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1 FUNGOS LIQUENIZADOS1 Marcelo P. Marcelli mpmarcelli@msn.com Instituto de Botânica, Núcleo de Pesquisa em Micologia Caixa Postal 68041, CEP 04045-972, São Paulo/SP, Brasil Aproximadamente 20% das espécies de fungos atualmente conhecidas são encontradas na natureza sempre simbioticamente associadas a algas ou cianobactérias. O processo de associação entre esses simbiontes é denominado liquenização, e a estrutura resultante recebe o nome de líquen (no plural a palavra não leva acento: liquens). Mais de 95% do volume do líquen é normalmente constituído pelo fungo liquenizado (micobionte), que abriga populações de algas ou cianobactérias (fotobionte) entre suas hifas. Os fotobiontes sintetizam açúcares, que são aproveitados pelos fungos. Durante muito tempo se acreditou e se divulgou, em livros e nas escolas, que os liquens constituíam exemplo notável de mutualismo, ou seja, uma associação obrigatória entre simbiontes, em que ambos os parceiros trocam vantagens recíprocas. Há muito tempo os especialistas vêm tentando definir o que é um líquen, e muitas definições podem ser encontradas na literatura. O próprio Dictionary of Fungi apresenta uma definição diferente a cada nova edição e, por vezes, as definições antigas agradam mais aos especialistas do que as novas apresentadas. Muito da problemática de se definir os liquens vem do fato de que dificilmente as pessoas conseguem afastar de suas mentes que essas estruturas biológicas não constituem um grupo taxonômico e, portanto, não podem ser definidos da maneira como se faz em Taxonomia. A melhor e mais simples idéia que se pode apresentar para um líquen é simplesmente a de um fungo que cultiva fotobiontes entre as hifas de seu micélio. Trata-se de simbiose, mas não se pode afirmar de qual tipo. Na realidade, atualmente os especialistas concordam que o tipo varia desde o parasitismo até o mutualismo estrito, dependendo de quais grupos taxonômicos de fungos e de algas (ou cianobactérias) estejam envolvidos. Em associações simbióticas desse tipo, o organismo que contém o outro pode ser chamado de exhabitante e o que vive em seu interior de inhabitante. A grande maioria dos liquens é constituída por ascomicetos, embora também existam basidiomicetos e deuteromicetos liquenizados. Além disso, algumas raras espécies de quase todos os grupos de fungos podem formar liquens. Portanto, a liquenização deve ser um processo altamente vantajoso para os fungos, e acredita-se que ela apareceu várias vezes, em momentos e em grupos taxonômicos diferentes, durante a história evolutiva do reino Fungi. Os ascomicetos parecem realmente ser os fungos melhor equipados para esse tipo de associação. Espécies liquenizadas estão presentes em quase metade de suas ordens, o que corresponde a 46% das espécies conhecidas. Na realidade existem cinco grandes ordens (Graphidales, Gyalectales, Peltigerales, Pertusariales, Teloschistales) nas quais todas as espécies conhecidas são encontradas na natureza exclusivamente constituindo liquens, além de outras cinco onde a maioria das espécies é liquenizada. Isto faz com que a liquenização seja a principal estratégia nutricional dos ascomicetos, mais importante para o grupo que o parasitismo, o 1 Este texto, originalmente escrito em 1998 e divulgado como apostila em cursos de liquenologia, teve várias versões constantemente atualizadas. Em 2002 ele foi adaptado e sua publicação foi permitida pelo autor (sem cessão de direitos) e essa versão foi lançada em 2006 como o Capítulo 1 do livro Biologia de Liquens (eds L.Xavier Fo., M.E. Legaz, C.V. Cordoba & E.C. Pereira, p. 23-74), onde infelizmente apareceu com uma série de incorreções graves (falta de parte do texto e parte de figura que alteram o significado do texto) devidas a falhas de editoração. Esta versão de 2012 é uma errata que corrige esses erros e substitui as figuras de liquens por fotos digitais mais recentes. Este texto não atualiza o conhecimento desde 2006 e deve ser citado em bibliografia como parte do livro mencionado. 2 saprofitismo, ou qualquer outro modo de sobrevivência freqüentemente utilizado pelos fungos. Acredita-se que a liquenização surgiu independentemente em cada ordem, por vezes mais de uma vez e em épocas diferentes na mesma Ordem ou mesmo dentro de famílias ou gêneros; por isso o tipo de abordagem do fotobionte pelo micobionte varia de grupo para grupo, tanto morfológica quanto fisiologicamente. Por isso, é altamente discutível a velha crença, ainda amplamente difundida nos meios didáticos (e Internet), de que os liquens seriam exemplo típico de simbiose mutualista. Se o mutualismo realmente existir nas associações liquênicas, ele certamente estará restrito àqueles liquens anatômica e fisiologicamente mais complexos, onde o contato físico entre os simbiontes é menos agressivo e a indução da liberação dos produtos de fotossíntese da alga é quimicamente estimulada. A tendência atual é se acreditar que liquens são muito mais estruturas onde os fungos cultivam algas (ou cianobactérias) das quais se alimentam (ou obtêm seu alimento), do que casos de convivência “harmoniosa e pacífica” entre mutualistas. Muitas vezes esse relacionamento tem sido chamado de parasitismo controlado. Aliás, a idéia de que os fungos “escravizam as algas, como fazemos com o gado” foi inicialmente proposta por Schwendener, em 1867, quando descobriu que os liquens são associações de fungos e fotobionte. Os fotobiontes encontrados nos liquens pertencem a grupos continentais unicelulares ou filamentosos de algas verdes ou de cianobactérias, comuns sobre caules e folhas de plantas, no solo, rochas e poças d’água. Entre os mais de 20 gêneros de algas verdes presentes nos liquens, destacam-se Trentepohlia, filamentoso comum nos liquens tropicais, e os unicelulares Trebouxia e Pseudotrebouxia, presentes em pelo menos metade dos liquens e que ocorrem na natureza quase exclusivamente na forma liquenizada. As cianobactérias mais freqüentes nos liquens pertencem aos gêneros Nostoc e Scytonema, embora outros 11 gêneros sejam conhecidos. Cada espécie de fungo associa-se exclusivamente a uma determinada espécie de fotobionte (às vezes duas, veja o texto); entretanto, o oposto não é válido, pois um mesmo fotobionte pode ser encontrado associado a muitos fungos diferentes. Quando em associação liquênica, os fotobiontes não se reproduzem sexuadamente e sofrem uma série de alterações na forma, tamanho e estrutura de suas células; as formas filamentosas podem até mesmo ter suas células separadas e aparentarem ser unicelulares; tudo isso se deve ao estresse nutricional imposto pelo fungo. A identificação correta das espécies de fotobionte só pode ser realizada após sua cultura em separado do fungo, quando suas células readquirem suas características peculiares. Embora o fungo liquênico normalmente não seja encontrado na natureza sem a alga e não desenvolva talo liquênico complexo quando cultivado isolado em laboratório, a recíproca não é de todo verdadeira. Exceto por Trebouxia e Pseudotrebouxia, que são pouco freqüentes na forma livre, todos os fotobiontes são comumente encontrados livres e se desenvolvem melhor em cultura (por exemplo, produzem células normais em tamanho e forma, filamentos com ramificação normal, além de gametas) do que dentro do líquen. Umas poucas espécies de fungos liquenizados que compõem formas crostosas marinhas da região entre-marés, não existentes no Brasil, podem conter espécies de Rodophyta e Xanthophyta. Pouquíssimos liquens são aquáticos, a imensa maioria são formas de vida terrestres. Nesse ambiente, apenas as bactérias têm maior dispersão que os liquens. Eles podem ser encontrados desde o interior de rochas e cascas de árvores até as altas camadas da estratosfera (propágulos);em todos os substratos, climas, altitudes e latitudes; sob o gelo da Antártida e na beira de fontes termais. Estão ausentes apenas de ambientes constantemente úmidos e/ou sombreados, como o interior de matas tropicais mais densas, ou então de regiões cujo ar está poluído. Sua extrema sensibilidade a alterações ambientais os torna os melhores bioindicadores de poluição aérea. 