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Sobre a dificuldade de ler Os vários casos da ilegibilidade de um livro, ou do “livro da vida” Giorgio Agamben Gostaria de lhes falar não da leitura e dos riscos que ela comporta, mas de um risco ainda maior, ou seja, da dificuldade ou da impossibilidade de ler; gostaria de tentar lhes falar não da leitura, mas da ilegibilidade. Cada um de vocês terá feito a experiência daqueles momentos nos quais gostaríamos de ler, mas não conseguimos, nos quais nos obstinamos a folhear as páginas de um livro, mas ele nos cai literalmente das mãos. Nos tratados sobre a vida dos monges, este era, aliás, o risco por excelência ao qual o monge sucumbia: a acédia, o demônio do meio-dia, a tentação mais terrível que ameaça os homines religiosi se manifesta, antes de mais nada, com a impossibilidade de ler. Eis a descrição que S. Nilo lhe dá: “Quando o monge acedioso tenta ler, interrompe-se inquieto e, um minuto depois, cai no sono; esfrega o rosto com as mãos, estende os dedos e continua a ler por algumas linhas, balbuciando o fim de cada palavra que lê; e, entretanto, se enche a cabeça com cálculos ociosos, conta o número das páginas que ainda restam a ler e as folhas dos cadernos e se lhe tornam odiosas as letras e as belas miniaturas que tem diante dos olhos até que, por último, torna a fechar o livro e o usa como um travesseiro para a sua cabeça, caindo em um sono breve e profundo…”. A saúde da alma coincide aqui com a legibilidade do livro (que é também, para o medievo, o livro do mundo), o pecado com a impossibilidade de ler, com o tornar-se ilegível do mundo. Simone Weil falava, nesse sentido, de uma leitura do mundo e de uma não-leitura, de uma opacidade que resiste a toda interpretação e a toda hermenêutica. Gostaria de lhes sugerir que prestassem atenção aos seus momentos de não leitura e de opacidade, quando o livro do mundo cai das suas mãos, porque a impossibilidade de ler lhes diz respeito tanto quanto a leitura e é, talvez, tanto ou mais instrutiva do que esta. Há também uma outra e mais radical impossibilidade de ler, que até poucos anos atrás era, antes de tudo, comum. Refiro-me aos analfabetos, esses homens muito apressadamente esquecidos, que, há apenas um século, eram, ao menos na Itália, a maioria. Um grande poeta espanhol do século 20 dedicou um livro de poesia seu ao analfabeto para/por quem eu escrevo. É importante compreender o sentido desse “para/por”: não tanto ou não somente “para que o analfabeto me leia”, visto que por definição não poderá fazê-lo, quanto “no seu lugar”, como Primo Levi dizia testemunhar por/para aqueles que no jargão de Auschwitz se chamavam de muçulmanos, isto é, aqueles que não podiam nem poderiam ter testemunhado, porque, pouco depois do seu ingresso no campo, tinham perdido toda consciência e toda sensibilidade. Gostaria que vocês refletissem sobre o estatuto especial desse livro que, na sua essência, é destinado a olhos que não podem lê-lo e foi escrito com uma mão que, em um certo sentido, não sabe escrever. O poeta ou o escritor que escreve pelo/para o analfabeto tenta escrever o que não pode ser lido, põe no papel o ilegível. Mas precisamente isso torna a sua escrita mais interessante do que a que foi escrita apenas por/para quem sabe ler. Há, finalmente, um outro caso de não leitura do qual gostaria de lhes falar. Refiro-me aos livros que não encontraram aquela que Benjamin chamava de a hora da sua inteligibilidade, que foram escritos e publicados, mas estão – talvez para sempre – à espera de serem lidos. Eu conheço – e cada um de vocês, eu acredito, poderia citar – livros que mereciam ser lidos e não foram lidos, ou foram lidos por pouquíssimos leitores. Qual é o estatuto desses livros? Eu penso que, se esses livros eram verdadeiramente bons, não se deveria falar de uma espera, mas de uma exigência. Esses livros não esperam, mas exigem ser lidos, mesmo que não o tenham sido ou não o serão jamais. A exigência é um conceito muito interessante, que não se refere à esfera dos fatos, mas a uma esfera superior e mais decisiva, cuja natureza deixo a cada um de vocês precisar. Mas agora gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que se ocupam de livros: parem de olhar para as infames, sim, infames classificações de livros mais vendidos e – presume-se – mais lidos e tentem construir em vez disso na mente de vocês uma classificação dos livros que exigem ser lidos. Só uma editora fundada nessa classificação mental poderia fazer o livro sair da crise que – pelo que ouço ser dito e repetido – está atravessando. Um poeta compendiou uma vez a sua poética com a fórmula: “ler o que não foi jamais escrito”. Trata-se, como vocês veem, de uma experiência de algum modo simétrica àquela do poeta que escrevia por/para o analfabeto que não pode lê-lo: à escrita sem leitura, corresponde aqui uma leitura sem escrita. Com a condição de precisar que também os tempos estão invertidos: lá uma escrita que não é seguida por nenhuma leitura, aqui uma leitura que não é precedida por nenhuma escrita. Mas talvez em ambas essas formulações está em questão algo de similar, ou seja, uma experiência da escrita e da leitura que põe em questão a representação que nos fazemos habitualmente dessas duas práticas tão estreitamente ligadas, que se opõem e ao mesmo tempo remetem a algo de ilegível e de inescrevível que as precedeu e não cessa de acompanhá-las. Vocês terão compreendido que me refiro à oralidade. A nossa literatura nasce em íntima relação com a oralidade. Porque o que faz Dante quando decide escrever na língua vulgar, senão justamente “escrever o que não foi jamais lido e ler o que não foi jamais escrito”, isto é, aquele “falar materno” analfabeto, que existia somente na dimensão oral? E tentar colocar por escrito o falar materno o obriga não simplesmente a transcrevê-lo, mas, como vocês sabem, a inventar aquela língua da poesia, aquela língua vulgar ilustre, que não existe em nenhuma parte, mas, como a pantera dos bestiários medievais, “espalha em toda parte o seu perfume, mas reside em lugar nenhum”. Eu creio que não se possa compreender corretamente o grande florescimento da poesia italiana no século 20, se não se percebe nela algo como a reconvocação daquela ilegível oralidade que, diz Dante, “uma e única é primeira na mente”. Isto é, se não se entende que ela é acompanhada pelo igualmente extraordinário florescimento da poesia em dialeto. Talvez a literatura italiana do século 20 seja toda ela atravessada por uma memória inconsciente, quase por uma afanosa comemoração do analfabetismo. Quem teve entre as mãos um desses livros, nos quais a página escrita – ou, melhor, transcrita – em dialeto está ao lado da tradução em vernáculo, não pode não se perguntar, enquanto os seus olhos atravessavam inquietos de uma página à outra, se o lugar verdadeiro da poesia não estaria, por acaso, nem em uma página nem na outra, mas no espaço vazio entre ambas. E gostaria de concluir esta breve reflexão sobre a dificuldade da leitura, perguntando a vocês se o que nós chamamos de poesia não seria, na verdade, algo que incessantemente habita, trabalha e sustém a língua escrita para restituí-la àquele ilegível do qual provém e para o qual se mantém em viagem. O presente texto foi apresentado em uma intervenção na Feira da Pequena Editora, em Roma, em outubro de 2012. Tradução de Cláudio Oliveira Inoperosidade e atividade humana Agamben propõe um novo paradigma ético e político ao construir o conceito de inoperosidade Andrea Cavalletti 1. Na seção final do VIII capítulo, ou seja, no verdadeiro coração teorético de O reino e a glória, Giorgio Agamben conclui asua ampla indagação arqueológica sobre a glória e a glorificação avançando até o lugar onde Reino e Governo, teologia e economia – ou, na verdade, teologia política e teologia econômica, direito estatal e dispositivos sicuritários – revelam seus ocultos parentescos, para aparecer, por fim, como “as faces de uma mesma máquina do poder”. Nas últimas, densas frases de um tratado que, dos estudos sobre as aclamações de Alföldi, de Kantorowicz e de Peterson se move ora entre Durkheim, Mauss e Mopsik de um lado e Hölderlin, Rilke e Mallarmé do outro, todas as linhas da grande obra, as mais ricas de erudição e as menos evidentes e mais impenetráveis, convergem de fato em torno de uma única imagem, aquela do trono vazio, a heitomasia tou thronou, que Agamben lê como símbolo não da realeza, mas, em âmbito tanto profano quanto religioso, da “vacuidade central da glória”, da essência mesma da glória ou da inoperosidade feliz. Le trône n’est qu’un fauteuil vide [O trono não passa de uma poltrona vazia], poder-se-ia, aqui, glosar, invertendo a frase