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GRADUAÇÃO 2017.1 CRIME E SOCIEDADE AUTOR: THIAGO BOTTINO COLABORAÇÃO: PALOMA CANECA, ARTHUR LARDOSA DOS SANTOS DAVID CASZ SCHECHTMAN Sumário Crime e Sociedade BLOCO 1 – DIREITO PENAL .................................................................................................................................... 8 AULAS 01 E 02 — PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (TAXATIVIDADE, RESERVA LEGAL, VEDAÇÃO AO USO DO COSTUME; VEDAÇÃO DE ANALOGIA) .............................................................................................. 8 AULA 03 — PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (ANTERIORIDADE) ......................................................................................... 24 AULA 04 — PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (INSIGNIFICÂNCIA) ........................................................................................ 46 BLOCO 2 — SISTEMA PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............................................................................... 65 AULAS 05 A 07 — PREPARAÇÃO PARA O JÚRI SIMULADO ............................................................................................ 65 BLOCO 3 — DIREITO PROCESSUAL PENAL ............................................................................................................... 68 AULA 08 — PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (VEDAÇÃO DE PROVA ILÍCITA) .......................................................... 68 AULA 09 — PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA) ........................................................... 78 AULA 10 — PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (VEDAÇÃO DE AUTOINCRIMINAÇÃO) .................................................. 83 AULA 11 — ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO PENAL ................................................................................................ 87 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 3 1 UNGER, Roberto Mangabeira: Uma Nova Faculdade de Direito No Brasil. in http://direitorio.fgv.br/publicacoes/ cadernos-fgv-direito-rio. Também disponível em: www.law.harvard.edu/ unger/portuguese/docs/projetos6.doc I — APRESENTAÇÃO DO CURSO A disciplina Crime e Sociedade constitui o primeiro contato que o estudante terá com o Direito Penal e Processual Penal no ciclo de estudos dessa área do direi- to no curso da FGV Direito Rio. A concepção do curso de Direito Penal da FGV Direito Rio espelha-se na idealização original de Roberto Mangabeira Unger: “O direito penal deve ser dividido em três partes. A primeira parte estudaria os conceitos básicos do direito e o pequeno número de regras que perpassam toda a tipologia de crimes. A segunda parte trataria das normas e práticas usadas para controlar a violência comum, sobretudo aquela que se difunde entre as partes mais pobres e mais desorganizadas da população. É um estudo que tem de abranger a discussão da polícia, das prisões e da natureza e efeitos do encarceramento episódico e qua- se arbitrário que caracteriza o sistema brasileiro. Na terceira parte do curso, o tema seria os crimes típicos dos endinheirados (ou aspirantes a tal condição), não só os crimes reconhecidos de colarinho branco mas também aqueles que resultam da violação do direito de proteção ao consumidor e de repressão ao abuso do poder econômico” 1 A partir dessa concepção, o ciclo de estudos de direito penal da FGV Di- reito Rio é dividido em quatro disciplinas (Crime e Sociedade, Direito Penal Geral, Penas e Medidas Alternativas e Direito Penal Econômico), ao longo dos dois primeiros anos da formação do aluno. Nesta primeira parte do ciclo (disciplinas do primeiro ano) serão abordados os conceitos fundamentais do direito penal, noções de processo penal e criminologia. Ainda serão aborda- das as questões referentes à adequação do sistema penal ao Estado Demo- crático de Direito. No segundo ano do curso serão estudados as penas e os crimes em espécie, divididos entre os crimes clássicos e econômicos. O objetivo da disciplina Crime e Sociedade é refletir sobre as funções de criminalizar condutas, processar os indivíduos e impor penas. Essa atividade é exclusiva do Estado, mas para ser legítima deve observar limites e para iden- tificar esses critérios serão propostas as seguintes questões: • A justiça é um conceito moral ou jurídico? • Quem deve ser encarregado da execução da justiça, o Estado ou o indivíduo? • Quais as regras que devem ser observadas quando se constrói um sis- tema penal? A partir dessas perguntas, e especialmente a partir da última delas, se- guem-se outros questionamentos: “por quê”, “como” e “quando” criminalizar comportamentos; “por quê”, “como” e “quando” processar pessoas; “por quê”, “como” e “quando” punir indivíduos. Ao buscar respostas para tais questões, 1. UNGER, Roberto Mangabeira: Uma Nova Faculdade de Direi- to No Brasil. in http://direitorio.fgv. br/publicacoes/cadernos-fgv-direito- -rio. Também disponível em: www.law. harvard.edu/unger/portuguese/docs/ projetos6.doc CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 4 os alunos refletem sobre os princípios fundamentais que orientam o Direito Penal e Processual Penal. Essa reflexão será estimulada a partir da comparação entre o arranjo teóri- co constitucional e o funcionamento efetivo do sistema. Nesse ponto, desta- ca-se a utilização de casos paradigmáticos como forma de análise do sistema ideal e do sistema efetivo. No âmbito do Direito Penal, são estudados temas como segurança jurí- dica, coerência legislativa e amplitude dos poderes do juiz na aplicação da lei penal. Na seara do Direito Processual Penal, destacam-se os temas como construção da verdade, conflito entre garantias fundamentais e devido pro- cesso legal. Por fim, serão estudados também alguns conceitos de política criminal — especialmente a relação existente entre o sistema penal, a democracia e o Estado de Direito. A finalidade é questionar se existe um modelo de sistema punitivo que se coadune com os postulados básicos do Estado Democrático de Direito, criando um “modelo ideal” de sistema punitivo: quanto mais próximo desse modelo ideal estiverem as leis e as práticas policiais e judi- ciais, maior o grau de democracia e segurança jurídica de um determinado sistema punitivo. Transversalmente às discussões acima, surgem temas como a filtragem constitucional no Direito Penal e Processual Penal; o recurso aos postulados da ponderação, proporcionalidade e razoabilidade na construção de decisões em matéria penal; e, a utilização de argumentos de “emergência” e “exceção” como fundamento de sentenças criminais. Todos esses temas conectam o Di- reito Penal com o Direito Constitucional, a Teoria do Direito e a Teoria da Democracia, reforçando uma abordagem interdisciplinar da matéria. II — METODOLOGIA DAS AULAS Cada aula terá como ponto de partida um ou mais casos concretos cuja análise será objeto de debates em sala de aula. Os alunos deverão elaborar, para cada caso estudado, uma ficha de análise, contendo as informações prin- cipais do caso. A pretensão é suscitar diferentes possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto. Essa metodologia aposta na capacidade do aluno de graduação da FGV Direito Rio de discutir, com profundidade, os temas mais relevantes do direito penal e processual penal da atualidade. O uso de casos concretos que possuem ligação com situações cotidianas traz a realidade da aplicação do direito para dentro da sala de aula e estimula a participação do aluno no processo de aprendizado, criando-se um ambiente de interatividade entre aluno e professor e aprimorando sua capacidade de CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 5 raciocínio lógico-jurídico. O objetivo dessa metodologia é habilitar o aluno a identificar problemas e resolvê-los de forma pragmática, sem deixar de se posicionar criticamente. A fim de orientar o aluno no estudo do caso concreto,cada caso estudado deverá ser examinado e organizado segundo os critérios definidos na tabela abaixo: FICHA DE ANÁLISE 1. Identificação do caso Qual o tribunal que prolatou a decisão e qual o órgão desse tribunal; qual o julgador relator; qual o resultado da votação (votos vencidos, votos concor- rentes, votos majoritários); qual a data do julgamento. 