3 SISTEMÁTICA Nos meados do século 18, os liquens já foram considerados pertencentes às algas e às briófitas. O fato de viverem expostos à luz e possuírem coloração que muitas vezes inclui tonalidades de verde (principalmente quando umedecidos) fez com que durante muito tempo fossem considerados um tipo de vegetal. Além disso, a presença dos fotobiontes, em muitos casos dispostos de maneira organizada dentro do talo, parecia confirmar essa crença. Aqueles que consideravam os liquens como fungos, tinham como procedimento padrão colocá-los em um grupo taxonômico especialmente criado para eles. Entretanto, desde o século 19 já existiam autores como Edvard August Vainio, o Pai da Liquenologia Brasileira (fig. 1), que defendiam a idéia de que não havia motivos para considerar os liquens separadamente dos outros fungos (principalmente dos ascomicetos) em sistemas de classificação, pois a única diferença visível entre os liquens e os outros fungos era a presença dos fotobiontes, e vários grupos diferentes de fungos podem se liquenizar. Um grupo taxonômico que unificasse os fungos liquenizados seria obrigatoriamente polifilético e, portanto, inadmissível em um sistema natural de classificação. Figura 1 - Edvard August Vainio (5/8/1853 - 14/5/1929), liquenólogo finlandês; uma de suas grandes obras foi seu trabalho de doutorado sobre os liquens do Brasil, um clássico da Liquenologia tropical e fundamental para os liquenólogos brasileiros; foi declarado Pai da Liquenologia Brasileira, em uma reunião da International Association for Lichenology (IAL) realizada em Minas Gerais, no Parque Natural do Caraça, em 18 de setembro de 1997. O maior problema ocorrido na sistemática dos fungos liquenizados foi o fato de, entre 1921 e 1940, A. Zahlbruckner ter compilado um catálogo de todas as espécies de fungos liquenizados (Catalogus Lichenum Universalis, em 10 volumes) baseado nas idéias de W. Nylander. Embora Nylander tenha sido um dos maiores liquenólogos da história, ele não acreditava nas idéias de Schwendener (cujo forte impacto que no século 19 acabaram criando uma escola de pensamento chamada schwenderianismo), nem na Teoria da Evolução, e considerava os liquens como um grupo independente, num sistema de classificação totalmente artificial. O Catalogus foi uma imensa obra de compilação e serviu de base para todas as 4 pesquisas da primeira metade do século 20, que foi época de pouquíssima atividade liquenológica (entre a Grande Depressão e o final da recuperação pós Segunda Guerra Mundial). Embora declaradamente descontentes com a sistemática utilizada, a maioria dos liquenólogos dessa época adotou, por comodidade e insuficiência de dados, a classificação oferecida no “Catalogus”. Essa linha de procedimento foi seguida pelos livros de texto, adotada e divulgada no meio universitário. Exceções a esse tipo de procedimento foram Nannfeldt, em 1932, e Luttrell, em 1951, que incluíram cuidadosamente os fungos liquênicos em seus sistemas de classificação, muito melhorados em relação aos de suas épocas, devido às descobertas dos tipos de ascos, paráfises, modos de dispersão dos esporos, e dos casos de convergência morfológica dos ascomas. A partir de 1950 o Código Internacional de Nomenclatura Botânica (CINB), que rege também a taxonomia dos fungos, passou a declarar que “o nome atribuído a um líquen deve ser entendido como aplicado a seu fungo”, tendo o fotobionte taxonomia particular dentro de seu próprio grupo. Portanto, um líquen não tem realmente um nome científico de espécie. Quando nos referimos a uma espécie de líquen, estamos nos referindo na realidade ao nome de seu fungo. Por exemplo, a expressão “este líquen é Cladonia brasiliensis” deve ser tecnicamente entendida como “o fungo que participa desta associação liquênica é Cladonia brasiliensis”. Por questão de tradição, para facilidade de linguagem, e pela falta de nome popular pelo qual chamar os liquens, frases como a primeira são amplamente utilizadas, tanto de forma oral como escrita. Entretanto, seu significado real deve estar sempre em mente para que se evite sérios erros de raciocínio e armadilhas de lógica. A literatura científica atual praticamente já estabilizou o uso da expressão “fungo liquenizado” quando se trata de abordagem taxonômica, ou que tenha o fungo como ponto central. O termo líquen deve ser utilizado apenas quando se aborda a associação como um todo, como ocorre em certos experimentos fisiológicos com o talo inteiro, ou estudos ecológicos, por exemplo. Em 1981, o grupo Lichenes foi oficialmente eliminado pelo CINB. A unificação de fungos liquenizados e não liquenizados em um mesmo sistema taxonômico é um dos grandes problemas da Micologia, que ainda deve demorar a ser satisfatoriamente resolvido, mesmo em relação a alguns aspectos e problemas básicos. Vários dos principais aspectos problemáticos que necessitam de solução originaram-se do fato de que os fungos liquenizados foram durante muito tempo renegados pela maioria dos estudiosos dos fungos não liquenizados, que desenvolveram os principais sistemas de classificação dos fungos. Quando consideravam os fungos liquenizados, a maioria sistemas taxonômicos tentava simplesmente incluir os fungos liquenizados em esquemas preexistentes. Entretanto, para os ascomicetos, os fungos liquenizados constituem quase metade das espécies conhecidas, o que significa uma enorme adaptação para qualquer esquema. Também, muitos fungos liquenizados apresentam talos complexos, com estruturas morfológicas e anatômicas de importância taxonômica reconhecida, que não estão presentes nas espécies não liquenizadas de seu grupo, nas quais o micélio é constituído por hifas desorganizadamente dispostas. Por outro lado, muitos fungos, quando liquenizados, produzem substâncias características conhecidas como “substâncias liquênicas” ou “ácidos liquênicos”, de alta importância taxonômica (quimiotaxonomia), amplamente utilizadas na Liquenologia, e que estão ausentes dos fungos não liquenizados. Na realidade, os liquens são as entidades biológicas mais estudadas do ponto de vista da produção de metabólitos secundários, e os fungos liquenizados constituem o grupo onde a quimiotaxonomia tem maior importância, entre todos os conhecidos. Até o momento, cerca de 700 dessas substâncias foram identificadas. 5 Por todas essas razões, é extremamente problemático listar e descrever as ordens e famílias a que pertencem os fungos liquenizados. Ainda mais, com o avanço das pesquisas, todos os anos famílias novas são criadas, ou então transferidas de ordem para ordem, ou então são simplesmente desfeitas, com seus gêneros transferidos para grupos diferentes. Todos os anos gêneros têm suas circunscrições redefinidas e são mudados de famílias. Além disso, existe um enorme número de gêneros e espécies tropicais, dos quais quase nada se conhece além das descrições originais, anteriores ao século 20, e muito menos da sua posição adequada em sistemas taxonômicos. Isto ainda sem contar o grande número de espécies tropicais ainda não descritas, esperando para ser encontradas na natureza. Levantamentos de espécies de fungos liquenizados de regiões brasileiras e das Guianas, por exemplo, têm demonstrado que entre 10 e 20% das espécies encontradas são novas para a Ciência. Esse estado de coisas se reflete até mesmo nos herbáriosliquenológicos, onde se prefere organizar os fungos liquenizados simplesmente por ordem alfabética de gêneros e espécies, a tentar a vã tarefa de organizá-los por ordens e famílias, cuja definição é ainda vaga. Apesar disso, para que se tenha uma idéia de como as separações dos grupos são normalmente feitas e do que existe no Brasil, no final deste capítulo se apresenta um sistema organizado, com uma descrição sucinta daquelas ordens de ascomicetes que incluem formas liquenizadas, mencionando os gêneros já encontrados no Brasil. CARACTERÍSTICAS DE VALOR TAXONÔMICO As características mais utilizadas em que se baseia a sistemática dos fungos liquenizados são: (a) características morfológicas e anatômicas do talo; (b) características de estruturas reprodutivas da associação (propágulos que possuem micobionte e fotobionte); (c) características morfológicas e anatômicas das estruturas reprodutoras do micobionte; (d) constituição química em compostos liquênicos (quimiotaxonomia); (e) distribuição ecológica e geográfica. MORFOLOGIA E ANATOMIA Pelo fato de que, morfologicamente, os liquens se assemelham a alguns tipos de vegetais, e pela própria história da Sistemática Botânica, o corpo do líquen, ou seja, o conjunto de fungo e alga, é tradicionalmente denominado talo. Quando portadores de algas verdes, a maioria dos talos liquênicos tem coloração entre o branco e o cinza, com um toque de verde dado pela clorofila. Quando o talo é umedecido, as células do fungo ficam intumescidas e mais translúcidas; então, a cor verde dos fotobiontes torna-se bastante salientada e o talo adquire uma coloração viva, clara ou escura. Esse é o motivo pelo qual os liquens são muito mais visíveis e bonitos após as chuvas. As outras cores básicas dos liquens são variações do preto, marrom e cinza-chumbo, que ocorrem naqueles portadores de cianobactérias (fig. 2). Por outro lado, alguns fungos liquênicos produzem substâncias coloridas, normalmente interpretada como defesa contra o excesso de iluminação dos ambientes expostos em que vivem, que poderia causar degradação da clorofila. Nesses casos, todo o talo, ou partes dele, pode adquirir cores como amarelo, laranja, e mesmo vermelho (fig. 3). 6 Figura 2 - Embora a maior parte das cores apresentadas pelos liquens seja devida a substâncias produzidas pelo fungo, o tipo de fotobionte tem influência decisiva na cor do talo. Dentro do mesmo gênero folhoso, Sticta tomentosa (verde) porta algas verdes e Sticta ambavillaria (marrom) porta cianobactérias. Figura 3 - Herpothallon rubrocinctum, fungo liquenizado crostoso, pantropical e muito freqüente em ambientes mésicos no Brasil; os sorédios e medula apresentam coloração vermelho viva. Existem várias maneiras de associação e vários níveis de intimidade entre as células das algas e as hifas dos fungos nos liquens, o que determina uma ampla variação da anatomia e da morfologia. As associações mais simples constituem-se apenas de um conjunto de hifas não organizadas que crescem por entre colônias de células de algas. A aparência geral desse talo é a de uma simples mancha pulverulenta, normalmente branca a ligeiramente acinzentada ou esverdeada. As associações mais complexas apresentam talos foliáceos (liquens foliosos), ereto-ramificados (liquens fruticosos arbustivos) ou penduloso-ramificados (liquens fruticosos pendulosos), com uma grande diversidade de estruturas reprodutivas e vegetativas, além da diferenciação interna em vários tipos de tecidos de funções bem definidas. 