famosa de Guizot. Ocorre, porém, acrescentar que este vazio corresponde a uma condição de todo particular: trata-se do estádio, posterior ao Juízo, do “sabatismo elevado à potência”, que, na sua “tentativa balbuciante de pensar o impensável”, Agostinho define diversamente como uma paz sem necessidades ou acédia, como tempo do _m e ao mesmo tempo do “vacabimus in aeterno”. Trata-se, porém, ao mesmo tempo, daquilo que segundo Agamben define a vida humana como tal, de uma feliz falta de objetivo que a máquina do poder ou da Glória, nas suas diferentes articulações, não faria senão isolar e ao mesmo tempo deter, como uma presa ou um seu alimento essencial, no interior do seu aparato litúrgico. Na majestade do trono vazio o dispositivo da glória encontra sua cifra perfeita. O seu objetivo é capturar, no interior da máquina governamental – para fazer dela o motor secreto desta –, aquela impensável inoperosidade que constitui o mistério último da divinidade. […] A oikonomia do poder põe solidamente no seu centro […] aquilo que aparece aos seus olhos como a inoperosidade do homem e de Deus impossível de se olhar. Em uma breve nota cursiva, Agamben, então, introduz o tema aristotélico do homem como ser que é, na sua essência, argos [do grego aérgos, “que não faz”], da humanidade do homem como específica ausência de obra, delineando sumariamente as declinações averroísta do intelecto possível e dantesca da multitude como plena atuação da potência. É somente uma indicação, a menção lacônica a uma ideia (e aos desenvolvimentos de uma ideia) que é “logo deixada de lado” pelo próprio Aristóteles. Mas essas poucas linhas têm a explícita função de recapitulação, remetem à memória do leitor de Agamben uma inteira constelação de escritos, compostos do início ao fim dos anos 1980: as páginas de A comunidade que vem, de Bartleby ou da contingência, aquelas de Homo Sacer I, os ensaios recolhidos em A potência do pensamento (por exemplo, “Heidegger e o nazismo” e “A obra do homem”) adquirem assim uma nova legibilidade. É como se Agamben tivesse há muito tempo se confrontado com a teoria aristotélica justamente para arrancar da máquina a sua presa; e é como se agora, nessa breve passagem de O reino e a glória, ele definisse assim seu pensamento: como uma potência que se subtrai à máquina, tornando-a inativa. 2. Em Homo Sacer I, a relação estabelecida por Aristóteles entre ação e potência parecia totalmente homóloga àquela forma limite da relação que é o banimento soberano: … à estrutura da potência, que se mantém em relação com o ato precisamente através de seu poder não ser, corresponde aquela do banimento soberano, que se aplica à exceção desaplicando-se. Diferentemente, como já foi dito, no VIII capítulo de O reino e a glória é citada a passagem 1097b da Ética a Nicômaco, em que Aristóteles evoca a ideia “de uma possível inoperosidade da espécie humana”, da ausência de obra ou de atitude determinada como traço específico do homem. Ora, como poderia jamais esta inoperosidade subtrair-se ao banimento que ainda antes divide e restringe potência e ato? Não será inútil observar que com a entrada em cena do novo modelo cognitivo é introduzida também uma diferença essencial na própria definição de “inoperosidade”. Em Homo Sacer I, com efeito, este conceito já aparecia, em lugar não de certo marginal, e na sua formulação francesa: Bataille, embora permaneça um pensador da soberania, pensou, na negatividade sem emprego e no desoeuvrement, uma dimensão limite na qual a “potência de não” não parece mais subsumível na estrutura do banimento soberano. Ora, ao contrário, em O reino e a glória (Homo Sacer II, 2), quando fica claro que precisamente a inoperosidade pode ser isolada como tal e guardada pela máquina, tratar-se-á de concebê-la em um sentido completamente novo. Afrontar a máquina, arrancar-lhe o mais preciso alimento, o que significará manter unidas, na própria inoperosidade, a atividade e a passividade: Também não se trata – declara Agamben em uma entrevista recente em francês – segundo uma bela tradição que vai do shabbat do homem do último Kojève ao malandro inoperante [desoeuvré] em Queneau, até Blanchot e Nancy, de entender por isso a ausência de obra. Trata-se, antes, de uma práxis, de uma operação que consiste em tornar inoperantes todas as obras humanas. É preciso entender o termo como se existisse um verbo ativo inoperar [désoeuvrer (ou désouvrer)] que nomearia o gesto inverso em relação a operar [oeuvrer (ou à ouvrer)]. E, nesse sentido, o termo nomeia a atividade mais própria do homem, tanto no sentido ético quanto político. Tornar inoperantes todas as obras humanas quer dizer tornar inoperante a máquina do poder, fazer com que esta não capture a inoperosidade desassociando-a da práxis, fazer com que, ao contrário, a inoperosidade capture a própria ação. 3. Inoperosidade… Termo que, como declarou Agamben, a proprósito da edição francesa de O reino e a glória, “de acordo com os tradutores, se decidiu traduzir por désoeuvrement”. A decisão, apesar de substancialmente óbvia, não deve ter sido simples. A tradução corria o risco de ocultar o essencial, de reconduzir a inoperosidade a um cânone filosófico do qual Agamben procurava subtraí-la. Por outro lado, o termo “inoperosidade”, há tempos tinha ingressado no jargão filosófico italiano, e precisamente como tradução de désouvrement, pelo menos desde a versão datada de 1967, de L’espace littéraire de Maurice Blanchot (1955). E a palavra ressoava certamente na mesma tonalidade, quando em 1992, três anos antes de Homo Sacer I viesse à luz, La communauté désoeuvrée (1986) de Jean-Luc Nancy era traduzido, para o italiano, como La comunità inoperosa [A comunidade inoperosa]. Não é certamente o caso de recapitular as teses célebres deste livro, senão, pelo menos, aquelas que, definindo o não pertencimento da comunidade a qualquer obra (e a qualquer sujeito), traçam ao mesmo tempo uma primeira genealogia da noção de désouvrement: [a comunidade] – escreve Nancy – está condenada à morte como aquilo do qual é impossível fazer obra (a não ser uma obra de morte, logo que se queira fazer dela uma obra). e mais além: a comunidade tem lugar necessariamente naquilo que Blanchot chama de inoperosidade [désouvrement]. Aquém e além da obra, o que se retira da obra, o que não tem mais a ver nem com a produção nem com a realização, mas encontra a interrupção, a fragmentação, a suspensão. Assim, portanto, Nancy. Notável é aqui que inoperosidade e obra sejam distinguidas na comum referência à morte.A inoperosidade ligada à morte deixa apenas uma obra separada e possível: a obra de morte. Primária, aqui, não é verdadeiramente a inoperosidade, mas a sua de_nição sob o signo da morte. E essa inoperosidade fechada, limitada à morte, deixa também o possível nas mãos da morte. Assim a comunidade inoperosa se liberta da obra, renuncia a ela, para deixar possível somente (tornar no fundo irrenunciável) uma obra de morte. Na “Apostila” acrescentada em 2001 à nova edição de A comunidade que vem (1990), Agamben, no entanto, escreve: Não o trabalho, mas inoperosidade e descriação são [...] o paradigma da política que vem [...]. A rendenção, o tiqqun que está em questão no livro não é uma obra, mas uma espécie particular de férias sabáticas [...]. Inoperosidade não significa inércia, mas katargesis – isto é, uma operação na qual o como substitui integralmente o que, na qual vida sem forma e forma sem vida coincidem em uma forma de vida. A exposição dessa inoperosidade era a obra do livro… Aqui parece já realizado o passo essencial que separa nitidamente a perspectiva de Agamben daquela de Nancy, de Blanchot, de Bataille (e portanto de Kojève). Considere-se a fórmula “a exposição dessa inoperosidade era a obra do livro”. A inoperosidade, em Agamben, não deve, de fato, renunciar ou subtrair-se à obra. Consequentemente, a “comunidade que vem” deixa de ser orientada em direção à morte como ausência de obra, livrando-se ao mesmo tempo do risco da obra de morte. Se a inoperosidade não abdica da obra, a comunidade permanece completamente estranha à ideia de sacrifício com a qual Acéphale “teria renunciado à sua renúncia a fazer obra” (Blanchot). Certamente, Nancy falou de “puerilidade desastrosa da obra de morte da morte, considerada como obra da vida comum”. Mas somente se a obra e a inoperosidade não permanecerem separadas, a ideia de comunidade se emancipa do ideal ridículo e ruinoso “da vida à altura da morte” (Bataille). O coração de A comunidade que vem é a inoperosidade inseparável ou “a forma de vida”. 