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Esse é um exemplo que ilustra de maneira particularmente útil a dinâmica estrutural pela qual o futebol vai, ao menos em alguma medida, se reorganizando sob êases consideravelrnente originais. Nem por isso, contudo, ninguém cogita a ideia de chamá-lo de um "novo esporte". Com todas as mudanças e alterações, o futebol segue sendo o futebol, tanto quanto o polo aquático segue sendo o polo aquático. Por meio de uma analogia com essa situação, podemos inferir con- clusões semelhantes para os esportes na natureza. Esses são esportes que, inevitavelmente articulados às dinâmicas sociais do mundo con- temporâneo, também vem passando por alterações de significados, sem, contudo, deixar de se configurarem como esportes (modernos). Parte dessas alterações diz respeito ao surgimento de novas modalidades, que apesar de novas, se inserem e se articulam com a rede de sentidos que essas práticas vêm historicamente instituindo. Outra parte delas diz respeito, entre outras coisas, ao modo de promoção e organização dessas práticas em estreito contato com dcteniuiiaàas fom.áã vlc cuxa\;i- cialização, como o turismo, tornando sua adesão um tanto instável e provisória, espécie de pastiche ou simulacro. A tentativa de situar os esportes na natureza em relação„ao.campo esportivo de maneira mais geral tem nos induzido a pensar que nem todo esporte novo será um novo esporte, bem como nem todo novo esporte será, necessariamente, um esporte novo. Assim, o estabeleci- mento de uma equação equilibrada entre os poios da continuidade e da inovação histórica para os ^esportes na natureza depende de enten- dermos seu passado e seu presente de maneira tanto mais profunda, quanto mais articulada e matizada. Ao propormos que os princípios dc organização dos esportes na natureza já estavam bem definidos desde o século X I X nío estamos negando a atuali- dade que a interface entre esporte e meio ambiente assume nos dias de lioje. Tampouco estamos desconsiderando as reconfigurações do campo esportivo. A questão central é que os elementos de descontinuidade, de ruptura e de inovação, devem ser analisados articuladamente com as "estruturas de longa duraçâo" (Dias ,Melo , Alves Júnior, 2007, p.93). ' O esporte brasileiro em tempos de exceção: sob a égide da Ditadura (I964-J985) ,. Marcus Aurelio Taborda de Oliveira TEXTO PASTA Si CÓPIAS PASTA Si AV.PW, 161.TEL-2561..1fUfl A z "90 milhões em ação!" Assim iniciava a canção de Miguel Gus- tavo, que mobilizava o Brasil durante a Copa do Mundo do México, em, 1970, Aquela do tricampeonato mundial. Outras pérolas da canção ufanista embalavam o sonho do Brasil grande. Era o caso de "Esse é um país que vai pra frente", dc Dom e Ravel. Eram anos de uma clara opção: o Braál queria ser grande, forte, reconhecido, importante! Um longo processo de construção da "brasilidade" parecia culminar naque- les anos de acentuado nacionalismo, não só oficial. Mas o que era oficial naqueles anos tinha a marca da Forças Armadas. Mais: tinha a marca da Ditadura Militar, iniciada em 1964 e terminada em 198S. Não seria diferente com o esporte, que era considerado um dos vetores do possível reconhecimento do Brasil no cenário mundial. Ainda que a ditadura brasileira fosse uma aliança entre o poder mili- tar c significativos e poderosos segmentos da elite civil, foi no âmbito das políticas oficiais, tendo à frente normalmente oficiais militares de baixa patente, que se viu um vigoroso movimento para o desenvolvi- mento do esporte nacional. Ou seja, embora muitos acreditem que o investimento em esportes, principalmente de autorrendimento, é uma prerrogativa da iniciativa privada, isso não corresponde à verdade dos fatos no Brasil. Traços desses esforços podem ainda hoje ser vistos espalhados por este país. Difícil haver uma cidade brasileira, mesmo pequena, que não tenha um ginásio esportivo batizado com o nome de um militar ou político da ditadura. Só no caso do Paraná, é impressio- nante a quantidade de ginásios esportivos com o nome de Ney Braga. Ora, Ney Amintas de Barros Braga era militar de alta patente, foi governador do Paraná e ministro de Estado. No caso da Bahia, Anto- nio Carlos Magalhães também empresta seu nome a inúmeros espaços públicos - escolas, praças, ginásios ~, muito antes da sua morte, em 2007. Embora Magalhães não fosse militar, foi um típico político da Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido que dava suporte à D;t?diir(i E?p''Çf^« e,snortivo? fnram rrin^tnados m!>'^ <''';amente naaueles anos como parte do que muitos chamam de um "projeto de esportiviza- ção" da sociedade brasileira. O mesmo se pode dizer sobre o patrocínio público a clubes e equipes privadas, para o qual o futebol talvez seja o exemplo mais acintoso. Nesse caso específico, vimos no período da Ditadura Militar o nascimento da Loteria Esportiva, que praticamente se tornou uma "marca" no Brasil. Voltarei a ela. Esse projeto oficial partia de uma premissa simples naqueles anos: o Brasil estava longe de ser uma potencia esportiva. E o esporte já sig- nificava, naquele período, o poder económico, político e simbólico de uma nação. Não por acaso as duas "grandes potências" esportivas do 1 Obscrvc-se, dc passagem, que os governo!! militares não cliegaram nem próximo, cm termos proporcionais ou absolutos, do que os liltiimos governos brasileiros investiram em esporte dc alto rendimento, sobretudo nos tikimos 15 anos. Vemos uma quantidade absurda de recursos públicos fiiianciando equipes e eventos pri- vados dc alto rendimento, em detrimento de um conjunto de politicas públicas de fato "para todos". Assim, mais que incrementar o esporte propriamente dito, a Ditadura parece ter contribuído, .çobretudo, com o desenvolvimento de uma sensibilidade esportiva no Brasil. Certamente, isso ocorreu também com a con- tribuição do hipcrdtsenvolvinícnto do ès(>ortc como fenómeno de massa em pra- ticamente todo o mundo a partir dh segunda metade do .século XX . planeta, que dividiam a hegemonia olímpica, eram também as duas nações que dividiam o poder político e económico. Estados Unidos e União Soviética. Daí a iniciativa de investir fortemente no esporte em todas as suas dimensões, uma vez que essas iniciativas, até a década de 1960, eram bastantes irregulares no Brasil.^ A Ditadura Militar tratou, de fato, o esporte como uma questão de Estado. A Ditadura Militar, que, entre outras coisas, pode ser apresentada como um primor da tecnocracia, valia-se de inúmeros diagnósticos para desenvolver os seus projetos de intervenção. No caso do esporte, profundamente ligado à Educação Física no imaginário daquela época, partia-se do pressuposto de que era preciso compensar o atraso com uma ação firme, efetiva e centralizada, ainda que se advogasse a ideia de descentralização. Termos muito caros ao ideário militar, diga-se de passapem! O» 'spja. o esporte "^í^ um ízr^^rr"'"^ nove ncquelcc "zoi e os diferentes governos sabiam disso; também não era a única preo- cupação- certamente nem mesmo a mais importante — dos governos ditatoriais no plano da organização da cultura. Considerando que o esporte goza de longa vida e grande prestígio ao longo da história das Forças Armadas, a novidade foi o esporte ter sido percebido como uma esfera da cultura capaz de dar visibilidade política aos feitos da ditadura brasileira no âmbito internacional, além de poder contribuir com a edu- cação de um tipo de sensibilidade adequada a um regime que apagava as diferenças, silenciava as vozes dissonantes, torturava e matava em nome da segurança nacional. O esporte, pensavam alguns, seria capaz de amainar os ânimos, arrefecer os impulsos contestatórios, canalizar a energia juvenil que pretendesse questionar a ordem vigente. Além disso, 2Note-seque,jáem 1941, também sob a égide dc ura regime autoritário-o Estado Novo - , foi produzida uma legislação de largo alcance no Brasil. Trata-se do Decreto-lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941, que tem a exposição de motivos assinada pelo ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. O u seja, de longa data se supõe que esporte, cducaçflo