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ESPORTE DITADURA MILITAR (1964 1985) (1)

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Esse é um exemplo que ilustra de maneira particularmente útil 
a dinâmica estrutural pela qual o futebol vai, ao menos em alguma 
medida, se reorganizando sob êases consideravelrnente originais. Nem 
por isso, contudo, ninguém cogita a ideia de chamá-lo de um "novo 
esporte". Com todas as mudanças e alterações, o futebol segue sendo o 
futebol, tanto quanto o polo aquático segue sendo o polo aquático. 
Por meio de uma analogia com essa situação, podemos inferir con-
clusões semelhantes para os esportes na natureza. Esses são esportes 
que, inevitavelmente articulados às dinâmicas sociais do mundo con-
temporâneo, também vem passando por alterações de significados, sem, 
contudo, deixar de se configurarem como esportes (modernos). Parte 
dessas alterações diz respeito ao surgimento de novas modalidades, 
que apesar de novas, se inserem e se articulam com a rede de sentidos 
que essas práticas vêm historicamente instituindo. Outra parte delas 
diz respeito, entre outras coisas, ao modo de promoção e organização 
dessas práticas em estreito contato com dcteniuiiaàas fom.áã vlc cuxa\;i-
cialização, como o turismo, tornando sua adesão um tanto instável e 
provisória, espécie de pastiche ou simulacro. 
A tentativa de situar os esportes na natureza em relação„ao.campo 
esportivo de maneira mais geral tem nos induzido a pensar que nem 
todo esporte novo será um novo esporte, bem como nem todo novo 
esporte será, necessariamente, um esporte novo. Assim, o estabeleci-
mento de uma equação equilibrada entre os poios da continuidade e 
da inovação histórica para os ^esportes na natureza depende de enten-
dermos seu passado e seu presente de maneira tanto mais profunda, 
quanto mais articulada e matizada. 
Ao propormos que os princípios dc organização dos esportes na natureza 
já estavam bem definidos desde o século X I X nío estamos negando a atuali-
dade que a interface entre esporte e meio ambiente assume nos dias de lioje. 
Tampouco estamos desconsiderando as reconfigurações do campo esportivo. 
A questão central é que os elementos de descontinuidade, de ruptura e de 
inovação, devem ser analisados articuladamente com as "estruturas de longa 
duraçâo" (Dias ,Melo , Alves Júnior, 2007, p.93). ' 
O esporte brasileiro em tempos de exceção: 
sob a égide da Ditadura (I964-J985) 
,. Marcus Aurelio Taborda de Oliveira 
TEXTO PASTA Si CÓPIAS PASTA Si 
AV.PW, 161.TEL-2561..1fUfl 
A z 
"90 milhões em ação!" Assim iniciava a canção de Miguel Gus-
tavo, que mobilizava o Brasil durante a Copa do Mundo do México, 
em, 1970, Aquela do tricampeonato mundial. Outras pérolas da canção 
ufanista embalavam o sonho do Brasil grande. Era o caso de "Esse é 
um país que vai pra frente", dc Dom e Ravel. Eram anos de uma clara 
opção: o Braál queria ser grande, forte, reconhecido, importante! Um 
longo processo de construção da "brasilidade" parecia culminar naque-
les anos de acentuado nacionalismo, não só oficial. Mas o que era oficial 
naqueles anos tinha a marca da Forças Armadas. Mais: tinha a marca 
da Ditadura Militar, iniciada em 1964 e terminada em 198S. Não seria 
diferente com o esporte, que era considerado um dos vetores do possível 
reconhecimento do Brasil no cenário mundial. 
Ainda que a ditadura brasileira fosse uma aliança entre o poder mili-
tar c significativos e poderosos segmentos da elite civil, foi no âmbito 
das políticas oficiais, tendo à frente normalmente oficiais militares de 
baixa patente, que se viu um vigoroso movimento para o desenvolvi-
mento do esporte nacional. Ou seja, embora muitos acreditem que o 
investimento em esportes, principalmente de autorrendimento, é uma 
prerrogativa da iniciativa privada, isso não corresponde à verdade dos 
fatos no Brasil. Traços desses esforços podem ainda hoje ser vistos 
espalhados por este país. Difícil haver uma cidade brasileira, mesmo 
pequena, que não tenha um ginásio esportivo batizado com o nome de 
um militar ou político da ditadura. Só no caso do Paraná, é impressio-
nante a quantidade de ginásios esportivos com o nome de Ney Braga. 
Ora, Ney Amintas de Barros Braga era militar de alta patente, foi 
governador do Paraná e ministro de Estado. No caso da Bahia, Anto-
nio Carlos Magalhães também empresta seu nome a inúmeros espaços 
públicos - escolas, praças, ginásios ~, muito antes da sua morte, em 
2007. Embora Magalhães não fosse militar, foi um típico político da 
Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido que dava suporte à 
D;t?diir(i E?p''Çf^« e,snortivo? fnram rrin^tnados m!>'^ <''';amente naaueles 
anos como parte do que muitos chamam de um "projeto de esportiviza-
ção" da sociedade brasileira. O mesmo se pode dizer sobre o patrocínio 
público a clubes e equipes privadas, para o qual o futebol talvez seja 
o exemplo mais acintoso. Nesse caso específico, vimos no período da 
Ditadura Militar o nascimento da Loteria Esportiva, que praticamente 
se tornou uma "marca" no Brasil. Voltarei a ela. 
Esse projeto oficial partia de uma premissa simples naqueles anos: 
o Brasil estava longe de ser uma potencia esportiva. E o esporte já sig-
nificava, naquele período, o poder económico, político e simbólico de 
uma nação. Não por acaso as duas "grandes potências" esportivas do 
1 Obscrvc-se, dc passagem, que os governo!! militares não cliegaram nem próximo, 
cm termos proporcionais ou absolutos, do que os liltiimos governos brasileiros 
investiram em esporte dc alto rendimento, sobretudo nos tikimos 15 anos. Vemos 
uma quantidade absurda de recursos públicos fiiianciando equipes e eventos pri-
vados dc alto rendimento, em detrimento de um conjunto de politicas públicas 
de fato "para todos". Assim, mais que incrementar o esporte propriamente dito, 
a Ditadura parece ter contribuído, .çobretudo, com o desenvolvimento de uma 
sensibilidade esportiva no Brasil. Certamente, isso ocorreu também com a con-
tribuição do hipcrdtsenvolvinícnto do ès(>ortc como fenómeno de massa em pra-
ticamente todo o mundo a partir dh segunda metade do .século XX . 
planeta, que dividiam a hegemonia olímpica, eram também as duas 
nações que dividiam o poder político e económico. Estados Unidos e 
União Soviética. Daí a iniciativa de investir fortemente no esporte em 
todas as suas dimensões, uma vez que essas iniciativas, até a década de 
1960, eram bastantes irregulares no Brasil.^ A Ditadura Militar tratou, 
de fato, o esporte como uma questão de Estado. 
A Ditadura Militar, que, entre outras coisas, pode ser apresentada 
como um primor da tecnocracia, valia-se de inúmeros diagnósticos 
para desenvolver os seus projetos de intervenção. No caso do esporte, 
profundamente ligado à Educação Física no imaginário daquela época, 
partia-se do pressuposto de que era preciso compensar o atraso com 
uma ação firme, efetiva e centralizada, ainda que se advogasse a ideia 
de descentralização. Termos muito caros ao ideário militar, diga-se de 
passapem! O» 'spja. o esporte "^í^ um ízr^^rr"'"^ nove ncquelcc "zoi 
e os diferentes governos sabiam disso; também não era a única preo-
cupação- certamente nem mesmo a mais importante — dos governos 
ditatoriais no plano da organização da cultura. Considerando que o 
esporte goza de longa vida e grande prestígio ao longo da história das 
Forças Armadas, a novidade foi o esporte ter sido percebido como uma 
esfera da cultura capaz de dar visibilidade política aos feitos da ditadura 
brasileira no âmbito internacional, além de poder contribuir com a edu-
cação de um tipo de sensibilidade adequada a um regime que apagava 
as diferenças, silenciava as vozes dissonantes, torturava e matava em 
nome da segurança nacional. O esporte, pensavam alguns, seria capaz 
de amainar os ânimos, arrefecer os impulsos contestatórios, canalizar a 
energia juvenil que pretendesse questionar a ordem vigente. Além disso, 
2Note-seque,jáem 1941, também sob a égide dc ura regime autoritário-o Estado 
Novo - , foi produzida uma legislação de largo alcance no Brasil. Trata-se do 
Decreto-lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941, que tem a exposição de motivos 
assinada pelo ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. O u seja, de 
longa data se supõe que esporte, cducaçflo e saúde caminUam juntos, o que cada 
vez está mais difícil de sustentar boje. De qualquçr modo, parece sct um traço do 
pensamento político brasileiro, marcadamente autoritário, (rcjínvehtar o "novo", 
como fizeram osjnilitarcs no pós-1964. 
o esporte também seria uma escola de disciplina para o trabalho, pois 
teria a capacidade de energizar a nação para o seu crescimento econó-
mico, o que também não era novo no contexto brasileiro, como bem 
mostrou Meily Linhales (2006). E nos anos de milagre económico, 
todos os esforços estavam voltados para a realização do objetivo maior 
de incluir o Brasil entre os países desenvolvidos do planeta. Com o 
esporte, do ponto de vista ideal, não era diferente, motivo pelo qual ele 
passou a ser um "setor" no planejamento dos governos ditatoriais. 