4. Se a comunidade, escrevia Nancy, se dá “necessariamente naquilo que Blanchot chama de désouvrement”, ou seja no “aquém onde, do ser, não se pode fazer nada, no qual nada se realiza”, ou no múrmurio da “pura ausência”, no seu “lugar de glória” (Blanchot), Agamben, ao contrário, arranca a inoperosidade da glória soberana e a concebe como cumprimento messiânico. “Inoperosidade não significa inércia, mas katergesis”, temos no texto de 2001. No livro do ano anterior, O tempo que resta, Agamben tinha cumprido o passo decisivo para além do banimento soberano, fazendo de “inoperosidade” a tradução literal além do termo chave do messianismo paulino: “Katargeo – lê-se aí – é um composto de argos, que deriva, por sua vez, do adjetivo argos [...] ‘inoperante, não-em-obra (a-ergos), inativo’”. Nas páginas deste livro, especificamente no parágrafo dedicado ao estado de exceção (“Quinta jornada”), faz o seu potente aparecimento a nova ideia da inoperosidade, ligada à redenção, ao tiqqun. Aqui a fórmula Homo Sacer I: à estrutura da potência, que se mantém em relação com o ato precisamente através do seu poder não ser, corresponde aquela do banimento soberano, que se aplica à exceção desaplicando-se… encontra a sua perfeita solução: À lei que se aplica desaplicando-se corresponde agora o gesto que a torna inoperosa e a leva ao cumprimento. A estrutura da potência, ainda conectada ao banimento soberano, é substituída aqui, coerentemente, a inoperosidade como gesto ativo que o abole. O pensamento de Agamben jamais, com efeito, deixou de se voltar para Aristóteles: se “o pleroma messiânico [...] é uma Au_ebung do estado de exceção, uma absolutização da katargesis”, o fundamento filosófico destes conceitos “está na ontologia aristotélica da privação (steresis)” (O tempo que resta). 5. Não seria ilícito considerar a reflexão agambeniana sobre o ato e a potência como uma retomada admirável ou uma interpretação radical do curso de Heidegger sobre o Livro IX da Metafísica de Aristóteles (Aristoteles, Metaphisik 1-3. Vom Wesen und Wirklichkeit der Kra_) e marcadamente dos parágrafos 10-12, dedicados aos dois modos fundamentais da dynamis (Ertragsmkheit e Widerstand), portanto à unidade, na dynamis, do poiein e do paschein, e por fim à steresis enquanto traço interno da dynamis. As teses heideggerianas são conhecidas: onde a potência (ou força, Kraft) de agir e a de sofrer são entendidas como uma única dynamis, ou seja, onde “a essência da potência é nela mesma subdividida de maneira originária, a partir da própria essência e em relação (Bezug) com tal essência, em duas potências contrapostas”, aqui a potência em si, “o ser-potência como tal”, não é senão relação (Bezug) do poiein com o paschein. Pensar tal co-pertença, ou a referência recíproca de potentia e im-potentia, significa assim para Heidegger não somente refutar uma leitura simplesmente negativa da steresis mas, interpretando-a como “relação de subtração” (entzughafter Bezug; esteremenon, privação, é no entanto traduzido como Entzug), reveindicar também o seu caráter especial e fundante: “a dynamis – ele afirma – está num sentido preeminente à mercê da steresis e por ela capturada”. Ou seja, toda potência requer a relação e já está sempre em relação inclusiva (Einbezug) com a própria falta. E onde a steresis é uma “modificação interna” (innere Abwaldung) da dynamis, esta última será justamente, nos dois sentidos da privação, ao mesmo tempo um fazer e um sofrer: “o ser potência é todas as duas coisas como uma única coisa”, ou seja como a sua mais íntima e não cindível relação. É, pois, movendo-se a partir dessas premissas, que Heidegger ilustrará a noção aristotélica de dynamis katá kinesis: somente a partição essencial da dynamis (a relação inclusiva de potência e impotência), poderia explicar, com efeito, também o seu caráter cinético, para além do significado, ôntico, de movimento em relação a alguma coisa. A postura hermenêutica de Agamben parece certamente semelhante. E assaz significativo, a propósito, é o modo como ele (na conferência de 1987, A potência do pensamento, em seguida incluída no volume homônimo) traduz a tese “decisiva” (Heidegger) desta seção da Metafísica (ou seja, as linhas 1046 a 30-31): “Toda potência é impotência do mesmo e com respeito ao mesmo [de que é potência]”. O acréscimo parentético ao dito aristotélico decalca aqui exatamente a versão de Heidegger, o qual de fato oferece primeiramente – se assim se pode dizer – uma versão literal (“A potência é impotência em relação ao mesmo e na medida do mesmo”) para na seqüência desenvolvê-la, no curso da exegese, na paráfrase seguinte: “a impotência é tal com respeito àquele único e mesmo com respeito ao qual potência é potência”. Reconhecemos o cunho da tradução agamberiana. Segundo um gesto filosófico totalmente característico, porém, é justamente na máxima proximidade com o modelo que um traço original poderá se liberar: Adynamia, ‘impotência’ – glosa Agamben – não significa aqui ausência de toda potência, mas potência de não (passar ao ato), dynamis me energein. Aqui a recíproca referência da atividade à passividade não se desdobra, como em Heidegger, no aspecto cinético da dynamis, mas, por assim dizer, é mantido em suspenso, colhido no estado de suspensão no qual a potência coincide com a impotência, e revela a sua “ambivalência specífica”, o seu traço tipicamente “anfíbio”. Coerentemente, com a exposição deste carácter essencial, poderánovamente ressoar, no lugar do heideggeriano Einbezug, o original grego, o verbo dechomai que Aristóteles emprega (in Met. 1050b 10-12) quando deve precisar que a potência de ser e de não ser pertencem ao mesmo: Dechomai – explica Agamben – significa “acolho, recebo, admito”. Potente é aquilo que acolhe e deixa acontecer o não ser e esta acolhida do não ser define a potência como passividade ou paixão fundamental. Assim, enquanto o papel (ou o estatuto) do Einbezug heideggeriano é devolvido ao dechomai, também o dito to dynaton endechetai me energein (Met. 1050 b 10) pode combinar perfeitamente com aquele de Met. 1046 a 31 (sobre o qual Heidegger plasmava justamente o seu conceito) e adynamia pode ser traduzido por: “potência de não (passar ao ato), dynamis me energein”. É este o lugar central da interpretação agambeniana: onde a potência – nos termos de Heidegger – é capturada da steresis, onde, na base de tal captura, ela “se mantém em relação ao próprio não ser” (até aqui as posições de Agamben e de Heidegger coincidem), justamente aqui ela se mantém em relação indissolúvel com a ação. Em outras palavras, onde a potência se mantém em relação a ela mesma, isto é, com sua própria subtração, aqui – segundo a lição de Heidegger – ela se desdobra na kinesis, ou – segundo a lição a essa altura bem diferente de Agamben – se mantém em relação steretica com a ação. A relação potência-ato não é assim, para Agamben, senão a própria relação interna da potência; e a plena passagem ao ato será para ele uma potência de não-não passar ao ato. 6. A originalidade do conceito propriamente agambeniano de potência de não reside precisamente nesse perfeito explicar-se da steresis da potência na steresis do ato. E se a retomada da leitura heideggeriana, assim como toda a distância desta leitura, entra em jogo aqui na restiuição do vocábulo grego, justamente aquele dechomai torna-se também o centro de aplicação de um violentíssimo choque interpretativo. A prova à qual é submetido o dito aristotélico aponta para uma verdadeira subversão do cânone: pondo em discussão o primado do ato sobre a potência – já que algo como um ato aparece aqui somente com a essência steretica da potência (como potência de não-não passar ao ato) – Agamben reivindica agora as razões e tende portanto à plena salvação daquilo que é efêmero e caduco (com respeito aos incorruptíveis em ato), inaugura assim, no coração mesmo da tradição metafísica, uma nova ontologia do contingente. E onde a co-pertença de potência e impotência se traduz em co-pertença de ato e potência (de não), de abre também uma nova esfera do ergon, um “novo paradigma da ação”: o ato – poder-se-ia dizer com uma paráfrase – fica agora, em sentido preeminente, à mercê da potência; e justamente aqui, onde a potência “é medida pelo abismo da sua impotência”, a obra é capturada pela inoperosidade: “Na potência, a sensação é constituivamente anestesia, o pensamento não-pensamento, a obra inoperosidade” (A potência do pensamento). Aqui a ideia que Aristóteles tinha deixado de lado” é finalmente salva, e o désoeuvrement pode doravante assumir um sentido ativo, tornar-se modelo da ação, definindo exatamente essa captura. 