e saúde caminUam juntos, o que cada vez está mais difícil de sustentar boje. De qualquçr modo, parece sct um traço do pensamento político brasileiro, marcadamente autoritário, (rcjínvehtar o "novo", como fizeram osjnilitarcs no pós-1964. o esporte também seria uma escola de disciplina para o trabalho, pois teria a capacidade de energizar a nação para o seu crescimento econó- mico, o que também não era novo no contexto brasileiro, como bem mostrou Meily Linhales (2006). E nos anos de milagre económico, todos os esforços estavam voltados para a realização do objetivo maior de incluir o Brasil entre os países desenvolvidos do planeta. Com o esporte, do ponto de vista ideal, não era diferente, motivo pelo qual ele passou a ser um "setor" no planejamento dos governos ditatoriais. Os diagnósticos dos governos ditatoriais se baseavam em diferentes tipos de estudos, sondagens, análises. No caso do esporte e da Educação Física, em 1971, foi publicado o Diagnóstico da Educação Física e despor- tos tio Brasil, desenvolvido desde 1969. Segundo Lamartine Pereira da Costa, seu responsável e condutor, fora encomendado pelo Instituto de Pesquisas Económicas Avançadas (Ipea), órgão da burocracia estatal responsável por este tipo de iniciativa. Problemas de ordem burocrática lenam impi-dido u seu ciebv....uivimentu iir.cdidto e de Acordo com anseios do seu idealizador. Mas havia também uma "linha dircta" de mapeamento da situação do esporte brasileiro incentivada pelos diferentes governos. Por meio dela, professores, atletas, dirigentes, alunos, eram incentivados a relatar ao Departamento de Educação Física e Desportos do Ministério da Educação e da Cultura ( D ED /MEC ) as iniciativas, lacunas, preca- riedades, conquistas da sua região no âmbito esportivo. Para isso, além das seções de cartas dos periódicos patrocinados pelo governo, existiam publicações tais como Podium, Dedinho, EPT, Comunidade Esportiva, as quais funcionavam como elo de ligação entre o gestor público e a comunidade. Não por acaso, também em 1971 foi lançada a Campanha Nacional de Esclarecimento Esportivo, a qual pretendia que o esporte passasse a fazer parte do dia a dia dos brasileiros. .í Entrevista com Lamartine Pereira da Costa, concedida a Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, em 9 dc dezembro de 1998. Hi l i r n f l PllOM t VlcrORAHORAOE Of HEIO Respondendo às demandas de professores de Educação Física de todo o Brasil, assim se posicionava Eric Tinoco Marques, chefe do D E D / M E C , em 1972, sobre a citada campanha: ao D E D será sobremodo difícil conhecer, Estado por Estado, as unidades escolares em condições de receber o material da campanha para o seu correto aproveitamento-, ao Estado, e somente ao Estado, cabe programar o seu tra- balho, pois as peças da Campanha nao podem ser observadas isoladamente, como "um auxilio do M E C " para o desenvolvimento da EducaçSo Física, mas sim como parte de um esforço integrado, em que diversas variáveis são atacadas simultaneamente, na tentativa de recuperar cm pouco tempo o muito de atraso desse setor (Marques, 1972). De posse dessas informações, pretendia-se que o governo criasse as condições para a melhora do esporte em todos os níveis, no país. Mas quais eram esses níveis? Segundo a Política Nacional de Educação Física e Desportos, expressa na-Lei n. 6.251 de'1975, no seu artigo 10°, o país adotou uma forma de organização esportiva baseada cm quatro dimensões: o esporte comunitário, o esporte estudantil, o esporte militar e o esporte classista. Essas dimensões, correntes em boa parte do mundo, foram anunciadas alguns anos antes. O Brasil adotou um modelo esportivo baseado no que se conhece como pirâmide esportiva, a qual é detalhada no Diagnóstico, publicado em 1971. Nesse iTiodelo piramidal, pretende-se que a base do chamado sis- tema esportivo seja o esporte de massa, o primeiro nível do esporte comunitário, que teria o seu ápice no esporte dc elite ou de alto ren- dimento. Nesse nível, o modelo se caracteriza por um conjunto de atividades não necessariamente formais, das quais participa a maior parte possível da comunidade. São os jogos de final de semana, os torneios amadores, a,<! atividades de lazer para a população, as quais têm a participação do estado no seu incentivo e financiamento, mas são organizadas basica- mente pela própria comunidade. Desde 1967, parte dessas atividades são pensadas a partir da noção dc "Esporte para Todos", movimento cjue V t . . • . IIISIÚRIA 00 tiPOMf HO aUASIl FiffM-i 1X1 Modelo da estrutura esportiva t)rasileirii proposta pela Ditadura MiStar. pubtkado no Diagnóstico da Educação Física e Desportos no Brasil, l97l.(Repro<iu<;5o) OOWUWtAM» EBj-jtilo tfac\ xstano cscoa» 1 y iH . I IX.' Modelo suTipliíicado da pirâmide esportiva. (Reprodução) ELITE SOCIAL ESCOLAR PARTICIPANTES nasceu na Noruega. O que se pretendia, como o próprio nome indica, é que toda e qualquer pessoa, independentemente de idade, sexo, condição social, económica ou física, desenvolvesse algum tipo de atividade física. Poderia ser uma corrida, um passeio ciclístico, uma caminhada ou um torneio esportivo de fim de semana, além de um sem número de ativi- dades corporais, inclusive de lazer. Além de um discurso voltado para a saúde (aptidão física) e o bem-estar do trabalhador, também estava em jogo uma ideia de vida comunitária, de harmonia social, visto que as pessoas praticariam essas atividades junto com outras pessoas. Assim, o esporte de massa poderia ou não ter um caráter competitivo, conforme o contexto no qual se desenvolvesse, mas esse não era o seu principal objetivo naquela formulação. Partia-se do pressuposto de que as pessoas com talento esportivo teriam no^spõtte"3Slm^^ mostr««'j^^5jimbiito^r7*iI^ íín.P-^ .ru uma wj^iyãu aJciíca, nem por isso deixariam de usufruir os "benefícios" da atividade física regular. Entre essas atividades encontramos o esporte propriamente d i t o a t é o plano olímpico - , as atividades de recreação, o campismo e as atividades junto à natureza, o folclore. Ou seja, uma gama muito ampla de atividades, não necessariamente esportivas, que representariam uma nova postura diante da exercitação física, no sentido de uma vida mais ativa. Se pensarmos nos dias de hoje, é um pouco como esse discurso tão incisivo dos meios de comunicação, do governo e de certas corporações profissionais para que você ande, faça exercícios, não beba, não fume, participe das atividades comunitárias (como o voluntariado) etc. "Esporte, a melhor ocupação". Este era o título de uma matéria publicada na Revista Brasileira de Educação Física e Desportos, em 1981. Nela, aparece claramente'o caráter assistencial do esporte, prescrito para comunidades abandonadas pelo poder público como uma possi- bilidade de "sensibilizar e movimentar comunidades" (Braga, 1981). Tratava-se de combater a i nação e coijipensar os efeitos deletérios de uma organização política, económica e social perversamente desigual, como abrasileira. No segundo degrau da pirâmide esportiva, observamos o esporte escolar ou e s tudan t i l , o qua l inc lu i o esporte ua ive r s i t á r i o . Ne l e estiava concentrada uma das principais ênfases das políticas daqueles anos, que era a busca de talentos esportivos. O entendimento era simples: per- mitindo que a massados estudantes participasse de atividades espor- tivas de caráter competitivo, tais como jogos internos, torneios, jogos interescolares etc, seria possível mapear aqueles alunos com potencial para serem atletas nas mais diferentes atividades esportivas. Uma vez detectados, esses alunos seriam, ern tese, deslocados para equipes de treinamento esportivo, com vistas ao seu aperfeiçoamento atlético. No fim desse processo, imaginava-se (e muitos ainda imaginam) que este aluno-atleta comporia as equipes nacionais que representariam o país nas grandes competições internacionais. Daí" a ideia, tão difiandida naqueles anos e que com frequência volta à tona em algumas falas na mídia, no governo e na comunidade dc professores de Educação Física ainda hoje, que o esporte educa, é saúde, combate a criminalidade e a pobreza, evita os vícios e tantos outros jargões que estão longe de serem comprovados, ainda oue ffozf m rl^ .