7 A maior parte dos talos liquênicos pode ser medida em centímetros, sendo comuns exemplares crostosos com 1 até 30 centímetros de diâmetro. Entretanto, existem talos adultos de poucos milímetros, que crescem em frestas de troncos ou de rochas, bem como enormes formas foliosas, e mesmo crostosas, com mais de um metro de diâmetro, sobre rochas em campos rupestres, e longas barbas-de-velho de até quatro metros de comprimento, balançando nos galhos de árvores das matas de neblina da Serra da Mantiqueira. Os tipos de talo dos liquens (HÁBITOS) Os talos liquênicos se apresentam sob muitos aspectos (hábitos) que, embora não caracterizem grupos taxonômicos como famílias ou ordens (às vezes nem mesmo o gênero), são típicos para cada espécie, e amplamente utilizados em descrições e chaves de identificação. Esses hábitos separam os liquens em "tipos" ou "formas". Os principais são: 1. Crostoso ou crustáceo São as formas mais aderidas ao substrato (fig. 4). Este tipo de líquen se apresenta preso ao substrato por todas as células de seu lado inferior que estão em contato com ele. Menos comumente, o talo pode se encontrar totalmente imerso no substrato. Pode-se dizer que tipicamente os liquens crostosos são desprovidos de córtex inferior e aderem ao substrato por toda a sua medula. Alguns dos principais tipos crostosos são: endofloidal, aquele que cresce imerso no córtex de hospedeiros (forófitas) lenhosos. endolítico; análogos aos endofloidais, crescem internamente às rochas. leproso, são as crostas anatomicamente desestruturadas, constituídas apenas de hifas e células de algas desorganizadamente associadas. Sua aparência é a de uma mancha pulverulenta, com aspecto de um veludo, fino ou espesso. Crescem preferencialmente sobre o solo e rochas em locais sombreados e úmidos. contínuo, são aqueles mais estruturados, normalmente corticados e muitas vezes heterômeros, que apresentam a aparência de uma crosta normalmente bem delimitada e sem interrupções a não ser aquelas impostas pelo relevo do substrato. Constituem a maioria das espécies crostosas existentes no Brasil e são abundantes sobre todos os tipos de substrato. É a este tipo que os livros-texto normalmente se referem quando mencionam o hábito crostoso. rimoso, são aqueles que se apresentam naturalmente fraturados, gretados. À lupa lembram um solo argiloso ressecado e com a superfície toda quebrada que, entretanto, não é separada em placas. As fendas do talo surgem posteriormente a seu crescimento, de modo que sua margem é normalmente contínua. areolado, são aqueles compostos por placas, como se fosse um revestimento de ladrilhos poligonais ou meio arredondados, denominadas aréolas, irregularmente colocadas lado a lado. O talo areolado possui aréolas desde a margem, onde elas se formam. Em alguns casos, a margem do talo areolado é composta de placas um pouco alongadas parecidas com pequenos lobos; esse tipo de margem é chamada de efigurada. 8 Figura 4 - Liquens crostosos típicos dos cerrados, cobrindo totalmente trecho de casca de árvore; quando não queimados por mais de 20 anos, os cerrados apresentam abundante cobertura liquênica nos troncos. 2. Placodióide Este tipo de talo apresenta a forma típica de roseta, isto é com uma parte central tida como crostosa, mas com a aparência geral de um pequenino talo folioso, devido ao fato do talo ser plicado no sentido radial, ou constituído de escamas convexas, alongadas no sentido radial e imbricadas como telhas. Vários autores utilizam, erroneamente, o termo “placóide”. 3. Esquamuloso É o talo composto por uma enorme quantidade de pequeninas escamas (esquâmulas), normalmente menores que um milímetro cada uma (embora em algumas poucas espécies possam ter mais de um centímetro), mas que crescem agregadas, muitas vezes formando manchas de vários centímetros de diâmetro. Cada esquâmula tem uma parte aderida ao substrato da mesma maneira que um líquen crostoso e uma parte ascendente, dirigida para cima. 4. Folioso ou Foliáceo Sob esta designaçãoestão reunidas aquelas formas (Figs. 2, 5 e 6) cujo talo é de estrutura laminar e dorsiventral (possuem lado de baixo e lado de cima) e não se prendem ao substrato por sua medula. Em muitos casos possuem um córtex inferior (ver adiante) que os diferencia prontamente dos liquens crostosos. É comum que eles se prendam ao substrato por projeções ou partes especializadas do córtex inferior. O talo folioso normalmente adere ao substrato por muitos pontos de seu lado inferior. Entretanto, em algumas espécies o talo é tipicamente preso por um único apressório central; nesse caso o apressório pode ser chamado de umbigo e o talo é dito umbilicado (bastante raro no Brasil). Outras vezes, os talos são presos por um único apressório lateral, que pode ser chamado de pedúnculo, e o talo de pedunculado. Os recortes dos talos foliosos recebem o nome de lobos. Porém, muitos autores fazem distinção entre aqueles lobos de contorno arredondado e aqueles alongados e de lados 9 paralelos (em forma de fita) a que chamam de lacínios. Para esses autores, portanto, os liquens foliosos também podem ser divididos em lobados (fig. 5) e laciniados (fig. 6). Figura 5 - Talo folioso lobado de Parmotrema tinctorum, espécie de Parmeliaceae freqüentemente encontrada sobre troncos de árvores no Brasil. Figura 6 - Talo folhoso laciniado de Hypotrachyna brasiliana, espécie de Parmeliaceae freqüente em rochas de altitudes superiores a 1000 metros no sudeste brasileiro. A forma, tamanho, recorte, dobradura e ramificação dos lobos a lacínios são específicos para gêneros e espécies. Muitos livros e cursos (e Internet) ensinam que a diferença entre liquens crostosos e foliosos é que os primeiros não podem ser coletados sem o substrato, ao contrário dos foliosos. Esse tipo de abordagem é TOTALMENTE ERRADA, pois existem muitos liquens foliosos tão pequenos e/ou aderidos ao substrato, que não podem ser coletados sem ele. Liquens foliosos têm sempre a aparência de uma lâmina enrugada e recortada colocada sobre o substrato, mesmo que se necessite de lupa para verificar esse fato. No caso da dúvida permanecer, a 10 presença de um córtex inferior coloca o líquen entre as formas foliosas, pois esse córtex sempre está presente nos foliosos muito aderidos. 5. Fruticoso Este é aquele talo cilíndrico ou achatado, muitas vezes bastante ramificado, que lembra pequenos arbustos com centímetros de altura, crescendo eretos, perpendiculares ao substrato (fruticoso arbustivo, fig. 7), ou que cresce pendente de rochas, troncos e galhos de árvores (fruticoso penduloso, fig. 8). Podem medir desde alguns centímetros até mais de quatro metros de comprimento (as barbas-de-velho verdadeiras, espécies dos gêneros Usnea e Ramalina), como ocorre nas partes altas da Serra da Mantiqueira. A sua estrutura interna apresenta simetria radial, facilmente percebida nas formas cilíndricas. Note-se que existe uma espécie de vegetal da família Bromeliaceae, Tillandsia usneoides, que, vista de longe, pendulosa nos galhos das árvores, assemelha-se muito a espécies de Ramalina (o autor do nome dessa espécie certamente não conhecia bem os liquens, pois cunhou um nome que significa "semelhante a Usnea", um outro gênero de fungos liquenizados fruticosos). Essa bromélia é conhecida como "falsa-barba-de-velho". Na realidade, seu aspecto é comumente bem mais acinzentado que o de Ramalina, que apresenta cor verde bem clara. Figura 7 - O talo fruticoso arbustivo cresce perpendicular ao substrato, lembrando realmente um pequeno arbusto como o desta espécie de Usnea. Liquens fruticosos podem se prender ao substrato simplesmente se enroscando a ele ou por um apressório. A morfologia do apressório e a maneira de se aderir ao substrato são caracteres taxonômicos importantes, razão pela qual os espécimes para identificação devem ser sempre coletados com eles. 11 Figura 8 - Fungos liquenizados fruticosos pendulosos, como os exemplares desta Usnea angulata, crescem pendentes, formando as barbas-de-velho, que podem chegar a vários metros de comprimento. 6. Filamentoso É o talo constituído de fios muito finos, perceptíveis a olho nu. Muitas vezes a textura desse tipo de talo é visualmente semelhante à de um feltro e aveludado ao tato (fig. 9). Na maioria dos casos esse tipo de talo é constituído principalmente por algas filamentosas que determinam a aparência final da associação. Esse caso é, portanto, uma exceção aos talos liquênicos, que em geral são constituídos principalmente por fungo e têm a sua forma e estrutura finais determinadas por eles. Nesses liquens as hifas dos fungos envolvem um a um os filamentos dos fotobiontes. Figura 9 - Nos liquens filamentosos, os delicados filamentos observados, com a textura de fios de algodão, são constituídos principalmente pelo fotobionte, que no caso deste Coenogonium leprieurii, é uma espécie de Trentepohlia (alga verde). 