7. Le trône n’est qu’un fauteuil vide, ensina O reino e a glória. Somente se expõe este vazio, a filosofia subtrai à máquina governamental a sua presa. O sentido ativo de désoeuvrer (ou désouvrer) corresponde a propriamente esta exposição, e é um verdadeiro ato de sabotagem, de desativação do dispositivo governamental. A “inoperosidade” de O reino e a glória foi traduzida em francês por désouvrement. Mas Agamben conferiu a esta palavra um sentido diferente daquele que ressoa em Bataille, em Blanchot e em Nancy. Distinguindo-se do primeiro como dos seus epígonos, repensando a ideia de comunidade, reinterpretando de maneira original a lição de Heidegger, ele pôde expor a potência no ato mesmo para retomar e salvar a ideia aristotélica do homem como ser que é essencialmente argos. E pôde fazê-lo reatingindo ao mesmo tempo a língua do filósofo (dechomai) e a do hebraico helenizado: désouvrement pode aqui realmente traduzir “inoperosidade” porque não é, no fundo, senão a versão literal do katargesis paolino. Assim, o homem é essencialmente argos, mas somente se a sua atividade for, em si mesma, um tornar inoperante. O verdadeiro paradigma da ação humana, ao mesmo tempo ético e político, não pode ser senão messiânico, isto é, destrutivo. Andrea Cavalletti é professor na Università IUAV de Veneza Forma-de-vida e uso em Homo Sacer A pesquisa de Giorgio Agamben mostra como os monges franciscanos relacionavam a liturgia ao modo concreto do seu exercício, reivindicando uma coessencialidade de “regra” e “vida” Valeria Bonacci Nos textos da série Homo Sacer, Agamben anuncia uma quarta parte da pesquisa, na qual as noções de “forma-de-vida” e de “uso”, em cuja direção convergem suas investigações arqueológicas, se mostrarão na sua luz própria. O primeiro volume publicado nessa seção de Homo Sacer é Altíssima pobreza: Regras monásticas e forma de vida (Homo Sacer, IV, I, 2011). O ensaio desenvolve uma indagação a respeito da vida monástica dos séculos 4 ao 13, e em particular sobre a teoria franciscana do usus pauper das coisas, que identifica como um “uso” irredutível à propriedade, por meio do qual os padres tentaram se subtrair ao direito. Altíssima pobreza é publicado contemporaneamente a Opus Dei: Arqueologia do ofício (Homo Sacer, II, 5, 2012), o texto em que culmina a genealogia teológica do governo encaminhada em O reino e a glória (Homo Sacer, II, 2;2007), e do qual constitui, em certo sentido, a pars construens. Se Opus Dei traz à luz o modo como a liturgia eclesiástica, elaborando a função sacerdotal, procura capturar a práxis contingente do homem e fazê-la coincidir no sacramento com a ação de Deus, Altíssima pobreza mostra o nascimento dos monastérios cristãos como uma tentativa de desativar o dispositivo litúrgico, de inverter a subordinação do agir particular do sacerdote ao governo divino, que se formula ligando a eficácia do sacramento à sua realização por meio da própria vida do monge. A pesquisa mostra como os monges relacionam sempre a liturgia ao modo concreto do seu exercício, reivindicando uma coessencialidade de “regra” e “vida”, na linguagem do fransciscanismo uma forma vitae, que o texto indica como “uma vida que se relaciona tão proximamente à sua forma a ponto de dela resultar inseparável”. Embora Agamben afirme que a forma-de-vida, este “algo inaudito e novo”, na vida comum dos monges “se aproximou obstinadamente à própria realização e lhe faltou com a mesma intensidade”, ele tenta desenvolver e radicalizar a relação entre “regra” e “vida” formulada pelo monasticismo, mostrando-a como uma oscilação sem solução entre vida e lei, fato e direito, que revela um terceiro, um meio entres eles, que em referência ao franciscanismo ele indica como um novo possível “uso” comum da vida e das coisas. “Regra (regula)” é o nome do texto que ordena a vida do monastério, isto é, cada comunidade de monges faz referência a uma regra enquanto documento constituinte. Agamben observa a impossibilidade de se atribuir as regras a um gênero literário definido; essas são às vezes uma série minuciosa de preceitos, que dizem respeito a cada detalhe isolado da vida dos monges, em alguns casos a transcrição fiel de um diálogo que tem lugar no monastério ou, mais amiúde, apenas o relato sobre a vida do monge fundador. Os estudiosos das regras não as definem propriamente comoleis, mas tampouco as consideram simples indicações, “conselhos”. Com efeito, os preceitos das regras, referindo-se aos menores detalhes da vida de um monge, relacionando-se com a totalidade da existência, não podem ser entendidos como obrigatórios, ou seja, um monge isolado jamais poderia pô-los todos em prática, e, portanto, não se constituem em um conjunto de leis que ele deveria aplicar à realidade. “O que é uma regra?” – pergunta Agamben – “se esta parece confundir-se sem resíduos com a vida? E o que é uma vida humana, se esta não pode mais ser distinguida da regra?”. A adesão do monge à regra não consiste na observação de preceitos determinados, mas diz respeito à relação entre a regra e a vida e entre a vida e a regra. Aquele que entra no monastério “não se obriga, como acontece no direito, ao cumprimento de atos isolados previstos na regra, mas coloca em questão o seu modo de viver, que não se identifica com uma série de ações nem se exaure nelas. (…) [Como escreve Tomás,] ‘os monges não prometem a regra, mas viver segundo a regra’. (…) O objeto da promessa aqui não é mais um texto legal a ser observado ou uma certa ação ou uma série de comportamentos determinados, mas a mesma forma vivendi do sujeito”. Vida comum do monastério Se o monge vive cada momento da sua vida em relação à regra, esta não é uma lei, mas, afirma Agamben, a “forma” que permite a cada momento constituir-se como “exemplar”, “paradigmático” da vida comum do monastério. Em que sentido o exemplo e o paradigma permitem pensar a coexistencialidade de regra e vida que caracteriza a comunidade cenobita? No texto Signatura rerum: Sobre o método (2008), Agamben afirma que “o paradigma é um caso isolado que vem separado do contexto ao qual pertence, apenas na medida em que este, exibindo a própria singularidade, torna inteligível um novo conjunto, cuja homogeneidade ele próprio deve constituir. Dar um exemplo é, portanto, uma ação complexa, que supõe que o termo que funciona como paradigma seja desativado do seu uso normal, não por ser deslocado em um outro âmbito, mas, ao contrário, para mostrar o cânone daquele uso, que não é possível exibir de outro modo”. O exemplo é uma forma de conhecimento que não procede articulando universal e particular, na medida em que põe em questão a sua oposição dicotômica: na lógica paradigmática, é somente a exibição do caso isolado como exemplar que define a regra constituindo um conjunto. Nesse sentido, o exemplo é um terceiro entre o universal e o particular, entre a regra e a vida, que não aparece, porém, senão através da relação dúplice entre eles, a sua indiscernibilidade. Para o monge, abandonar o contexto normal e seguir a regra é transformar cada aspecto da própria vida em “exemplar” da vida comum, enquanto é uma exibição da sua singularidade que, somente em virtude dessa exibição, se constitui como pertencente a um conjunto. Isso permite compreender por que amiúde o texto da regra consiste somente na narração histórica da vida do fundador do monastério: é a própria exibição de cada aspecto de sua existência como exemplar que constitui a comunidade. As pesquisas sobre a noção de potência que acompanham as indagações políticas de Homo Sacer permitem aprofundar na lógica do exemplo e caracterizar ulteriormente a relação entre regra e vida. Agamben, em particular nos textos da segunda seção de Homo Sacer, chega a mostrar a potência como o que resta retido no ato e, portanto, o revoga, mas não se coloca por isso como uma dimensão separada, cujo subtrair-se permanece em relação com o ato enquanto aquilo que o abre sempre em uma nova determinação, para um “novo uso”. Se a regra consiste apenas na exibição da singularidade de um momento da vida, que, sem fazê-lo sair do plano do singular, o transforma em exemplar de um conjunto, é por expor a sua singularidade a partir da sua potência, como aquilo que nele se subtrai e, portanto, o revoga de seu uso normal, mas não o isola de tal modo em uma esfera distinta, ou seja, não o revoga senão para mostrá-lo em relação com um outro momento singular. Os monges, executando cada ação segundo a regra, experimentam a potência desta como aquilo que constitui a sua exemplaridade, por revogá-la e ao mesmo tempo abri-la sempre em uma nova ação. Uma forma que consiste apenas na exibição de uma singularidade a partir da sua potência, e que assim a coloca sempre em relação com uma outra singularidade, é uma forma-de-vida sempre em devir, coincide com a sua transformação, assim como a comunidade à qual ela dá lugar. Liturgia eclesiástica O dispositivo