^'^ .•-•dp divulg^çííT f '>nrripri;-,ç5..:> no senso comum, sobretudo pela força da mídia no desenvolvimento de um senso esportivo. O esporte ensinaria a perder, a superar obstáculos, a reconhecer a superioridade de outrem. Nada nessa retórica é novo, mas ela se atualiza constantemente ajudando a definir uma mentalUáde esportiva, como pretendiam os governos militares, além de fortalecer os laços da "brasilidade". Também se desenvolveu uma retórica para a qual o esporte retira- ria os indivíduos da pobreza e os conduziria a uma vida de sucesso e conforto material. O país, por sua vez, além do ganho indireto com o controle das emoções das massas, desenvolveria os atletas que conquis- tariam vitória e prestígio que permitiriam que ele fosse reconhecido na comunidade internacional como uma potência esportiva, mas não só. Lembremos do recente bordão: "Ele é brasileiro e não desiste nunca!". Reforçavam-se os laços de identidade nacional dos anos da Ditadura: "BrasU; ame-o ou deixc-o!". A história recente mostrou que não ocorreu o desenvolvimento do esporte como almejavam as políticas da ditadura. O Brasil continua não sendo uma potência esportiva mundial e a escola brasileira, que mal cumpre a sua fijnção de transmitir a cultura, também não se tor- nou um "celeiro dè atletas", como queria o ideário militar, o qual está redivivo em algumas políticas oficiais, como, por exemplo, algims pro- gramas atuais do Ministério do Esporte voltados à escola. Isso não quer dizer que o esporte não tenha se tornado sinónimo dc Educação Física na maioria das escolas brasileiras, empobrecendo as possibilidades de acesso por parte dos alunos a inúmeros outros produtos da cultura afei- tos.ao corpo e às suas manifestações. O ponto de chegada do esporte estudantil no ideário daqueles anos era os jogos escolares ou colegiais, assim como os jogos universitários. Estes também não foram uma invenção da Ditadura Militar, pois há registros históricos de competições dessa natureza no Brasil desde os primeiros anos do século XX , certamente em menor escala. No entanto, com a sua proverbial megalomania, a Ditadura deu uma dimensão ver- dadeiramente massiva ao esporte estudantil, fomentando a realização df '-cmpetiçues em níveis nacionais a partir da ideia de seleções esta- duais e municipais. Também nesse caso, o modelo era bastante sim- ples.lPrimeiro se estimulava a competição no interior de cada escola ou urtiversidade. A partir dessas competições eram formadas equipes representativas de cada escola e universidade, as quais enfrentariam as equipes de outras instituições em competições municipais, quando isso era possível, sobretudo no caso do esporte universitário. Dessas com- petições saíam as seleções de cada cidade, as quais disputavam uma competição estadual. Por fim, na ponta deste "funil", eram selcciona- dos os alunos-atletas que comporiam as seleções estaduais, as quais disputariam os famosos Jogos Estudantis Brasileiros (JEBs), assim como os Jogos Universitários Brasileiros (JUBs), Estes ocorriam ini- cialmente de forma itinerante - cada ano em uma cidade do Brasil, normalmente uma capital — e depois passaram a ocorrer em Brasília, para onde se deslocavam milhares de alunos-atletas vindos de todo o ; Uma variação dessa organização é aquela na qual, em vez de.uma scleção dos "melhores" atletas escolhidos entre todas as equipes, a equipe vencedora repre- sentaria a sua cidade ou estado. HISIÓRIA DO ESPOHE »0 BÍASIE A país. Pequeno exemplo dessa política pode ser visualizado na seguinte passagem, publicada no jornal Podiunt. O Colégio Dom Bosco foi o campeão de Basquete, séri« masculina, nos 1* Jogos Infanto-Juvenil Estudantil do Amazonas (sic), promovidos pela Coor- denação de Educação Física, Recreação e Desportos Estudantil do Amazo - nas. Os Jogos foram programados para que os técnicos da Fundação Edu - cacional observassem os novos atletas para as seleções amazonenses que v3o participar dos Jogos Estudantis Brasileiros em Natal (Podium, 1974, p.3). Parte da política da ditadura para o desenvolvimento do esporte , em todos os níveis foi o estabelecimento de intercâmbios com envio de missões de professores, técnicos e atletas brasileiros a diferentes países considerados mais desenvolvidos no esporte. Aiemanba e Estados Uni- dos toram os mais piocuradus, rzzs iantbér" houve mitsfies esportivas para Itália, Inglaterra, Argentina e até a União Soviética, o que não deixa de ser um paradoxo, considerando a ideologia francamente anticó- munista das Forças Armadas brasileiras em geral e da Ditadura Militar em particular. Esse ponto requer maiores e mais profundas pesquisas, mas faz crer que o esporte parecia compor um domínio relatimmmte independente dos pgos político-ideológicos enfrentados pelos militares no poder. E apesar dos significativos estudos de Amarillo Ferreira Neto e Metiy Linhales, muito há por fazer para entendermos as intestinas relações do esporte com a caserna e a política no Brasil. Basta dizer que na primeira metade do século X X dava-se grande destaque às competi- ções militares entre países da América Latína, com realização itinerante entre os países da região, e com a ocorrência dc provas tanto individuais quanto coletivas (cf Linhales, 2006, e Ferreira Neto, 1999).' Claro que essa independência do esporte com relação à política não existe. Ao contrário, a Guerra Fria, além de produzir uma tensa" estabilidade na correlação de forças entre Estados Unidos (capitalista) e União Soviética (comunista) e seus respectivos aliados, produziu pela <; Essas informações também se baseiam na entrevista com Hamilton Saporski Dariin, concedida a Marcus Aurélio Taborda dc Oliveira, em 28 de setembro de 2001, via do esporte uma dimensão simbólica de afirmação do poderio dos dois países. Isso fica claro no boicote nortc-americano aos Jogos Oh'm- picos de Moscou, em 1980, com a respectiva resposta soviética com o boicote aos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984. Não foi a pri- meira vez na história que o esporte mostrou sua face marcadamente política. No entanto, ao analisar parte dá documentação esportiva da Ditadura, o que sobressai é uma preocupação com a esportivização do 1 Brasil segundo parâmetros internacionais, portanto, universais. Esses parâmetros foram e são determinados por entidades supranacionais, pretensamente neutras nos jogos políticos, tais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês), quando pensado o"esporte como elemento de for- mação e saúde, e o Comité Olímpico Internacional (COI ) , a Academia lOlímpica e as diferentes federações internacionais de cada modalidade esportiva, quando se pensa no esporte de alto rendimento. Assim, uma rez que seestava preocupado naqueles anos com o desenvolvimento do sporte brasileiro na suã dimensão técnica e organizativa, desde a sua ersão escolar até a sua dimensão olímpica, não estranha que, ao tratar 6 O s Estados Unidos lidetanim um boicote dc 69 países aos Jogos Olímpicos de Moscou em protesto à invasSo do Afeganistão pelas tropas soviéticas, em 1979. A resposta soviética e dc mais 16 países veio na edição seguinte, em Los Angeles, sob a alegação de falta de segurança dos seus atletas. Mas, nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, o mundo ficou tissombrado com o atentado sofrido pela delegação de Israel, perpetrado pelo grupo terrorista Setembro Negro. O episódio ficou conhecido como o "Massacre de Munique" c, nele, 11 israelenses perderam a vida. Os trás eventos estio incluídos no período coberto pela Ditadura Militar brasileira c por um scm-niímero de ditaduras mundo afora, principalmente no então chamado "terceiro mundo". Os Jogos Olímpicos conheceram ainda mani- festações políticas nos Jogos dc 1936, eni Beriim, c 1968, na Cidade do México. .Assim, não espanta que a China de 2008 tente se afirmar também pelo esporte olímpico, ou que houvesse tímidas ameaças de boicote pela repressão chinesa ao Tibet. O esporte é eminentemente político e mobiliza uma indústria poderosa. Sobre a história da cultura na (;ra