão de herança genética. Isso acontece com a finalidade de não dar ensejo ao homem que, depois de tantos anos se comporta como pai de certo indivíduo, por razões que não estão ligadas à relação paternal, como por exemplo, o rompimento com a mãe, queira se desincumbir da responsabilidade paternal. Do mesmo modo, o filho que estiver amparado, não tem o direito de invocar a paternidade biológica, para que não haja desrespeito aos cuidados recebidos pelo pai ou mãe socioafetivo, salvo se necessitar de amparo econômico para sua sobrevivência. Nas palavras de Belmiro Pedro Welter28, A filiação socioafetiva é fruto do ideal da paternidade e da maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociais, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, conectando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, da solidariedade, subscrevendo a declaração do estado de filho afetivo. Assim, a filiação fundada no afeto surge com a formação dos laços de afetividade que se criam com a convivência e se fortificam com o passar do tempo. Nas palavras de Gérard Cornu29, a filiação não é apenas o nascimento, a família não é apenas o sangue, mas crescer, viver, envelhecer juntos. Vilella30, citando Joseph Goldstein explica o nascimento emocional à luz da psicologia, Para a criança mesma os fatos físicos da geração e parto não conduzem diretamente a um vínculo com os pais. Suas relações de sentimento surgem com base na satisfação de suas necessidades por alimento, cuidado,simpatia e estímulos. Somente quando são os próprios pais biológicos que atendem a esses desejos, a relação 28 WELTER, Belmiro Pedro. Inconstitucionalidade do Processo de Adoção Judicial. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 25/08/2007. 29 CORNU, Gerard. Droit civil: la famille. Paris: Éditions Montchrestien, 1984. p. 36 30 Op. cit. p. 415. 26 biológica determina uma psicológica, na qual a criança possa se sentir segura, apreciada e desejada. Pais biológicos que não estabelecem esse vínculo ou que não vivem em comunidade com a criança são, para os sentimento desta, nada mais do que estranhos. Ressalte-se então que a paternidade socioafetiva é um ato de vontade, de opção, sendo fundada na convivência, no cuidado, no amor. Conforme diz Fábio Ulhoa Coelho31, “a filiação socioafetiva constitui-se pela manifestação do afeto e cuidados próprios das demais espécies de filiação entre aquele que sabidamente não é genitor ou genitora e a pessoa tratada como se fosse seu filho”. Eduardo de Oliveira Leite32 diz, com muita propriedade que “a verdadeira filiação – esta a mais moderna tendência do direito internacional – só pode vingar no terreno da afetividade, da intensidade das relações que unem pais e filhos, independente da origem biológico-genética”. A filiação afetiva é construída, fundando-se no comportamento de quem expende cuidados, carinho, independente do tempo ou lugar, ou seja, tanto faz em público ou na intimidade do lar, demonstrando um afeto verdadeiramente paternal, nascendo desse comportamento um vínculo que ultrapassa os laços de sangue. Nas palavras de Paulo Lôbo33, “é a afirmação da finalidade mais relevante da família: a realização da afetividade pela pessoa do grupo familiar; no humanismo que só se constrói na solidariedade; com outro”. Ressalte-se o que diz Luiz Edson Fachin34, O reconhecimento da filiação socioafetiva se impôs a partir do desenvolvimento da mesma engenharia genética que tornou inegável a verdade biológica. Se, de um lado, a ciência permite a certeza sobre os 31 Op. cit. p. 161 32 LEITE, Eduardo de Oliveira. Temas de Direito de Família. São Paulo: RT, 1994. p. 121. 33 LOBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização nas relações de família. In: BITTAR, Carlos Alberto [org]. O Direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 89. 34 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 25. 27 laços de sangue, ela admite, sobre outro aspecto, que tais laços sejam postos à margem diante de uma realidade socioafetiva. Juridicamente, esse tipo de paternidade tem seu fundamento no Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente preconizado no artigo 227 da Constituição Federal. Segundo Silas Silva Santos35 É inconcebível, em face do Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, que o filho que sempre conheceu o marido de sua mãe como sendo seu pai e com ele manteve uma harmoniosa relação paterno-filial, obtendo dele amor, carinho, educação e demais tratos que mereça um filho, se ver, de uma hora para outra, mediante verificação de inexistência do vínculo biológico, sem pai! Encontram-se na Constituição Brasileira, vários fundamentos do estado de filiação geral, os quais não se resumem à filiação biológica: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo- se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); não é relevante a origem ou existência de outro pai (genitor); d) o direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e o do adolescente (art. 227, caput). Compreende-se então que a família atual não é mais aquela fundada no fator biológico. Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo36, A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988. 35 Disponível em: http://www.gontijo-familia.adv.br/tex255.htm. Acesso em 22/08/2007. 36 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 22 ago. 2007. 28 Parafraseando o mesmo autor, é cabível dizer que o modelo anterior é inadequado, eis que a origem genética, atualmente, não é suficiente para fundamentar a filiação, tendo em vista os valores que passaram a fundamentar as relações humanas. Diz o autor ainda que, Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos. Assim, como já dito antes, toda vez que um estado de filiação estiver constituído na convivência familiar duradoura, decorrente paternidade socioafetiva, esta não poderá ser impugnada nem contraditada. A investigação de paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la. Assim é que se conclui que a paternidade requer envolvimento afetivo e, sobretudo o interesse em resguardar a dignidade da pessoa humana e os interesses da criança. 3.2) A AFETIVIDADE O afeto é fator determinante do comportamento. É ele que ajuda o ser humano a avaliar situações no decorrer da vida, sendo normalmente produzido por estímulos externos, todavia pode também ser originado no interior do indivíduo. Os atos dos seres humanos são determinados pelo afeto, sendo ele um ponto de partida para o apego ou a ligação afetiva. Assim, as relações afetivas são essenciais no desenvolvimento do ser humano e por isso devem ser cultivadas, pois ajudam a construir um indivíduo psicologicamente saudável. 29 Ora, o afeto não é, senão, um sentimento de amizade e dedicação. Conforme G. J. Ballone37, O melhor exemplo que podemos referir para entender a Afetividade é compará-la a óculos através dos quais vemos o mundo. São esses hipotéticos óculos que nos fazem enxergar nossa realidade desse ou daquele jeito. Se esses óculos não estiverem certos podemos enxergar as coisas maiores ou menores do que são, mais coloridas ou mais cinzentas, mais distorcidas ou fora de foco. Tratar da Afetividade significa regular os óculos através dos quais vemos nosso mundo. Vê-se que o afeto desempenha um papel essencial no funcionamento da inteligência. Sem afeto não haveria interesse, nem necessidade, nem motivação. A afetividade é uma condição necessária na constituição da inteligência. Nas relações familiares o afeto tem grande importância, principalmente nos primeiros anos de vida do ser humano, pois dele depende o equilíbrio emocional e o sucesso na vida. Conforme encontrado em artigo disponível na internet38, A criança sente-se aceita através da energia receptiva que se cria no lar. Mesmo que ela tenha sofrido a experiência da rejeição durante a gestação, seus pais poderão proporcionar-lhe mais tarde outra experiência mais positiva,a experiência da aceitação. Isso poderá ser feito através do contato físico, do colo, do olhar carinhoso e da presença firme e meiga dos pais. Deste modo, afeto e família são conceitos com certas peculiaridades e que se encontram entrelaçados. Convém destacar aqui que o afeto não diz respeito apenas ao amor, mas sim a todos os sentimentos que unem a família, sendo esta uma comunidade de afeto. 37 Ballone GJ - Afetividade - in. PsiqWeb Psiquiatria Geral, Internet, 2000 - disponível em http://www.psiqweb.med.br/afeto.html. Acessado em 21.08.2007. 38 Disponível em: http://www.espirito.org.br/portal/cursos/gestante-03.html. Acesso em 20.08.2007. 