Os diagnósticos dos governos ditatoriais se baseavam em diferentes 
tipos de estudos, sondagens, análises. No caso do esporte e da Educação 
Física, em 1971, foi publicado o Diagnóstico da Educação Física e despor-
tos tio Brasil, desenvolvido desde 1969. Segundo Lamartine Pereira da 
Costa, seu responsável e condutor, fora encomendado pelo Instituto de 
Pesquisas Económicas Avançadas (Ipea), órgão da burocracia estatal 
responsável por este tipo de iniciativa. Problemas de ordem burocrática 
lenam impi-dido u seu ciebv....uivimentu iir.cdidto e de Acordo com 
anseios do seu idealizador. 
Mas havia também uma "linha dircta" de mapeamento da situação 
do esporte brasileiro incentivada pelos diferentes governos. Por meio 
dela, professores, atletas, dirigentes, alunos, eram incentivados a relatar 
ao Departamento de Educação Física e Desportos do Ministério da 
Educação e da Cultura ( D ED /MEC ) as iniciativas, lacunas, preca-
riedades, conquistas da sua região no âmbito esportivo. Para isso, além 
das seções de cartas dos periódicos patrocinados pelo governo, existiam 
publicações tais como Podium, Dedinho, EPT, Comunidade Esportiva, 
as quais funcionavam como elo de ligação entre o gestor público e a 
comunidade. Não por acaso, também em 1971 foi lançada a Campanha 
Nacional de Esclarecimento Esportivo, a qual pretendia que o esporte 
passasse a fazer parte do dia a dia dos brasileiros. 
.í Entrevista com Lamartine Pereira da Costa, concedida a Marcus Aurélio Taborda 
de Oliveira, em 9 dc dezembro de 1998. 
Hi l i r n f l PllOM t VlcrORAHORAOE Of HEIO 
Respondendo às demandas de professores de Educação Física de 
todo o Brasil, assim se posicionava Eric Tinoco Marques, chefe do 
D E D / M E C , em 1972, sobre a citada campanha: 
ao D E D será sobremodo difícil conhecer, Estado por Estado, as unidades 
escolares em condições de receber o material da campanha para o seu correto 
aproveitamento-, ao Estado, e somente ao Estado, cabe programar o seu tra-
balho, pois as peças da Campanha nao podem ser observadas isoladamente, 
como "um auxilio do M E C " para o desenvolvimento da EducaçSo Física, 
mas sim como parte de um esforço integrado, em que diversas variáveis são 
atacadas simultaneamente, na tentativa de recuperar cm pouco tempo o muito 
de atraso desse setor (Marques, 1972). 
De posse dessas informações, pretendia-se que o governo criasse as 
condições para a melhora do esporte em todos os níveis, no país. Mas 
quais eram esses níveis? 
Segundo a Política Nacional de Educação Física e Desportos, 
expressa na-Lei n. 6.251 de'1975, no seu artigo 10°, o país adotou 
uma forma de organização esportiva baseada cm quatro dimensões: o 
esporte comunitário, o esporte estudantil, o esporte militar e o esporte 
classista. Essas dimensões, correntes em boa parte do mundo, foram 
anunciadas alguns anos antes. O Brasil adotou um modelo esportivo 
baseado no que se conhece como pirâmide esportiva, a qual é detalhada 
no Diagnóstico, publicado em 1971. 
Nesse iTiodelo piramidal, pretende-se que a base do chamado sis-
tema esportivo seja o esporte de massa, o primeiro nível do esporte 
comunitário, que teria o seu ápice no esporte dc elite ou de alto ren-
dimento. 
Nesse nível, o modelo se caracteriza por um conjunto de atividades 
não necessariamente formais, das quais participa a maior parte possível 
da comunidade. São os jogos de final de semana, os torneios amadores, 
a,<! atividades de lazer para a população, as quais têm a participação do 
estado no seu incentivo e financiamento, mas são organizadas basica-
mente pela própria comunidade. Desde 1967, parte dessas atividades são 
pensadas a partir da noção dc "Esporte para Todos", movimento cjue 
V 
t 
. . • . IIISIÚRIA 00 tiPOMf HO aUASIl 
FiffM-i 1X1 
Modelo da estrutura 
esportiva t)rasileirii 
proposta pela 
Ditadura MiStar. 
pubtkado no 
Diagnóstico da 
Educação Física e 
Desportos no Brasil, 
l97l.(Repro<iu<;5o) 
OOWUWtAM» 
EBj-jtilo tfac\ xstano cscoa» 
1 y iH . I IX.' 
Modelo suTipliíicado 
da pirâmide 
esportiva. 
(Reprodução) 
ELITE 
SOCIAL 
ESCOLAR 
PARTICIPANTES 
nasceu na Noruega. O que se pretendia, como o próprio nome indica, é 
que toda e qualquer pessoa, independentemente de idade, sexo, condição 
social, económica ou física, desenvolvesse algum tipo de atividade física. 
Poderia ser uma corrida, um passeio ciclístico, uma caminhada ou um 
torneio esportivo de fim de semana, além de um sem número de ativi-
dades corporais, inclusive de lazer. Além de um discurso voltado para a 
saúde (aptidão física) e o bem-estar do trabalhador, também estava em 
jogo uma ideia de vida comunitária, de harmonia social, visto que as 
pessoas praticariam essas atividades junto com outras pessoas. Assim, o 
esporte de massa poderia ou não ter um caráter competitivo, conforme 
o contexto no qual se desenvolvesse, mas esse não era o seu principal 
objetivo naquela formulação. Partia-se do pressuposto de que as pessoas 
com talento esportivo teriam no^spõtte"3Slm^^ 
mostr««'j^^5jimbiito^r7*iI^ íín.P-^ .ru uma wj^iyãu aJciíca, 
nem por isso deixariam de usufruir os "benefícios" da atividade física 
regular. Entre essas atividades encontramos o esporte propriamente 
d i t o a t é o plano olímpico - , as atividades de recreação, o campismo e 
as atividades junto à natureza, o folclore. Ou seja, uma gama muito ampla 
de atividades, não necessariamente esportivas, que representariam uma 
nova postura diante da exercitação física, no sentido de uma vida mais 
ativa. Se pensarmos nos dias de hoje, é um pouco como esse discurso tão 
incisivo dos meios de comunicação, do governo e de certas corporações 
profissionais para que você ande, faça exercícios, não beba, não fume, 
participe das atividades comunitárias (como o voluntariado) etc. 
"Esporte, a melhor ocupação". Este era o título de uma matéria 
publicada na Revista Brasileira de Educação Física e Desportos, em 1981. 
Nela, aparece claramente'o caráter assistencial do esporte, prescrito 
para comunidades abandonadas pelo poder público como uma possi-
bilidade de "sensibilizar e movimentar comunidades" (Braga, 1981). 
Tratava-se de combater a i nação e coijipensar os efeitos deletérios de 
uma organização política, económica e social perversamente desigual, 
como abrasileira. 
No segundo degrau da pirâmide esportiva, observamos o esporte 
escolar ou e s tudan t i l , o qua l inc lu i o esporte ua ive r s i t á r i o . Ne l e estiava 
concentrada uma das principais ênfases das políticas daqueles anos, que 
era a busca de talentos esportivos. O entendimento era simples: per-
mitindo que a massados estudantes participasse de atividades espor-
tivas de caráter competitivo, tais como jogos internos, torneios, jogos 
interescolares etc, seria possível mapear aqueles alunos com potencial 
para serem atletas nas mais diferentes atividades esportivas. Uma vez 
detectados, esses alunos seriam, ern tese, deslocados para equipes de 
treinamento esportivo, com vistas ao seu aperfeiçoamento atlético. No 
fim desse processo, imaginava-se (e muitos ainda imaginam) que este 
aluno-atleta comporia as equipes nacionais que representariam o país 
nas grandes competições internacionais. Daí" a ideia, tão difiandida 
naqueles anos e que com frequência volta à tona em algumas falas na 
mídia, no governo e na comunidade dc professores de Educação Física 
ainda hoje, que o esporte educa, é saúde, combate a criminalidade e a 
pobreza, evita os vícios e tantos outros jargões que estão longe de serem 
comprovados, ainda oue ffozf m rl^ .^'^ .•-•dp divulg^çííT f '>nrripri;-,ç5..:> no 
senso comum, sobretudo pela força da mídia no desenvolvimento de 
um senso esportivo. O esporte ensinaria a perder, a superar obstáculos, 
a reconhecer a superioridade de outrem. Nada nessa retórica é novo, 
mas ela se atualiza constantemente ajudando a definir uma mentalUáde 
esportiva, como pretendiam os governos militares, além de fortalecer 
os laços da "brasilidade". 