dos três mundos c a força da cultura de massas, ver Denning (2005). » . • • • • do tema, não houvesse grandes restrições ao intercâmbio com países "comunistas". Afinal, o próprio Diagnóstico de 1971 faz alusão à União Soviética e ao modelo da pirâmide esportiva, pretensamente univer- sal, o qual era difundido pelo Conseil International pour TEducation Physique et le Sport da Unesco. No entanto,-os militares não investiram suficientemente no esjporte a ponto de influenciar na sua grande política. A sua dimensão política parece que estava atreladaa propalada mentalidade esportiva, que pres- supunha uma educação para a disciplina, de forte cunho moralizadof, voltada para o desenvolvimento de um etòos do trabalho, pois poderia formar indivíduos de ação. Isso aliado a uma perspectiva de tratamento do esporte coixio um fim nele mesmo, que é o que pressupõe o esporte de alto rendimento. Ainda que seja necessária prudência quando compara- mos a cultura de diferentes países, é possível afirmar que alguns países comunistas lograram um alto desenvolvimento esportivo aparentemente investindo nessa dupla dimensão, a exemplo de Cuba e China, além da própria União Soviética, tanto quanto os mais desenvolvidos países capitalistas. Ou seja, é precária aquela crítica que atribui o desenvolvi- mento do esporte ao do capitalismo, de forma causal. Observe-se que, no contexto da ditadura brasileira, aquelas.duas perspectivas por vezes dividiam as opiniões daqueles que se ocupavam com reflexões sobre o esporte no plano internacional, alguns defendendo o caráter potencial- mente formativo do esporte, enquanto outros advogavam a máxima dos fins justificarem os meios (cf Taborda de Oliveira, 2003). Mais do que um subproduto do capitalismo, talvez o esporte ajude a engendrá-lo nas mentes e nos corações, com ou sem a contribuição das ditaduras. O degrau seguinte da pirâmide esportiva era dedicado ao chamado "equipamento básico urbano" e tem relação com a prática regular de atividade física de lazer. Também fazia parte do esporte comunitário no ideário daqueles governos. Nesse nível, caberia ao Estado oferecer a infraestrutura necessária (equipamentos, espaços, pessoal especializado etc.) para que os indivíduos pudessem desenvolver as suas atividades físicas no espaço da cidade, Daí a promessa de parques, praças, quadras, ginásios, ciclovias, entre tantos outros tipos de equipamento, os quais u i o v n f i p«'imf f Vir.inn AHOSADf DE HtlO serviriam para o desenvolvimento regular e autoconsdente de atividades físicas pela população. Junto a essa perspectiva, como parte fundamen- tal do seu planejamento e da educação de uma sensibilidade esportiva, eram divulgadas amplas campanhas para que as pessoas adotassem um estilo de vida ativo, tal como ainda hoje observamos. A contraparte moral dessa perspectiva está no combate ao álcool,, ao cigarro, à pre- guiça, ao ócio. Ou seja, trata-se de administrar o tempo çjç^ s indivíduos e dotá-los de saúde, de modo a canaUzar as suas energias para o mundo laboral, tomando-os mais eficazes e eficientes consoantes com o modelo societário calcado na competição e na produtividade. Novamente, não se trata de uma peculiaridade do Brasil. Ao contrário, é possível afir- rtiar que política da Ditadrura Militar era claramente "modernizadora" no que isso tem a ver com a tentativa de adoção de modelos, práticas e pensamentos estrangeiros. Note-se, retrospectivamente, que grande ênfase dos discursos sobre n Educação Física c oz copo;í.ci Jv,ou>.; os anos 61) do século X X pres- supõe um aumento do tempo livre e do nível de vida (inclusÀve econó- mico), visto que o monstruoso desenvolvimento tecnológico conhecido pelo género humano amainaria a penúria e oferecia uma vida rnais digna e confortável a todos. Nesse sentido, as atividades físicas e esportivas cumpririam um papel fundamental - como lazer ativo ~- na ocupação do tempo livre da população. Elas poderiam significar o usufruto das benesses conquistadas pela sociedade industrial. Essa era a perspectiva dós signatários do Diagnóstico de 1971. A tese, cara a diferentes espec- tros do pensamento político e económico desde o século X V I I I , pelo menos, foi completamente soterrada com o hiperdesenvolvimento do capitalismo c com a derrocada do socialismo. O que se vê há alguns anos, é um contingente cada vez maior de indivíduos sem qualquer trabalho, portanto, com muito tempo livre, mas sem quaisquer condições de acesso às mínimas formas de bem cul- tural, inclusive os esportivos, e mesmo a direitos básicos elementares, como saúde. Educação, trabalho etc, Efetivamente o que observamos nos últimos anos são pessoas sem perspectivas de realização das .suas necessidades mais elementares - comida, habitação, saneamento, Edu- IIISIÓÍIA 00 ESPOBIF «O 8SAÍII cação, saúde - muitas das quais, mesmo com a superabundância pro- duzida hoje no mundo, são atiradas aos limiares da miséria em um país como o Brasil. Isso para não citar a produção permanente da pobreza e da miséria no restante da América Latina, da Africa e da Ásia. Não estranha, assim, que hoje os meios de comunicação apostem, sobretudo, em uma indústria do esporte baseada no expectador passivo, aquele que acompanha compulsivamente os jornais e os programas de televisão para mais uma vez ver um gol, um recorde, uma jogada de alto nível è cultuar algum novo ídolo da moda. Ainda queseja forte a tónica dá propaganda emum^tUct^^ que cabem ser investigados pela Sociologia, pela Antropologia, ou pela Psicologia Social, feliztnentcos indivíduos de maneira geral parecgna .não ter sido . inoculadosjielo vírus da "atíííí^HffiKÍpèrmanente''. E como mostrou recer.i^pwente a d ivnljadora científica TenniíeFAcltèrrnan, nem mesmo os Estados Unidos realizaram plenamente a ideologia da saúde per- feita pela prática de atividades físicas regulares (cf Ackerman, 2008). Isso faz crer que, apesar de todas as tentativas de controle dos corpos e mentes dos indivíduos, de alguma maneira que talvez nos escape, eles continuam resistindo, conscientemente ou não. O quarto degrau da pirâmide esportiva que orientou as políticas bra- sileiras nos anos 1970 está destinado k "otganizaçãp desportivai_comu- nltária". Nela, estão considerados os clubes (associações esportivas), ligas, federações, confederações, comités olímpicos etc. (cf. Costa, 1971, p.20). Diretamente voltada para a lógica darentabilidade{/aior inten- sive), era previsto pelo Estado autoritário que a sua .gestão deveria se dar totalmente no âmbito dã livre iniciativa^ob a sua responsabilidade, observamos a organização de competições profissionais ou amadoras, a prática esportiva sistemática e profundamente codificada (regras, tri- bunais, arbitragem, treinamento sistemático etc), o que representa um profundo grau de especialização em relação aos níveis anteriores. Nésfè nível, o esporte torna-se negócio, investimento, profissãOj .indústria, ainda.ique as associações desenvolvam outras atividades além das espor- tivas.'Mesmo sendo organizado pela livre iniciativa, este nível dá "orga- nização esportiva contará sempre com o financiamento público direto o u i n d i i ^ as loterias, como a Esportiva de ontem e a Titnemania dêTiÕjèrõspatrocfnios de empresas estatais, o financiamento público ^ l ^ i ^ ^ ^ * J ! B 3 £ ^ Í Í 5 J í í í í 2 ^ ^ de incen-" H v õ â S ^ r t e j t c p S n contar o financiamento direto às oT^nmíções" "esportivas. No ideal propugnado pela política expressa no Diagnóstico de 1971 e era outros documentos da Ditadura Militar, esse deveria ser um ponto de chegada de uma política esportiva nopaís, unia vez que ^ojc^átgTjekdvâ-diâjgií^^ aoagarceigifinto dos_atletas que o Brasil necessitaria.\Ora; a história recente mostra a -•^^^nc^jífdbssã^rê^^ que os maiores investi- mentos públicos no esporte, ontem e hoje, não foram nos degraus mais baixos da pirâmide esportiva, mas justamente noseu_á£Íce, aquele que caracterizará a elite esportiva do país. Assim, ou pensamos no fracasso da política da Ditadura para o desenvolvimento esportivo brasileiro, ou pensamos naquela política como impostora. • A verdade é que a redefinição do papel do Estado no mundo, sobre- tudo a partir dos anos finais da década de 1970, tirou da esfera pública o protagonismo na proposição e gestão de políticas esportivas, culturais, de saúde e educação, pelo menos. Hoje foi transferida de forma bastante contundente agcstão da indústria do esporte go Brasil e no mundo para a iniciativa privada, diferente daquilo que pretendia o Diagnóstico, o qual consideravaoestado responsável maior pelo fomento dos degraus dsJaaS£iÍa.