30 Segundo Paulo Luiz Netto Lobo39, “O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue”. Uma narrativa feita pelo mesmo autor, à qual ele deu o nome de “Nó do Afeto” traduz o que se pode entender como verdadeiro afeto entre pai e filho e como pode haver uma relação de afetividade mesmo quando quase não se convive junto, Em uma reunião de pais, numa Escola da periferia, a diretora ressaltava o apoio que os pais devem dar aos filhos. Pedia-Ihes também que se fizessem presentes o máximo de tempo possível. Ela entendia que, embora a maioria dos pais e mães daquela comunidade trabalhasse fora, deveriam achar um tempinho para se dedicar a entender as crianças. Mas a diretora ficou muito surpresa quando um pai se levantou a explicou, com seu jeito humilde, que ele não tinha tempo de falar com o filho, nem de vê-lo durante a semana. Quando ele saía para trabalhar, era muito cedo e o filho ainda estava dormindo. Quando ele voltava do serviço era muito tarde e o garoto não estava mais acordado. Explicou, ainda, que tinha de trabalhar assim para prover o sustento da família. Mas ele contou, também, que isso o deixava angustiado por não ter tempo para o filho a que tentava se redimir indo beijá-lo todas as noites quando chegava em casa. E, para que o filho soubesse da sua presença, ele dava um nó na ponta do lençol que o cobria. Isso acontecia, religiosamente, todas as noites quando ia beijá-lo. Quando o filho acordava e via o nó, sabia, através dele, que o pai tinha estado ali e o havia beijado. O nó era o meio de comunicação entre eles. A diretora ficou emocionada com aquela história singela e emocionante. E ficou surpresa quando constatou que o filho desse pai era um dos melhores alunos da escola. O fato nos faz refletir sobre as muitas maneiras de um pai ou uma mãe se fazerem presentes, de se comunicarem com o filho. Aquele pai encontrou a sua, simples, mas eficiente. E o mais Importante é que o filho percebia, através do nó afetivo, o que o pai estava lhe dizendo. Por vezes, nos importamos tanto com a forma de dizer as coisas e esquecemos o principal, que é a comunicação através do sentimento. Simples gestos como um beijo a um nó na ponta do lençol, valiam, para aquele filho, muito mais que presentes ou desculpas vazias. É válido que nos preocupemos com nossos filhos, mas é importante que eles saibam, que eles sintam isso. Para que haja a comunicação, é preciso que os filhos "ouçam" a linguagem do nosso coração, pois em matéria de afeto, os sentimentos sempre falam mais alto que as palavras. É por essa razão que um beijo, revestido do mais puro afeto, cura a dor de cabeça, o arranhão no joelho, o ciúme do bebê que roubou o colo, o medo do escuro. A criança pode não entender o significado de muitas palavras, mas sabe registrar um gesto de amor. Mesmo que esse gesto seja apenas um nó. Um nó cheio de afeto e carinho. 39 Op. cit. 31 Ressalte-se que, no conceito de família, o afeto possui um papel de fundamental importância, eis que constitutivo das relações interpessoais que a formam. Por isso, deve-se dar a ele, lugar de destaque, merecendo assim, maior atenção da área jurídica, pois, segundo Silvana Carbonera40, "[...] amplo é o espectro do afeto, mola propulsora do mundo e que fatalmente acaba por gerar conseqüências que necessitam se integrar ao sistema normativo legal". Nas palavras de Oliveira e Muniz41, a família contemporânea é tomada como a "comunidade de afecto e entre-ajuda", espaço onde as aptidões naturais podem ser potencializadas e sua continuidade só encontra respaldo na existência do afeto. É a família eudemonista, pois traduz o meio onde "acentuam-se as relações de sentimento entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da vida nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais". 3.3) A DESBIOLOGIZAÇÃO Diz-se que há a desbiologização quando inexiste ou quando se rompe o convívio entre pais e filhos biológicos, dando-se lugar a uma convivência sócio- afetiva com pais não biológicos. Vê-se que, mesmo nos tempos atuais, há alguns juristas que vêem a família como união de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, cônjuges e prole, 40 CARBONERA, Silvana Maria. Guarda dos filhos na família constitucionalizada. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. p. 41 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família: Direito Matrimonial. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1990. p. 11 e 54. 32 todavia, tal conceituação está por demais distante da atual realidade. Segundo Rodrigo C. Duarte42, não observam as sutilezas e a subjetividade que envolve o assunto. Para termos um conceito moderno de família, mais adequado ao séc. XXI, precisamos analisar principalmente a multiplicidade social, distante do ranço e da mesmice preconceituosa que sempre preponderou na legislação brasileira. O mesmo autor, citando João Batista Villela, diz que “O amor está para o Direito de Família assim como a vontade está para o Direito das Obrigações", ressaltando assim a importância que é dada atualmente ao afeto, pois quando se fala em desbiologização, enfatiza-se a relação de afeto entre pai e filho, pois as relações familiares devem ser fruto da afetividade. Assim, caminha-se a passos largos