Também se desenvolveu uma retórica para a qual o esporte retira-
ria os indivíduos da pobreza e os conduziria a uma vida de sucesso e 
conforto material. O país, por sua vez, além do ganho indireto com o 
controle das emoções das massas, desenvolveria os atletas que conquis-
tariam vitória e prestígio que permitiriam que ele fosse reconhecido na 
comunidade internacional como uma potência esportiva, mas não só. 
Lembremos do recente bordão: "Ele é brasileiro e não desiste nunca!". 
Reforçavam-se os laços de identidade nacional dos anos da Ditadura: 
"BrasU; ame-o ou deixc-o!". 
A história recente mostrou que não ocorreu o desenvolvimento do 
esporte como almejavam as políticas da ditadura. O Brasil continua 
não sendo uma potência esportiva mundial e a escola brasileira, que 
mal cumpre a sua fijnção de transmitir a cultura, também não se tor-
nou um "celeiro dè atletas", como queria o ideário militar, o qual está 
redivivo em algumas políticas oficiais, como, por exemplo, algims pro-
gramas atuais do Ministério do Esporte voltados à escola. Isso não quer 
dizer que o esporte não tenha se tornado sinónimo dc Educação Física 
na maioria das escolas brasileiras, empobrecendo as possibilidades de 
acesso por parte dos alunos a inúmeros outros produtos da cultura afei-
tos.ao corpo e às suas manifestações. 
O ponto de chegada do esporte estudantil no ideário daqueles anos 
era os jogos escolares ou colegiais, assim como os jogos universitários. 
Estes também não foram uma invenção da Ditadura Militar, pois há 
registros históricos de competições dessa natureza no Brasil desde os 
primeiros anos do século XX , certamente em menor escala. No entanto, 
com a sua proverbial megalomania, a Ditadura deu uma dimensão ver-
dadeiramente massiva ao esporte estudantil, fomentando a realização 
df '-cmpetiçues em níveis nacionais a partir da ideia de seleções esta-
duais e municipais. Também nesse caso, o modelo era bastante sim-
ples.lPrimeiro se estimulava a competição no interior de cada escola 
ou urtiversidade. A partir dessas competições eram formadas equipes 
representativas de cada escola e universidade, as quais enfrentariam as 
equipes de outras instituições em competições municipais, quando isso 
era possível, sobretudo no caso do esporte universitário. Dessas com-
petições saíam as seleções de cada cidade, as quais disputavam uma 
competição estadual. Por fim, na ponta deste "funil", eram selcciona-
dos os alunos-atletas que comporiam as seleções estaduais, as quais 
disputariam os famosos Jogos Estudantis Brasileiros (JEBs), assim 
como os Jogos Universitários Brasileiros (JUBs), Estes ocorriam ini-
cialmente de forma itinerante - cada ano em uma cidade do Brasil, 
normalmente uma capital — e depois passaram a ocorrer em Brasília, 
para onde se deslocavam milhares de alunos-atletas vindos de todo o 
; Uma variação dessa organização é aquela na qual, em vez de.uma scleção dos 
"melhores" atletas escolhidos entre todas as equipes, a equipe vencedora repre-
sentaria a sua cidade ou estado. 
HISIÓRIA DO ESPOHE »0 BÍASIE 
A 
país. Pequeno exemplo dessa política pode ser visualizado na seguinte 
passagem, publicada no jornal Podiunt. 
O Colégio Dom Bosco foi o campeão de Basquete, séri« masculina, nos 1* 
Jogos Infanto-Juvenil Estudantil do Amazonas (sic), promovidos pela Coor-
denação de Educação Física, Recreação e Desportos Estudantil do Amazo -
nas. Os Jogos foram programados para que os técnicos da Fundação Edu -
cacional observassem os novos atletas para as seleções amazonenses que v3o 
participar dos Jogos Estudantis Brasileiros em Natal (Podium, 1974, p.3). 
Parte da política da ditadura para o desenvolvimento do esporte , 
em todos os níveis foi o estabelecimento de intercâmbios com envio de 
missões de professores, técnicos e atletas brasileiros a diferentes países 
considerados mais desenvolvidos no esporte. Aiemanba e Estados Uni-
dos toram os mais piocuradus, rzzs iantbér" houve mitsfies esportivas 
para Itália, Inglaterra, Argentina e até a União Soviética, o que não 
deixa de ser um paradoxo, considerando a ideologia francamente anticó-
munista das Forças Armadas brasileiras em geral e da Ditadura Militar 
em particular. Esse ponto requer maiores e mais profundas pesquisas, 
mas faz crer que o esporte parecia compor um domínio relatimmmte 
independente dos pgos político-ideológicos enfrentados pelos militares 
no poder. E apesar dos significativos estudos de Amarillo Ferreira Neto 
e Metiy Linhales, muito há por fazer para entendermos as intestinas 
relações do esporte com a caserna e a política no Brasil. Basta dizer que 
na primeira metade do século X X dava-se grande destaque às competi-
ções militares entre países da América Latína, com realização itinerante 
entre os países da região, e com a ocorrência dc provas tanto individuais 
quanto coletivas (cf Linhales, 2006, e Ferreira Neto, 1999).' 
Claro que essa independência do esporte com relação à política 
não existe. Ao contrário, a Guerra Fria, além de produzir uma tensa" 
estabilidade na correlação de forças entre Estados Unidos (capitalista) 
e União Soviética (comunista) e seus respectivos aliados, produziu pela 
<; Essas informações também se baseiam na entrevista com Hamilton Saporski Dariin, 
concedida a Marcus Aurélio Taborda dc Oliveira, em 28 de setembro de 2001, 
via do esporte uma dimensão simbólica de afirmação do poderio dos 
dois países. Isso fica claro no boicote nortc-americano aos Jogos Oh'm-
picos de Moscou, em 1980, com a respectiva resposta soviética com o 
boicote aos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984. Não foi a pri-
meira vez na história que o esporte mostrou sua face marcadamente 
política. No entanto, ao analisar parte dá documentação esportiva da 
Ditadura, o que sobressai é uma preocupação com a esportivização do 
1 Brasil segundo parâmetros internacionais, portanto, universais. Esses parâmetros foram e são determinados por entidades supranacionais, pretensamente neutras nos jogos políticos, tais como a Organização 
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na 
sigla em inglês) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, 
na sigla em inglês), quando pensado o"esporte como elemento de for-
mação e saúde, e o Comité Olímpico Internacional (COI ) , a Academia 
lOlímpica e as diferentes federações internacionais de cada modalidade 
esportiva, quando se pensa no esporte de alto rendimento. Assim, uma 
rez que seestava preocupado naqueles anos com o desenvolvimento do 
sporte brasileiro na suã dimensão técnica e organizativa, desde a sua 
ersão escolar até a sua dimensão olímpica, não estranha que, ao tratar 
6 O s Estados Unidos lidetanim um boicote dc 69 países aos Jogos Olímpicos de 
Moscou em protesto à invasSo do Afeganistão pelas tropas soviéticas, em 1979. 
A resposta soviética e dc mais 16 países veio na edição seguinte, em Los Angeles, 
sob a alegação de falta de segurança dos seus atletas. Mas, nos Jogos Olímpicos 
de Munique, em 1972, o mundo ficou tissombrado com o atentado sofrido pela 
delegação de Israel, perpetrado pelo grupo terrorista Setembro Negro. O episódio 
ficou conhecido como o "Massacre de Munique" c, nele, 11 israelenses perderam 
a vida. Os trás eventos estio incluídos no período coberto pela Ditadura Militar 
brasileira c por um scm-niímero de ditaduras mundo afora, principalmente no 
então chamado "terceiro mundo". Os Jogos Olímpicos conheceram ainda mani-
festações políticas nos Jogos dc 1936, eni Beriim, c 1968, na Cidade do México. 
.Assim, não espanta que a China de 2008 tente se afirmar também pelo esporte 
olímpico, ou que houvesse tímidas ameaças de boicote pela repressão chinesa ao 
Tibet. O esporte é eminentemente político e mobiliza uma indústria poderosa. 