2. Relato da situação processual Se houve decisões judiciais anteriores e o que decidiram; quais as deci- sões das cortes que examinaram o caso antes de sua chegada ao Supremo Tribunal Federal. 3. Pretensão das partes Resumo dos argumentos indicando qual a solução que cada parte pleiteia no caso concreto. 4. Classificação das normas Identificar e classificar as normas jurídicas em discussão, para saber o re- gime jurídico aplicável. 5. Questões jurídicas em discussão Identificar a questão jurídica que está em discussão (ou se for mais de uma, fazer isso com todas). 6. Decisão do tribunal e sua motivação Expor a decisão (parte dispositiva) em comento e seus fundamentos. III — AVALIAÇÃO A avaliação será realizada a partir de duas notas (N1 e N2). A N1 será composta por duas atividades. A primeira atividade, com valor de 3,0 pontos, consiste na participação em sala de aula e elaboração de três fichamentos, entregues antes do início da respectiva aula. Essa avaliação pretende estimular que o aluno esteja preparado para parti- cipar de todas as aulas e que contribua para o desenvolvimento das atividades. Participações inoportunas ou deficientes não serão pontuadas positivamente. Alunos podem ser escolhidos aleatoriamente — ou se apresentar de forma voluntária — para relatarem oralmente o caso da aula. No caso da apresen- tação oral do caso, o aluno deverá apontar as principais questões decorrentes do caso concreto ou do texto relacionado com os temas jurídicos tratados. Os casos concretos são julgamentos ocorridos no Supremo Tribunal Federal ou de outros tribunais. As discussões geradas a partir das situações concretas CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 6 retiradas dos cases são enriquecidas com os fundamentos doutrinários forne- cidos pelos textos de apoio e pela exposição do professor. A segunda atividade, com valor de 7,0 pontos é a atuação dos alunos nos júris simulados com base no livro de leitura obrigatória. Serão utilizados os seguintes critérios para a correção do trabalho: formais (respeito ao tempo to- tal e individual) e substanciais (quantidade e qualidade das teses apresentadas; clareza/foco/escolha nos fundamentos da acusação; clareza/foco/capacidade de rebater o argumento da acusação; coerência entre os argumentos apresen- tados). Os alunos que se sobressaírem nessa 1ª etapa serão selecionados para a final do júri simulado, que consistirá em uma competição com a Direito GV. A participação no júri simulado é limitada a 10 alunos, escolhidos dentre aqueles que tenham apresentado melhor rendimento nas etapas anteriores. O corpo de jurados será composto por professores, alunos de outros períodos e convidados externos. A N2 será composta por uma prova escrita, dissertativa e individual, que será aplicada ao final do curso. IV — BIBLIOGRAFIA A leitura obrigatória está limitada aos textos da apostila, aos casos que serão debatidos e ao livro que serve de base para o júri simulado. A relação abaixo é uma bibliografia complementar, destinada àqueles que desejarem aprofundar seu conhecimento sobre os temas trabalhados em sala. • AMARAL, Thiago Bottino Do: Notas para um sistema punitivo de- mocrático. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 385, p. 185-201, 2006. • DERSHOWITZ, Alan: The Torture Warrant. In New York Law School Law Review, vol. 48, issue 2, 2004. • GARAPON, Antoine: Crimes que não se podem punir nem perdo- ar. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, páginas 161/191. • ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus: Introdução ao Direito Penal e Processual Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. V — PLANO DE ENSINO As aulas da disciplina Crime e Sociedade ocorrerão sempre às 3as e 5as feiras, no horário de 14:00 às 15:40 durante o primeiro bimestre de aulas. A tabela de aulas abaixo permite ao aluno se preparar adequadamente anteci- pando as leituras que servirão de base às discussões em sala de aula. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 7 BLOCO 1 – DIREITO PENAL 3ª Feira|13/fevereiro Semana de Ambientação 5ª Feira | 15/fevereiro Semana de Ambientação 3ª Feira | 21/fevereiro Apresentação do curso Aula 01 – Tema: Princípio da legalidade em matéria penal (taxatividade) Caso: Habeas Corpus nº 70.389, do Supremo Tribunal Federal. 5ª Feira | 23/fevereiro Aula 02 – Tema: Princípio da legalidade em matéria penal (reserva legal e veda- ção de analogia) Caso: Habeas Corpus nº 70.389, do Supremo Tribunal Federal. 3ª Feira | 07/março Aula 03 – Tema: Princípio da legalidade em matéria penal (anterioridade) Caso: Recurso de Habeas Corpus nº 81.453, do Supremo Tribunal Federal. BLOCO 2 – DIREITO PROCESSUAL PENAL 5ª Feira | 09/março Aula 04 – Tema: Princípio da presunção de inocência Caso: Doze homens e uma sentença (filme) e Amanda Knox (documentário) 3ª Feira | 14/março Aula 05 – Tema: Princípio da vedação de prova ilícita Caso: Habeas Corpus nº 5.100, da Suprema Corte de Israel 5ª Feira | 16/março Aula 06 – Tema: Princípio da vedação de autoincriminação Caso: 13ª Emenda (documentário) BLOCO 3 – SISTEMA PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 3ª Feira | 21/março Aula 07 – Visita externa a um julgamento do Tribunal do Júri. 5ª Feira | 23/março Aula 08 – Tema: Análise Econômica do Direito Penal 3ª Feira | 28/março Aula 09 – Aula de encerramento BLOCO 4 – AVALIAÇÕES 5ª feira | 30/março Prova escrita 5ª feira | 30/março Vista de prova 3ª feira | 20/junho Prova de 2ª chamada 3ª feira | 04/julho Prova final BLOCO 5 – JÚRI SIMULADO 6ª Feira | 24/março (EXTRA 14h-17h) Júri Simulado – Rodadas classificatórias 2ª Feira | 27/março (EXTRA 14h-17h) Júri Simulado – Rodadas classificatórias A DEFINIR JÚRI SIMULADO – Final no Rio de Janeiro Disputa contra os alunos da FGV Direito SP (DATA A COMBINAR COM SP) A DEFINIR JÚRI SIMULADO – Final em São Paulo Disputa contra os alunos da FGV Direito SP (DATA A COMBINAR COM SP) CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 8 2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal : parte geral, 1 – São Paulo : Saraiva, 2012. Pp. 89-91 3 Ibid. BLOCO 1 – DIREITO PENAL AULAS 01 E 02 — PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (TAXATIVIDADE, RESERVA LEGAL, VEDAÇÃO AO USO DO COSTUME; VEDAÇÃO DE ANALOGIA) I — INTRODUÇÃO Um dos mais importantes princípios comuns a quase todas as áreas do Direito é o princípio da legalidade. Este, como outros princípios, tem como uma de suas funções primordiais a limitação do poder estatal. Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt ao parafrasear Milton Cairoli Martinez: “O princípio da legalidade é um imperativo que não admite desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigências de justiça, que somente os regimes totalitários o têm negado.”2 O princípio da legalidade pode ser expresso de diversas formas. A primeira delas estabelece que ao indivíduo cabe fazer tudo aquilo que a lei não proibe. Uma variante direta dessa é a aplicação oposta ao governo: só é permitido ao Estado o que a lei expressamente permite. Contudo, o variente que mais im- porta no momento é a variante exposta pela seguinte frase em latim: nullum crimen, nulla poena sine lege. Esta formula foi eternalizada por Feuerbach, no começo do séc. XIX3. Versão análoga a esta última pode ser encontrada no art. 5º, inciso XX- XIX da Constituição Federal: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Esta disposição também está prevista de modo semelhante no art. 1ºdo Código Penal, e neste sentido, é o princípio mais importante desta área do direito, pois a lei é a única fonte que pode ser utilizada para proibir ou impor condutas sob ameaça de sanção. Em outras palavras, é preciso uma lei que descreva uma conduta como proibida e associe uma pena para aqueles que realizarem a conduta proibida. Da fórmula original em latim foram desenvolvidas uma série de outras variações que expressam princípio decorrentes da Legalidade, tais como o princípio da taxatividade, da reserva legal e da vedação de analogia. Nullum crimen, nulla poena sine lege certa: O princípio da taxatividade é sinônimo da precisão na definição do comportamento incriminado. Essa determinação linguística vincula tanto o legislador como o juiz. No caso do legislador, exige-se que a lei descreva de forma clara, compreensível e precisa a conduta punível pelo Estado. Isto ocorre, uma vez que é essencial que o 2. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tra- tado de direito penal : parte geral, 1 — São Paulo : Saraiva, 2012. Pp. 89-91 3. Ibid. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 9 conteúdo da lei possa ser conhecido por seus destinatários, os cidadãos, per- mitindo-lhes diferenciar entre o penalmente lícito e o ilícito. Neste sentido, as leis penais devem ser precisas, de modo que não surjam dúvidas quanto a sua aplicação ao caso concreto. Esse princípio também vincula o julgador, pois estabelece os limites inter- pretativos aos quais ele está vinculado. A aplicação da norma penal incrimi- nadora deve se pautar pelos parâmetros em que foi formulada, evitando-se assim o abuso judicial decorrente de uma interpretação que possa abranger um número indeterminado de comportamentos. É importante mencionar que o princípio da taxatividade ou da determi- nação não está expresso em nenhuma norma legal, pois se trata de uma cons- trução doutrinária, fundamentada no princípio da legalidade e no Estado Democrático de Direito. O modelo oposto, no qual o juiz pode preencher livremente o conteúdo da norma incriminadora, está associado a sistemas jurídicos autoritários e representa a previsão de condutas puníveis de modo indeterminado e valorativo, permitindo discriminações fundadas nas carac- terísticas pessoais e esvaziando o princípio da legalidade. O princípio da reserva legal tem como escopo que os tipos penais incri- minadores somente podem ser criados através de lei pelo Poder Legislativo e respeitando o procedimento previsto na Constituição Federal. Vale destacar, que o princípio da legalidade impõe respeito ao que a lei expressa, ou seja, possui um caráter mais amplo. Já o princípio da reserva legal, com seu caráter mais específico, estabelece que determinada matéria só pode ser tratada através de lei. No campo do Direito Penal, essa limitação serve para assegurar que somente normas produzidas de forma democrática, pelos representantes eleitos pelo povo, podem vincular os cidadãos. Normas emanadas diretamente pelo Executivo não preenchem esse critério, pois em- bora o Presidente da República tenha legitimidade popular, somente o Poder Legislativo (com todas as dificuldades que tenha ou possa vir a ter) representa a pluralidade de concepções de justiça de uma sociedade. Desta forma, pode-se fazer uma ligação direta do princípio da Reserva Legal com o princípio da vedação do uso de Direito Costumeiro, que seria uma faceta daquele. Retomando a fórmula em latim, pode-se usar a seguinte: Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta. Deste modo, também complemen- ta o princípio da Reserva Legal ao estipular um requisito formal pelo qual a lei penal deve se pautar. Esta expressão explicita que a previsibilidade das sanções estatais são um dos fundamentos estruturais que diferenciam um Estado de Direito de um despotismo. Por último, existe um princípio extramamente correlato com o anterior- mente destacado: Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta. O princípio da vedação de aplicação da analogia no Direito Penal impede que se use uma norma penal para punir uma conduta com base na analogia ou extensão. Isso CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 10 4 “A doutrina afirma que é possível a analogia in bonam partem, isto é, que é permitido defender uma solução incompatível com a letra da lei se isso favorece ao réu e se existem pontos de vista materiais que falam por ela. A doutrina tem razão. Isso se deduz de uma interpretação teleológica do ‘princípio da legalidade’ cuja existência obedece, fundamentalmente, à gra- vidade da conseqüência jurídica que a lei penal ordena, isto é, à gravidade da pena, que supõe uma intervenção nos bens mais preciosos da pessoa (vida, liberdade). Fato é que a comunidade, para proteger interesses jurídicos de suma importância, pode restringir a liberdade do indivíduo; porém, esta intervenção é de uma transcendência tal que o cidadão pode exigir que lhe digam, com clareza, quais são os com- portamentos motivadores de uma rea- ção estatal tão radical; pode exigir que lhe seja garantido que não acontecerá de ser surpreendido, de uma hora para outra, com o fato de o Estado o privar de bens tão fundamentais como a li- berdade, a honra, empregos e cargos públicos que tiver o sujeito, por atos de cuja proibição não o informaram antes que os cometesse. Resumindo: em Direito Penal, e quando o teor literal é claro, o intérprete somente tem duas alternativas: ou acolher o significado das palavras legais em toda a sua ex- tensão ou limitá-lo (para mais ou para menos). Apenas quando uma interpre- tação, materialmente fundamentada, favoreça o réu é lícito prescindir do ‘sig- nificado possível’ da lei penal” (ORDEIG, Enrique Gimbernat: Conceito e método da ciência do direito penal. São Paulo: RT, 2002, p.44/45). significa que o juiz não pode realizar uma interpretação integrativa ou am- pliativa da hipótese que foi originalmente estabelecida na lei. Exceção a essa regra é quando se faz uma analogia para beneficiar o indivíduo4. A correlação dos últimos dois princípios decorrentes da Legalidade é a restrição ao arbítrio judicial (e, por extensão, do Estado) contra o acusado. Usa-se a palavra “contra” em consonância com uma interpretação teleológica do ordenamento, que permite a flexibilização de regras para o favorecimento do réu (vide nota de rodapé anterior). II — O CASO Em agosto de 1991, no condomínio de classe média Jardim Colonial, dois policiais militares, foram chamados para atender uma ocorrência de furto de bicicleta supostamente cometido por um adolescente dentro do condomínio. O crime de furto consiste em subtrair coisa alheia para si ou para outrem, como previsto no art. 155 do Código Penal. O suposto autor do fato foi capturado e se achava detido pelos vigilantes do condomínio que entraram em contato com a polícia que se dirigiu ao local. A vítima, de acordo com os vigilantes, afirmou que o menor era autor do fato. Com base nisso, acatando as conclusões dos vigilantes, os policiais militares detiveram o adolescente, que não tinha qualquer bicicleta em sua posse, e conduziram-no ao posto policial, onde passaram a agredi-lo violen- tamente com socos, pontapés e golpes de cassetete para que confessasse haver subtraído a bicicleta. A questão jurídica Diante dos atos praticados pelos policiais, duas ações foram instauradas. A primeira ação penal foi ajuizada na Justiça Estadual Militar, para apurar o crime de lesão corporal praticado por militar (art. 209, do Código Penal Mi- litar; Decreto-Lei Nº 1.001, de 21 de outubro de 1969): “Art. 209. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena — detenção, de três meses a um ano”. Uma segunda ação penal foi instaurada para apurar o mesmo fato, porém perante a Justiça Estadual Comum, para apurar o crime de tortura contra criança ou adolescente (art. 233, do Estatuto da Criançae do Adolescente; Lei 8069/90): “Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autorida- de, guarda ou vigilância a tortura: Pena — reclusão de um a cinco anos. § 1º Se resultar lesão corporal grave: Pena — reclusão de dois a oito anos. § 2º Se 4. “A doutrina afirma que é possí- vel a analogia in bonam partem, isto é, que é permitido defender uma solução incompatível com a le- tra da lei se isso favorece ao réu e se existem pontos de vista materiais que falam por ela. A doutrina tem razão. Isso se deduz de uma interpretação teleológica do ‘princípio da legalidade’ cuja existência obedece, fundamental- mente, à gravidade da conseqüência jurídica que a lei penal ordena, isto é, à gravidade da pena, que supõe uma intervenção nos bens mais preciosos da pessoa (vida, liberdade). Fato é que a comunidade, para proteger interesses jurídicos de suma importância, pode restringir a liberdade do indivíduo; po- rém, esta intervenção é de uma trans- cendência tal que o cidadão pode exigir que lhe digam, com clareza, quais são os comportamentos motivadores de uma reação estatal tão radical; pode exigir que lhe seja garantido que não acontecerá de ser surpreendido, de uma hora para outra, com o fato de o Estado o privar de bens tão funda- mentais como a liberdade, a honra, empregos e cargos públicos que tiver o sujeito, por atos de cuja proibição não o informaram antes que os cometesse. Resumindo: em Direito Penal, e quando o teor literal é claro, o intérprete so- mente tem duas alternativas: ou aco- lher o significado das palavras legais em toda a sua extensão ou limitá-lo (para mais ou para menos). Apenas quando uma interpretação, material- mente fundamentada, favoreça o réu é lícito prescindir do ‘significado pos- sível’ da lei penal” (ORDEIG, Enrique Gimbernat: Conceito e método da ciência do direito penal. São Paulo: RT, 2002, p.44/45). CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 11 5 Esse artigo foi revogado em 1997, com a edição da Lei 9.455/97. Na época dos fatos e do julgamento, contudo, a Lei 9.455/97 não existia. resultar lesão corporal gravíssima: Pena — reclusão de quatro a doze anos. § 3º Se resultar morte: Pena — reclusão de quinze a trinta anos”5. A defesa dos policiais alegou que ninguém pode ser processado nem pu- nido duas vezes pelo mesmo fato (princípio do ne bis in idem). Para solu- cionar qual deveria ser a justiça competente, foi suscitado um conflito de competência perante o Superior Tribunal de Justiça, que julga questões infra- constitucionais. O STJ, no entanto, determinou que ambas as ações teriam prosseguimento. A defesa recorreu novamente, impetrando um habeas corpus e o caso foi ao Supremo Tribunal Federal, órgão responsável pela interpretação da Cons- tituição Federal e da proteção dos direitos e garantias individuais, que disse que o caso deveria ser julgado pelo Justiça Estadual Comum, pois o crime de prática de tortura contra criança ou adolescente era mais específico que a lesão corporal genérica prevista no Código Penal Militar. Porém, o STF ini- ciou uma discussão se o art. 233 era inconstitucional, à luz dos princípios da taxatividade e da reserva legal. Questões a serem enfrentadas 1) O crime do art. 233, do ECA, respeita a regra da reserva legal? 2) O crime de tortura pode ser preenchido por meio das convenções inter- nacionais que o Brasil ratificou e incorporou ao direito pátrio? 3) O crime de tortura pode ser preenchido por um conteúdo que não esteja normatizado? 5. Esse artigo foi revogado em 1997, com a edição da Lei 9.455/97. Na época dos fatos e do julgamento, contudo, a Lei 9.455/97 não existia. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 12 4) O fato de tramitarem no Congresso seis diferentes projetos para tipifi- car a tortura permite ao judiciário escolher uma definição? 5) O Poder Judiciário pode flexibilizar essa garantia, quando estiver diante de um crime grave? 6) É correto punir alguém por crime de tortura sem que seja taxativamen- te definido em lei o ato de torturar? III — DINÂMICA DA AULA O aluno deverá ler a ementa, o relatório e o extrato da ata do acórdão do Supremo Tribunal Federal (HC 70.389-5) e elaborar a ficha de análise de caso. Cada grupo de alunos deverá ler os votos de determinados Ministros de acordo com a orientação abaixo, incorporando o voto dos Ministros na ficha de análise. Em sala de aula serão debatidas as diferentes propostas de solução desse caso, conforme os diferentes votos dos Ministros. Grupo A: Votos Celso de Mello e Sepúlveda Pertence Grupo B: Votos Carlos Velloso, Francisco Rezek, Néri da Silveira e Paulo Brossard Grupo C: Votos Sydnei Sanches, Ilmar Galvão e Octavio Gallotti Grupo D: Votos Marco Aurélio e Moreira Alves IV. LEITURA OBRIGATÓRIA Ementa, Relatório e extrato da ata do HC 70.389-5. Veja anexo. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 13 V. LEITURA COMPLEMENTAR Texto do Prof. Nilo Batista CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 14 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 15 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 16 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 17 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 18 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 19 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 20 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 21 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 22 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 23 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 24 6 NUCCI, Guilherme de Souza: Manual de Direito Penal: Parte Geral e Parte Especial. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 88. AULA 03 — PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (ANTERIORIDADE) I — INTRODUÇÃO O princípio da anterioridade significa que uma lei penal incriminadora somente pode ser aplicada caso entre em vigor antes do momento da prática da infração penal. Neste sentido, como bem expressa Guilherme de Souza Nucci6, “de nada adiantaria adotarmos o princípio da legalidade, sem a correspondente ante- rioridade, pois criar uma lei, após o cometimento do fato, seria totalmente inútil para a segurança que a norma penal deve representar a todos os seus destinatários”. Em harmonia com o princípio da anterioridade da lei penal, existe o prin- cípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, disposto no art. 5º, XL da Constituição Federal (“A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) e no art. 2º do Código Penal (“Ninguém poderá ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”). A irretroatividade somente se aplica à lei penal mais severa que a anterior, pois a lei mais benéfica vai alcançar o fato praticado antes do início de sua vigência, ocorrendo assim, a retroatividade da lei mais benéfica. Neste caso, a pena mais leve da lei nova é justa e a mais severa da lei revogada é desne- cessária. Com o objetivo de restringir o arbítrio legislativo e judicial na elaboração ou aplicação retroativa de lei prejudicial, o princípio da irretroatividade está em total sintonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que em seu art. 11.2 dispõe: “Ninguém será condenado por ações ou omissões que no momento de sua prática não forem delitivas segundo o Direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais grave do que a aplicável no momento da comissão do delito”. Vale notar, contudo, que o princípio da Irretroatividade não é isento de críticas nem exceções. Uma primeira dificuldade é a combinação de dispo- sitivos penais (utilizar a pena base de uma lei e ciscunstâncias atenuantes ou causas de diminuição de outra para formar uma terceira lei que seja mais benéfica). A discussão sobre este aspecto na jurisprudência e na doutrina é extremamente dividida. Resumidamente, os contrários a esta prática argu-mentam que feriria a separação de Poderes e os a favor argumentam que a expressão constitucional “salvo para beneficiar o Réu” não conhece exceções. Outra grande controvérsia é a ultra-atividade das leis excepcionais e tem- porárias. Um primeiro aspecto da controvérsia é a argumentação pela incons- 6. NUCCI, Guilherme de Souza: Manual de Direito Penal: Parte Geral e Parte Espe- cial. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 88. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 25 titucionalidade do art. 3º do CP (“A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a de- terminaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”). Por um lado, argumenta-se que viola de forma direta o art.5º, XL, CF; por outro lado, argumenta-se que a temporalidade da ação ou da omissão seriam parte do tipo penal. Atualmente, a jurisprudência não reconhece a inconstitucionali- dade daquele. Contudo, por estar claramente em um embate com um princípio fun- damental, deve-se evitar usar de leis temporárias ou exepcionais para moti- vos de menor relevância. Um exemplo polêmico deste uso é a Lei da Copa (Lei 12.663/2012). Esta possue um capítulo para disposições penais que só se aplicarão durante o período da copa, porém vários destes são exagerados e contrariam a racionalidade do art. 3º, CP, prezar pelo interesse público. Como ilustração, observa-se que o uso de cartazes com marcas somente nos eventos oficiais poderá render ao “criminoso” até 1 ano de detenção (art.33, L. 12.663/2012). Será que a lei não foi distorcida para agradar interesses po- líticos e privados? Isto é ou deveria ser constitucional? II — O CASO O acusado foi processado por crime de atentado violento ao pudor, que consiste em constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, a prati- car ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal (crime hoje não mais previsto no Código Penal, pois agora está englo- bado no crime de estupro). Os fatos do caso são, resumidamente, que os atos foram praticados durante 3 anos contra crianças de 6 anos. O acusado foi absolvido em primeira instância, mas o Ministério Público que fez a denúncia, inconformado, apelou. O Tribunal de Justiça de São Pau- lo proveu parcialmente a apelação, condenando o acusado por atentado vio- lento ao pudor em continuidade delitiva, ou seja, o mesmo crime foi pratica- do várias vezes por um longo prazo de tempo (art. 214 c/c art. 224 e art. 71, todos do CP) fixando a pena em 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de reclusão. O advogado de defesa entrou com a revisão criminal, para anular a con- denação, a qual foi indeferida pelo TJ-SP. Posteriormente, impetrou Habeas Corpus com o mesmo objetivo, o qual foi indeferido pelo STJ. Assim, em mais uma tentativa de reverter a condenação, foi impetrado Recurso Ordinário de Habeas Corpus perante o STF, tendo a defesa do acu- sado alegado que; (a) houve conflito de leis no tempo (Lei dos Crimes He- diondos x Estatuto da Criança e do Adolescente), afirmando que a lei penal não retroagirá salvo para beneficiar o réu e Lei dos Crimes Hediondos que foi aplicada é pior para o réu; e (b) os fatos ocorreram em 1990, 1991 e 1992, CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 26 em dias e meses incertos, não se sabe se antes ou depois da edição das Leis 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos) e 8.069/90 (ECA), trazendo a discus- são de qual lei deveria ser aplicada. Para entender melhor a situação deve-se ter em mente o seguinte panora- ma de sucessão das leis relevantes ao caso. No início de 1990 é editado o ECA que entra em vigor no final de 1990 e acrescenta um agravante ao crime (se praticado contra menor, pena: 03-09 anos). Contudo, antes dessa lei entrar em vigor, a Lei de Crimes Hediondos entra em vigor e altera a pena do caput para de 06-10 anos. Desta forma, a pena do caput era maior que a do agra- vante. Para mitigar a situação, em 1996 foi publicada uma lei que revogou o agravante (observar tabela). Questão jurídicas a serem enfrentadas: 1) Quando uma norma ingressa no “mundo jurídico”? Ela pode ser revo- gada, antes de entrar em vigor? 2) É possível a revogação implícita da lei penal? É possível a revogação implícita da lei penal gerando piora na situação jurídico-penal do réu? 3) Há retroatividade in malan partem no caso concreto? Houve violação ao Princípio da Irretroatividade? 4) O Poder Judiciário pode violar o princípio da Irretroatividade em nome da “coerência legislativa”? e da Justiça? CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 27 III — DINÂMICA DA AULA O aluno deverá ler o inteiro teor do julgamento do Supremo Tribunal Federal (HC 81.453-1) e elaborar a ficha de análise do caso, limitada às ques- tões de mérito do julgamento. Cada grupo de alunos deverá se preparar para defender ou contestar a decisão do STF. Grupo A: defende a decisão do Supremo Tribunal Federal Grupo B: contesta a decisão do Supremo Tribunal Federal CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 28 IV— LEITURA OBRIGATÓRIA Habeas Corpus 81.453, julgado pelo Supremo Tribunal Federal CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 29 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 30 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 31 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 32 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 33 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 34 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 35 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 36 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 37 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 38 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 39 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 40 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 41 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 42 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 43 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 44 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 45 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 46 7 “A proposta desinstitucionalizadora tendente à despenalização, descrimi- nalização (em suas diferentes formas) e diversificação na solução dos confli- tos sociais é uma das ferramentas no nosso modo de ver, a de mais urgente utilização nesse esforço de revisão e racionalização do Direito Penal, a fim de colocá-lo a serviço de uma maior justiça e solidariedade social. Outorga- mos prioridade a esta iniciativa, pois se impõe antes de tudo a tarefa de descongestionar os pesados códigos e aliviar os tribunais transbordantes de assuntos de pouca relevância ou não sentidos pela vítima ou pela socieda- de como delitivos e freqüentemente, inclusive, chamados a intervir sem possibilidade de êxito, em conflitos que podem encontrar solução eficaz em ou- tros foros”. CERVINI, Raúl: Os processos de descriminalização. 