^íâmide,odeportodemassa, o desporto estudantileasati- ' vidades físicas de lazer. Sorhente a partir do quarto degrau, o do esporte comunitário, que era a antessala do esporte de alto nível, o Estado não era o único responsável pela política esportiva, uma vez que contava com a parceria da iniciativa privada. No entanto, essa gestão não se deu sem o consórcio de fartos recursos públicos, sistematicamente transferidos para a esfera privada, como veremos, e como continua a ocorrer ainda hoje, em tempos "não militares", que contam com uma significativa (mas nunca absoluta!) estabilidade democrática. Se a Ditadura Militar primava; pela centralização fiscalizadora e financeira do esporte, prescrevendo uma polITiH massiva ãe esporte para todos, nos últimos vinte anos, ao contrário, observamos amaiií- pulação pela iniciativa privada enormes c|uantidades de recursos públicos para financiar uma "política esportiva" que nem passa perto dc se preocupar com o conjunto da população. Basta obsèr^ var que até mesmo os espaços para a prática das peladas do final de semana estão cada vez mais restritos à iniciativa privada, assim r.oi]riQ o.^ban4pn9 das chàrnadas "praças de esportes" na maior parte do Brasil. Note-se que mesmo quando se fala de csporcé tia escolá;'vèrdacleira obsessão de muitos estudiosos e de alguns elementos da mídia esportiva, basta olhar a realidade da escola brasileira para observar que é imp<3ssfvel desenvolver ali a prática esportiva por absoluta Falta de condições infi"a- estruturais (espaços próprios, equipamento, material). Talvez seja pos- sível afirmar que a Ditadura Militar, no seu aia organizativo, tivesse uma política para o esporte com forte acento público, a despeito das motivações ideologias do regime ditatorial, ainda que isso tenha sido mais proclamado do que realizado. Mas não se pode falar o mesmo dos últimos vinte anos no Brasil, nrr." para todos gera a concentração de recursos públicos para fomento de alguns poucos atletas, eventos ou equipes. Daí não ser estranho que o Brasil seja destaque em inúmeras modalidades esportivas hoje, no plano mundial, e ainda não tenha realizado o acesso e a permanência nem mesmo à escola e à educação de boa parte das suas crianças e dos seus jovens, assim' como nãçtcaatâ^com^olíticas públicas efetivas de esporte e i&z^x^mx^Jò^ é apenas uma das contradições desde país autoritário que se "afirma aos trancos e barrancos, como escreveu o antropólogo Darci Ribeiro (1985). A lamentar, entre outras coisas, a absurda destinação de recursos públicos para a realização dos projetos de alguns poucos, enquanto a maioria :i5o conta com nenhum tipo de favorecimento para viver com um mínimo de dignidade.' 7 Por certo, esse é um dos principais motivos das polarizações conçra ou a favor da realização dc grandes eventos esportivos no Brasil, um país que ainda "adminis- tra" a miséria, tal como os Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro, em 2007, fundamentalmente financiado pelo dinheiro público, a Copa do Mundo, a ser realizada no Brasil em 2014, e os Jogos Olí.mpicos, obstinadamente perseguidos H*«vi)n pmoRF f vinOR ANDRADE 0£ HtlO JUNTOS NO ESPORTE FARA TODOS. Ett» livro v»i max», ooTO w« « b ^ e «om o cofpo i„t«ffo. Eipomp^mTodoi. O exemplo do espoi-te universitário O esporte universitário, o qual tanibém não era uma novidade no penodo da ditadura, pois já exis t ianoB^£pelo menos desde os anos 1940, fora concebido como u m / p o n t o i n S a ^ e n t r e os degraus mais baixos da pirâmide e o e s p ^ T a T S í r í S S (ou elite espor- tiva), emboradegalmenteFsSS-^aTSaS-pír^o esporte estudati- por diversos grupos. O exemplo recente da China não é um fato isolado nesse contexto, mas é próprio do desenvolvimento do esporte como fenómeno econô- mico e político. Publicidade da c.impanha Juntos no Esporte para Todos, publicada na flevisw f iscf.' e Oespo/ios (MEC)./an,-dez IPS-I. l.'9.ii.S3,a.|2.Foto: C i i l o s Terrsn,ii A,-:.M-/o d.i Biblioieci íM L'ePF/USP •til." Imaginava-se que das íUeiras universitárias sairiam atletas que ajudariam a obtenção do sucesso das equipes nacionais. Novamente, a ditadura tentaria levar esse nível esportivo à universalização, inves- tindo fortemente no seu desenvolvimento. Exemplo dessa tentativa dc criação dc uma mentalidade esportiva entre os universitários brasileiros está na própria obrigatoriedade da prática de Educação Física, basica- mente calcada na prática esportiva, nos currículos das universidades, a partir da reforma universitária de 1968. Foram incentivadas, nos mesmos moldes do esporte escolar, competições locais (intercursos ou associações atléticas), locais, estaduais e nacionais. Os Jogos Univer- sitários Brasileiros mobilizavam atletas de todo o país. Também eram realizados em caráter itinerante. Veja-sc o exemplo vindo do Rio de Janeiro: Os alunos da Escola de Educação Fíáca c Desportos da Universidade do Rio de Janeiro patticipam atívamcntc dos acontecimentos esportivos. Em 1971, 63 alunos entraram em seleções universitárias estaduais. Em 1972 o número de alunos da Escola, em seleç6e« estaduais, subiu para 71. E ainda cm 1972 oito alunas fizeram parte da seleçSo universitária nacional, Nos Jogos Universitários Brasileiros (XII em Porto Alegre e III no Ceará), rcafizídos nos anos de 1971 e 1972, íespcctivamente, as equipes da Escola tiveram um desempenho brilhante (Podium, 1973). Como já foi mencionado, existe um entendimento corrente de que o esporte na universidade teria afunção de desviar a atenção e a energia dos universitários dos problemas políticos - falta de democracia, polí- ticas de desenvolvimento, tortura, guerrilha, prisões, desaparecimen- tos - presente no dia a dia da sociedade brasileira naqueles anos, cana- lizando essa pretensa energia contestatória para as atividades esportivas competitivas. Este é outro aspecto que espera por pesquisas mais apro- fundadas, sem as quais só podenáos reforçar uma análise esquemática dos processos e eventos históricos. Isso porque o esporte conheceu uma 8 " Brasil. Legis/ação «/«rftW. Brasília: Secretana de Educaçio Física e Desportos do Ministério da Educação c Cultura, 1982.- verdadeira explosão em todo o mundo a partir da década de 1960, não sendo exclusividade do Brasil investir nessa dimensão da cultura. No que se refere ao esporte universitário, ele é parte constituinte e vigorosa da cultura norte-americana, cultura essa que influencia há décadas o modo de vida brasileiro. Se somarmos a Isso o fato de boa parte das políticas governamentais dos diferentes governos ditatoriais estarem baseadas em acordos com os Estados Unidos (mas não só!), é possível pensar que o desenvolvimento do esporte em geral, c do esporte uni- versitário em particular, também não pode ser reduzido de íbtma tão simplista à maquinação política dos militares. O eníifcntamento dos descontentes a ditadura fazia de forma nada sutii: prisões, exílios, tor- turas, desaparecimentos e mortes eram as respostas efetivas das Forças Armadas àqueles que ousavam desafiar as determinações do ditador de plantão e de seus asseclas, fossem civis ou militares. Até que tenhamos pesquisas históricas que mostrem o contrário, o esporte universitário parece constar no planejamento tecnocrático dos governos militares como uma dimensão a mais do Setor Educa- ção Física e Desportos, a exemplo do que ocorria em inúmeros outros países, principalmente nos Estados Unidos. Não é casual que se tenha estabelecido em 1975 o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento Esportivo (PNDE) , ao qual se seguiram, outros dois. A universidade pode ser entendida como um lugar potencial para formar uma mentalidade nacionalista ufanista, e o esporte