Sobre a história da cultura na (;ra dos três mundos c a força da cultura de massas, 
ver Denning (2005). » . • • • • 
do tema, não houvesse grandes restrições ao intercâmbio com países 
"comunistas". Afinal, o próprio Diagnóstico de 1971 faz alusão à União 
Soviética e ao modelo da pirâmide esportiva, pretensamente univer-
sal, o qual era difundido pelo Conseil International pour TEducation 
Physique et le Sport da Unesco. 
No entanto,-os militares não investiram suficientemente no esjporte 
a ponto de influenciar na sua grande política. A sua dimensão política 
parece que estava atreladaa propalada mentalidade esportiva, que pres-
supunha uma educação para a disciplina, de forte cunho moralizadof, 
voltada para o desenvolvimento de um etòos do trabalho, pois poderia 
formar indivíduos de ação. Isso aliado a uma perspectiva de tratamento 
do esporte coixio um fim nele mesmo, que é o que pressupõe o esporte de 
alto rendimento. Ainda que seja necessária prudência quando compara-
mos a cultura de diferentes países, é possível afirmar que alguns países 
comunistas lograram um alto desenvolvimento esportivo aparentemente 
investindo nessa dupla dimensão, a exemplo de Cuba e China, além 
da própria União Soviética, tanto quanto os mais desenvolvidos países 
capitalistas. Ou seja, é precária aquela crítica que atribui o desenvolvi-
mento do esporte ao do capitalismo, de forma causal. Observe-se que, 
no contexto da ditadura brasileira, aquelas.duas perspectivas por vezes 
dividiam as opiniões daqueles que se ocupavam com reflexões sobre o 
esporte no plano internacional, alguns defendendo o caráter potencial-
mente formativo do esporte, enquanto outros advogavam a máxima dos 
fins justificarem os meios (cf Taborda de Oliveira, 2003). Mais do que 
um subproduto do capitalismo, talvez o esporte ajude a engendrá-lo nas 
mentes e nos corações, com ou sem a contribuição das ditaduras. 
O degrau seguinte da pirâmide esportiva era dedicado ao chamado 
"equipamento básico urbano" e tem relação com a prática regular de 
atividade física de lazer. Também fazia parte do esporte comunitário 
no ideário daqueles governos. Nesse nível, caberia ao Estado oferecer a 
infraestrutura necessária (equipamentos, espaços, pessoal especializado 
etc.) para que os indivíduos pudessem desenvolver as suas atividades 
físicas no espaço da cidade, Daí a promessa de parques, praças, quadras, 
ginásios, ciclovias, entre tantos outros tipos de equipamento, os quais 
u i o v n f i p«'imf f Vir.inn AHOSADf DE HtlO 
serviriam para o desenvolvimento regular e autoconsdente de atividades 
físicas pela população. Junto a essa perspectiva, como parte fundamen-
tal do seu planejamento e da educação de uma sensibilidade esportiva, 
eram divulgadas amplas campanhas para que as pessoas adotassem um 
estilo de vida ativo, tal como ainda hoje observamos. A contraparte 
moral dessa perspectiva está no combate ao álcool,, ao cigarro, à pre-
guiça, ao ócio. Ou seja, trata-se de administrar o tempo çjç^ s indivíduos 
e dotá-los de saúde, de modo a canaUzar as suas energias para o mundo 
laboral, tomando-os mais eficazes e eficientes consoantes com o modelo 
societário calcado na competição e na produtividade. Novamente, não 
se trata de uma peculiaridade do Brasil. Ao contrário, é possível afir-
rtiar que política da Ditadrura Militar era claramente "modernizadora" 
no que isso tem a ver com a tentativa de adoção de modelos, práticas e 
pensamentos estrangeiros. 
Note-se, retrospectivamente, que grande ênfase dos discursos sobre 
n Educação Física c oz copo;í.ci Jv,ou>.; os anos 61) do século X X pres-
supõe um aumento do tempo livre e do nível de vida (inclusÀve econó-
mico), visto que o monstruoso desenvolvimento tecnológico conhecido 
pelo género humano amainaria a penúria e oferecia uma vida rnais digna 
e confortável a todos. Nesse sentido, as atividades físicas e esportivas 
cumpririam um papel fundamental - como lazer ativo ~- na ocupação 
do tempo livre da população. Elas poderiam significar o usufruto das 
benesses conquistadas pela sociedade industrial. Essa era a perspectiva 
dós signatários do Diagnóstico de 1971. A tese, cara a diferentes espec-
tros do pensamento político e económico desde o século X V I I I , pelo 
menos, foi completamente soterrada com o hiperdesenvolvimento do 
capitalismo c com a derrocada do socialismo. 
O que se vê há alguns anos, é um contingente cada vez maior de 
indivíduos sem qualquer trabalho, portanto, com muito tempo livre, 
mas sem quaisquer condições de acesso às mínimas formas de bem cul-
tural, inclusive os esportivos, e mesmo a direitos básicos elementares, 
como saúde. Educação, trabalho etc, Efetivamente o que observamos 
nos últimos anos são pessoas sem perspectivas de realização das .suas 
necessidades mais elementares - comida, habitação, saneamento, Edu-
IIISIÓÍIA 00 ESPOBIF «O 8SAÍII 
cação, saúde - muitas das quais, mesmo com a superabundância pro-
duzida hoje no mundo, são atiradas aos limiares da miséria em um país 
como o Brasil. Isso para não citar a produção permanente da pobreza 
e da miséria no restante da América Latina, da Africa e da Ásia. Não 
estranha, assim, que hoje os meios de comunicação apostem, sobretudo, 
em uma indústria do esporte baseada no expectador passivo, aquele que 
acompanha compulsivamente os jornais e os programas de televisão 
para mais uma vez ver um gol, um recorde, uma jogada de alto nível 
è cultuar algum novo ídolo da moda. Ainda queseja forte a tónica dá 
propaganda emum^tUct^^ que cabem 
ser investigados pela Sociologia, pela Antropologia, ou pela Psicologia 
Social, feliztnentcos indivíduos de maneira geral parecgna .não ter sido . 
inoculadosjielo vírus da "atíííí^HffiKÍpèrmanente''. E como mostrou 
recer.i^pwente a d ivnljadora científica TenniíeFAcltèrrnan, nem mesmo 
os Estados Unidos realizaram plenamente a ideologia da saúde per-
feita pela prática de atividades físicas regulares (cf Ackerman, 2008). 
Isso faz crer que, apesar de todas as tentativas de controle dos corpos e 
mentes dos indivíduos, de alguma maneira que talvez nos escape, eles 
continuam resistindo, conscientemente ou não. 
O quarto degrau da pirâmide esportiva que orientou as políticas bra-
sileiras nos anos 1970 está destinado k "otganizaçãp desportivai_comu-
nltária". Nela, estão considerados os clubes (associações esportivas), 
ligas, federações, confederações, comités olímpicos etc. (cf. Costa, 1971, 
p.20). Diretamente voltada para a lógica darentabilidade{/aior inten-
sive), era previsto pelo Estado autoritário que a sua .gestão deveria se 
dar totalmente no âmbito dã livre iniciativa^ob a sua responsabilidade, 
observamos a organização de competições profissionais ou amadoras, a 
prática esportiva sistemática e profundamente codificada (regras, tri-
bunais, arbitragem, treinamento sistemático etc), o que representa um 
profundo grau de especialização em relação aos níveis anteriores. Nésfè 
nível, o esporte torna-se negócio, investimento, profissãOj .indústria, 
ainda.ique as associações desenvolvam outras atividades além das espor-
tivas.'Mesmo sendo organizado pela livre iniciativa, este nível dá "orga-
nização esportiva contará sempre com o financiamento público direto 
o u i n d i i ^ as loterias, como a Esportiva de ontem e a Titnemania 
dêTiÕjèrõspatrocfnios de empresas estatais, o financiamento público 
^ l ^ i ^ ^ ^ * J ! B 3 £ ^ Í Í 5 J í í í í 2 ^ ^ de incen-" 
H v õ â S ^ r t e j t c p S n contar o financiamento direto às oT^nmíções" 
"esportivas. No ideal propugnado pela política expressa no Diagnóstico 
de 1971 e era outros documentos da Ditadura Militar, esse deveria ser 
um ponto de chegada de uma política esportiva nopaís, unia vez que 
^ojc^átgTjekdvâ-diâjgií^^ aoagarceigifinto 
dos_atletas que o Brasil necessitaria.\Ora; a história recente mostra a 
-•^^^nc^jífdbssã^rê^^ que os maiores investi-
mentos públicos no esporte, ontem e hoje, não foram nos degraus mais 
baixos da pirâmide esportiva, mas justamente noseu_á£Íce, aquele que 
caracterizará a elite esportiva do país. Assim, ou pensamos no fracasso 
da política da Ditadura para o desenvolvimento esportivo brasileiro, ou 
pensamos naquela política como impostora. • 
A verdade é que a redefinição do papel do Estado no mundo, sobre-
tudo a partir dos anos finais da década de 1970, tirou da esfera pública 
o protagonismo na proposição e gestão de políticas esportivas, culturais, 
de saúde e educação, pelo menos. Hoje foi transferida de forma bastante 
contundente agcstão da indústria do esporte go Brasil e no mundo para 
a iniciativa privada, diferente daquilo que pretendia o Diagnóstico, o 
qual consideravaoestado responsável maior pelo fomento dos degraus 
dsJaaS£iÍa.^íâmide,odeportodemassa, o desporto estudantileasati- ' 
vidades físicas de lazer. Sorhente a partir do quarto degrau, o do esporte 
comunitário, que era a antessala do esporte de alto nível, o Estado não 
era o único responsável pela política esportiva, uma vez que contava com 
a parceria da iniciativa privada. No entanto, essa gestão não se deu sem 
o consórcio de fartos recursos públicos, sistematicamente transferidos 
para a esfera privada, como veremos, e como continua a ocorrer ainda 
hoje, em tempos "não militares", que contam com uma significativa 
(mas nunca absoluta!) estabilidade democrática. 