2a edição. São Paulo: RT, 1995. p. 195. AULA 04 — PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (INSIGNIFICÂNCIA) I — INTRODUÇÃO Segundo Mauricio Ribeiro Lopes (Princípio da insignificância no direito penal. São Paulo: RT, 1997, p. 82), foi Claus Roxin quem primeiro enun- ciou o princípio da insignificância (geringfügigkeitsprinzip). Consoante esse princípio, os delitos de baixa ou nenhuma lesividade social devem ser objeto de intervenção mínima do direito penal, merecendo tratamento diferenciado e, quiçá, serem excluídos do rol daqueles que merecem a tradicional resposta punitiva estatal. Essa lição, hoje aperfeiçoada doutrinariamente, remonta ao período das primeiras conquistas do Direito Penal Moderno, enunciadas pela filosofia iluminista. Cesare Beccaria (Dos delitos e das penas. São Paulo: RT, 1996, p. 28), nos idos do sec. XVIII, já alertava que “Toda pena, que não derive da absoluta necessidade (...) é tirânica”. A despeito da grande evolução do Direito Penal, passados mais de duzen- tos anos desde a primeira edição da obra do mestre italiano, continua a van-guarda da ciência penal a reafirmar os mesmos princípios. Modernamente, alinham-se ao lado do princípio da insignificância os preceitos de razoabilida- de e proporcionalidade, que, conjugados, caracterizam a doutrina do Direito Penal Mínimo7. No Brasil, o princípio da insignificância foi acolhido pela doutrina e pela jurisprudência. No entanto, o princípio da insignificância não tem previsão legislativa, sendo apenas uma criação doutrinária. Diante dessa situação, o respectivo princípio sofre críticas, uma vez que surge a indagação do que seria insignificante. Ao longo do tempo o Supremo Tribunal Federal passou a reiterar o enten- dimento de que deve ser analisado o caso concreto e devem estar presentes os seguintes requisitos: (a) mínima ofensividade da conduta do agente; (b) ausência de periculosidade social da ação; (c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e (d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. Assim, o princípio da insignificância tem o sentido de não considerar o ato praticado como um crime, por isso, sua aplicação gera a absolvição do réu e não apenas a diminuição e substituição da pena. Mais do que isso, aplica- -se esse princípio com o intuito de retirar do direito penal condutas que não produzam prejuízos significativos a bens jurídicos tutelados. 7. “A proposta desinstitucionali- zadora tendente à despenalização, descriminalização (em suas diferentes formas) e diversificação na solução dos conflitos sociais é uma das ferramentas no nosso modo de ver, a de mais urgen- te utilização nesse esforço de revisão e racionalização do Direito Penal, a fim de colocá-lo a serviço de uma maior justiça e solidariedade social. Outor- gamos prioridade a esta iniciativa, pois se impõe antes de tudo a tarefa de descongestionar os pesados códigos e aliviar os tribunais transbordantes de assuntos de pouca relevância ou não sentidos pela vítima ou pela socieda- de como delitivos e freqüentemente, inclusive, chamados a intervir sem possibilidade de êxito, em conflitos que podem encontrar solução eficaz em outros foros”. CERVINI, Raúl: Os pro- cessos de descriminalização. 2a edição. São Paulo: RT, 1995. p. 195. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 47 O Princípio da Insignificância pode ser considerado uma decorrência di- reta de outro princípio do Direito Penal: o Princípio da Ultima Ratio. Ao dizer que o Direito Penal é última ratio, é estabelecido que é a última opção para a atuação estatal, somente deve ser usado como último recurso, quando todos os outros tiverem falhado. A partir dessa construção, destaca-se que o princípio da Ultima Ratio é subdividido em outros dois. O primeiro destes é o Princípio da Fragmenta- riedade, que estabelece que o Direito Penal deve somente proteger os bens jurídicos mais importantes, ou seja, há uma necessidade de seleção dos ob- jetos de proteção, não é qualquer bem que pode ser protegido por sanções à Liberdade. Por outro lado, há o princípio da Subsidiariedade, que estabelece o grau de proteção conferido. Isto significa que somente lesões mais graves aos bens jurídicos protegidos que podem ser objeto da proteção do Direito Penal, ou seja, lesões menos gravosas devem ser resolvidas em outras áreas do Direito, se possível. II — O CASO Um jovem desempregado de 19 anos furtou uma fita de vídeo-game, com valor estimado de R$ 25,00. A vítima fez um registro na Delegacia de Polícia e B. foi localizado. A fita foi devolvida, pois B. a utilizara somente para jogar algumas partidas do jogo eletrônico. Diante dos fatos, a vítima pretendia “retirar a queixa e a fita foi devolvida, contudo o acusado foi condenado a 8 meses de reclusão por uma conduta que para muitos pode ser considerada como insignificante, ou seja, não causa uma lesão a um bem jurídico protegido, qual seja o patrimônio, de forma a ensejar a necessidade de que o direito penal seja aplicado. A defesa recorreu e a decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça. Assim, foi impetrado Habeas Corpus no Su- premo Tribunal Federal para que, destacando que o parecer do Ministério Público foi favorável a manutenção da pena. Questões a serem enfrentadas 1) É correto deixar de punir alguém porque o a pena seria desproporcional ao crime praticado? 2) O Poder Judiciário pode deixar de aplicar a lei penal quando estiver diante de um crime sem gravidade? 3) Como identificar quando um crime não tem gravidade? CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 48 III — DINÂMICA DA AULA O aluno deverá ler o inteiro teor do julgamento do Supremo Tribunal Federal (HC 84.412-0) e elaborar a ficha de análise de caso. Cada grupo de alunos deverá ler as ementas dos casos incluídos na leitura obrigatória e de- fender a aplicação ou não do princípio da insignificância Grupo A — Caso 1 Grupo B — Caso 2 Grupo C — Caso 3 IV — LEITURA OBRIGATÓRIA Caso 1 Ementa: Habeas corpus. 2. Tentativa de furto de fios e cabos elétricos do interior de imóvel em reforma. 3. Bens avaliados em R$ 116,00 (cen- to e dezesseis reais). 4. Presença dos 4 vetores apontados no julgamento do HC 84.412/SP, relator Ministro Celso de Mello, para reconhecimento do princípio da insignificância: a) mínima ofensividade da conduta do paciente; b) ausência de periculosidade social da ação (não houve violência ou grave ameaça à pessoa ou qualquer repercussão social significante, uma vez que não houve cessação do serviço público de energia elétrica para a coletividade); c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressi- vidade da lesão jurídica provocada. 5. Ordem concedida para trancar a ação penal na origem. Caso 2 EMENTA: Habeas Corpus. Furto. Alegação de atipicidade da conduta. Princípio da insignificância. Inviabilidade: valor do bem subtraído; Existên- cia de processos em curso por delitos da mesma natureza; Forma como prati- cado o crime. Propensão à prática delitiva. Ordem denegada. 1. A tipicidade penal não se reduz ao exame da subsunção do fato à norma abstrata. Além da correspondência formal, a configuração da tipicidade demanda análise materialmente valorativa das circunstâncias do caso concreto, para verificar a ocorrência de alguma lesão grave e penalmente relevante do bem jurídico tutelado. 2. Não se há cogitar da incidência do princípio da insignificância: valor subtraído de R$171,80 representa 36,94% de R$ 465,00, salário míni- mo da época dos fatos; assentamento pelas as instâncias ordinárias de que o Paciente, embora não seja tecnicamente reincidente, responde a processos da CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 49 mesma natureza, demonstrando propensão à prática delitiva. 3. Inaplicabi- lidade do princípio da insignificância. Emprego de ardil para lograr êxito na prática do delito. 