um elemento da cultura potencialmente afeito à disseminação do nacionalismo, o que Interessava sobremaneira aos governos ditatoriais brasileiros. Mas, infe- lizmente, temos que admitir que nenhuma ditadura, nenhum governo autoritária, como aqueles da Ditadura Militar brasileira, ou totalitário, abriria mão de organizar a cultura segundo as suas premissas ideoló- gicas. Porém, a história política mostra claramente que eles podem per- feitamente prescindir da cultura, portanto, do esporte, da Educação, da Ciência, das artes, para impor a sua vontade simplesmente pelo uso da força. No entanto, somente um esforço sistemático de desenvolvi- mento de novas e cuidadosas pesquisas poderá corroborar ou infirmar essa premissa. ^ '• Cabe reiterar, ainda, que além da Lei n. 5.540/68, que estabelece a reforma universitária, e o Decreto n, 705/^9, que estabelece a obri- gatoriedade do esporte nos cursos superiores, o desenvolvimento do esporte e da Educação Física no Brasil passa necessariamente pela ins- tituição militar. A maioria das escolas de Educação Física, que eram apenas 11 em 1967, tem uma origem militan Muitos dos professores das escolas de Educação Física eram militares, os quais têm na sua for- mação c amação, o esporte e as atividades físicas era geral como uma das pedras de toque. A reforma universitária, ainda que não seja uma obra exclusiva dos militares, mas também de empresários com o con- sentimento de largas parcelas da sociedade brasileira, foi definida no âmbito das políticas da ditadura. As próprias diretrizes internacionais para o esporte, como vimos, emanavam dc organismos internacionais. Um deles era a academia olímpica que também tem forte vínculo com a tradição militar, assim como várias das doutrinas que estão na raiz da chamada Educação Física, hoje. Assmi, mais do que uma "maquinação conspiratória da Ditadura Militar", o desenvolvimento do esporte naqueles anos, a sua presença de forma orgânica nas políticas estatais, parece reforçar a tradição, o vín- culo longevo entre atividades corporais (também esportivas) e ideário militar. Isso talvez ajude explicar a presença de uma dimensão especí- f ica iiu .oriranizaçâo esportiva brasileira, aquela do esporte militar, do qual não trataixi ••K.r» espaço. O e.<;porte de alto rendimento Um exemplo claro das preocupações dos governos militares com o desenvolvimento do esporte está na absurdo número de leis, <lecretos, portarias etc. que tentavam regulamentar este setor.no Bra.sil. Esse tam- bém não c um fenómeno novo ^ âcnmpar.har o legado do professor Ine- zil Penna Marinho rer;«mcnte. pod<' dar uma diniensão do que se fez no plano lcr;:.J;itivo neste país para o desenvolvimento do esporte, desde o .sCLuio X IX , dada a expressiva contribuição de Inezil para.o levantamento HAH oa mou í vino» mmí oe ma de documentos (fontes históricas preciosas) para a compreensão do pro- cesso de afirmação da Educação Física e do esporte neste país." Mas um pequeno volume organizado pelo próprio Ministério da Educação e Cultura, sob os auspícios da Secretaria de Educação Física e Desportos, dá uma amostra do afS organizador do Estado naque- les anos de obscurantismo político. Além do jjróprio texto da Política %ciaGáiᣠ.Mm%£mÍ^ft .sXiSSB8^ na L e i n. 6.251 de 8 de outubro de 1975, um conjunto de outros texfôsl&ffaiTversTso^^ .^Loteria Esgortj^4^,ç,4Jgsthia^^^^ esporte escolar e universitário, sobre o esporte comunitário, classista e rnííitarT Chegava-se ao requinte de estabelecêTpêlam'I^ãlTqirãhto^c clube (ou seria time de futebol?) ganharia percentualmente, em relação aos outros clubes de cada estado, nos rateios da Loteria Esportiva. Assim, o Estado cumpria um papel dc estabelecer um ranking de clubes/times, em ordem decrescente de valores a serem destinado»; n^r^,3^.1 manu- tcnçãu, lunking&sic que não obedecia qualquer critério "técnico" ou baseado na "tradição", na história do esporte (futebol) brasileiro. Dessa maneira, sabemos que os clubes de São Paulo, Rio dc Janeiro eMinas Gerais, recolhiam 49,96% dos recursos destinados para o con- junto dos clubes brasileiros contemplados pela lei. Na lista estabelecida pelo governo, estes estados teriam 42 clubes contemplados coin recur- sos (São Paulo, 20 clubes; Rio e Minas, 12 clubes cada). Os outros 50,04% dos recursos eram divididos entre ovitros 161 clubes espalhados por todos os estados brasileiros, numa clara demonstração dc fortale- cimento de quem já é forte e de concentração dc recursos, o que con- tradiz a politica anunciada pelos militares! Ainda neste plano estatís- rico, a título de exemplo, é possível observar a mesma discrepância no interior de cada .estado brasileiro. Assim, no estáâo dc São Paulo, os três primeiros clubes conttíttipi.u-... _ • . . c~ o 1 r , " .sequencia, o bao Paulo Futebol Clube (13,04%), o Sport Club Cormthians 1 ... .-14%) e o Santos Futebol Clube (11,12%). Aos três, eram destinu< os .'sb.u». dos recursos. Aos três últimos clubes da listagerii - Esporte Clube São Bento, Associação Ferroviária de Esportes e Clube Atlético Juvcntus - caberia apenas 5,09% dos valores destinados ao estado. No caso de Minas Gerais o quadro é ainda mais concentrado. Os dois clubes que aparecem no topo da lista são Clube Atlético Mineiro (28,38%) e Cruzeiro Esporte Clube (26,62%), angariando 55% dos recursos, enquanto os últimos três clubes-Tupi Foot-ball Club, Gua- rani Esporte Clube e Sociedade Esportiva Guaxupé - recebiam 5,27% dos valores. No Rio de Janeiro não era.diferente. O Clube de Regatas do Fla- mengo (30,14%)e o Clube de Regatas Vasco da Gama (22,9%) recebiam 53,04% dos valores destinados aos 12 clubes do estado. Os últimos três clubes listados - Campo Grande Atlético Clube, Madureira Esporte Clube e Olaria Atlético Clube - recebiam 5,33% dos valores. Ainda que não seja o espaço adequado para essa discussão, esses dados extraídos de documentos oficiais do Estado ajudam a colocar ^rr. .".uspf"??.'? n propalado peso da "tradição" nas decisões afeitas ao esporte, nesse caso, o futebol, grande esporte nacional. Isso porque, na sua faina de estabelecer o "novo" sem apagar o que é "tradicional", a Ditadura Militar ajudou a inventar tradições ou afirmar tradições inventadas. Ainda que não possa ser reduzida a essa dimensão, parece que a "grandeza" ou a "tradição" de um clube estão em estreita relação com a sua capacidade de propaganda e, sobretudo, de angariar largos nacos dos recursos públicos. O que é mais "tradicional"!* O Clube de Regatas do Flamengo ou o Bangu Atlético Clube, no caso do Rio de Janeiro!" O São Paulo Futebol Clube ou a Associação Atlética Ponte Preta, no caso de São Paulo? O Clube Atlético Paranaense du o Ope- rário Ferroviário Esporte Clube, no caso do Paraná? Ou seja, a pretensa neutralidade das decisões técnicas, da tecnocra-. • 1 I . c/uiocratas, não passa de um cia, da qual se jactavam os rnil-^-- • f embuste din*-' "^''P^ *'^ ^^ ^®^ das relações políticas. Também nesse . - . ajeria a pena investir em pesquisas que ajudassem a entender por- que clubes, equipes e times centenários desaparecem por completo até mesmo do imaginário da sociedade brasileira, enquanto outros, com grande habilidade para circular nos centros de poder e financiamento públicos, não só não, fecham as portas mas constantemente, em cada nova crise financeira, vêm à mídia para invocar a tradição e exigir do Estado apoio (sobretudo económico) em algo que é, basicamente, uma iniciativa privada. Imagine-se essa prática em um regime absolutamente avesso à transparência e afeito á arbitrariedade no trato daquilo que é público, como era o caso dos governos militares. Um exemplo claro do anseio de produzir uma nação olímpica com recursos do Estado nos é dado a partir de um texto publicado no número 41 da Revista Brasileira de Educação Física e Desportos, em 1979. No imaginário do esporte produzido pela mídia, é fácil naturalizar uma determinada situação ou condição, apagando as idas e vindas que a história nos reserva. Assim, talvez para muitos, o Brasil sempre tenha sido uma das principais seleções do voleibol mundial, como estamos acostumados a ver. Mas menos de trinta anos atrás