Se a Ditadura Militar primava; pela centralização fiscalizadora e 
financeira do esporte, prescrevendo uma polITiH massiva ãe esporte 
para todos, nos últimos vinte anos, ao contrário, observamos amaiií-
pulação pela iniciativa privada enormes c|uantidades de recursos 
públicos para financiar uma "política esportiva" que nem passa perto 
dc se preocupar com o conjunto da população. Basta obsèr^ var que até 
mesmo os espaços para a prática das peladas do final de semana estão 
cada vez mais restritos à iniciativa privada, assim r.oi]riQ o.^ban4pn9 
das chàrnadas "praças de esportes" na maior parte do Brasil. Note-se 
que mesmo quando se fala de csporcé tia escolá;'vèrdacleira obsessão 
de muitos estudiosos e de alguns elementos da mídia esportiva, basta 
olhar a realidade da escola brasileira para observar que é imp<3ssfvel 
desenvolver ali a prática esportiva por absoluta Falta de condições infi"a-
estruturais (espaços próprios, equipamento, material). Talvez seja pos-
sível afirmar que a Ditadura Militar, no seu aia organizativo, tivesse 
uma política para o esporte com forte acento público, a despeito das 
motivações ideologias do regime ditatorial, ainda que isso tenha sido 
mais proclamado do que realizado. Mas não se pode falar o mesmo 
dos últimos vinte anos no Brasil, nrr." 
para todos gera a concentração de recursos públicos para fomento de 
alguns poucos atletas, eventos ou equipes. Daí não ser estranho que 
o Brasil seja destaque em inúmeras modalidades esportivas hoje, no 
plano mundial, e ainda não tenha realizado o acesso e a permanência 
nem mesmo à escola e à educação de boa parte das suas crianças e dos 
seus jovens, assim' como nãçtcaatâ^com^olíticas públicas efetivas de 
esporte e i&z^x^mx^Jò^ é apenas uma das contradições desde 
país autoritário que se "afirma aos trancos e barrancos, como escreveu 
o antropólogo Darci Ribeiro (1985). A lamentar, entre outras coisas, a 
absurda destinação de recursos públicos para a realização dos projetos 
de alguns poucos, enquanto a maioria :i5o conta com nenhum tipo de 
favorecimento para viver com um mínimo de dignidade.' 
7 Por certo, esse é um dos principais motivos das polarizações conçra ou a favor da 
realização dc grandes eventos esportivos no Brasil, um país que ainda "adminis-
tra" a miséria, tal como os Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro, em 2007, 
fundamentalmente financiado pelo dinheiro público, a Copa do Mundo, a ser 
realizada no Brasil em 2014, e os Jogos Olí.mpicos, obstinadamente perseguidos 
H*«vi)n pmoRF f vinOR ANDRADE 0£ HtlO 
JUNTOS 
NO ESPORTE 
FARA 
TODOS. 
Ett» livro v»i max», ooTO w« « b ^ 
e «om o cofpo i„t«ffo. 
Eipomp^mTodoi. 
O exemplo do espoi-te universitário 
O esporte universitário, o qual tanibém não era uma novidade no 
penodo da ditadura, pois já exis t ianoB^£pelo menos desde os anos 
1940, fora concebido como u m / p o n t o i n S a ^ e n t r e os degraus 
mais baixos da pirâmide e o e s p ^ T a T S í r í S S (ou elite espor-
tiva), emboradegalmenteFsSS-^aTSaS-pír^o esporte estudati-
por diversos grupos. O exemplo recente da China não é um fato isolado nesse 
contexto, mas é próprio do desenvolvimento do esporte como fenómeno econô-
mico e político. 
Publicidade da 
c.impanha Juntos no 
Esporte para Todos, 
publicada na flevisw 
f iscf.' e Oespo/ios 
(MEC)./an,-dez IPS-I. 
l.'9.ii.S3,a.|2.Foto: 
C i i l o s Terrsn,ii 
A,-:.M-/o d.i Biblioieci 
íM L'ePF/USP 
•til." Imaginava-se que das íUeiras universitárias sairiam atletas que 
ajudariam a obtenção do sucesso das equipes nacionais. Novamente, 
a ditadura tentaria levar esse nível esportivo à universalização, inves-
tindo fortemente no seu desenvolvimento. Exemplo dessa tentativa dc 
criação dc uma mentalidade esportiva entre os universitários brasileiros 
está na própria obrigatoriedade da prática de Educação Física, basica-
mente calcada na prática esportiva, nos currículos das universidades, 
a partir da reforma universitária de 1968. Foram incentivadas, nos 
mesmos moldes do esporte escolar, competições locais (intercursos ou 
associações atléticas), locais, estaduais e nacionais. Os Jogos Univer-
sitários Brasileiros mobilizavam atletas de todo o país. Também eram 
realizados em caráter itinerante. 
Veja-sc o exemplo vindo do Rio de Janeiro: 
Os alunos da Escola de Educação Fíáca c Desportos da Universidade do 
Rio de Janeiro patticipam atívamcntc dos acontecimentos esportivos. Em 
1971, 63 alunos entraram em seleções universitárias estaduais. Em 1972 o 
número de alunos da Escola, em seleç6e« estaduais, subiu para 71. E ainda 
cm 1972 oito alunas fizeram parte da seleçSo universitária nacional, 
Nos Jogos Universitários Brasileiros (XII em Porto Alegre e III no Ceará), 
rcafizídos nos anos de 1971 e 1972, íespcctivamente, as equipes da Escola 
tiveram um desempenho brilhante (Podium, 1973). 
Como já foi mencionado, existe um entendimento corrente de que o 
esporte na universidade teria afunção de desviar a atenção e a energia 
dos universitários dos problemas políticos - falta de democracia, polí-
ticas de desenvolvimento, tortura, guerrilha, prisões, desaparecimen-
tos - presente no dia a dia da sociedade brasileira naqueles anos, cana-
lizando essa pretensa energia contestatória para as atividades esportivas 
competitivas. Este é outro aspecto que espera por pesquisas mais apro-
fundadas, sem as quais só podenáos reforçar uma análise esquemática 
dos processos e eventos históricos. Isso porque o esporte conheceu uma 
8 " Brasil. Legis/ação «/«rftW. Brasília: Secretana de Educaçio Física e Desportos 
do Ministério da Educação c Cultura, 1982.-
verdadeira explosão em todo o mundo a partir da década de 1960, não 
sendo exclusividade do Brasil investir nessa dimensão da cultura. No 
que se refere ao esporte universitário, ele é parte constituinte e vigorosa 
da cultura norte-americana, cultura essa que influencia há décadas o 
modo de vida brasileiro. Se somarmos a Isso o fato de boa parte das 
políticas governamentais dos diferentes governos ditatoriais estarem 
baseadas em acordos com os Estados Unidos (mas não só!), é possível 
pensar que o desenvolvimento do esporte em geral, c do esporte uni-
versitário em particular, também não pode ser reduzido de íbtma tão 
simplista à maquinação política dos militares. O eníifcntamento dos 
descontentes a ditadura fazia de forma nada sutii: prisões, exílios, tor-
turas, desaparecimentos e mortes eram as respostas efetivas das Forças 
Armadas àqueles que ousavam desafiar as determinações do ditador de 
plantão e de seus asseclas, fossem civis ou militares. 
Até que tenhamos pesquisas históricas que mostrem o contrário, 
o esporte universitário parece constar no planejamento tecnocrático 
dos governos militares como uma dimensão a mais do Setor Educa-
ção Física e Desportos, a exemplo do que ocorria em inúmeros outros 
países, principalmente nos Estados Unidos. Não é casual que se tenha 
estabelecido em 1975 o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento 
Esportivo (PNDE) , ao qual se seguiram, outros dois. 