4. Ordem denegada. Caso 3 PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 1º, IV, DA LEI 8.137/90. SO- NEGAÇÃO DE IMPOSTOS. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA IN- SIGNIFICÂNCIA. POSSIBILIDADE. 1. Esta Turma tem admitido a incidência do princípio da insignificân- cia nos casos em que o valor do tributo devido não é considerado relevante sequer pela Fazenda Nacional, que prevê o arquivamento dos autos das exe- cuções fiscais de débitos cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (Portaria MF n. 75, de 22/03/2012). 2. Na hipótese, o tributo sonegado é muito aquém do limite que a Fazen- da Pública considera interessante executar. Tal débito não pode ser, portanto, considerado relevante ao direito penal. 3. Apelação não provida. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 50 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 51 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 52 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 53 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 54 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 55 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITORIO 56 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 57 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 58 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 59 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 60 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 61 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 62 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 63 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 64 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 65 BLOCO 2 — SISTEMA PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO AULAS 05 A 07 — PREPARAÇÃO PARA O JÚRI SIMULADO O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS www.academico.direito-rio.fgv.br/wiki/O_caso_dos_denunciantes_invejosos INTRODUÇÃO O texto denominado “O caso dos denunciantes invejosos” é de autoria do professor estadunidense Lon Luvois Fuller, responsável pela cátedra de Teoria do Direito da Universidade de Harvard, nos EUA, entre 1940 e 1972. Fuller é autor do conhecido texto “O caso dos exploradores de cavernas”. No texto dos “denunciantes invejosos”, Lon Fuller provoca nos leitores a discussão sobre as relações entre direito, moral e justiça a partir de um caso de um pequeno país fictício que, tendo vivido durante anos em relativa esta- bilidade política, sob um regime constitucional democrático, subitamente se vê em meio a uma grave crise econômica e distúrbios causados por conflitos entre diferentes grupos políticos, religiosos e econômicos. Basicamente, a questão que se coloca diz respeito à existência de leis in- justas, à capacidade que o direito positivo tem de dissociar-se, às vezes, dos valores da sociedade e dos mandatos mais elementares de justiça. O problema apresentado por Fuller cinge-se ao tratamento que deve ser dispensado àque- les que obedeceram e se pautaram por essas regras. A dificuldade decorre da imposição de sanções ou reprimendas quando o “descompasso” entre o sen- timento do povo e a lei só surge depois de um longo período durante o qual a impressão que se tinha era que tais leis contavam com aprovação popular. CONTEXTO JURÍDICO-POLÍTICO Depois de anos vivendo pacificamente num regime constitucional demo- crático, um pequeno país é tomado por uma grave crise política, econômica e institucional. Vários Grupos disputam o poder em meio ao sentimento de abandono e desespero da população. Ao final de um processo eleitoral no qual não faltaram denúncias de irregularidades (ameaças, falsificações etc.), é eleito para o posto de Presidente da República o chefe do partido denomina- do “camisas-púrpuras”, considerado um verdadeiro salvador da pátria. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 66 Os camisas-púrpuras também elegem a maioria dos representantes para a Assembleia Nacional. Não há mudanças na constituição ou as leis e são mantidas as eleições periódicas, numa aparente normalidade democrática. No entanto, instala-se um regime de terror no país. Juízes e funcionários que se recusassem a aceitar os abusos do governo são ameaçados, agredidos ou assassinados. O governo não respeita as leis existen- tes e nem aquelas que ele próprio edita. Opositores políticos são cassados e partidos políticos suprimidos. São criados regulamentos secretos e legislações de exceção. Promulga-se uma lei concedendo anistia a todos que “tivessem cometidos atos em defesa da pátria”, por meio da qual todos os partidários dos camisas- -púrpuras que estavam presos são libertados. De outro lado, são criadas leis retroativas para punir os inimigos do regime, ou ainda conferidas interpre- tações perniciosas às leis com a finalidade de encarcerar todos aqueles que representem uma ameaça aos planos de poder dos camisas-púrpuras. Após anos de dominação, os camisas-púrpuras são derrotados e novamen- te instala-se um regime constitucional e democrático. Vários problemas de- correntes dos anos de desmando e terror devem ser enfrentados. Um deles é o problema dos denunciantes invejosos. O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS Aproveitando-se do clima de perseguição e terror implantado pelos cami- sas-púrpuras, muitas pessoas denunciaram seus desafetos às autoridades mo- vidas exclusivamente por inveja. Um desses casos foi o de um sujeito que se enamorou por uma moça casada e decidiu denunciar o marido desta por um delito absolutamente banal, mas que fez com que o marido fosse processado e condenado à pena de morte. Eram duramente punidas várias espécies de condutas, entre elas a críti- ca ao governo ou ao partido, mesmo em conversas particulares; a escuta de transmissões radiofônicas estrangeiras; a omissão de informar a perda de do- cumentos no prazo de cinco dias; a posse de saquinhos de ovo em pó em quantidade superior à permitida etc. Em alguns casos, as penalidades extre- mamente duras estavam autorizadas por regulamentos emergenciais; em ou- tros casos, eram decorrentes da decisão de juízes regularmente constituídos. Essas denúncias levaram a penas de prisão e até mesmo à pena de morte. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 67 A RESTAURAÇÃO DA DEMOCRACIA Felizmente, o regime dos camisas-púrpuras foi desmantelado e a demo- cracia restaurada. Contudo, criou-se um problema político prestes a inflamar os ânimos da população: o que fazer com aqueles denunciantes que agiram movidos por interesse pessoal, reportando crimes que levaram pessoas à mor- te? A população clama pela punição dos denunciantes invejosos e a tarefa de decidir o que fazer coube a um júri de notáveis, dentre os quais está você. Foi designado um julgamento para a próxima 3ª feira, dia 04/junho, às 11hs. Um grupo apresentará razões de acusação e outro grupo sustentará as teses de defesa. Caberá aos jurados simplesmente votar “sim” ou “não” para a seguinte pergunta: OS DENUNCIANTES INVEJOSOS DEVEM SER PUNIDOS CRIMINALMENTE? CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 68 BLOCO 3 — DIREITO PROCESSUAL PENAL AULA 08 — PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (VEDAÇÃO DE PROVA ILÍCITA) I — INTRODUÇÃO A inadmissibilidade da prova ilícita está prevista no art. 5º, LVI da CF: “LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Trata-se de mais uma (dentre tantas outras) norma que busca limitar a ação do Estado na persecução penal. A atividade probatória do Estado (reunião de elementos de prova que indiquem a autoria e materialidade de um crime) no processo penal pode ser pré processual (o que normalmente ocorre no âmbito da Polícia Judiciária, com o inquérito