12 7. Composto ou dimórfico É o talo formado pela combinação dos tipos de talo descritos acima. Nesse caso, o que normalmente acontece é que o líquen começa seu desenvolvimento com um tipo de talo e depois assume outra forma; o primeiro talo, comumente chamado de talo primário, pode ou não permanecer no líquen adulto. Com a idade, o talo primário pode morrer e desaparecer, restando apenas talo secundário, e o líquen restante tem aspecto fruticoso. As combinações mais freqüentes entre tipos diferentes de talos são crostoso-fruticoso e esquamuloso-fruticoso, com o fruticoso sempre como talo secundário; eles são característicos da família Cladoniaceae e, pela importância dessa família, têm recebido o nome de talo cladoniforme (fig. 10). Nesse talo, a parte fruticosa originada de esquâmulas basais recebe o nome de podécio e se origina pelo crescimento do estipe do apotécio (fig. 21). Figura 10 - Talo composto do tipo cladoniforme, de Cladonia ramulosa; podem ser observadas as esquâmulas basais (talo primário) espalhadas sobre o substrato (neste caso solo), a partir das quais cresce verticalmente o podécio (talo secundário), que tem a função de elevar o disco himenial (marrom claro nesta espécie). Na grande maioria das vezes os podécios são ocos, e essa é uma característica fácil de se observar sob a lupa ou mesmo a olho nu, sempre que é necessário distinguí-los dos pseudopodécios (não do gênero Cladonia), que se originam do crescimento de partes do talo primário, e não de partes do apotécio. ANATOMIA E MORFOLOGIA DO TALO LIQUÊNICO Diferente dos fungos não liquenizados, os talos liquênicos podem apresentar muitos tipos de tecidos plectenquimáticos, com arranjos celulares diferentes, característicos de certas estruturas e de grupos taxonômicos. Além disso, o talo pode ser internamente organizado em camadas compostas por um ou mais tipos de tecidos. Neste ponto é importante lembrar que parênquimas verdadeiros estão quase totalmente ausentes do Reino Fungi. A única exceção existente será comentada mais adiante (esporo muriforme). Por definição e para qualquer tipo de organismo, parênquima é o tecido originado pela divisão de células em todas as direções do espaço. Esse processo origina uma estrutura maciça onde as células que estão reunidas em um dado local num tecido são sempre “parentes” 13 próximas, isto é, originadas a partir das últimas divisões de uma célula que se encontrava naquele local do tecido. Por outro lado é importante lembrar que o termo “parênquima”também é utilizado pela Anatomia Vegetal para descrever aqueles parênquimas com células de paredes finas, muitas vezes grandes, arredondadas e com funções de preenchimento ou reserva, entre outras. Nos fungos, as estruturas maciças são obtidas por um método diferente. Como todo o talo (micélio) dos fungos é de natureza filamentosa, ou seja, constituído por hifas, as suas partes mais complexas como por exemplo os ascomas, basidiomas e os tecidos dos talos liquênicos, são obtidos pela compactação das hifas, que cria uma estrutura anatomicamente muito semelhante, em aparência, ao parênquima vegetal. Esse tipo de tecido é conhecido como plectênquima ou falso parênquima. Nele, as células vizinhas não são necessariamente parentes, já que podem ser células de pontos muito distantes nos filamentos que o compõem. Para se referir a essas estruturas, normalmente se lança mão de prefixos que chamam a atenção para a semelhança morfológica entre esses tecidos. Assim, o termo paraplectênquima se refere a plectênquimas que parecem parênquimas vegetais ao microscópio (células de paredes finas) e prosoplectênquima se refere àqueles que se assemelham a colênquimas ou esclerênquimas (paredes espessas a muito espessas). Aqui cabem duas observações: (1) alguns autores confundem o conceito clássico de "tecido" (células de mesma aparência reunidas em determinado local para desempenhar uma função específica) com o de parênquima; para esses autores, e somente para eles (que normalmente também desconhecem a complexidade anatômica que os fungos liquenizados podem apresentar), os fungos em geral não apresentariam tecidos; (2) outros autores chamam de plectênquima o arranjo frouxo das hifas em certas partes do talo (que não constituem um tecido, como a medula dos liquens); esse termo deve ser reservado para aquelas partes onde as hifas estão compactadas e, em corte anatômico, apresentam a aparência de parênquima vegetal. Talos que não possuem diferenciação de camadas internas são chamados de homômeros (fig. 11), ao contrário dos heterômeros (fig. 12), que anatomicamente possuem pelo menos dois estratos internos: a camada de algas e a medula. Externamente, o talo é revestido pelo córtex, constituído por uma a várias camadas de células. Tipos de células, número de camadas e espessura variam de espécie para espécie. O córtex normalmente é transparente, mas certos grupos podem apresentá-lo impregnado com pigmentos de cores vivas, que são interpretadas como proteção contra excesso de iluminação e que realmente aparecem com maior freqüência em espécies de locais muito expostos, como por exemplo os campos rupestres. Exceto obviamente pela camada de algas, todas as estruturas aqui mencionadas podem estar ausentes, dependendo da espécie do fungo liquenizado. O córtex pode estar totalmente ausente, mesmo de alguns liquens mais complexos, como nos gêneros Collema (folioso) e Cladina (fruticoso), ou parcialmente ausente em várias estruturas do talo. É comum que espécies de talo folioso sejam desprovidas de córtex inferior. Por outro lado, em certos gêneros fruticosos, de medula oca ou pouco densa, o córtex pode funcionar como estrutura de sustentação. Em certos gêneros ou espécies, existem falhas na continuidade do córtex, que aparecem como pequenos pontos, normalmente visíveis a olho nu ou com o auxílio de uma lupa de mão, por onde a medula pode ser vista e chega mesmo, em alguns casos, a extravasar. Esses pequenos poros são denominados pseudocifelas. Sua presença, forma e localização são importantes caracteres para determinação de gêneros e espécies. Por exemplo, o gênero Punctelia apresenta pseudocifelas puntiformes no córtex superior, enquanto Pseudocyphellaria apresenta pseudocifelas no córtex inferior. 14 Figura 11 - Talo homômero. Corte transversal do talo de uma espécie de Leptogium, onde se observa somente a presença dos córtices uniestratificados envolvendo um emaranhado de hifas e fotobiontes (células verdes) não arranjados em camadas. Figura 12 - Talo heterômero. Corte transversal do talo de uma espécie de Hypotrachyna; aqui é possível observar, além do córtex superior com várias camadas de células (incolor a levemente amarelado) e do córtex inferior (enegrecido), a nítida organização interna em duas camadas (estratificação): a camada de algas, verde, e a medula, incolor. A estrutura negra se projetando (fora de foco) do córtex inferior é a base de uma rizina. Diferente das pseudocifelas, as cifelas (fig. 13) ocorrem apenas no córtex inferior e estão restritas ao gênero Sticta, onde ocorrem em todas as espécies. As cifelas, embora se apresentem nitidamente côncavas, com a aparência de poros, na realidade não são perfurações, pois sua superfície é revestida por um córtex especial. A camada de algas está, na grande maioria dos casos, localizada logo abaixo do córtex superior, e é constituída por hifas muito frouxamente arranjadas, entre as quais estão instaladas as células dos fotobiontes. A parede celular do fungo é fina, para facilitar a troca de substâncias com a alga, e incrustada com cristais hidrofóbicos de ácidos liquênicos, para manter a água afastada da camada de algas mesmo quando o talo está encharcado, a fim de facilitar as trocas gasosas necessárias ao processo de fotossíntese dos fotobiontes. 15 Figura 13 - Cifelas podem ser facilmente observadas na face inferior de Sticta tomentosa, bem como em todas as espécies do gênero; a cobertura marrom aveludada cobrindo o espaço entre as cifelas, é o tomento. As cifelas são internamente revestidas por um córtex especial, o que não ocorre com as pseudocifelas. Dificilmente os fotobiontes constituem um estrato absolutamente contínuo dentro do talo. O mais comum é que o fungo restrinja sua distribuição a pequenos espaços contendo grupos de células denominados glomérulos. Quando o espaço entre os glomérulos supera um certo tamanho, ocorrem manchas claras (da cor da medula) na superfície do talo, correspondentes a esse espaço e denominadas máculas. As máculas são, portanto, reflexos morfológicos de uma anatomia específica, são visíveis na lupa ou a olho nu, e variam em forma e tamanho de acordo com a espécie de fungo liquenizado. A medula é a camada localizada logo abaixo da camada de algas, o que corresponde à posição central nos liquens fruticosos. A medula é composta por hifas entrelaçadas, de paredes mais espessas que as da camada de algas; é o local de armazenamento de água e reservas do fungo e constitui a maior parte do talo. Substâncias liquênicas específicas são nela armazenadas, extracelularmente. Normalmente branca, em certas espécies pode apresentar-se pigmentada desde o amarelo ou creme claro até o amarelo forte, laranja, salmão, rosa, vermelho e outros. Em muitos liquens fruticosos, a medula apresenta-se toda ou em parte diferenciada num tecido de sustentação do talo. No gênero Usnea, a parte central de medula apresenta-se diferenciada num tecido condróide, denominado eixo, facilmente reconhecível, e que dá ao talo alguma resistência à tração. Em outros casos a medula é oca, quase oca ou gelatinosa, e a sustentação pode ser dada tanto pelo córtex quanto pela parte mais externa da medula (e.g. espécies de Ramalina). Outras estruturas vegetativas Lóbulos e lacínulos Regularmente ou casualmente, boa quantidade de espécies foliosas desenvolve projeções vegetativas nas margens de lobos e de lacínios, que recebem o nome de lóbulos quando são arredondados, e lacínulos (também é usada a forma feminina lacínula), quando têm a forma de fita (os lados são paralelos). Talos que passaram por período muito desfavorável