litúrgico funciona colocando no seu centro o agir singular do sacerdote, mas o determina como ofício por fazê-lo coincidir no sacramento com o governo divino. A liturgia tenta, em tal modo, se apropriar da potência do agir do homem e governá-la, enquanto ela é a única coisa a partir da qual se pode realizar toda ação, mas ao mesmo tempo aquilo que impede sua determinação unívoca, aquilo que torna possível cada atualização determinada, mas abrindo-a sempre em uma nova configuração. Todavia, essa potência escapa de uma captura, a práxis do homem não se deixa identificar com o governo divino, enquanto este precisa sempre remeter circularmente a uma ação singular na qual possa realizar-se. Se a liturgia procura sempre de novo capturar a potência do agir do homem e confiná-la na esfera separada do sacramento, os monges reivindicam esse círculo, “apagando a separação e, fazendo da forma de vida uma liturgia e da liturgia uma forma de vida, instituem entre as duas um limiar de indiscernibilidade carregada de tensões”. Em virtude da subordinação do agir concreto do sacerdote ao ofício realizada pela liturgia eclesiástica, o sacramento resulta eficaz mesmo quando conferido por um ministro “indigno”, o que, do ponto de vista da relação entre regra e vida, resulta impossível: “para uma vida que recebe o seu sentido e a sua condição do ofício, o monasticismo contrapõe a ideia de um oficium que tem sentido somente se se torna vida”. A regra leva os monges a viverem sua vida como uma “prática incessante”, no cenóbio “cada gesto do monge, cada atividade mais humilde se torna uma obra espiritual, adquire o estatuto litúrgico de um opus Dei”. Segundo Agamben, todavia, o monasticismo, ligando os singulares aspectos da vida comum ao serviço de Deus e à sua celebração, não consegue resolver sua relação com a liturgia; tampouco deixa entrever uma relação inédita entre norma e fato, ser e agir, uma forma-de-vida como âmbito de sua oscilação irresolúvel, de sua sempre nova configuração. O sintagma forma vitae era usado nos monastérios franciscanos como reivindicação consciente de uma vida não subsumível ao direito positivo. Os monges a perseguiam praticando a renúncia a qualquer propriedade como pobreza e usus pauper das coisas. Eles foram combatidos pela cúria romana precisamente porque uma tal prática se situava em uma esfera sobre a qual o direito civil não tem nenhum domínio. Mas no que consiste um uso das coisas que não possa jamais se tornar uma apropriação? Os franciscanos o definiam em geral negativamente, como um “usar da coisa como não própria”, expondo-se assim, porém, às objeções da cúria, em particular do papa João XXII que, na bula Ad conditorem canonum, refutava a possibilidade de separar uso e propriedade, identificando o uso com uma consumação – que se resolveria então com a posse – dos objetos essenciais à vida dos padres, como comida ou roupa. Esta objeção, todavia, conduzira os franciscanos a conceber o uso de maneira não negativa. Francisco de Ascoli, porexemplo, escrevera em resposta ao papa que, assim como o ser das coisas consumíveis coincide com sua transformação, e não é, portanto, redutível a uma propriedade, o uso é sempre in fieri, consiste no seu devir. Bonagratia de Bergamo, por sua vez, indicou o usus pauper como a prática que define originariamente a comunidade dos homens, na medida em que comum pode ser apenas o uso das coisas mas jamais a sua posse. Essas reflexões, considera o texto, poderiam ter conduzido à formulação de uma teoria do usus como habitus, prática que jamais se substancialize em um ato determinado, enquanto, ao contrário, o franciscanismo continuou a defini-lo em geral de forma negativa, prestando-se às críticas da liturgia eclesiástica que se tornara predominante. “Ao invés de confinar o uso no plano da pura práxis” – escreve Agamben – “como uma série factícia de atos de renúncia ao direito, teria sido mais fecundo tentar pensar a sua relação com a forma de vida dos padres franciscanos, perguntando-se de que modo aqueles atos podiam se constituir em um vivere secundum formam e em um hábito. O uso, nessa perspectiva, poderia ter-se configurado como um tertium em relação ao direito e à vida, à potência e ao ato, e definir – não apenas negativamente – a própria práxis vital dos monges, sua forma-de- vida”. Pensar o uso como a dimensão da tensão irresolúvel entre regra e vida, da regra como exposição da vida, e da vida como aquilo que reenvia sempre a uma nova regra, equivale a pensá-lo como uma terceira dimensão, que, enquanto lugar de seu remetimento sempre renovado, consiste apenas na sua transformação, se dá sempre como “um novo uso”. Em tal sentido, o habitus e o uso emergem como a forma de uma “vida que se mantém em relação não só com as coisas, mas também consigo mesma no modo da inapropriabilidade”, que os próximos volumes da quarta seção de Homo Sacer deverão permitir caracterizar ulteriormente. Valeria Bonacci é doutora pela Universidade de Lecce em cotutela com a Universidade Sorbonne-Paris IV e colabora com a cátedra de Filosofia Prática da Universidade La Sapienza de Roma Agamben e a indiferença O pensamento de Giorgio Agamben se destaca como uma filosofia da indiferença TAGS: 180, dossiê, Giorgio Agamben William Watkin Se o século passado pertenceu aos filósofos da diferença, então o atual deve ser entregue aos provedores da indiferença filosófica, dentre os quais um nome um se destaca: Giorgio Agamben. O que é a indiferença filosófica? A definição padrão do termo no dicionário, que significa não se importar de modo algum, encontra eco na primeira época da indiferença filosófica, estendendo-se do Estoicismo ao ataque de Kant ao indiferentismo filosófico nas páginas de abertura da primeira Crítica. Trata-se da inabilidade de tomar uma decisão filosófica única, sempre verdadeira, em favor de uma posição ou ação em detrimento de outra. O indiferentismo ocorre especialmente quando, como é sempre o caso segundo Agamben, as duas posições em relação às quais o sujeito não se importa ocupam, de um lado, o único, comum, fundador, unificado, e de outro o múltiplo, próprio, atualizado, vário. Assim, em certo sentido, desde os gregos, a filosofia tem sido uma disputa acerca da prevalência da indiferença: não podemos eleger entre a filosofia da unidade e aquela da multiplicidade. E o pensamento moderno funda- se no desenvolvimento da filosofia crítica de Kant que buscou resolver a indiferença entre as filosofias do Um (idealismo) e aquelas do Muitos (Empirismo). O segundo sentido filosófico da indiferença, primeiro desenvolvido por Hegel, é a pura diferença em si ou diferença abstrata independente de quaisquer qualidades mantidas pelas duas identidades sendo diferenciadas. Representa-se o conceito mais precisamente pela notação formal A≠ B. O que A e B são na realidade, que qualidades possuem, é indiferente, não importa. Na diferença indiferente tudo que importa é que existe a diferença, A≠ B, como a base do fato de que existe uma identidade A=A porque A≠ B. Trata-se da fórmula fundadora da dialética hegeliana e de todas as filosofias da diferença que surgirão, pois desenvolve uma forma pré-identitária de diferença: diferença abstrata sem relação com as qualidades. 1. A Indiferença de Agamben Pode-se argumentar que a filosofia moderna nasce dos ataques kantianos ao indiferentismo e ao desenvolvimento hegeliano da pura diferença em si. Isso posto, pode-se qualificar a indiferença agambeniana como uma terceira ordem de indiferença filosófica. Seu sistema filosófico é tornar aparente e então declarar indiferentes todas as estruturas de oposição diferencial que subjazem na raiz, assim ele crê, de toda principal assinatura conceitual ou estrutura discursiva do Ocidente. Desse modo, sua filosofia pode ser qualificada como uma espécie de crítica metafísica que sustenta que todos os conceitos abstratos são apenas quase-transcendentais, no que se apresentam como historicamente contingentes, não logicamente necessários. Assim, Agambem participa, de bom grado, de uma tradição que inclui Nietzsche, Heidegger, Deleuze e Derrida, pensadores aos quais ele frequentemente se associa. Aquilo em que ele difere de todos os autores citados é o fato de que ele não é, de modo algum, um filósofo da diferença, qualquer que seja o modo como nós tomemos o significado desse termo no interior da tradição à qual eu acabei de aludir. É razoável afirmar que todos os seus predecessores, de algum modo, colocam em xeque estruturas filosóficas da identidade consistente por intermédio da valorização da diferença. O argumento central daqueles pensadores, desde Nietzsche, é: a diferença precede a identidade e assim, por definição, está permanentemente