para o Poder Familiar Desbiologizado, donde retira-se o fator biológico como predominante na relação familiar. Conforme diz Roseli Ribeiro43, citando Gustavo Rene Nicolau, a doutrina está construindo a teoria da desbiologização que considera importante a relação de afinidade e afetividade de cada situação, podendo em muitos casos prevalecer esses valores na indicação de quem deve ficar com a guarda da criança. Seria a preferência dos pais afetivos em relação aos pais naturais ou biológicos, opinião que também é compartilhada pelo professor Nelson Shikicima. Atualmente o termo desbiologização tem sido largamente utilizado no Direito de Família, porque, segundo Sérgio Luiz Paulillo44, “(...) citado de forma crescente nos estudos do Direito de Família, o termo aflorou publicamente no meio jurídico por seu sentido inovador, espelhando realidade paterno-filial histórica mas sempre atual, portanto cogente seu estudo”. 42 DUARTE, Rodrigo Collares. Desbiologização da paternidade e a falta de afeto . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 481, 31 out. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5845>. Acesso em: 21 ago. 2007. 43 Disponível em: http://lawyerbhz.livejournal.com/38593.html. Acesso em 21.08.2007. 44 PAULILLO, Sérgio Luiz. A desbiologização das relações familiares . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 78, 19 set. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4228>.Acesso em: 21 ago. 2007. 33 Segundo o mesmo autor, o termo, por mais que pareça algo novo, não o é, porque já em 1979, o autor João Baptista Vilella lançou o livro A Desbiologização da Paternidade, sendo que foi provavelmente após o lançamento dessa obra que a expressão se popularizou no meio jurídico. Originado do campo da Biologia, o vocábulo se tornou parte do Direito de Família porque passou a dar nome à relação entre pais e filhos conviventes, não consangüíneos, parentais ou não. Vê-se assim que a Biologia vem influenciando cada vez mais o Direito, ajudando essa área a se inserir com mais rapidez ao meio social atual, sendo a desbiologização um grande exemplo disso, pois, segundo o autor acima citado, (...) alçado à matéria biossocial com ampla ramificação jurídico- sociológica, o ambivalente termo possui duas áreas distintas de estudos: uma está ligada intrinsecamente ao Direito, ou seja, a situação do menor sob convivência sócio-afetiva com pais não- biológicos. A outra é a área da própria Biologia, onde o estudo prima pela análise da concepção não-natural obtida pelas técnicas de reprodução humana assistida disponíveis a partir do final do século 20. Embora distintas e até então distantes, ambas evoluem para um vértice comum, que é o do Poder Familiar não-natural. A finalidade da desbiologização não é a de eliminar o vínculo biológico ou de desconsiderar totalmente o laço biológico e sim de incluir na relação entre pais e filhos o laço socioafetivo. Assim, com o fenômeno da desbiologização põe-se termo à idéia propagada durante muito tempo de que a única forma de caracterizar o vínculo entre pai e filho era a troca de material genético, nascendo, em decorrência disso a filiação baseada no afeto, tendo como cordão umbilical o amor. Ao se falar em desbiologização, analisada a situação de fato, o que vem em mente é a relação entre um filho e seu pai afetivo, que, na maioria das vezes é bem maior do que o laço sanguíneo que une aquele filho a outro indivíduo, ou seja, seu pai biológico. 34 Cai por terra então o entendimento de que a verdade biológica está acima de tudo e deve prevalecer nos confrontos com a socioafetiva. Vê-se assim como o afeto tem ganhado terreno tornando-se, dependendo da situação fática, mais importante do que os laços sanguíneos. Criam-se, com grande freqüência nos dias atuais, relações puramente afetivas, desapegadas do fator natural. A jurisprudência pátria vem decidindo reiteradamente pela desbiologização, dando real valor à afetividade em detrimento da verdade biológica. Veja-se a seguir: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO REIVINDICATÓRIA DE PATERNIDADE AJUIZADA PELO SEDIZENTE PAI BIOLÓGICO. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO SOCIOAFETIVO ENTRE O MENOR E O PAI REGISTRAL. ÓBICE À REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA. Desatende aos superiores interesses da criança a realização de exame de DNA, destinado a averiguar a paternidade biológica, quando estabelecida entre o menor e seu pai registral a chamada paternidade socioafetiva. Ademais, o direito à verdade sobre a própria origem genética é direito da criança e somente por ele pode ser exercido, se assim o desejar, em momento oportuno. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Agravo de Instrumento Nº 70019302892, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 18/07/2007) EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO À BRASILEIRA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Ainda que o exame de DNA aponte pela exclusão da paternidade do pai registral, mantém-se a improcedência da ação negatória de paternidade, se configurada nos autos a adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais. Apelação desprovida. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70019125285, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 28/06/2007) COISA JULGADA - Limites subjetivos - Negatória de paternidade - Circunstância em que foi reconhecida a “adoção à brasileira” em anterior ação proposta pelo mesmo autor - Coisa julgada caracterizada - Inaplicabilidade da teoria da relativização da coisa julgada - Condenação por litigância de má-fé mantida - Recurso conhecido e improvido, indicando a hipótese segura da paternidade socioafetiva (Apelação Cível com Revisão n. 443.488-4/1-00 - Ourinhos - 5ª Câmara de Direito Privado - Relator: Francisco Casconi - 18.04.07 - V. U. - Voto n. 13.190) asc Segundo a Dra. Dayse Almeida45, 45 ALMEIDA, D. C. de. A Desbiologização das relações familiares. Disponível em http://www.pailegal.net. Acesso em 21/08/2007. 35 A relação de paternidade sempre aflorou importantes discussões na seara jurídica. Isto ocorre porque as relações entre pais e filhos, haja vista as modificações de pensamentos, e de cultura da nossa sociedade. Os conceitos de paternidade e maternidade ultrapassaram a biologia, saindo dela para adentrar ao mundo fático, contemplando a convivência e o sentimento de afeto em contraposição à relação biológica estabelecida. Tudo isso se deve ao fato de que a família, hodiernamente é vista como um alicerce psicológico e emocional do ser humano. Evidencia-se cada vez mais o valor do afeto nas relações familiares. Pode-se afirmar então que a verdadeira filiação não é aquela determinada pela descendência genética, mas muito mais aquela construída, calcada nos laços de afeto. Conforme afirma Maria Regina Fay de Azambuja46, “a razão maior da paternidade se funda ‘no desejo humano, essencial, de amar e ser amado”. Na concepção atual a afetividade é que vinca as relações parentais. É certo que nunca foi tão fácil o descobrimento da verdade biológica, o que hoje se consegue pelas avançadas técnicas, todavia, nunca se desprezou tanto essa verdade para a definição dos vínculos parentais, pois a filiação passou a ser identificada pela verdade sócio-afetiva. Parafraseando Dayse Coelho de Almeida47, o que se observa na consideração da paternidade socioafetiva, é a superioridade da vontade e da responsabilidade sobre o caráter biológico. O conceito de pai, atualmente, vai além do conceito meramente biológico, qual seja de fonte do espermatozóide, dando azo, como já frisado, à responsabilidade, à criação de laços onde o filho se sinta amado e respeitado com o devido merecimento. 46 Disponível em www.direitodafamilia.net. Acesso em 21/08/2007. 47 ALMEIDA, Dayse Coelho de. A Desbiologização das Relações Familiares. Jus Vigilantibus. Vitória: 2005. disponível em: http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/2728. Acesso em 25/08/2007. 36 3.4) A POSSE DO ESTADO DE FILHO É a exteriorização da condição filial, ou por levar o nome, ou por ser aceito como tal pela sociedade como fato público e notório. Isso ocorre com o “estado de filho afetivo”, que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse. Segundo Julie Cristine Delinski48, Após o advento da Constituição Federal de 1988, que reformou profundamente o instituto da filiação, adotando um sistema unificado e, por isso, acabando com qualquer discriminação em relação aos filhos, cabe agora ao ordenamento jurídico encontrar meios sustentáveis para reconhecer a paternidade mais condizente com a realidade daqueles que a procuram, dentre as três linhas que a compõe: a paternidade jurídica, a biológica e a sócio-afetiva. Diz ainda a mesma autora que seria interessante que a paternidade se fundasseao mesmo tempo nas três espécies, mas reconhece que nem sempre isso é possível, existindo situações em que as mesmas entram em conflito, restando um grande problema jurídico para se estabelecer a paternidade. Assim, na busca de subsídios para que se baseie a paternidade socioafetiva é que surge a posse do estado de filho, fundamentada nas relações de afeto, caracterizada