de crescimento, às vezes por parasitose, às vezes por poluição do ar,às vezes por 16 alteração microclimática, etc., e que ganham novamente condições favoráveis, podem desenvolver rapidamente lóbulos jovens, que podem diferir em cor, textura e vigor das partes antigas. Esses lóbulos adventícios e eventuais também podem ser inicialmente confundidos com lóbulos normais, mas sua tendência real é crescer para assumir a forma e o tamanho típicos dos lobos ou lacínios da espécie. Estruturas de Fixação Em alguns gêneros, hifas rizoidais se projetam do córtex e se enroscam em partículas do substrato; em outros, o que é mais comum, o córtex pode possuir projeções especializadas denominadas rizinas e hápteros. Uma rizina é um feixe de hifas que crescem aglutinadas e paralelas a partir do córtex inferior dos liquens foliosos e cuja função é apenas de fixação. Um talo pode ter de algumas dezenas a muitas centenas de rizinas. Elas podem ser simples ou ramificadas de modo dicotômico, esquarroso ou irregular; podem ter o ápice agudo ou penicilado. Normalmente, um talo liquênico possui rizinas de um único tipo, mas determinados gêneros, como por exemplo Rimeliella, possuem rizinas de tipos diferentes num único talo. Em algumas espécies, principalmente nos gêneros Leptogium e Collema, conjuntos de hifas rizoidais ou de rizinas densamente agregadas crescem em regiões bem delimitadas em poucos locais do córtex, fixando o talo por poucos pontos, como se fossem “botões de pressão”. Essas regiões de aderência especializadas são denominadas hápteros. O mesmo termo é utilizado para designar ramos laterais dos liquens fruticosos que funcionam como pontos secundários de fixação. A presença, ramificação, distribuição e coloração dessas estruturas são caracteres de grande importância taxonômica no nível de gênero e espécie, de modo que muito cuidado deve ser tomado durante a coleta para que o lado de baixo do líquen não seja danificado. Cílios e fibrilas A diferença básica entre cílios (fig. 14) e rizinas é o fato dos cílios crescerem horizontalmente a partir da margem do talo, ou então a partir do córtex superior. Figura 14 - Neste exemplar de Parmotrema sp., podem ser observados cílios curtos na margem dos lobos. 17 A função dos cílios é totalmente desconhecida, mas a sua importância taxonômica, que até pouco tempo era negada por muitos especialistas, vem sendo cada vez mais reconhecida, e muitos gêneros são separados com base na presença ou ausência de cílios, entre outros caracteres. No gênero Usnea, muitas vezes a borda do apotécio e a própria superfície do talo pode conter filamentos longos e flexíveis; esses filamentos são liquenizados, ou seja, não são compostos apenas por fungo; eles têm a mesma estrutura interna do talo e são mais corretamente chamados fibrilas (fig. 15). Figura 15 – Fibrilas ao redor da margem de apotécios de Usnea sp. Pústulas Pústulas são inchações que aparecem em pontos determinados do talo de certas espécies. Elas parecem surgir pelo crescimento do córtex, camada de algas e parte da medula, não acompanhado pela parte inferior da medula e córtex inferior. Por serem ocas, elas são muito delicadas ao toque. Podem se desenvolver com a aparência de grânulos lisos, grânulos cerebróides, rugas isoladas, rugas paralelas, ou pequenos dedos verticais. Neste último caso, as pústulas são muitas vezes chamadas dáctilos, para diferenciá-las dos isídios. Freqüentemente a erupção das pústulas (que ocorre ou não dependendo da espécie) origina sorédios (ver adiante) que se formaram sob elas e/ou pela desagregação de suas paredes. As pústulas podem se desenvolver laminais ou marginais em lobos e lacínias, às vezes restritas às cristas das dobras do talo, às vezes presentes nas margens dos apotécios, às vezes ocorrendo nos isídios, caso em que é difícil saber se são isídios pustulados ou dáctilos. Relativamente aos países temperados e frios, o Brasil apresenta uma grande quantidade de espécies pustuladas. Existe uma boa quantidade de estruturas presentes em espécies brasileiras que se parecem superficialmente com pústulas, são bastante confundidas com elas na literatura e ainda não têm nome. 18 Cefalódios e associações quimeróides Um fungo normalmente se associa a apenas uma espécie de fotobionte. Entretanto, em alguns grupos taxonômicos, o fungo pode (facultativa ou obrigatoriamente) se ligar a uma alga verde e uma cianobactéria. Nesses casos, os fotobiontes nunca compartilham o mesmo espaço no interior do talo. É comum que as algas verdes estejam localizadas na camada de algas e as cianobactérias restritas e grumos ou estruturas especiais localizadas dentro ou na superfície do talo, que são denominados cefalódios, importantes na fixação do nitrogênio. Nesses liquens o talo é verde, e os cefalódios cinzas a negros. No gênero fruticoso Stereocaulon, que no Brasil pode facilmente ser encontrado sobre rochas em altitudes superiores a 1000m, todas as espécies apresentam cefalódios azulados externos, de aparência cerebróide, cuja forma pode identificar a espécie. Certas espécies dos gêneros Sticta, Lobaria e outros podem alternativamente se associar a uma certa espécie de alga verde ou de cianobactéria, o que dá ao talo inteiro a cor verde (com algas verdes) ou cinza a marrom (com cianobactéria), mas esse é um fato pouco comum e restrito a pouquíssimos grupos. De fato, em alguns locais do Brasil, principalmente em locais altos da Serra do Mar e Serra da Mantiqueira, às vezes podem ser encontrados talos (principalmente de espécies de Sticta) cujo fungo trocou de fotobionte, ou seja, parte do talo tem cor verde e parte cor marrom ou enegrecida; esse tipo de estrutura pode ser chamado de quimera ou associação quimeróide, mas há um grande número de termos alternativos na literatura. O mais comum é que não exista diferença morfológica significativa entre as partes dos talos com tipos diferentes de fotobiontes (embora tenham sido descritos como espécies diferentes). Entretanto existem casos (Lobaria, no Brasil) em que o talo é folioso quando o fungo se associa à alga verde e , torna-se fruticoso quando o fungo troca para a cianobactéria. Esse forma fruticosa, encontrada no mundo inteiro, foi originalmente descrita como o gênero Dendriscocaulon, quando na realidade se trata de uma única espécie. Esse fato causa polêmica dentro da Liquenologia e suas implicações taxonômicas não estão satisfatoriamente resolvidas. O mais comum é que os especialistas se refiram às diversas formas como fototipos, mas mantenham o uso dos nomes originais em que as espécies foram descritas até que o problema esteja solucionado. REPRODUÇÃO DO TALO LIQUÊNICO Obviamente, não se pode falar de reprodução sexuada de uma estrutura composta de dois organismos diferentes, como os liquens. Entretanto, a intimidade morfológica e anatômica entre os simbiontes liquênicos é tanta, que existem estruturas que garantem a disseminação da associação como um todo, por conterem tanto hifas de fungos como células de algas ou de cianobactérias. Por isso, embora o líquen não seja um organismo e sim uma associação de organismos, por questão de tradição, essas estruturas são inadequadamente conhecidas na literatura como de “reprodução assexuada do líquen”. Por outro lado, independente dos fotobiontes, os fungos podem se reproduzir assexuadamente por meio de produção de esporos, que deverão encontrar o fotobionte específico na natureza, a fim de recompor a associação. Também tradicionalmente, quando se diz que o líquen está se reproduzindo sexuadamente, na realidade se está querendo dizer que o fungo se reproduziu sexuadamente. Paralelamente, quando se diz que o líquen está fértil, na realidade se está querendodizer que o fungo está produzindo ascomas (que são estruturas produtoras de esporos). 19 Portanto, adequando melhor a terminologia, pode-se dizer que uma simbiose liquênica pode ser reproduzida na natureza por dois métodos básicos: DIRETO, que ocorre através da produção de estruturas que contêm tanto o micobionte quanto o fotobionte, comumente denominada, de modo errôneo, como reprodução assexuada; e INDIRETO, através da produção e liberação de esporos pelo micobionte, com ou sem sua reprodução sexuada. Esses esporos necessitam encontrar na natureza células da espécie adequada de fotobionte e se associar a elas num processo de liquenização (fig. 16). REPRODUÇÃO DIRETA Nem todos os liquens se reproduzem diretamente. Na realidade, existe grande número de espécies cujo único modo de reprodução conhecido (ou suposto) é indireto. Uma das estruturas de reprodução direta mais freqüentes é o sorédio (fig. 17), uma diminuta (25 a 100 µm) massa granular composta apenas de algumas hifas envolvendo algumas células do fotobionte; são anatomicamente desestruturados, ou seja, não apresentam qualquer sinal de desenvolvimento de tecidos ou camadas internas. A olho nu, o tamanho de um sorédio varia entre o de um grão de farinha de trigo e um de açúcar refinado. A produção de sorédios pode ocorrer sobre todo o talo, tanto na face superior quanto na inferior, ou estar restrita a regiões como o ápice de lobos e lacínios, cristas de dobras, margens dos apotécios, ou ainda a áreas especializadas bem delimitadas denominadas sorais (fig. 18). Figura 16 - Modos possíveis de reprodução de um talo liquênico: DIRETO e INDIRETO. Observe que o conídio pode tanto atuar na reprodução indireta do talo, através de liquenização, como servir de célula sexual masculina na reprodução sexuada do fungo, que