corroendo a identidade, sendo a identidade sempre definida como fundacional. Agamben não pode subscrever esse argumento. Como pensador, ele está dolorosamente consciente de que a diferença é sempre parte de um acoplamento identidade-diferença, de modo que, embora concorde com seus grandes predecessores com o fato de que a identidade depende da diferença, ele transcende ou transgride a lei de nossa era atual na medida em que insiste no fato de que a diferença está tão implicada no sistema metafísico quanto a identidade. Se, ele argumenta, as estruturas identitárias são historicamente contingentes, não logicamente necessárias, assim também são as estruturas de diferenciação, de onde se pode posteriormente concluir que estão em cumplicidade com a metafísica, não sendo, pois, um meio de superá-la. Antes de minar a identidade com a diferença, portanto, Agamben revela que identidade e diferença, elas próprias, não são termos necessários, mas contingências históricas, que, de fato, formam uma unidade singular no interior de nossa tradição, que chamamos identidade-diferença, e com base nestas observações pode-se suspender sua história de oposição, tornando-as mutuamente indiferentes. Com isso, queremos dizer: suspender sua apresentação como formando uma unidade singular de diferença oposicional, em luta: um e muitos, soberania e governo, zoe e bios e assim por diante, sem reconstitui-las, pois, como uma unidade. Para Agamben, a completa presença autoidêntica, isso que ele chama o comum, é uma entidade discursiva, não um estado real. Aliás, no que diz respeito à diferença, isso que ele chama de o próprio, é a mesma coisa. Além disso, os conceitos não são mais tomados como conceitos-identitários, estruturas ideacionais possuidoras de consistência comum em torno de um conjunto consensual de referentes que pode ser mantido sob a mesma esferaconceitual, mas conceitos-identitários-diferenciais que têm um momento histórico de ascensão, no qual se observa sua atividade, um modo de distribuir sua ação para controlar grandes e estáveis formações discursivas no correr dos tempos, tais como linguagem, tal como poder, tal como vida, e um quase inexorável momento de indiferença, no qual as claras distinções dos sistemas ou entram em colapso ou podem ser agressivamente demonstradas como sendo vulneráveis contingências. O método para traçar esses momentos com o intento de suspender os construtos identidade-diferença, que ele chama assinaturas, é uma metodologia geral a que Agamben dá o nome de arqueologia filosófica. 2. Arqueologia Filosófica O método altamente contestado de Agamben, que consiste em traçar as origens de conceitos de larga escala (assinaturas) de volta ao momento em que eles inicialmente se tornaram operacionais como modos de um discurso de legitimação e organização, é devedor, em grande medida, da concepção foucaultiana de inteligibilidade discursiva. Através da inteligibilidade, ou o que Agamben também chama de comunicabilidade, não é o que é dito que é significativo, mas que dizer isso e aquilo seja permitido pelas sanções do poder e por nossa cumplicidade com essas sanções. Isso posto, esses momentos de ascensão, como Agamben os qualifica, não são origens fundadas em dados históricos no sentido usual, mas, inspirados pelo tempo-agora de Benjamin, eles de fato desvelam tanto sobre nós, como contemporâneos, como sobre as origens históricas. Assim, todo momento contemporâneo é fundado em uma origem ou arche, embora toda arche seja construída por nosso discurso contemporâneo como a origem fundante. O passado, argumenta Agamben, não apenas vive no presente, mas o presente é um construto constante do passado. Dessa forma o tempo é marcado por um duplo anacronismo essencial, das coisas passadas sendo projetadas para o presente e do presente como um construto do passado. O objetivo de Agamben é revelar esse paradoxo histórico na base de conceitos de larga escala tais como poder, ser, secularização, linguagem e assim por diante, de forma a demonstrar sua impraticabilidade lógica. Em toda a sua obra, persiste uma economia única, para onde quer que ele olhe. O passado, ou o comum temporal, está fundado no presente ou no próprio temporal, embora o presente funde o passado através de suas tentativas de acesso às origens. Portanto, tome-se qualquer conceito-assinatura de larga escala e esse se revelará o paradoxo entre um passado fundado, mesmo criado, pelo presente, e um presente fundado pelo passado, permitindo assim a suspensão – ou a indiferenciação – de uma nítida separação entre as origens e os exemplos atuais, subsequentemente libertando o sujeito do controle discursivo da dita assinatura. Como para Agamben tudo é, ostensivamente, discursivo, essa forma de crítica radical revela-se, potencialmente, uma poderosa ferramenta política para a mudança, uma vez que o poder é uma das assinaturas de maior prevalência que há no Ocidente, e também uma das mais suscetíveis ao paradoxo da lógica da fundação fundada por isso que ela presume fundar. Tornar indiferente a oposição entre origem (o fundamento comum de tudo) e o presente (a atualização própria de nosso fundamento comum) por intermédio da arqueologia filosófica mata o poder das assinaturas de sancionar e, portanto, controlar o que pensamos, o que dizemos e, também, o que fazemos. Falhemos em tornar indiferentes tais assinaturas e qualquer atitude política que se tome ainda terá lugar no interior dos confins sancionados da inteligibilidade discursiva, especialmente o ato político essencial da era moderna: diferença revolucionária. 3. Vida Para concluir, permita-nos considerar a talvez mais controversa e importante assinatura para Agamben, a Vida, submetendo-a à arqueologia filosófica, e assim tornando-a inoperante como um modo de inteligibilidade para nós, fazendo com que as duas partes da economia oposicional do termo se tornem indiferentes entre si. Para nós, Vida é um termo que explica nossa existência biológica. Além disso, ele também explica o caso específico da vida humana, uma forma privilegiada de vida animal. Finalmente, também resulta em momentos nos quais o privilégio da vida humana é removido de um ser humano e ele é reduzido a ser tratado como um mero animal, uma situação que Agamben chama de vida nua. A obra de Agamben mais amplamente lida, Homo Sacer, apresenta as origens dessa situação e suas implicações para o mundo atual. Não há, de fato, uma coisa como a Vida. Ela é um construto discursivo permitido pelas estruturas de poder para sancionar diferentes formas de comportamento e com a qual temos estado em cumplicidade por séculos. É, portanto, uma assinatura inteligível, não uma coisa como tal. Como ela surgiu? O momento de ascensão dessa assinatura para Agamben é a primeira instância registrada da vida nua em um sistema judiciário ocidental, a figura do homo sacer no antigo ordenamento jurídico romano. Como o homo sacer foi sancionado, quando sua lógica (um cidadão no interior da lei que pode ser morto, e tal não ser julgado assassinato, assim colocando-o à margem da lei) é ilógica? Agamben nota que os gregos não tinham uma única palavra para vida, mas ao menos dois termos, que pertenciam ao que entendemos por vida. Zoe era a vida privada e animal. Bios era a vida política, específica, pública. Em algum momento, um termo único, Vida, foi paulatinamente sendo empregado em relação a uma vida humana composta de duas partes: a biológica e a social. Dos dois, Zoe era o comum, o fundacional, afinal de contas, sem a vida biológica, o que somos? E Bios, a especificidade social de como vivemos, é o reino no qual a vida humana é distinguida da vida animal, ou mesmo da vida escrava ou feminina, para os gregos e romanos. Assim, é Bios que funda Zoe ao dizer que Zoe é apenas uma instância local da vida, a animal. Nesse ponto, as coisas tornam-se confusas. Que Vida veio primeiro? A vida biológica ou a vida humana, enquanto distinta da vida animal e assim protegida pela e sujeita à, digamos, lei? O homo sacer se torna possível precisamente nesse ponto. A Vida Nua se assemelha a um retorno à Zoe ou vida animal. Este homem pode ser morto como um bicho. Contudo, para que a vida nua se torne nua, os direitos do cidadão devem ser retirados dele. Isso mostra claramente que a animalidade é um conceito criado pelo humano, e a vida nua é apresentada como um retorno a um estado de natureza: Zoe. A vida nua exibe então os seguintes fatos da Vida. A Vida é um construto discursivo. Ela depende da ideia de que ela é a-discursiva, ou seja, que os animais existem antes dos humanos. Portanto, de fato, o Bios, a vida política, constrói a Zoe, a vida animal, como origem de toda a vida apenas para legitimar a si própria. Essa