era possível ver q .seguinte diagnóstico: "Os últimos campeonatos internacionais de voli- bol masculino - categoria adultos - tiveram suas chamas apagadas, e os resultados, além de reafirmarem algumas nações como verdadeiras potências volibolísticas (sic),serviram para mostrar um Brasil ainda distante dos nossos anseios" (Caldas e Sevciuc, 1979, p.37). Citando os exemplos do Japão e da União Soviética, duas potências do voleibol mundial naqueles anos, o texto continua: Não se pode negar um progresso bastante considerável que se assenta na filosofia adotada pelo Governo Federal na canalização de verbas significativas para o desporto a^nador, na dedicação dos dirigentes, na especialização dos tcrnicos e, principalmente, no sacrifício dos atletas que, inseridos em nossa infra-cstrutura sócio-econômica, participam das atividades desportivas, para- lelamente às profissionais (Caldas e Sevciuc, 1979, p.37). Advogava-se, assim, a necessária profissionalização do esporte bra- sileiro, bem como eram cnakecidas as iniciativas dos governos milita- res. A União Soviética era tomada como exemplo, tal como os demais países comunistas, para a defesa de que o estado deveria arcar com o "ordenado mensal" dos atletas, além de criar as condições ótimas pra o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. Já no caso do Japão, uma potência capitalista, os atletas que se destacavam despertavann os "olha- " res cobiçosos" do que se chamava "meio fabril", que na verdade eram grandes corporações industriais. Discutindo as duas perspectivas, os autores acabam por destacar a importância da presença do Estado na produção e na manutenção de equipes olímp^icas, em consórcio com a iniciativa privada. O tom moral daqueles anos não permitia que a gestão do esporte fosse simplesmente entregue ao mercado, como viria apa- rentemente ocorrer nos anos seguintes. Aparentemente porque, como .Cgur-i IJ.'t Compilação de documentos internacionais sobro o esporte organizada pela Universidade Federal do Paraná em 1985. (Reprodução) 410 HAM ML PRIOÍE E VICTOR AHDKíDt DE HELO vimos, mesmo o esporte de alto rendimento não prescinde de grandes recursos públicos diretos e indiretos, ainda hoje. Dc todo modo, é possível observar como, a despeito de reiterados apelos em prol da excelência esportiva brasileira, mesmo uma modali- dade como o volibol só conheceu um desenvolvimento exponencial a partir de algumas raízes lançadas pelas políticas da Ditadura Militar brasileira. Ou seja, apesar das constantes afirmações que o esporte é uma iniciativa privada, o ethos esportivo desenvolvido pelos militares tomou o esporte um "problema nacional" e uma "coisa nossa". Não por acaso se observa o Congresso Nacional brasileiro mobilizado em torno de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do futebol, como ocorreu há poucos anos. Não por acaso o dinheiro e o espaço públicos frequentemente são carreados para o financiamento de grandes empre- sas, incluáve multinacionais, como no exemplo da equipe de volibol do Rexona, financiada por longos anos pelo governo do estado do Paraná na gestão de Tal'"'" Lerner, ainua L | U V v-om a sua partida de Curitiba nada tenha ficado para usufruto da população. No Brasil o esporte é um assunto de Estado — era alguns casos, do assalto do Estado - e a Ditadura Militar parece ter dado organlcidade a este setor do plane- jamento estratégico das políticas públicas. Assim, é possível pensar no sucesso daquelas políticas. Um caso do futebol As relações entre futebol. Estado e Forças Armadas estão longe de serem bem compreendidas, até porque ainda se produz história "apenas" pela memória nesse campo. Se a memória é um dos pontos de partida da compreensão da História, a prática memorialfstica, tão difundida no Brasil nos estudos sobre o esporte, pouco ajuda a compreender o desen- volvimento de processos históricos complexos. Assim, disseminou-se uma ideia de que João Saldanha — o João Sem Medo —, técnico da seleção brasileira que disputava as eliminatórias da Copa do Mundo de 1970, teria deixado o cargo por divergência com HISTORIA DO ESPORTE HO BBASll o general Emílio Garrastazu Medici, então ditador. Essa versão está presente em várias memórias escritas sobre o treinador e^ sobrc o fute- bol brasileiro e foi assimilada como um sinónimo da jitgéISBcii dos militares na esfera esportiva. Ora, primeiro não é demais relembrar dos vínculos multo estreitos entre esporte e ideário militar, com todas as características que definem aquele ideário; hierarquia, disciplina, autoridade, comando, obediência, regras etc Expressão dessa relação na cultura brasileira é o fato do Conselho Nacional de Desportos (CND) e da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) , terem à sua frente, por muito tempo, militares, tal como foi o caso de Heleno Nunes. Mas se voltarmos os olhos para o presente veremos que a ingerên- cia não precisa de ura título de general, brigadeiro ou almirante. Basta observarmos a prevalência dos acordos financeiros, da diniensão eco- nómica sobre as relações esportivas, dimensão essa que permite o veto a determinados perfis detécnico para as equipes (lr»d'viiive as scleçScG nacionais), a exclusão dc jogadores melhor qualificados, a preferência por jogadores tecnicamente questionáveis, mas amparados em "bons" con- tratos, os acordos em torno de calendários, viagens, apresentações etc. Com isso quero problematizar uma forma fácil de produzir uma versão da história, aquela que se baseia em uma dimensão quase literária dos processos históricos, para a qual a verdade se produz por reiteração de determinadas representações. Obviamente não descarto o potencial do esporte como matéria jornalística ou como material potencialmente literário. Mas a história não é apenas Invenção, ainda que requeira grande dose de imaginação. Não é preciso muito para crermos que um regime que interferia sobre as dimensões mais elementares da vida em sociedade, como o direito de ir e vir e o voto, por exemplo, influiria também sobre o forte imaginário propiciado pelo futebol. Mas isso não é prerrogativa dos governos militares, e atletas e treinadores continuam a subir a rampa do Palácio do Planalto, a qual continua fechada aos mais diversos segmen- tos dos trabalhadores ou aos movimentos sociais organizados. Qual- quer medalhista em uma competição internacional sobe a rampa, que não acolhe o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) . D a mesma maneira que a chamada "scleção canarlnho" foi recebida com furor em Brasília e cada jogador ganhou um automóvel do governador do estado de São Paulo. Esporte e demagogia, esporte e populismo não são prerrogativas das ditaduras ou de um país como o Brasil. Pelo menos, desde o nacional-socialismo, estas souberam utilizar muito bem o potencial mobilizador do esporte a seu favor, inclusive como arma de desmobilização dos. descontentes. Nosso desafio émergtílhar nas fontes e verificar se, de fato, por exempio, Saldanha afastou-se da seleção brasileira por desavenças com o general de plantão ou por motivos outros, afeitos ao seu caráter intem- pestivo ou às agruras inerentes à sua função de técnico, Lèmbre-se de que o desempenho da scleção brasileira de fiitcbolnas elirninatórias para Copa de 1970 era pífio, e boa parte da mídia estava preocupada com uma possível não classificação da equipe, que viria a ganhar o terceiro uiiiipcui«ã!:2 rr/ãíuJl-il íis Mixlv-u, cm 1570. Aliás, nao c demais lem- brar que João Saldanha,.comunista assumido e desafeto dos militares, ministroit uma aula em 1969 para os alunos da Escola Superior de Edu- cação Física do Paraná, o .que gerou protestos do diretório académico, inconformado com a presença de um comunista, nas dependências da escola! Medici não era o único autoritário! Nesse plano, não é pouco significativo que a seleção brasileira que foi à Copa do México, em 1970, contasse com uma comissão técnica com fortes contornos militares. Entre os seus representantes contamos com Cláudio Coutinho, que era militar e viria a ser o técnico da seleção brasileira da Copa de 1978, na Argentina, e Carlos Alberto Parreira, que também foi militar e se