não está representada no esquema. Os sorédios podem ser caducos, caindo assim que produzidos, ou permanecer presos ao líquen à espera de serem levados pela água, vento ou animais. Nesses casos eles normalmente isídios TALO ascoma picnídio ascosporo conídio FOTOBIONTE - livre ou de um líquen micélio liquenizado LIQUENIZAÇÃO sorédios filídios, etc. REPRODUÇÃO INDIRETA REPRODUÇÃO DIRETA LÍQUEN reprodução sexuada do fungo 20 permanecem inalterados. Entretanto, em algumas espécies, eles podem crescer e até mesmo ficar parcial ou totalmente corticados, quando então deixam de ser chamados de sorédios e passam a receber a denominação de grânulos. Sorédios, às vezes, ocorrem em espécies normalmente não sorediadas, em talos muito velhos ou que estão quase morrendo, ou ainda em casos em que a associação simbiótica esteja se desfazendo por motivos ambientais, como a mudança do ambiente para condição de umidade constantemente alta. Porém, nesses casos, é normalmente evidente a condição geral anormal do talo através da presença de manchas, deformações, esterilidade do fungo e outros indicadores. Figura 17 - Produção de sorédios em soral de Hypotrachyna sp. As hifas da camada de algas se fragmentam formando pequenos grumos compostos de poucas hifas e algumas células de fotobionte (neste caso a alga verde Trebouxia), que são liberados ou carregados. Presença, tipo e localização de sorédios e sorais têm alto valor taxonômico a nível específico. Os principais tipos de sorais são: maculiformes: aqueles que formam manchas redondas ou oblongas bem delimitadas na superfície ou na margem do talo. rimiformes: aqueles alongados, simples ou ramificados, que se desenvolvem acompanhando fissuras do córtex. convexos-globulares: aqueles que formam bolas muito evidentes na superfície do talo, como em várias espécies de Dirinaria. capitados: aqueles esféricos que ocorrem no ápice de lobos e lacínias, como em Parmotrema chinense. labriformes: aqueles formados próximo da ponta, no lado inferior do lobos que se viram para cima, com a aparência de lábios, como muitas espécies de Parmelia s.l. e Heterodermia. marginais: aqueles que se desenvolvem continuamente ao longo da margem de liquens foliosos, como em Parmotrema austrosinense e Pseudocyphellaria aurata. 21 Figura 18 - Nas espécies que produzem sorédios, a posição dos sorais no talo é característica para cada espécie. Neste Parmotrema praesorediosum os sorais se desenvolvem nas margens dos lobos. A reprodução indireta também pode ser efetivada através de isídios (fig. 19), pequenas projeções com a mesma organização anatômica do talo, ou seja, caso se originem de um líquen heterômero, possuem córtex, camada de algas e medula. Sua forma básica é cilíndrica, embora em algumas espécies eles possam ser achatados ou de tendência esférica, podendo ser simples ou ramificados, retos ou contorcidos, eretos ou procumbentes. Figura 19 - Os isídios não têm a aparência pulverulenta dos sorédios; eles aparecem a olho nu como pequenos grãos. Em Parmotrema tinctorum eles são laminais, ou seja, crescem sobre toda a parte superior do talo. Cerca de 25 a 30% dos liquens foliosos e fruticosos são isidiados. Ao olho nu o conjunto de isídios dá ao talo a aparência de uma lixa, e ao tato é geralmente possível percebê-los como grãos quando friccionados entre os dedos. Pode-se, grosso modo, dizer que os menores isídios 22 são do tamanho aproximado dos maiores sorédios. O mais comum é que eles variem entre 0,1 e 3,0 milímetros de altura, entre 0,05 e 0,2 milímetro de diâmetro. Os isídios são constritos na base para facilitar sua liberação. Os isídios podem se desenvolver sobre toda a superfície do talo (muito raramente no lado de baixo) ou estarem restritos a regiões como as margens do talo, ápice de dobras ou margens dos apotécios. Presença, forma, forma, cor, modificações e distribuição dos isídios são importantes características taxonômicas no nível específico. Filídios se diferenciam dos isídios pelo fato de serem dorsiventrais, e dos lóbulos por não terem o lado de baixo corticado. Os filídios estão restritos aos liquens foliosos. Outras estruturas de reprodução direta Existe um grande número de outras estruturas de reprodução direta, a grande maioria delas restrita a pequenos grupos ou mesmo a uma única espécie conhecida. Por exemplo, os blastídios são formados por uma seqüência de segmentos do próprio talo (moniliformes). Lacínias com blastídios aparecem com vários estrangulamentos consecutivos, que são pontos de fragmentação do talo, nas proximidades do ápice. Os goniocistângios, que aparecem em liquens epífilos, produzem estruturas formadas por uma única célula de alga mais suas células filhas, envolvidas por hifas de uma maneira diferente do que ocorre nos sorédios. Os hormocistângios são estruturas esféricas que aparecem no gênero Lempholemma, dentro das quais são produzidos os hormocistos, cadeias de células da cianobactéria Nostoc com sua típica bainha de mucilagem, dentro da qual algumas hifas do fungo se introduzem. Fragmentação A fragmentação normalmente é reconhecida como um processo regular de reprodução quando existem estruturas e estratégias que facilitem o processo e o tornem um fato comum para a espécie. Alguns especialistas são da opinião de que esse processo pode ser considerado regular pelo menos para os liquens fruticosos muito ramificados ou longos, que quando secos são normalmente muito delicados e têm grande risco de serem atritados contra galhos e rochas ou de serem pisados por animais. Além disso, certas espécies apresentam regiõesde fragmentação, mais estreitas e sem algas, que são pontos específicos onde o talo pode ser facilmente quebrado. Morte das partes velhas Este é um modo de reprodução bastante óbvio, mas em geral esquecido. Como a maioria dos seres vivos, os fungos liquênicos, e conseqüentemente os talos liquênicos que eles formam, apresentam crescimento apical, ou seja, crescem pela aposição de novas células às suas extremidades. Como conseqüência, o centro das formas foliosas e crostosas, bem como a parte basal das fruticosas, são mais velhos que as extremidades. Com o passar do tempo, essas partes velhas acabam morrendo e normalmente se destacam e caem ou então se desfazem. Quando esse processo de desagregação por morte chega a destruir a base de uma ramificação, obviamente o talo é dividido em partes que crescerão como indivíduos independentes, o que caracteriza uma reprodução direta. Esse processo é facilmente percebido em grandes espécies de liquens foliosos que crescem sobre rochas, com o talo tipicamente em 23 forma de anel pela morte do centro, bem como nas espécies de grandes Cladonia fruticosas que crescem no chão e que possuem as partes basais sempre mortas e decompostas. Conidiomas Em algumas espécies, massas de conídios produzidos em hifóforos podem ser dispersadas juntamente com células de algas, o que caracteriza uma reprodução direta. Os “pares específicos” Em geral, uma determinada espécie apresenta apenas um tipo de estrutura de reprodução direta, e, tradicionalmente, espécies são separadas pelo modo de reprodução, mesmo que o restante da morfologia, anatomia, química e distribuição geográfica sejam semelhantes. Esse procedimento é hoje em dia geralmente justificado pela Teoria dos Pares Específicos (em alemão: Artenpaare), aceita e aprimorada pelo grande liquenólogo austríaco Josef Poelt, segundo a qual uma espécie cuja reprodução é exclusivamente indireta (por esporos), produtora de ascomas, chamada espécie primária, pode originar evolutivamente uma forma com reprodução exclusivamente direta, chamada de espécie secundária. Por não manterem fluxo gênico entre si, as duas formas podem ser consideradas espécies diferentes e são tratadas como pares específicos, ou seja, espécies que diferem apenas e tão somente pelo modo de reprodução. É comum a existência de várias espécies secundárias (por exemplo: uma com sorédios, outra isidiada, outra produzindo pústulas) originadas de uma única primária; nesses casos os pares específicos são compostos na realidade por três ou mais espécies e, apesar de serem tratados como "pares" pela literatura, seriam mais bem denominados grupos específicos. É bastante comum que a forma (espécie) parental, produtora de ascomas, tenha uma distribuição geográfica mais restrita que aquelas produtoras de estruturas de reprodução direta. Também, as condições ambientais necessárias à produção dos ascomas são muito mais restritas que aquelas necessárias à produção de sorédios ou isídios, por exemplo. Esse é um dos aspectos que torna a reprodução direta muito mais eficiente que a indireta. Existem também muitos casos em que a espécie parental foi extinta ao longo da evolução. REPRODUÇÃO INDIRETA Muitos liquens se reproduzem apenas indiretamente, ou seja, o fungo liquênico produz propágulos, normalmente células de reprodução assexuada (esporos) que, ao serem dispersas no ambiente, dependem do acaso para encontrar a espécie adequada de alga ou cianobactéria e promover o processo de liquenização, a fim de reconstituir um talo semelhante àquele que originou a unidade de dispersão. É bastante óbvio que, pela dificuldade de encontrar a alga, esse processo é já de início mais difícil que a reprodução direta. Algumas das algas que participam dos liquens são raras na natureza como formas livres, e o exemplo mais citado é o da clorófita unicelular Trebouxia, que participa em mais da metade dos liquens. Sabe-se que alguns esporos necessitam