A universidade pode ser entendida como um lugar potencial para 
formar uma mentalidade nacionalista ufanista, e o esporte um elemento 
da cultura potencialmente afeito à disseminação do nacionalismo, o que 
Interessava sobremaneira aos governos ditatoriais brasileiros. Mas, infe-
lizmente, temos que admitir que nenhuma ditadura, nenhum governo 
autoritária, como aqueles da Ditadura Militar brasileira, ou totalitário, 
abriria mão de organizar a cultura segundo as suas premissas ideoló-
gicas. Porém, a história política mostra claramente que eles podem per-
feitamente prescindir da cultura, portanto, do esporte, da Educação, 
da Ciência, das artes, para impor a sua vontade simplesmente pelo uso 
da força. No entanto, somente um esforço sistemático de desenvolvi-
mento de novas e cuidadosas pesquisas poderá corroborar ou infirmar 
essa premissa. ^ '• 
Cabe reiterar, ainda, que além da Lei n. 5.540/68, que estabelece 
a reforma universitária, e o Decreto n, 705/^9, que estabelece a obri-
gatoriedade do esporte nos cursos superiores, o desenvolvimento do 
esporte e da Educação Física no Brasil passa necessariamente pela ins-
tituição militar. A maioria das escolas de Educação Física, que eram 
apenas 11 em 1967, tem uma origem militan Muitos dos professores 
das escolas de Educação Física eram militares, os quais têm na sua for-
mação c amação, o esporte e as atividades físicas era geral como uma 
das pedras de toque. A reforma universitária, ainda que não seja uma 
obra exclusiva dos militares, mas também de empresários com o con-
sentimento de largas parcelas da sociedade brasileira, foi definida no 
âmbito das políticas da ditadura. As próprias diretrizes internacionais 
para o esporte, como vimos, emanavam dc organismos internacionais. 
Um deles era a academia olímpica que também tem forte vínculo com 
a tradição militar, assim como várias das doutrinas que estão na raiz 
da chamada Educação Física, hoje. 
Assmi, mais do que uma "maquinação conspiratória da Ditadura 
Militar", o desenvolvimento do esporte naqueles anos, a sua presença de 
forma orgânica nas políticas estatais, parece reforçar a tradição, o vín-
culo longevo entre atividades corporais (também esportivas) e ideário 
militar. Isso talvez ajude explicar a presença de uma dimensão especí-
f ica iiu .oriranizaçâo esportiva brasileira, aquela do esporte militar, do 
qual não trataixi ••K.r» espaço. 
O e.<;porte de alto rendimento 
Um exemplo claro das preocupações dos governos militares com o 
desenvolvimento do esporte está na absurdo número de leis, <lecretos, 
portarias etc. que tentavam regulamentar este setor.no Bra.sil. Esse tam-
bém não c um fenómeno novo ^ âcnmpar.har o legado do professor Ine-
zil Penna Marinho rer;«mcnte. pod<' dar uma diniensão do que se fez no 
plano lcr;:.J;itivo neste país para o desenvolvimento do esporte, desde o 
.sCLuio X IX , dada a expressiva contribuição de Inezil para.o levantamento 
HAH oa mou í vino» mmí oe ma 
de documentos (fontes históricas preciosas) para a compreensão do pro-
cesso de afirmação da Educação Física e do esporte neste país." 
Mas um pequeno volume organizado pelo próprio Ministério da 
Educação e Cultura, sob os auspícios da Secretaria de Educação Física 
e Desportos, dá uma amostra do afS organizador do Estado naque-
les anos de obscurantismo político. Além do jjróprio texto da Política 
%ciaGáiᣠ.Mm%£mÍ^ft .sXiSSB8^ na L e i n. 6.251 de 
8 de outubro de 1975, um conjunto de outros texfôsl&ffaiTversTso^^ 
.^Loteria Esgortj^4^,ç,4Jgsthia^^^^ esporte 
escolar e universitário, sobre o esporte comunitário, classista e rnííitarT 
Chegava-se ao requinte de estabelecêTpêlam'I^ãlTqirãhto^c clube 
(ou seria time de futebol?) ganharia percentualmente, em relação aos 
outros clubes de cada estado, nos rateios da Loteria Esportiva. Assim, 
o Estado cumpria um papel dc estabelecer um ranking de clubes/times, 
em ordem decrescente de valores a serem destinado»; n^r^,3^.1 manu-
tcnçãu, lunking&sic que não obedecia qualquer critério "técnico" ou 
baseado na "tradição", na história do esporte (futebol) brasileiro. 
Dessa maneira, sabemos que os clubes de São Paulo, Rio dc Janeiro 
eMinas Gerais, recolhiam 49,96% dos recursos destinados para o con-
junto dos clubes brasileiros contemplados pela lei. Na lista estabelecida 
pelo governo, estes estados teriam 42 clubes contemplados coin recur-
sos (São Paulo, 20 clubes; Rio e Minas, 12 clubes cada). Os outros 
50,04% dos recursos eram divididos entre ovitros 161 clubes espalhados 
por todos os estados brasileiros, numa clara demonstração dc fortale-
cimento de quem já é forte e de concentração dc recursos, o que con-
tradiz a politica anunciada pelos militares! Ainda neste plano estatís-
rico, a título de exemplo, é possível observar a mesma discrepância no 
interior de cada .estado brasileiro. Assim, no estáâo dc São Paulo, os 
três primeiros clubes conttíttipi.u-... _ • . . c~ o 1 
r , " .sequencia, o bao Paulo 
Futebol Clube (13,04%), o Sport Club Cormthians 1 ... .-14%) 
e o Santos Futebol Clube (11,12%). Aos três, eram destinu< os .'sb.u». 
dos recursos. Aos três últimos clubes da listagerii - Esporte Clube São 
Bento, Associação Ferroviária de Esportes e Clube Atlético Juvcntus -
caberia apenas 5,09% dos valores destinados ao estado. 
No caso de Minas Gerais o quadro é ainda mais concentrado. Os 
dois clubes que aparecem no topo da lista são Clube Atlético Mineiro 
(28,38%) e Cruzeiro Esporte Clube (26,62%), angariando 55% dos 
recursos, enquanto os últimos três clubes-Tupi Foot-ball Club, Gua-
rani Esporte Clube e Sociedade Esportiva Guaxupé - recebiam 5,27% 
dos valores. 
No Rio de Janeiro não era.diferente. O Clube de Regatas do Fla-
mengo (30,14%)e o Clube de Regatas Vasco da Gama (22,9%) recebiam 
53,04% dos valores destinados aos 12 clubes do estado. Os últimos três 
clubes listados - Campo Grande Atlético Clube, Madureira Esporte 
Clube e Olaria Atlético Clube - recebiam 5,33% dos valores. 
Ainda que não seja o espaço adequado para essa discussão, esses 
dados extraídos de documentos oficiais do Estado ajudam a colocar 
^rr. .".uspf"??.'? n propalado peso da "tradição" nas decisões afeitas ao 
esporte, nesse caso, o futebol, grande esporte nacional. Isso porque, 
na sua faina de estabelecer o "novo" sem apagar o que é "tradicional", 
a Ditadura Militar ajudou a inventar tradições ou afirmar tradições 
inventadas. Ainda que não possa ser reduzida a essa dimensão, parece 
que a "grandeza" ou a "tradição" de um clube estão em estreita relação 
com a sua capacidade de propaganda e, sobretudo, de angariar largos 
nacos dos recursos públicos. O que é mais "tradicional"!* O Clube de 
Regatas do Flamengo ou o Bangu Atlético Clube, no caso do Rio de 
Janeiro!" O São Paulo Futebol Clube ou a Associação Atlética Ponte 
Preta, no caso de São Paulo? O Clube Atlético Paranaense du o Ope-
rário Ferroviário Esporte Clube, no caso do Paraná? 
Ou seja, a pretensa neutralidade das decisões técnicas, da tecnocra-. 
• 1 I . c/uiocratas, não passa de um 
cia, da qual se jactavam os rnil-^-- • f 
embuste din*-' "^''P^ *'^ ^^ ^®^ das relações políticas. Também nesse 
. - . ajeria a pena investir em pesquisas que ajudassem a entender por-
que clubes, equipes e times centenários desaparecem por completo até 
mesmo do imaginário da sociedade brasileira, enquanto outros, com 
grande habilidade para circular nos centros de poder e financiamento 
públicos, não só não, fecham as portas mas constantemente, em cada 
nova crise financeira, vêm à mídia para invocar a tradição e exigir do 
Estado apoio (sobretudo económico) em algo que é, basicamente, uma 
iniciativa privada. Imagine-se essa prática em um regime absolutamente 
avesso à transparência e afeito á arbitrariedade no trato daquilo que é 
público, como era o caso dos governos militares. 