economia impossível (como um fundamento pode ser fundado depois daquilo que ele fundou, como o comum pode ser um construto do próprio?) é revelada nesses momentos nos quais a distinção clara entre comum e próprio em uma assinatura torna-se indiferente. O Homo Sacer é a primeira instância registrada, dessa relevância, para a Vida. Um cidadão retorna para um estado de animalidade somente se, primeiro, ele é um cidadão. A vida nua é a vida desnudada. Ela deve ser vestida antes que possa ser despida. A arqueologia filosófica se ocupa, aqui, com uma questão contemporânea, a questão da vida humana. Ela traça a origem do emprego do termo controlador para sancionar certas formas de comportamento, aqui, a assinatura Vida. Ela revela que a assinatura sempre se bifurcaráem uma estrutura de comunalidade que vem primeiro e funda, e em uma de atualidade própria, casos específicos subsequentes que ocorrem devido a uma fundação comum . Ela encontra então casos-limite, zonas de indistinção, nas quais a clara diferenciação no interior da assinatura é não clara, indiferenciada. Ela então se foca nesses casos-limite, nessas zonas de indistinção para demonstrar que a assinatura em questão não é universal e necessária, mas historicamente construída. Ela revela a primeira instância na qual a economia da assinatura torna-se confusa, é indiferenciada. Ela então humildemente sugere que se a lógica da assinatura Vida é ilógica (e pode ser mostrado que a assinatura Vida ela mesma pode ser traçada historicamente até um primeiro momento específico), então não precisamos da assinatura Vida. Graças à indiferença, podemos revelar historicamente os meios pelos quais podemos viver sem a Vida. Essa me parece ser a mensagem geral da obra de Agamben. William Watkin é professor de literatura e filosofia contemporânea na Brunel University, West London. É autor de Agamben and Indifference: A Critical Overview (Rowman and Littlefield International, 2013)v Agamben, um filósofo para o século 21 Confira o primeiro texto do dossiê da edição 180, que também conta com um artigo exclusivo do pensador italiano TAGS: 180, dossiê Cláudio Oliveira Para aqueles que, como eu, se iniciaram na filosofia entre o fim dos anos 80 e o início dos anos 90 do século passado, havia um sentimento desencantado de não viver mais num mundo habitado por grandes filósofos. Naquele momento, todos, ou quase todos os grandes filósofos do século 20, ou já estavam mortos (Freud, Benjamin, Wittgenstein, Merleau-Ponty, Bataille, Adorno, Arendt, Heidegger, Sartre, Lacan, Foucault, Althusser) ou já estavam no fim de suas vidas e iriam morrer nos anos seguintes (Debord em 1994, Deleuze em 1995, Lyotard em 1998, Blanchot em 2003, Derrida em 2004). Nós, enquanto estudantes, invejávamos nossos professores que tinham sido testemunhas da construção do pensamento do século 20, muitos deles tendo escrito livros ou publicado teses sobre autores vivos, cujos cursos alguns deles chegaram a frequentar. O sentimento que nos acometia então era o de não sermos mais contemporâneos da filosofia ou de não haver mais nenhuma filosofia contemporânea a nós, vivendo o tempo de um hiato que parecia não ter fim. Esse quadro iria mudar significativamente nos anos seguintes. Nós não sabíamos, mas nesses mesmos anos, uma série de novos pensadores começava a surgir e a publicar seus primeiros livros. Dentre eles, um dos que vieram a assumir uma importância fundamental no pensamento contemporâneo foi o filósofo italiano Giorgio Agamben, nascido em Roma, em 1942, e que já tinha publicado, na Itália, seu primeiro livro, O homem sem conteúdo, em 1970. Agamben, como outros pensadores de sua geração (eu citaria Alain Badiou [1937- ], Jacques Rancière [1940- ], Lacoue- Labarthe [1940–2007], Jean-Luc Nancy [1940- ], Jacques-Alain Miller [1944- ], Peter Sloterdijk [1947- ], Slavoj Zizek [1949- ], Georges Didi-Huberman [1953- ], dentre outros), tinha se formado num contato íntimo com aquela geração anterior e buscavam desdobrar as consequências teóricas das obras daqueles filósofos, estabelecendo, ao mesmo tempo, novos paradigmas de pensamento. Em 1966, com 24 anos, Agamben foi um dos seis participantes, em Le Thor, na Provence francesa, de um seminário conduzido por Heidegger e que aconteceria de novo, em 1968, agora já com um número maior de participantes. Esse contato pessoal com Heidegger o marcaria profundamente e somente a descoberta da obra de Benjamin, algum tempo depois, lhe daria um contraponto ou algo que Agamben chamará, mais tarde, numa entrevista, de um antídoto em relação à influência da obra de Heidegger em seu pensamento. Em 1974, já com um livro publicado, Agamben vai para a França, onde se aproxima de Pierre Klossowski, Guy Debord e Italo Calvino. Com este último, constrói o projeto de uma revista que jamais será realizado. Graças a Francis Yates, que ele havia conhecido através de Calvino, entre 1974 e 1975, Agamben vive em Londres, onde trabalha intensamente em suas pesquisas no Instituto Aby Warburg. Esse período, entre Paris e Londres, gerará seus próximos dois livros, Estâncias e Infância e História, publicados respectivamente em 1977 e 1978. Ainda nesse período final dos anos 1970, Agamben realiza um seminário, entre 1979 e 1980, que dará origem a seu quarto livro, A linguagem e a morte, publicado na Itália em 1982. Este livro, além de ser um acerto de contas com Heidegger e Hegel, é também o momento em que Agamben inicia uma discussão com Derrida, o pensador que talvez tenha feito a passagem entre a geração anterior e a sua. Os anos 1980 são marcados por uma produção menos abundante da obra de Agamben. Além de A linguagem e a morte, que pode ser entendido como um livro produzido ainda nos anos 1970, Agamben publica apenas um pequeno livrinho, Ideia da prosa, em 1985, onde a indistinção entre filosofia e literatura, na forma de pequenos ensaios (tendo por tema os mais diversos assuntos) é levada ao seu extremo. O pequeno número de livros publicados nesse período talvez se explique por outras atividades que ele desenvolveu na mesma época. Em 1986, Agamben passa a ser um dos diretores de programa – junto com outros filósofos, como Lacoue-Labarthe, Jacques Rancière, Barbara Cassin, José Gil, Fernando Gil, Gianni Vattimo – do Collège International de Philosophie de Paris, que tinha sido fundado em 1983, pela iniciativa de François Châtelet, de Jacques Derrida, de Jean- Pierre Faye e de Dominique Lecourt. Em 1989, outros autores, como Alain Badiou, Michel Deguy e Paul Virilio também se tornam diretores de programa do Collège. Nesse período, em Paris, Agamben frequenta, entre outros, Jean-Luc Nancy, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard. Filósofo antiacadêmico Os anos 1980 são também aqueles em que Agamben inicia uma carreira docente, com a qual ele jamais se identificará totalmente, tendo permanecido um filósofo essencialmente antiacadêmico. Em 1988, ele começa a ensinar na Universidade de Macerata, e alguns anos depois, na Universidade de Verona. A partir de 2003, ele assume a cadeira de Filosofia Teorética no Istituto Universitario di Architettura (IUAV) de Veneza, do qual pede demissão em 2009, para se dedicar exclusivamente à escrita de sua obra. A década de 1980 é marcada também pelo envolvimento de Agamben com a edição das obras completas de Walter Benjamin em italiano pela Editora Einaudi, de Turim, projeto que ele coordenou de 1982 a 1993. Envolvido com esse trabalho, Agamben descobre, na biblioteca de Paris, vários importantes manuscritos perdidos de Benjamin, que os tinha deixado com Georges Bataille pouco antes da sua morte. Depois da publicação de alguns volumes, Agamben abandona o projeto por discordâncias com a editora. A década de 1990, ao contrário da década anterior, é marcada por uma extensa publicação de livros, dentre os quais se destaca o primeiro volume da tetralogia Homo Sacer, O poder soberano e a vida nua, publicado em 1995, livro que o tornará célebre mundialmente (não por acaso, foi este o primeiro livro de Agamben a ser publicado no Brasil, em 2002). Mas, antes disso, ele publica dois pequenos livrinhos, cuja importância não pode ser diminuída em sua obra: A comunidade que vem, em 1990, e Bartleby ou da contingência, que foi publicado na Itália, em 1993, junto com uma tradução do texto de Deleuze, Bartleby ou da forma, num únicovolume intitulado Bartleby, a fórmula da criação, embora os textos tenham sido escritos de modo totalmente independente, em períodos diferentes. Agamben, no entanto, tinha assistido, em Paris, os últimos cursos de Deleuze, os quais ele compararia, mais tarde, com os seminários de Heidegger em Le Thor, que ele seguira na sua juventude, como dois momentos