por uma intensa convivência pai-filho. Nas palavras da autora acima citada, o fundamento de validade da noção de posse de estado de filho é a valorização das relações calcadas no afeto, sendo que pai não é apenas aquele ligado por um laço biológico e sim aquele ligado pelos intensos e inesgotáveis laços de afeto, ou seja, pai é aquele que cuida, protege, educa, alimenta, que participa intensamente do crescimento físico, intelectual e 48 Op. cit. p. 38 37 moral da criança, dando-lhe o suporte necessário para que se desenvolva como ser humano. Entendendo-se a posse do estado de filho como sendo uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai, é que se revela a importância de tal instituto quando do surgimento de conflitos de paternidade como por exemplo nos casos em que as relações de afeto entre pai e filho não condizem com a paternidade jurídica, ou ainda quando comprovada a paternidade biológica, mas a existência de posse de estado de filho se dá com um terceiro, que não o pai genético. Em todos esses casos, assume importância primordial a posse de estado de filho, valorizando-se a afectio, a verdade sociológica. É a verdade socioafetiva ganhando o abrigo do Direito, isso nas palavras de Elisabeth Nass Anderle49. É na posse de estado de filho que se vê caracterizada a paternidade de afeto. Nas palavras de João Baptista Vilella50, não são os fatos físicos da geração e parto que fazem nascer um vínculo entre a criança e os pais; os laços da relação pai-filho se efetivam quando os filhos são pelos pais alimentados, cuidados, abraçados e protegidos. Depreende-se então que procriação e paternidade são fatos diferentes, onde procriação seria um dado e a paternidade um construído. 3.4.1) Elementos constitutivos da posse do estado de filho 49 ANDERLE, Elisabeth Nass. A posse de estado de filho e a busca pelo equilíbrio das verdades da filiação. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3520>. Acesso em: 21/08/2007. 50 VILELLA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da UEFG, a. 27, nº 21, p. 415, maio 1979. 38 Afirma a doutrina que a posse de estado se constitui pela integralização de três elementos, quais seja, o nome ("nomem"), o trato ("tractatus") e a fama ("fama"). Para que se configure o primeiro elemento é necessário o uso constante do nome de família do pretendido pai. O segundo, o trato, configura-se pela criação, educação do indivíduo, tido e apresentado como filho legítimo pelo pai e pela mãe e, segundo Mauro Aguiar de Moura51, É considerado elemento objetivo, porque se caracteriza pelo comportamento do pretenso pai em relação ao suposto filho. Pode-se, assim, reconhecê-lo, pela assistência material e moral dada ao filho, como por exemplo, o carinho, os cuidados, o afeto, a educação, a saúde, comuns a todos os pais no tocante aos seus filhos. Neste aspecto, podem subsistir as assistências material e moral, ou então somente a material, ou a moral. Pois, para a caracterização deste elemento deve-se levar em consideração a situação pessoal do suposto pai, quer dizer, pode ocorrer que o pai não tenha condições econômicas para prestar assistência ou então que o filho dela não necessite. No caso da assistência moral, o pai pode ter dificuldades em expressar seus sentimentos ao filho, seja por temperamento, seja por conveniência. Assim, o uso do termo "filho" e do termo "pai", não são necessários. O que deve ser valorizado é o amor, o carinho, a educação e tudo mais que um pai dispensa a um filho. Já a fama resulta de ser o filho sempre considerado na família e na sociedade como legítimo da família que afirma ser. É a exteriorização desse estado da pessoa, publicamente. Conforme o autor acima citado, é o lado propriamente social da posse de estado, eis que, diante das atitudes do suposto pai com seu pretenso filho, cria-se a convicção de que se trata mesmo de pai e filho. 51 74. MOURA, Mauro Aguiar de. Tratado prático de filiação. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1984. p. 527. 