Um exemplo claro do anseio de produzir uma nação olímpica 
com recursos do Estado nos é dado a partir de um texto publicado no 
número 41 da Revista Brasileira de Educação Física e Desportos, em 1979. 
No imaginário do esporte produzido pela mídia, é fácil naturalizar 
uma determinada situação ou condição, apagando as idas e vindas que 
a história nos reserva. Assim, talvez para muitos, o Brasil sempre tenha 
sido uma das principais seleções do voleibol mundial, como estamos 
acostumados a ver. Mas menos de trinta anos atrás era possível ver q 
.seguinte diagnóstico: "Os últimos campeonatos internacionais de voli-
bol masculino - categoria adultos - tiveram suas chamas apagadas, e 
os resultados, além de reafirmarem algumas nações como verdadeiras 
potências volibolísticas (sic),serviram para mostrar um Brasil ainda 
distante dos nossos anseios" (Caldas e Sevciuc, 1979, p.37). 
Citando os exemplos do Japão e da União Soviética, duas potências 
do voleibol mundial naqueles anos, o texto continua: 
Não se pode negar um progresso bastante considerável que se assenta na 
filosofia adotada pelo Governo Federal na canalização de verbas significativas 
para o desporto a^nador, na dedicação dos dirigentes, na especialização dos 
tcrnicos e, principalmente, no sacrifício dos atletas que, inseridos em nossa 
infra-cstrutura sócio-econômica, participam das atividades desportivas, para-
lelamente às profissionais (Caldas e Sevciuc, 1979, p.37). 
Advogava-se, assim, a necessária profissionalização do esporte bra-
sileiro, bem como eram cnakecidas as iniciativas dos governos milita-
res. A União Soviética era tomada como exemplo, tal como os demais 
países comunistas, para a defesa de que o estado deveria arcar com o 
"ordenado mensal" dos atletas, além de criar as condições ótimas pra 
o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. Já no caso do Japão, uma 
potência capitalista, os atletas que se destacavam despertavann os "olha- " 
res cobiçosos" do que se chamava "meio fabril", que na verdade eram 
grandes corporações industriais. Discutindo as duas perspectivas, os 
autores acabam por destacar a importância da presença do Estado na 
produção e na manutenção de equipes olímp^icas, em consórcio com a 
iniciativa privada. O tom moral daqueles anos não permitia que a gestão 
do esporte fosse simplesmente entregue ao mercado, como viria apa-
rentemente ocorrer nos anos seguintes. Aparentemente porque, como 
.Cgur-i IJ.'t 
Compilação de 
documentos 
internacionais sobro 
o esporte organizada 
pela Universidade 
Federal do Paraná em 
1985. (Reprodução) 
410 HAM ML PRIOÍE E VICTOR AHDKíDt DE HELO 
vimos, mesmo o esporte de alto rendimento não prescinde de grandes 
recursos públicos diretos e indiretos, ainda hoje. 
Dc todo modo, é possível observar como, a despeito de reiterados 
apelos em prol da excelência esportiva brasileira, mesmo uma modali-
dade como o volibol só conheceu um desenvolvimento exponencial a 
partir de algumas raízes lançadas pelas políticas da Ditadura Militar 
brasileira. Ou seja, apesar das constantes afirmações que o esporte é 
uma iniciativa privada, o ethos esportivo desenvolvido pelos militares 
tomou o esporte um "problema nacional" e uma "coisa nossa". Não por 
acaso se observa o Congresso Nacional brasileiro mobilizado em torno 
de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do futebol, como 
ocorreu há poucos anos. Não por acaso o dinheiro e o espaço públicos 
frequentemente são carreados para o financiamento de grandes empre-
sas, incluáve multinacionais, como no exemplo da equipe de volibol do 
Rexona, financiada por longos anos pelo governo do estado do Paraná 
na gestão de Tal'"'" Lerner, ainua L | U V v-om a sua partida de Curitiba 
nada tenha ficado para usufruto da população. No Brasil o esporte é 
um assunto de Estado — era alguns casos, do assalto do Estado - e a 
Ditadura Militar parece ter dado organlcidade a este setor do plane-
jamento estratégico das políticas públicas. Assim, é possível pensar no 
sucesso daquelas políticas. 
Um caso do futebol 
As relações entre futebol. Estado e Forças Armadas estão longe de 
serem bem compreendidas, até porque ainda se produz história "apenas" 
pela memória nesse campo. Se a memória é um dos pontos de partida 
da compreensão da História, a prática memorialfstica, tão difundida no 
Brasil nos estudos sobre o esporte, pouco ajuda a compreender o desen-
volvimento de processos históricos complexos. 
Assim, disseminou-se uma ideia de que João Saldanha — o João Sem 
Medo —, técnico da seleção brasileira que disputava as eliminatórias da 
Copa do Mundo de 1970, teria deixado o cargo por divergência com 
HISTORIA DO ESPORTE HO BBASll 
o general Emílio Garrastazu Medici, então ditador. Essa versão está 
presente em várias memórias escritas sobre o treinador e^ sobrc o fute-
bol brasileiro e foi assimilada como um sinónimo da jitgéISBcii dos 
militares na esfera esportiva. Ora, primeiro não é demais relembrar 
dos vínculos multo estreitos entre esporte e ideário militar, com todas 
as características que definem aquele ideário; hierarquia, disciplina, 
autoridade, comando, obediência, regras etc Expressão dessa relação na 
cultura brasileira é o fato do Conselho Nacional de Desportos (CND) 
e da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) , terem à sua frente, 
por muito tempo, militares, tal como foi o caso de Heleno Nunes. 
Mas se voltarmos os olhos para o presente veremos que a ingerên-
cia não precisa de ura título de general, brigadeiro ou almirante. Basta 
observarmos a prevalência dos acordos financeiros, da diniensão eco-
nómica sobre as relações esportivas, dimensão essa que permite o veto 
a determinados perfis detécnico para as equipes (lr»d'viiive as scleçScG 
nacionais), a exclusão dc jogadores melhor qualificados, a preferência por 
jogadores tecnicamente questionáveis, mas amparados em "bons" con-
tratos, os acordos em torno de calendários, viagens, apresentações etc. 
Com isso quero problematizar uma forma fácil de produzir uma 
versão da história, aquela que se baseia em uma dimensão quase literária 
dos processos históricos, para a qual a verdade se produz por reiteração 
de determinadas representações. Obviamente não descarto o potencial 
do esporte como matéria jornalística ou como material potencialmente 
literário. Mas a história não é apenas Invenção, ainda que requeira 
grande dose de imaginação. 
Não é preciso muito para crermos que um regime que interferia 
sobre as dimensões mais elementares da vida em sociedade, como o 
direito de ir e vir e o voto, por exemplo, influiria também sobre o forte 
imaginário propiciado pelo futebol. Mas isso não é prerrogativa dos 
governos militares, e atletas e treinadores continuam a subir a rampa do 
Palácio do Planalto, a qual continua fechada aos mais diversos segmen-
tos dos trabalhadores ou aos movimentos sociais organizados. Qual-
quer medalhista em uma competição internacional sobe a rampa, que 
não acolhe o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) . D a 
mesma maneira que a chamada "scleção canarlnho" foi recebida com 
furor em Brasília e cada jogador ganhou um automóvel do governador 
do estado de São Paulo. Esporte e demagogia, esporte e populismo 
não são prerrogativas das ditaduras ou de um país como o Brasil. Pelo 
menos, desde o nacional-socialismo, estas souberam utilizar muito bem 
o potencial mobilizador do esporte a seu favor, inclusive como arma de 
desmobilização dos. descontentes. 
Nosso desafio émergtílhar nas fontes e verificar se, de fato, por 
exempio, Saldanha afastou-se da seleção brasileira por desavenças com 
o general de plantão ou por motivos outros, afeitos ao seu caráter intem-
pestivo ou às agruras inerentes à sua função de técnico, Lèmbre-se de 
que o desempenho da scleção brasileira de fiitcbolnas elirninatórias para 
Copa de 1970 era pífio, e boa parte da mídia estava preocupada com 
uma possível não classificação da equipe, que viria a ganhar o terceiro 
uiiiipcui«ã!:2 rr/ãíuJl-il íis Mixlv-u, cm 1570. Aliás, nao c demais lem-
brar que João Saldanha,.comunista assumido e desafeto dos militares, 
ministroit uma aula em 1969 para os alunos da Escola Superior de Edu-
cação Física do Paraná, o .que gerou protestos do diretório académico, 
inconformado com a presença de um comunista, nas dependências da 
escola! Medici não era o único autoritário! 