germinar sobre talos de liquens que contenham a alga necessária à sua liquenização. As primeiras hifas são lançadas dentro do talo-suporte e literalmente capturam células de algas com as quais se liquenizam. Entretanto, este é um caso 24 apenas. Na maior parte das vezes é totalmente desconhecida a maneira e o real grau de dificuldade que os fungos têm para realizar a liquenização na natureza. Nos ascomicetos liquênicos ocorrem dois tipos básicos de esporos: conídio e ascosporo. Tipos e estrutura de esporos, conidiomas e ascomas são caracteres importantíssimos na classificação dos ascomicetos desde o nível de espécie até o de ordem. Ascomas podem conter vários tipos de tecidos organizados de muitas maneiras diferentes de acordo com o grupo taxonômico. Pode também apresentar diferentes tipos de hifas, especialmente arranjadas e ramificadas, além de vários tipos de inclusões, que vão desde porções de substrato até depósitos de cristais e óleos. Ainda, o aparelho apical dos ascos vem, dia a dia, se tornando mais importante na classificação. Até algum tempo atrás, os conídios eram simplesmente desconsiderados na taxonomia dos ascomicetos liquenizados. Atualmente, além dos conídios serem importantes na caracterização gêneros e espécies, os tipos de conidiomas onde são produzidos podem caracterizar gêneros e famílias. Reprodução por conídios Cerca de 8.000 (59%) das 13.500 espécies aceitas de fungos liquenizados produzem conídios. Entretanto, pouco se sabe sobre os tipos de conidiomas que elas produzem. A forma e ramificação dos conidióforos e das células conidiogênicas varia entre as espécies e os gêneros. Sendo haplóide como o micélio adulto, um conídio pode tanto atuar na reprodução direta, associando-se a um fotobionte, como na reprodução indireta, atuando como célula sexual masculina. Trata-se, portanto, de uma célula de função dupla, ora atuando como gameta, ora como esporo, de acordo com a oportunidade. Algumas espécies produzem conídios de dois tamanhos diferentes, macroconídios e microconídios. Alguns pesquisadores opinam que pelo menos nesses casos, aqueles conídios maiores, que apresentam maior quantidade de substâncias de reserva e paredes espessas, atuam como esporos; aqueles pequenos (0,5-1,5 µm), baciliformes ou globosos, com pouco citoplasma e de paredes finas, funcionam como células masculinas. A forma e ramificação dos conidióforos e das células conidiogênicas varia entre as espécies e gêneros. Os fungos liquenizados podem apresentar vários tipos de conidiomas: o picnídio ou conidioma picnidial é de longe o tipo mais comum. Trata-se de uma estrutura globosa ou piriforme que se abre por um poro. Nos liquens foliosos os picnídios são normalmente imersos no talo, deixando visível apenas seu ápice preto, marrom ou branco. Nos talos crostosos eles são emersos e totalmente negros. Os especialistas identificaram até o momento vários tipos diferentes de conidiomas picnidiais, típicos de gêneros e famílias. Certamente os tipos mais comuns no Brasil são o “tipo Umbilicaria”, que ocorre também em Parmelia s.l., e o “tipo Lobaria”, que ocorre nas Lobariaceae. o conidioma acervulóide se parece um pouco com o picnídio, mas não tem a forma fechada. Trata-se de um agrupamento de conidióforos em depressões regulares e ampuliformes do talo. campilídio é o tipo de conidioma que ocorre em Calopadia, Badimia, e outros gêneros, comumente encontrados sobre folhas em matas úmidas e claras, mas às vezes crescendo também sobre troncos. Os campilídios são estruturas emersas, na forma de pequenas orelhas, com os conídios se desenvolvendo em sua face interna. Em um talo essas “orelhas” normalmente se desenvolvem todas voltadas para um mesmo lado. Ainda há pouco tempo 25 atrás os campilídios eram interpretados como um fungo liquenícola (quecresce sobre o líquen) ao qual se atribuiu o nome de Pyrenotrichum. hifóforo é o conidioma típico da família Gomphillaceae. Os hifóforos apresentam uma estrutura sinemática, ou seja, são formados por um feixe de hifas paralelas e aglutinadas que crescem perpendicularmente ao talo. O ápice do hifóforo é dilatado e dele pendem muitos conidióforos variadamente ramificados, que produzem cadeias de conídios. Durante a atividade de coleta, é bastante comum encontrar talos portadores unicamente de conidiomas. No jargão técnico esses espécimes são ditos estéreis (a palavra fértil é reservada aos talos produtores de ascomas ou basidiomas) e nem sequer devem ser coletados se pertencerem a formas crostosas, pois na imensa maioria dos casos não poderão ser identificados. O Código Internacional de Nomenclatura Botânica permite a aplicação de nomes diferentes para os estádios teleomorfo (produtor de ascomas, também chamado de estado perfeito) e anamorfo (produtor apenas de conídios) de uma mesma espécie de fungo. Entretanto, esse procedimento NÃO É PERMITIDO PARA OS FUNGOS LIQUENIZADOS, para os quais se aceita apenas um nome. Normalmente, um mesmo talo pode produzir tanto conidiomas quanto ascomas. Reprodução sexuada dos ascomicetos liquênicos Nos próximos parágrafos serão abordados apenas alguns aspectos de reprodução sexuada do fungo, essenciais ao entendimento das estruturas de importância taxonômica dos ascomicetos liquênicos. O processo é obviamente idêntico ao da maioria dos ascomicetos não liquênicos. Aliás, a maior parte do que se ensina a respeito da reprodução dos ascomicetos provém de estudos realizados em fungos liquenizados, fato normalmente omitido na literatura. Todos os ascomicetos liquênicos de reprodução sexuada já estudada produzem um órgão feminino, o ascogônio, constituído por um conjunto de hifas enoveladas no interior do talo haplóide, do qual emerge uma hifa denominada tricógine, cujo ápice se projeta para fora do talo a fim de receber a célula masculina. A célula masculina, um conídio, adere à tricógine. Ocorre, então, a plasmogamia, e o núcleo masculino migra pela tricógine, passando de célula para célula até o interior do ascogônio, onde se pareia, sem se fundir, ao núcleo da célula feminina, formando o dicário. A partir daí se inicia o processo típico de divisão do dicário dos fungos superiores, sendo que a cada divisão, uma célula especial, o asco, é produzida. O asco é uma célula que cresce muito, assumindo uma forma que vai de esférico a clavado ou cilíndrico (de acordo com o grupo taxonômico do fungo), dentro da qual a cariogamia finalmente ocorre (final de fecundação) para formar um núcleo diplóide (um zigoto), que imediatamente sofre uma divisão meiótica seguida por uma mitose e originando, conseqüentemente, oito núcleos. Cada núcleo tem delimitada em torno de si uma parede celular, originando, então, oito ascosporos, cada um tendo a potencialidade de originar novo micélio. Logo após a chegada do núcleo masculino ao interior do ascogônio, as hifas unicarióticas do micélio ao redor começam a se organizar para formar o ascoma. Os ascos ocupam, no ascoma, uma camada diferenciada denominada himênio. A parte geradora de ascos do ascoma, que é derivada do dicário inicial, pode produzir muitos ascos, funcionar por muitos anos e se localiza imediatamente abaixo do himênio, sendo chamada sub-himênio. Entre os fungos liquênicos que apresentam reprodução sexuada, são poucos os que não produzem ascomas. Nesses casos, como no gênero Cryptothecia, os ascos são produzidos 26 dispersos por toda a superfícies do talo, ou então simplesmente agrupados em certas regiões, que aparecem como pequenas manchas, o que se considera característica extremamente primitiva. Entretanto, na grande maioria dos casos, os ascos surgem dentro de estruturas que variam de simples agregações de ascos dotadas de poucas hifas acessórias (e.g., Arthoniales), até bastante complexas, com um himênio bem estruturado e várias partes diferenciadas (fig. 20). Entretanto, qualquer que seja sua complexidade, essas estruturas se constituem numa agregação de tecidos e grupos de hifas especialmente desenvolvidos para agregar os ascos: são os ascomas, anteriormente chamados de ascocarpos ou corpos de frutificação. Figura 20 - Corte diametral de apotécio de Haematomma sp. Neste ascoma em forma de disco, o himênio incolor é coberto por um epitécio avermelhado e repousa sobre um subhimênio (camada geradora de ascos) incolor, que se liga ao talo por um estipe central de que participam células da casca de árvore (marrons claras), e é ladeado por uma margem verde escura em que estão incluídas células de fotobiontes (margem talina). Entre a margem e a estipe pode ser observada a deposição de cristais característicos. Ascomas Existem vários tipos diferentes de ascomas, que normalmente são descritos nos livros textos relativos aos ascomicetos: apotécio, peritécio (fig. 24) e cleistotécio. Cleistotécios não aparecem em fungos liquenizados. Entretanto, os fungos liquenizados apresentam vários outros tipos de ascomas, que normalmente não são mencionados nem de passagem naqueles mesmos textos, o que demonstra a flagrante distância que ainda existe entre os especialistas em ascomicetos liquenizados e não liquenizados. Entre eles estão o mazédio (ordem Caliciales, com espécies liquenizadas e não liquenizadas, mas tradicionalmente estudada por liquenólogos), a lirela (ordem Graphidales, fig. 25), a pseudolirela (ordem Opegraphales), que aparecem em grandes grupos de fungos, e são tão importantes quanto os outros ascomas. Os ascomas podem ser constituídos apenas por estruturas fúngicas ou, dependendo do gênero ou espécie, contar também com a participação dos fotobiontes do talo liquênico. É comum que certos tipos de ascoma apresentem, ao redor de sua estrutura, em vista superficial e/ou em corte anatômico, uma margem denominada excípulo. Quando essa margem é constituída apenas pelas hifas do fungo ela é dita margem própria, e quando é constituída por ambos, fungo e fotobionte, é denominada margem talina (Figs. 21, 22 e 23). Determinada espécie pode apresentar uma ou ambas dessas margens, que normalmente 27 permanecem durante toda a existência do ascoma. A margem talina é sempre externa em relação à própria. Entretanto, em algumas espécies de certos gêneros (por exemplo Pyxine, que produz apotécios), o ascoma pode apresentar as duas margens quando jovem, e perder a margem talina durante seu desenvolvimento. Figura 22 - Apotécios lecanorinos de Tephromela sp., onde pode ser observada a margem talina contornando o disco (o epitécio visto de cima), que neste gênero é sempre negro. Figura 23 - Nos apotécios lecideinos não existe margem talina, como por ser verificado nesta Pyrrhospora russula, espécie de fungo liquenizado muito abundante no Brasil. Figura 24 - Peritécios negros em Strigula sp.; este é um gênero epífilo cujos exemplares caracteristicamente se desenvolvem entre a cutícula e a epiderme das folhas sem, entretanto, serem parasitas. 