fundamentais, embora bem distintos, de sua formação. Ainda na segunda metade da década de 1980, se dá a publicação de novos livros, como Categorias italianas (1996), Meios sem fim (1996) e O que resta de Auschwitz (1998), volume III de Homo Sacer, publicado, no entanto, antes dos tomos que constituiriam o segundo volume da tetralogia. Esses últimos anos da década de 1990 são marcados também por extensas viagens aos Estados Unidos, a convite de universidades americanas, onde Agamben ministra cursos que darão origem a novos livros, como O tempo que resta, publicado em 2000. Essas viagens culminarão no convite para ser Professor da New York University, em 2003, convite que Agamben recusa, em protesto contra os novos dispositivos de controle impostos pelo governo americano aos cidadãos estrangeiros, após os acontecimentos do 11 de Setembro. De 2000 para cá, Agamben publica vários volumes da tetralogia Homo Sacer, como Estado de exceção (2003), O reino e a glória (2007), O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento (2008), Altíssima pobreza (2011) e Opus Dei: arqueologia do ofício (2012), além de outros livros que não pertencem à tetralogia, mas que são estreitamente afins à sua problemática, como O aberto: o homem, o animal (2002), Profanações (2005) e Signatura rerum: sobre o método (2008). Surgem ainda pequenos textos ou coletâneas de textos escritos em diferentes momentos, como A potência do pensamento: ensaios e conferências (2005), O que é um dispositivo? (2006), O amigo (2007), Ninfas (2007), O que é o contemporâneo? (2007) e Nudez (2009). A primeira década do século 21 é também o momento em que a obra de Agamben começa a ser traduzida no Brasil, com um atraso de mais de 30 anos, é verdade. Editoras como a EDUFMG, a Boitempo e a Autêntica lideram esse processo. É também o momento da sua primeira (e única até agora) vinda ao Brasil. Em 2005, ele faz conferências em São Paulo (na USP), no Rio de Janeiro (na Casa de Rui Barbosa e na Universidade Federal Fluminense) e em Florianópolis (na Universidade Federal de Santa Catarina). Diálogo permanente O pensamento de Agamben traz algumas características comuns a outros autores da sua geração. Em primeiro lugar, há entre eles um diálogo permanente. Nesse sentido, é muito comum nas obras de Agamben não só a referência aos filósofos que constituem sua formação (como Heidegger, Benjamin, Foucault, etc.), mas também aos seus contemporâneos, como Derrida, Nancy e Badiou, dentre outros. Há também uma característica fundamental em sua obra que é o atravessamento por discursos provenientes de muitos campos do saber, para além do filosófico, como o direito, a teologia, a linguística, a gramática histórica, a antropologia, a sociologia, a ciência política, a iconografia, a psicanálise, a literatura e as outras artes em geral, dentre elas o cinema. Sobretudo, caracteriza o pensamento de Agamben, em consonância com os filósofos de sua geração, uma recusa em lidar com aquilo que entendemos tradicionalmente como as disciplinas filosóficas (tais como metafísica, ontologia, ética, estética, política, lógica) como campos distintos do saber filosófico. Essa visão tradicional da filosofia gerou um primeiro equívoco na recepção da obra de Agamben, tanto no Brasil como no mundo, que consistiu em entendê-la como podendo ser dividida em duas fases, uma primeira, dedicada a investigações estéticas, e uma segunda, iniciada com a publicação do primeiro volume de Homo Sacer, em 1995, dedicada a investigações políticas. Para Agamben, a distinção entre política, estética, ética, lógica e ontologia não faz mais o menor sentido. Pelo contrário, poderíamos dizer que um dos esforços fundamentais desenvolvidos em sua obra é precisamente a demonstração da implicação necessária entre esses diversos campos do saber que compreendemos tradicionalmente como distintos. Nesse sentido, toda especulação filosófica de Agamben sobre o fenômeno da arte é também uma especulação no campo da política e da ontologia, por exemplo. Uma obra como A comunidade que vem, publicada em 1990, busca precisamente demonstrar que um conceito que costumamos entender como essencialmente político, como o conceito de comunidade, só pode ser entendido a partir de seu aspecto lógico e, consequentemente, também ontológico. Do mesmo modo que, como podemos ver em A linguagem e a morte (1982), a construção de uma ética em seu pensamento se dá a partir de uma discussão que parece eminentemente ontológica (Heidegger, Hegel) e linguística (Jakobson, Benveniste). Em outras palavras, para Agamben, toda política ou ética expressam uma compreensão lógico-ontológica, e toda ontologia ou lógica já são, em si mesmas, políticas, assim como o problema da arte em nosso tempo e em qualquer outro não pode ser entendido se permanecemos numa perspectiva simplesmente estética em sua abordagem, como o demonstram claramente as páginas de O homem sem conteúdo, seu primeiro livro. Pensamento de Agamben No presente dossiê, os artigos reunidos mostram claramente essa característica do pensamento de Agamben. Assim, Oswaldo Giacoia nos mostra como toda a problematização agambeniana da forma jurídica da política moderna, desenvolvida em Homo Sacer, só pode ser entendida a partir de uma reconstituição da “gênese da pessoa humana como moderno sujeito de direito”, detectando “a proveniência da forma direito na forma universal do valor de troca das mercadorias na sociedade capitalista”. Discussões econômicas, teológicas, jurídicas e políticas são indistinguíveis nesse âmbito de reflexão e só um atravessamento por todos esses campos do saber pode nos levar a uma compreensão adequada do fenômeno em jogo. Do mesmo modo, Susana Scramim nos ensina, ao se deter nos primeiros livros de Agamben, que sua abordagem da poesia de Baudelaire visa mostrar “o potencial de estranhamento que carregam os objetos quando perdem a autoridade que deriva de seu valor de uso e que garante sua inteligibilidade tradicional, para assumir a máscara enigmática da mercadoria”. De novo aqui, investigação literária e econômico-política se indistinguem e o modo correto de ler Baudelaire só é possível a partir de uma referência a Marx. Valeria Bonacci igualmente nos demonstra como as pesquisas agambenianas sobre a noção ontológica de potência, que acompanham suas indagações políticas, permitem aprofundar a lógica do exemplo e caracterizar ulteriormente a relação entre regra e vida, em seu estudo sobre a vida monástica, desenvolvido em Altíssima pobreza, o que faz com que este livro só possa ser corretamente compreendido à luz das investigações desenvolvidas por Agamben na década de 1980, em A comunidade que vem e Bartleby ou da contingência. William Watkin, por sua vez, ao desenvolver a ideia de que, diferentemente das filosofias do século 20, a filosofia de Agamben não é mais uma filosofia da diferença, mas da indiferença, nos mostra como a noção de indiferença é aquela que está em ação no próprio método arqueológico de Agamben, usando como exemplo de aplicação desse método calcado na noção de indiferença a abordagem agambeniana da noção de Vida, que ele entende como uma assinatura. Se “a lógica da assinatura Vida é ilógica”, comoprocura demonstrar Watkin, então não precisamos dela. Em última instância, a mensagem geral da obra de Agamben, segundo o estudioso inglês, é que “graças à indiferença, podemos revelar historicamente os meios pelos quais podemos viver sem a Vida”. De novo aqui, discussões lógico-ontológico-metodológicas têm como consequência uma dimensão ético-política fundamental. Por fim, Andrea Cavalletti se detém no conceito agambeniano de inoperosidade, desenvolvido sobretudo em seus últimos livros, para nos explicar como esse conceito, em Agamben, é dependente de uma longa reflexão sobre o conceito de potência desenvolvido em vários livros anteriores à tetralogia Homo Sacer. Segundo Cavalletti, ao construir o conceito de inoperosidade, em contraposição à noção de desoeuvrement desenvolvida nas obras de Bataille, Blanchot e Nancy e a partir de uma releitura da leitura heideggeriana do problema da potência em Aristóteles, Agamben nos dá um novo paradigma ao mesmo tempo ético e político. Para concluir, gostaríamos de dizer que o presente dossiê não teria sido possível sem a contribuição do próprio Giorgio Agamben, que não só nos enviou para esta edição um texto inédito, o belíssimo “Sobre a dificuldade de ler”, como também nos ajudou no contato com os autores estrangeiros, cujos trabalhos sobre sua obra ele não só conhece, como admira. Cláudio Oliveira é professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Coordena a Série Agamben para a Editora Autêntica
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