Nesse plano, não é pouco significativo que a seleção brasileira que 
foi à Copa do México, em 1970, contasse com uma comissão técnica 
com fortes contornos militares. Entre os seus representantes contamos 
com Cláudio Coutinho, que era militar e viria a ser o técnico da seleção 
brasileira da Copa de 1978, na Argentina, e Carlos Alberto Parreira, 
que também foi militar e se tornaria um dos técnicos mais respeitados 
e caros do mundo, campeão mundial com a seleção brasileira, em 1994, 
nos Estados Unidos. 
Não há como separar o desenvolvimento do esporte brasileiro 
das influências militares e dos seus usos ideológicos. Mas isso não é 
o mesmo que admitir leituras conspiratórias que vecm no esporte o 
grande trunfo da Ditadura Militar para consignar os seus objetivos 
políticos. O esporte não era mais do que um dos planos de intervenção 
da Ditadura, que agiu na direção de afirmar-se pela adesão de grandes 
parcelas da população brasileira, ao mesmo tempo em que reprimia com 
crueldade os descontentes com os rumos da pcrlítica daqueles anos. O 
resultado da combinação dessas dimensões produziu um vácuo demo-
crático de 21 anos na cena política brasileira, ao mesmo tempo em que 
abriu as portas do Brasil para grandes fenómenos de massa, tais como a 
cultura do shopping center, com todos os seus subprodutos, a televisão 
e a mentalidade esportiva. Se em 1950 o Rio corria para o Maracanã 
(cf. Moura, 1998), no período pós-Ditadura Militar, vimos afirmar-sc 
um forte senso esportivo na população brasileira, incentivada a correr 
em todas as direções. Mas o que as pessoas fizeram ou fazem do seu 
tempo livre ainda continua a desafiar o pensamento burocrático, seja 
de civis ou militares, de representantes da mídia ou académicos. Parece 
que as pessoas não correm tanto quando gostariam os apologetas do 
esporte de ontem e de hoje. 
Se continuamos não sendo uma nação olímpica, nos moldes alme-
jados pelos mifirares e por laro^3.<; parcelas d? mídia nacional, fomos 
inoculados pelo discurso da vida ativa, tornamo-nos grandes consu-
midores de material esportivo e de estimulantes, vitaminas, complexos 
medicamentosos, cirurgias estéticas etc. Além disso, "refinamos" nossos 
gostos televisivos e passamos a adquirir pacotes "personalizados" para 
assistir determinados eventos esportivos que nos ensinam que, ao con-
trário do ufanista de outrora, que propagandeava que um país se faz 
com homens e livros, um país se faz com homens e mulheres esporti-
vos. Tudo isso c subproduto da indústria do esporte e estava delineado 
na política da Ditadura Militar brasileira, bastante sintonizada com o 
que ocorria no mundo. Nesse sentido, não há como negar o sucesso das 
políticas esportivas da Ditadura Militar brasileira. 
Ainda que as análises históricas não possam desconsiderar contex-
tos determinados, não é possível compreender os fenómenos locais sem 
uma perspectiva ampla. Sobretudo, no caso do esporte, ele é produto 
de e produziu uma sensibilidade "moderna", ativa, da ação, da energia, 
da vontade, do sucesso, da vitória, cara à sociabilidade prevalente no 
Brasil e no mundo, ainda hoje. Por outro lado, a ideia de uma potência 
olímpica está longe de se materializar no Brasil. Mesmo com a para-
HARY DEL PMORE E "ÍKTOR AHOÍAOt Oí HEIO 
fernálJa legal dos militares para o setor, com uma agressiva política de 
publicações, com campanhas massivas, com a destinação de abundantes 
recursos-públicos para o meio esportivo, o Brasil não realizou o projeto 
daf^itírtáira com relação à formação de equipes esportivas de altíssimo 
nível baseada em uma política geral de esporte para todos. Ao contrário, 
assim como no caso do acesso à saúde c á Educação, a prática de ati-
vidades físicas esportivas não está garantida como um direito dc todos 
para além do texto legal. A falta, ainda hoje, de políticas culturais (aqui 
incluído o esporte) que cheguem a todos, no Brasil, é um acinte, ainda 
que este seja um dos poucos países do mundo que tem um ministério 
específico para o esporte, um descalabro, o que dc longe supera a sanha 
burocrática dos governos militares. 
Assim, concluo defendendo que a Ditadura Militar implementou 
uma política esportiva que, por um lado, conquistou corpos e mentes 
para a "causa" esportiva, menos no que se refere à prática dc atividades 
físicas, e mais no tocante ao consumo do produto esDortivo de m-iq-sa. 
Isso só é possível graças ao desenvolvimento de uma meiUalidadt cspor-
tvua. Por outro lado, não realizou a vmiversalização do acesso ao esporte, 
nem mesmo conseguiu garantir a centralidade do Estado na sua gestão, 
ainda que se proclamasse nacionalista e estadista. Ou seja, a ditadura, 
como em outros setores, como o educacional, por excn\p!o, preparou 
o terreno para a tomada do estado pela iniciativa privada, em muitos 
casos, multinacional, a qual está preocupada com as vantagens que 
pode auferir do desporto dc alto rendimento, mas não tem qualquer 
Interesse em investir em políticas públicas (de .saúde, cultura, educação 
ou esporte) para o conjunto da população, 
Claro está que é preciso percorrer também os pontos de contato 
entre os usosque dele se faz e as prescrições oficiais para o esporte. 
Tenho clareza que os usos não foram apenas os autorizados, como tentei 
mostrar em um estudo anterior sobre as práticas escolares de Educação 
Física (cf Taborda de Oliveira, 2003). Mas o estudo desses usos tam-
bém deve abdicar de análises abstratas, por demais paternalistas com 
as pessoas ditas comuns. Isso não significa não admitir o arbítrio do 
poder dos militares. Mas também é preciso analisar o desenvolvimento 
•mitóiiiA 00 tspORrt «o bras i i 
político e cultural das sociedades no âmbito de tendências históricas 
mais complexas. Não é demais voltar a Carlo Ginzburg: 
As explicações de cunho conspiratório para os movimentos sociais s5o 
sempre simplistas, quando não grotescas ... Mas os complôs existem: são, 
sobretudo hoje, uma realidade cotídíana. Conspirações de serviços secretos, 
dc terroristas ou de ambos: qual é o seu peso etetivo!* Quais dão certo, quais 
fracassam cm seus verdadeiros objetivos e por quê? A reflexáo acerca desses 
fenómenos e de suas implicações parece curiosamente inadequada. No final 
das contas, o complô é apenas um caso extremo, quase caricatural, de um 
fenómeno muito mais complexo; a tentativa de transformar (ou manipular) 
a sociedade. As dúvidas crescentes sobre a eficácia c os resultados de projetos 
quer revolucionários quer tecnocráticos obrigam a repensar tanto o modo pelo 
qual a ação política se insere nas estruturas sociais profundas quanto sua real 
capacidade de modificá-las. Vários indícios fazem supor que os historiadores 
atentos aos tempos longos da economia, dos movimentos sociais, das men-
talidades, tenham recomeçado a refletir sobre o significado do evento em si 
(também, mas nío necessariamente, político) (Ginzburg, 1991, p.23-24). 
Mirando a cultura e uma das suas manifestações, o esporte, o desa-
fio é localizar documentação, enfrentá-la no esforço de Interpretação e 
procurar entender, pela via da História do Esporte e dos seus usos, o 
que fez e faz o Brasil, Brasil. Não o país da apologia televisiva espor-
tiva ou da demagogia populista do Ministério do Esporte, mas o país 
real, às vezes esquecido ou oculto em arquivos e memórias dos mais 
diversos. Sabemos um pouco sobre o que a Ditadura fez pelo esporte 
no Brasil. Isso pode nos ajudar a entender o que a ideologia esportiva 
faz conosco ao longo da nossa vida, a ponto de nos transformarmos no 
país que somos. 
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Os anos 80, a juventude e os esportes radicais 
Rafael Fortes 
A prática dos esportes radicais no Brasil não começa na década de 
1980. Portanto, o que há de especial no período? Em primeiro lugar, 
o aumento exponencial do número de pessoas - a maioria crianças, 
adolescentes e jovens — que se encantaram com os esportes radicais e 
aderiram a eles. Segundo, a visibilidade alcançada e os espaços conquis-
tados em meios de comunicação já existentes (emissoras de televisão, 
rádio), bem como a criação de produtos audiovisuais e novos veículos. 
Terceiro, a mudança na estrutura de algumas modalidades, rumo à 
profissionalização, o que foi conseguido tanto por esforço dos agentes 
envolvidos com elas quanto pela base económica proporcionada pelo 
Gonsum.o em massa de produtos ligados aos esportes radicais, O exem-
plo emblemático é o surfe, porém as modalidades que posteriormente 
sofreram refluxos estiveram em alta em algum momento dos anos 80, 
Mas que esportes eram esses? 
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