39 Todavia, quanto ao primeiro elemento, o nome, diz a doutrina não ser essencial, desde que restem comprovados os outros dois elementos, necessários para a revelação ou não do vínculo psicológico e social entre o filho e o suposto pai. Convém ressaltar ainda a questão da duração da posse de estado, pois, segundo Rémond-Gouilloud52, Sem o decorrer do tempo, a posse de estado não existe. Com efeito, não é um fato pontual que ela revela, mas uma situação que só toma consistência com o tempo; tecida pela repetição de incidentes cotidianos, ela oferece não um instantâneo da vida de um individuo, mas uma seqüência de filme. Assim, para que se constitua a posse de estado de filho é necessária uma certa duração, não se realizando num único dia. Vê-se então que, além dos três elementos constitutivos, ou seja, o nome, o trato e a fama, é necessário que haja uma certa continuidade, eis que a existência da posse de estado de filho pressupõe habitualidade e estabilidade relativas, que, segundo Julie Cristine Delinski53, não é necessária que seja perpétua, supondo a continuidade uma duração suficiente para sua caracterização. A posse do estado de filho se intensifica com o passar do tempo. Ressalta então a autora acima que, (...) a noção de “posse de estado de filho”, como foi demonstrado, é formada por laços afetivos que se traduzem externamente através da tríade clássica: tractatus, nomen e fama (cada qual com o seu peso), acrescidos de certa duração. 52 RÉMOND-GOUILLOUD, Martine. La Possession d’état d’enfant. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, v. 74, n. 3, juil./sep.1975, p. 468. 53 Op. cit. p. 48 40 3.5) ESPÉCIES DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA 3.5.1) A Adoção Essa espécie de paternidade tem seu fundamento num liame socioafetivo intenso, estabelecendo uma relação de ascendência e descendência independente da consangüinidade. Segundo Luiz Edson Fachin54, A adoção constitui espaço em que a verdade socioafetiva da filiação se manifesta com ênfase inegável. Mais do que os laços de sangue, o que une o adotante e o adotado são os laços de afeto, que se constroem no espaço de convivência familiar. Procura-se, com tal instituto, dar-se uma oportunidade de inserção do adotado em um ambiente familiar, possibilitando sua integração com a finalidade de atender às suas necessidades de crescimento e desenvolvimento psíquico, educacional e afetivo, tudo isso num ambiente de coexistência fundado no afeto. Diz ainda o autor acima citado que, A adoção de crianças ou de adolescentes se coloca como adoção plena: com efeito, em tais hipóteses, a preocupação do ordenamento deve se dar no sentido de assegurar o desenvolvimento. Ético, moral, afetivo e intelectual da criança, inserindo-a em um espaçode coexistência familiar, com pleno estabelecimento dos vínculos de parentesco, em igualdade de condições com os filhos consangüíneos. Chama-se adoção judicial aquela revestida de formalidades legais, onde os interessados em adotar devem preencher alguns requisitos e que para ser concretizada necessita de um pronunciamento judicial. Ressalte-se o que diz Vera Helena Vianna do Nascimento55: “O maior requisito para adotar uma criança, é a disponibilidade de amar. Ser pai ou mãe, não é só gerar, é antes de tudo, amar”. 54 Op. cit. p. 151 41 3.5.2) Filhos de criação Outro instituto também fundamentado no liame socioafetivo, sem o vínculo biológico. Educa-se uma criança ou adolescente, dando-lhe abrigo em um lar, tendo por único fundamento, nas palavras de Jaqueline Nogueira56, “o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto”. Com razão Clovis Beviláqua57 quando diz, sobre os filhos de criação que, é quando uma pessoa, “constante e publicamente, tratou um filho como seu, quando o apresentou como tal em sua família e na sociedade, quando na qualidade de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e sua educação, é impossível não dizer que o reconheceu”, não importando para tanto, o que realmente consta na certidão de nascimento desse filho “criado”. 3.5.3) Adoção à Brasileira Há também casos onde o adotando é registrado diretamente no nome dos adotantes, sem o devido processo legal, a chamada adoção à brasileira, que é o reconhecimento de filho alheio como próprio. Essa prática, apesar de ser tida como ilegal por não ser baseada no devido processo legal, atende ao mandamento contido 55 Disponível em: http://guiadobebe.uol.com.br/planej/o_que_e_adocao.htm. Acesso em 23/08/2007. 56 NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001. p. 56. 57 BEVILAQUA, Clovis. Direito da Família. 7.ed. Rio de Janeiro: Ed. Freitas Bastos, 1943. p. 346. 42 no art. 227 da Constituição, de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito "à convivência familiar". Nesse tipo de adoção, a criança, ao nascer é registrada diretamente no nome dos pais afetivos como se fossem biológicos. 3.5.4) Filiação eudemonista no reconhecimento voluntário e judicial da paternidade e da maternidade Quando a pessoa, espontaneamente, comparece no Cartório de Registro Civil, para registrar alguém como seu filho, não necessitando de comprovação genética58. Nas palavras de Villela59, é “aquele que toma o lugar dos pais pratica, por assim dizer, uma ‘adoção de fato”. Assim, aceita voluntária ou judicialmente a paternidade ou da maternidade, é estabelecido o estado de filho afetivo com a atribuição de todos os direitos e deveres do filho biológico, nas palavras de Eduardo de Oliveira Leite60. 