tornaria um dos técnicos mais respeitados e caros do mundo, campeão mundial com a seleção brasileira, em 1994, nos Estados Unidos. Não há como separar o desenvolvimento do esporte brasileiro das influências militares e dos seus usos ideológicos. Mas isso não é o mesmo que admitir leituras conspiratórias que vecm no esporte o grande trunfo da Ditadura Militar para consignar os seus objetivos políticos. O esporte não era mais do que um dos planos de intervenção da Ditadura, que agiu na direção de afirmar-se pela adesão de grandes parcelas da população brasileira, ao mesmo tempo em que reprimia com crueldade os descontentes com os rumos da pcrlítica daqueles anos. O resultado da combinação dessas dimensões produziu um vácuo demo- crático de 21 anos na cena política brasileira, ao mesmo tempo em que abriu as portas do Brasil para grandes fenómenos de massa, tais como a cultura do shopping center, com todos os seus subprodutos, a televisão e a mentalidade esportiva. Se em 1950 o Rio corria para o Maracanã (cf. Moura, 1998), no período pós-Ditadura Militar, vimos afirmar-sc um forte senso esportivo na população brasileira, incentivada a correr em todas as direções. Mas o que as pessoas fizeram ou fazem do seu tempo livre ainda continua a desafiar o pensamento burocrático, seja de civis ou militares, de representantes da mídia ou académicos. Parece que as pessoas não correm tanto quando gostariam os apologetas do esporte de ontem e de hoje. Se continuamos não sendo uma nação olímpica, nos moldes alme- jados pelos mifirares e por laro^3.<; parcelas d? mídia nacional, fomos inoculados pelo discurso da vida ativa, tornamo-nos grandes consu- midores de material esportivo e de estimulantes, vitaminas, complexos medicamentosos, cirurgias estéticas etc. Além disso, "refinamos" nossos gostos televisivos e passamos a adquirir pacotes "personalizados" para assistir determinados eventos esportivos que nos ensinam que, ao con- trário do ufanista de outrora, que propagandeava que um país se faz com homens e livros, um país se faz com homens e mulheres esporti- vos. Tudo isso c subproduto da indústria do esporte e estava delineado na política da Ditadura Militar brasileira, bastante sintonizada com o que ocorria no mundo. Nesse sentido, não há como negar o sucesso das políticas esportivas da Ditadura Militar brasileira. Ainda que as análises históricas não possam desconsiderar contex- tos determinados, não é possível compreender os fenómenos locais sem uma perspectiva ampla. Sobretudo, no caso do esporte, ele é produto de e produziu uma sensibilidade "moderna", ativa, da ação, da energia, da vontade, do sucesso, da vitória, cara à sociabilidade prevalente no Brasil e no mundo, ainda hoje. Por outro lado, a ideia de uma potência olímpica está longe de se materializar no Brasil. Mesmo com a para- HARY DEL PMORE E "ÍKTOR AHOÍAOt Oí HEIO fernálJa legal dos militares para o setor, com uma agressiva política de publicações, com campanhas massivas, com a destinação de abundantes recursos-públicos para o meio esportivo, o Brasil não realizou o projeto daf^itírtáira com relação à formação de equipes esportivas de altíssimo nível baseada em uma política geral de esporte para todos. Ao contrário, assim como no caso do acesso à saúde c á Educação, a prática de ati- vidades físicas esportivas não está garantida como um direito dc todos para além do texto legal. A falta, ainda hoje, de políticas culturais (aqui incluído o esporte) que cheguem a todos, no Brasil, é um acinte, ainda que este seja um dos poucos países do mundo que tem um ministério específico para o esporte, um descalabro, o que dc longe supera a sanha burocrática dos governos militares. Assim, concluo defendendo que a Ditadura Militar implementou uma política esportiva que, por um lado, conquistou corpos e mentes para a "causa" esportiva, menos no que se refere à prática dc atividades físicas, e mais no tocante ao consumo do produto esDortivo de m-iq-sa. Isso só é possível graças ao desenvolvimento de uma meiUalidadt cspor- tvua. Por outro lado, não realizou a vmiversalização do acesso ao esporte, nem mesmo conseguiu garantir a centralidade do Estado na sua gestão, ainda que se proclamasse nacionalista e estadista. Ou seja, a ditadura, como em outros setores, como o educacional, por excn\p!o, preparou o terreno para a tomada do estado pela iniciativa privada, em muitos casos, multinacional, a qual está preocupada com as vantagens que pode auferir do desporto dc alto rendimento, mas não tem qualquer Interesse em investir em políticas públicas (de .saúde, cultura, educação ou esporte) para o conjunto da população, Claro está que é preciso percorrer também os pontos de contato entre os usosque dele se faz e as prescrições oficiais para o esporte. Tenho clareza que os usos não foram apenas os autorizados, como tentei mostrar em um estudo anterior sobre as práticas escolares de Educação Física (cf Taborda de Oliveira, 2003). Mas o estudo desses usos tam- bém deve abdicar de análises abstratas, por demais paternalistas com as pessoas ditas comuns. Isso não significa não admitir o arbítrio do poder dos militares. Mas também é preciso analisar o desenvolvimento •mitóiiiA 00 tspORrt «o bras i i político e cultural das sociedades no âmbito de tendências históricas mais complexas. Não é demais voltar a Carlo Ginzburg: As explicações de cunho conspiratório para os movimentos sociais s5o sempre simplistas, quando não grotescas ... Mas os complôs existem: são, sobretudo hoje, uma realidade cotídíana. Conspirações de serviços secretos, dc terroristas ou de ambos: qual é o seu peso etetivo!* Quais dão certo, quais fracassam cm seus verdadeiros objetivos e por quê? A reflexáo acerca desses fenómenos e de suas implicações parece curiosamente inadequada. No final das contas, o complô é apenas um caso extremo, quase caricatural, de um fenómeno muito mais complexo; a tentativa de transformar (ou manipular) a sociedade. As dúvidas crescentes sobre a eficácia c os resultados de projetos quer revolucionários quer tecnocráticos obrigam a repensar tanto o modo pelo qual a ação política se insere nas estruturas sociais profundas quanto sua real capacidade de modificá-las. Vários indícios fazem supor que os historiadores atentos aos tempos longos da economia, dos movimentos sociais, das men- talidades, tenham recomeçado a refletir sobre o significado do evento em si (também, mas nío necessariamente, político) (Ginzburg, 1991, p.23-24). Mirando a cultura e uma das suas manifestações, o esporte, o desa- fio é localizar documentação, enfrentá-la no esforço de Interpretação e procurar entender, pela via da História do Esporte e dos seus usos, o que fez e faz o Brasil, Brasil. Não o país da apologia televisiva espor- tiva ou da demagogia populista do Ministério do Esporte, mas o país real, às vezes esquecido ou oculto em arquivos e memórias dos mais diversos. Sabemos um pouco sobre o que a Ditadura fez pelo esporte no Brasil. Isso pode nos ajudar a entender o que a ideologia esportiva faz conosco ao longo da nossa vida, a ponto de nos transformarmos no país que somos. 1 4 Os anos 80, a juventude e os esportes radicais Rafael Fortes A prática dos esportes radicais no Brasil não começa na década de 1980. Portanto, o que há de especial no período? Em primeiro lugar, o aumento exponencial do número de pessoas - a maioria crianças, adolescentes e jovens — que se encantaram com os esportes radicais e aderiram a eles. Segundo, a visibilidade alcançada e os espaços conquis- tados em meios de comunicação já existentes (emissoras de televisão, rádio), bem como a criação de produtos audiovisuais e novos veículos. Terceiro, a mudança na estrutura de algumas modalidades, rumo à profissionalização, o que foi conseguido tanto por esforço dos agentes envolvidos com elas quanto pela base económica proporcionada pelo Gonsum.o em massa de produtos ligados aos esportes radicais, O exem- plo emblemático é o surfe, porém as modalidades que posteriormente sofreram refluxos estiveram em alta em algum momento dos anos 80, Mas que esportes eram esses? ^ j -
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