28 Figura 25 - As lirelas negras e sinuosas de Graphis pavoniana. O nome do gênero faz alusão ao fato de que os ascomas lembram um tipo de escrita. Quando um apotécio possui apenas a margem própria ele é genericamente chamado de lecideíno (do gênero Lecidea, que possui apotécios desse tipo) em muitos textos e chaves de identificação. Entretanto, muitos textos fazem a distinção entre aqueles cuja margem é de textura macia, normalmente clara e constituída por um paraplectênquima (tipo biatorino) e aqueles que apresentam margem mais rígida, normalmente negra, de constituiçãoprosoplectenquimática (tipo lecideíno senso stricto). O apotécio que possui margem talina é genericamente denominado lecanorino (a partir de Lecanora), mas também apresenta dois subtipos: o zeorino, que apresenta tanto a margem própria quanto a talina, o e lecanorino senso stricto, em que a margem própria é ausente ou vestigial. Note-se que, embora outros tipos de ascoma possam também possuir ou não uma cobertura talina, os termos lecideíno e lecanorino são reservados apenas para os apotécios. Ascosporos Em alguns casos, mitoses suplementares ou “aborto” no desenvolvimento podem provocar a variação do número oito básico para desde um até centenas de ascosporos dentro de um asco, mas isso não ocorre casualmente, é característica de famílias (e.g., Acarosporaceae) ou espécies. Os ascosporos variam de forma desde esféricos até filiformes, passando por um grande número de formas intermediárias características de famílias, gêneros e espécies. O tamanho dos ascosporos é uma característica específica de grande importância, e cada espécie apresenta uma faixa de variação bastante típica. Os ascosporos variam desde 1-2 até mais de 100 µm, e neste caso podem ser visto a olho nu com alguma dificuldade e na lupa com facilidade. Entretanto, os esporos da maioria das espécies varia entre 5 e 50 µm. 29 SUBSTRATO MEDULA CAMADA DE ALGAS Asco (com esporos) PARÁFISES MARGEM PRÓPRIA HIMÊNIO ESTIPE SUBHIMÊNIO DISCO: EPITÉCIO VISTO DE CIMA EPITÉCIO MARGEM TALINA HIPOTÉCIO APOTÉCIO LECIDEINO SENSO LATO APOTÉCIO LECANORINO SENSO LATO Figura 21 - Partes dos apotécios lecideíno e lecanorino. Nesta figura se encontram os termos mais comuns da morfologia e anatomia dos apotécios, normalmente utilizados nas chaves de identificação; alguns deles não são mencionados no texto e devem ser procurados no Glossário. Por definição, esporos são células de reprodução assexuada e, portanto, são obrigatoriamente unicelulares. Entretanto, nos fungos liquênicos, as células formadas dentro dos ascos costumam sofrer divisões antes de sua liberação no ambiente e, por tradição micológica, essas estruturas ainda são chamadas de esporos (o mesmo fato ocorre com certos conídios). Esse comportamento corresponde à liberação de um talo em início de desenvolvimento. Quando no ambiente, as várias células germinam independentemente, emitindo hifas em várias direções, aumentando assim a probabilidade de encontrar células do fotobionte adequado. Entretanto, as divisões sofridas dentro do asco não são aleatórias; elas são altamente específicas de acordo com a espécie do fungo. Assim, os ditos ascosporos dos ascomicetes podem ser unicelulares, bicelulares, e multicelulares, com números de células que podem chegar às dezenas. Em geral, ascosporos com poucas células apresentam um número fixo delas para a espécie ou gênero, enquanto que os esporos com mais células apresentam uma certa variação dentro de um mesmo indivíduo; mas essa variação é fixa e característica para a espécie. Ascosporos de certos grupos taxonômicos podem apresentar durante o seu desenvolvimento, divisões longitudinais das células, após a ocorrência das transversais. Como isso termina por gerar um tecido a partir de uma única célula, a estrutura resultante (o esporo) é um parênquima verdadeiro. Devido à aparência de “parede de tijolos” que apresentam, 30 esporos desse tipo são denominados muriformes e se constituem no único caso de parênquima verdadeiro existente em fungos. Na ordem Teloschistales ocorrem esporos transversalmente septados, bi ou tetracelulares cujas paredes intercelulares são muito mais espessas que as laterais. Essas paredes podem, segundo a espécie, ser tão espessas que os lumens celulares ficam reduzidos a pequenos pontos nos pólos do ascosporo. Essas células são sempre ligadas por um canal fino mas bem visível ao microscópio. Esse tipo de esporo recebe o nome de polarilocular. Um pouco parecidos aos polariloculares (e assim tratados na literatura antiga) são os esporos miscoblastiomórficos, comuns na família Pyxinaceae, que também possuem duas ou quatro células que parecem ligadas por um canal. Mas neste tipo de ascosporo, o canal entre as células é sempre de forma bastante irregular e curto e as paredes laterais são muito espessas. A forma das células dos esporos é extremamente importante na taxonomia, e passo importante na identificação dos gêneros. As células podem ser de tendência geral arredondada ou serem angulares, mas variam bastante de acordo com o gênero e espécie. Os Grupos de ascomicetos liquenizados brasileiros O esquema abaixo foi baseado principalmente em Tehler (veja em Nash III 1996, p. 217-239), que por sua vez utilizou o esquema de ordens proposto por Haffelner em 1993 e de famílias e gêneros proposto por Eriksson e Hawksworth em 1991 e 1993; o esquema foi simplificado por Tehler por motivos didáticos, e por essa razão também é utilizado aqui. Muitos dados foram retirados do Dictyonary of Fungi (8ª edição). São mencionados apenas os gêneros presentes no Brasil. Essa apresentação tem a única finalidade de expor os grupos de liquens brasileiros de uma forma organizada, e os dados mostrados não poderão ser utilizados com finalidade de identificação, que é um procedimento muito mais complexo e que exige muito maior número de detalhes. Encontra-se na Internet uma Checklist para os 3200 nomes (ca. 2800 espécies) de fungos liquenizados mencionados para o Brasil (Marcelli 2002). FUNGOS QUITINOSOS SUBDIVISÃO DICARIOMYCOTINA CLASSE ASCOMYCETES SUBCLASSE EUASCOMYCETIDAE ASCOHIMENIAIS PROTOTUNICADOS [grupo artificial reconhecido pela presença de ascos unitunicados evanescentes e a presença de paráfises] ORDEM "CALICIALES" Esta é uma ordem artificialmente montada e utilizada por muitos autores apenas pela facilidade de reconhecimento dos componentes de seu grupo, todos eles portadores de ascoma do tipo mazédio, em que as paráfises e ascos transformam-se numa massa pulverulenta quando os ascosporos estão maduros. Segundo Leif Tibell, o maior especialista no grupo, este tipo de ascoma apareceu independentemente um muitos grupos bastante distintos de ascomicetes. Ela é composta sete famílias, 31 gêneros e cerca de 202 espécies. O talo varia de crostoso a fruticoso, o fotobionte é 31 sempre uma clorofícea (na maior parte das vezes unicelular), e algumas espécies não são liquenizadas. Os ascosporos são comumente septados e ornamentados. Gêneros conhecidos no Brasil: Calicium, Chaenotheca, Heterocyphelium, Sphaerophorus, Pyrgidium, Pyrgillus, Tylophorella, Tylophoron. ORDEM LICHINALES Talo crostoso, folioso, subfruticoso ou filamentoso, com aparência caracteristicamente gelatinosa. Ascoma lecanorino ou lecideino, às vezes com aparência de peritécios. Os esporos, geralmente hialinos e unicelulares, são libertados pela desintegração do asco e passivamente dispersos. O fotobionte é sempre uma cianobactéria e todas as espécies são liquenizadas. Existem na ordem três famílias, 44 gêneros e 281 espécies. Gêneros conhecidos no Brasil: Calotrichopsis, Ephebe, Heppia, Lempholemma, Lichinella, Neoheppia, Peccania, Phylliscidium, Pterygiopsis, Pyrenopsis. ASCOHIMENIAIS UNITUNICADOS [grupo artificial reconhecido pela presença de ascos unitunicados com aparelho apical poriforme e hamatécio com paráfises] ORDEM OSTROPALES (incluindo GRAPHIDALES) Talo crostoso. O ascoma pode ser lireliforme ou circular (não apotécio), muitas vezes imerso no talo e poriformes (aparência de peritécio, mas o ostíolo pode ser visível a olho nu). Os esporos, hialinos ou marrons, variam
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