58 VILLELA, João Baptista. O modelo constitucional da filiação: verdades & superstições. Revista Brasileira de Direito de Família, nº 2, julho/agosto/setembro de 1999. 59 FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 124, citando RICHER, Danielle. Les enfants qui ne sont pas les miens: développements récents en droit familial. Québec: Yvon Blais, 1992. p. 169. 60 Op. cit. p. 115. 43 4) CONSIDERAÇÕES FINAIS Vê-se que a noção de família tomou novos rumos, partindo das diversas mudanças ocorridas dentro da sociedade. O modelo patriarcal, firmado na concepção de que família era aquela estabelecida através do matrimônio, deu lugar às famílias plurais, ou seja, as formadas por pai e seus filhos ou mãe e seus filhos, por avós e netos e assim por diante, caracterizando o verdadeiro papel da família, compreendido como sendo o de amparar os seus membros, moral, psíquica e economicamente. Disto resulta, por óbvio, que a relação de filiação não decorre simplesmente do vínculo genético, sendo que o verdadeiro desenvolvimento da relação pai-mãe- filho, se desenvolve por intermédio do convívio, não sendo suficiente o simples reconhecimento da paternidade ou o fato de figurar a paternidade em uma certidão de nascimento, mas, sobretudo, da forma como esse relacionamento é desenvolvido, devendo-se reconhecer como verdadeiro pai, aquele que educa, dá carinho, atenção, provê as necessidades do filho, independentemente de laços sanguíneos ou de nome de família. Atento a essa nova visão de família foi que o Constituinte de 1988, na elaboração da Carta Magna brasileira reconhece como família, tanto a edificada pelo casamento, como a formada pela união estável ou pela comunidade constituída por qualquer dos pais e seus descendentes, denominada família monoparental, nuclear, pós-nuclear, unilinear ou sociológica, fundamentada na busca do ideal da felicidade, do esmero, do carinho e da comunhão plena de vida e de afeto. 44 Foi assim que se instituiu a filiação socioafetiva, a qual dividiu o espaço social e jurídico com a filiação biológica (artigo 227, caput e parágrafo 6º e artigos 1.593, 1.596, 1.597, V, 1603 e 1.605, II, do Código Civil), não devendo ser a paternidade biológica considerada como a única verdadeira. Nesse contexto, insere-se então a posse de estado de filho, onde se prima pela dignidade da pessoa humana, dando aos filhos o direito de viver com pessoas que, não só lhe trazem o sustento material, mas, sobretudo, são capazes de amá- los, transmitir carinho e respeito. Segundo Sidamaia de Quevedo Vedoi61, Nessa nova perspectiva familiar, o objeto fundamental é a realização pessoal de seus membros que, unidos por sentimento afins dedicam carinho e amor a uma criança, independentemente de imposição legal ou do vínculo sanguíneo; o afeto é fruto de ato voluntário. Assim, a verdade genética não pode ser, única e suficiente para se caracterizar a filiação, sendo necessária a reunião de valores que privilegiem a convivência e que sejam capazes de construir laços afetivos e duradouros de amor, carinho, dedicação e respeito. Nas palavras do autor acima citado, a família deixa de ser vista única e exclusivamente pela linhagem sanguínea, passando a ser vista, sobretudo como uma comunidade de afeto, “onde cada indivíduo tem ali o seu “porto seguro”, destinado a garantir a toda pessoa, respeito e dignidade para que possa desenvolver seu papel na sociedade de forma segura e responsável, baseada em valores assimilados pelo coração”. 61 VEDOI, Sidamaia de Quevedo. Filiação sócioafetiva : O elemento afetivo como critério para a definição da filiação. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 21, 31/05/2005 [Internet]. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=551. Acesso em 25/08/2007. 45 Alguns Tribunais já tem reconhecido que a falta de condições econômicas para sustento dos filhos não pode levar à destituição do poder familiar, o que não ocorre com a falta de afeto, conforme se vê do seguinte julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais62, EMENTA: DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE MÁXIMA PROTEÇÃO À CRIANÇA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. A destituição do poder familiar é algo sempre perturbador e traumático para o
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