policial) e também processual (produzida pelas partes peran- te um juiz). As duas etapas concretizam a atividade persecutória do Estado. Contudo, as provas produzidas na fase processual possuem maior valor, já que permitem a participação da defesa e da acusação. Provas produzidas na fase de inquérito tem por finalidade reunir elementos de informação para o início do processo. Excepcionalmente, provas que sejam produzidas na fase policial podem ser utilizadas pelo juiz para formar sua convicção. Tanto na fase pré-processual, como na fase processual, as provas devem ser produzidas conforme determina a lei. Se houver desrespeito à lei, teremos uma prova que não pode ser utilizada, isto é, uma prova ilícita. O Código de Processo Penal tenta conceituar prova ilícita: “Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do proces- so, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. § 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. § 3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inad- missível, esta será inutilizadapor decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.” CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 69 II — O CASO (Narrativa baseada no Habeas Corpus 5.100/94, julgado pela Suprema Corte de Israel). Desde a data de sua criação, em 1948, o Estado de Israel está marcado pela instabilidade política devido aos seguintes fatores principais: (1) demanda pela instalação de um Estado Palestino na mesma área, (2) posse da cidade de Jerusalém (considerada sagrada por muçulmanos, judeus e cristãos), e (3) ocupação de regiões circunvizinhas às fronteiras originais de Israel. Apesar das tentativas de firmar um tratado de paz definitivo, tais problemas não foram resolvidos. Os grupos palestinos mais radicais sustentam que o Estado de Israel é uma ocupação indevida do território palestino imposta pelas potências ocidentais. Tais grupos promovem ataques suicidas a alvos não-militares mediante ex- plosão de bombas em ônibus, teatros, embaixadas, etc. Esses comportamen- tos podem ser considerados terroristas. Os grupos israelenses mais radicais sustentam que o Estado de Israel tem direito sobre o território atualmente ocupado. Setores mais conservadores do governo de Israel não hesitaram, ao longo dos anos, em autorizar a prá- tica de assassinatos, seqüestros e prisões indiscriminadas para impedir ou retaliar os ataques palestinos. Essa atuação pode ser considerada prática de terrorismo estatal. Em 1987, o governo de Israel criou uma comissão governamental, dirigida pelo ex-presidente da Corte Suprema de Israel, Moshe Landau, para examinar métodos de interrogatório empregados pelo Serviço Secreto Israelense (GSS). Essa comissão aprovou e recomendou uso de “pressão psicológica” e “um grau moderado de força física” pelo GSS durante suas investigações. Alguns dos presos submetidos aos métodos questionados foram poste- riormente processados e condenados por ataques terroristas que causaram a morte de dezenas de pessoas. Outros presos submetidos aos mesmos métodos foram liberados sem que fosse formulada acusação contra eles. A Corte Suprema de Israel recebeu centenas de petições dos detidos, ques- tionando a validade do emprego de força física como método de investigação. Até a decisão de setembro de 1999, ora examinada, a Corte rejeitara a maior parte dessas petições, permitindo que o GSS continuasse a empregar os mé- todos questionados durante interrogatórios. O caso concreto compreende o julgamento de diversas petições de Habe- as Corpus, assinadas por indivíduos e organizações, questionando o uso de “pressão física moderada” em interrogatórios envolvendo suspeitos de terem participado de atentados, bem como em pessoas suspeitas de planejarem fu- turos ataques. Neste último caso, a investigação tem natureza preventiva. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 70 Petições reunidas para julgamento: • HC 4054/95 Associação para os Direitos Civis de Israel; • HC 5100/94 — Comitê Público contra a Tortura em Israel; • HC 6536/95 — Hat’m Abu Zayda; • HC 5188/96 — Centro de Defesa do Indivíduo, Wa’al Al Kaaqua e Ibrahim Abd’allah Ganimat; • HC 7563/97 — Abd Al Rahman Ismail Ganimat e Comitê Público contra a Tortura em Israel; • HC 7628/97 — Fouad Awad Quran e Comitê Público contra a Tor- tura em Israel; • HC 1043/99 — Issa Ali Batat RESUMO DOS ARGUMENTOS DAS PARTES PERANTE O TRIBUNAL. Os métodos de investigação questionados compreendem: obrigar o in- vestigado a permanecer em posições desconfortáveis e dolorosas por longos períodos; privação de sono; ameaças psicológicas; agressões físicas; encapuzar suspeitos com sacos embebidos em urina; em último caso, poder-se-ia “sacu- dir” o suspeito. Vários indivíduos “sacudidos” tiveram dores de cabeça violentas, vômito, perda de consciência, lesão cervical e danos cerebrais irreversíveis. Pelo menos dois investigados morreram durante sessões de interrogatório, um deles após ser sacudido. Os advogados dos presos alegam que esses métodos são ilegais e consti- tuem tortura e, portanto, em nenhuma circunstância poderiam ser admiti- dos, ainda que vidas humanas estivessem em perigo. Quaisquer provas, indí- cios ou depoimentos são provas ilícitas e o Estado não poderia se valer delas. Para o governo de Israel, tais métodos não constituem tortura, pois não causam dor ou sofrimento. Mesmo se isso ocorresse, a prática estaria permiti- da porque os agentes do GSS as utilizavam para proteger a vida e a segurança de inocentes. Por fim, os métodos questionados estão sujeitos à avaliação prévia da che- fia do GSS, o que somente autoriza que sejam empregados como último recurso em situações extremas. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 71 QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS. 1) Se você fosse membro do tribunal, como decidiria o pedido de proi- bição das práticas do GSS aos suspeitos de terrorismo? Para justificar sua decisão, procure guiar-se pelas questões abaixo e veja as opiniões fictícias oferecidas por “estudiosos fictícios”. 2) O uso de pressão física e psicológica sobre pessoas suspeitas de crimes é uma forma de tortura? 3) A tortura é um meio eficaz de obter informações sobre crimes? 4) A tortura é um meio razoável de obter informações sobre crimes? 5) A tortura é um meio justo de obter informações sobre crimes? 6) A tortura é um meio juridicamente válido de obter informações sobre crimes? 7) A tortura poderia ou deveria ser “legalizada” pelo Congresso e submetida a um processo judicial de decretação, tal como ocorre, por exemplo, com a bus- ca e apreensão feita pela polícia na residência das pessoas, mediante autorização judicial (como ocorre com a medida de busca e apreensão, por exemplo)? OPINIÕES DE JURISTAS FICTÍCIOS Professor Emergix O caso concreto que se apresenta para decisão é uma hipótese de colisão de princípios jurídicos. De um lado, temos o princípio da verdade real — se- gundo o qual as investigações de natureza criminal devem buscar a verdade do que efetivamente aconteceu — e de outro lado temos o princípio da dig- nidade humana — segundo o qual os indivíduos devem ter sua dignidade preservada. Ambos os princípios fazem parte do nosso direito. Ambos são válidos e nenhum desses princípios é absoluto. Numa situação concreta, devemos pesar as circunstâncias. E devemos ser claros e assumir as conseqüências de nossas escolhas. O tratamento aplicado aos terroristas pelo GSS é uma forma de tortura. Seja porque a Convenção Internacional da ONU (que o Estado de Israel ratificou) diz isso, seja porque o espancamento de pessoas suspeitas de crimes constitui o caso clássico de tortura. Penso que a tortura deve ser proibida. A lei de nosso país já diz isso e tal lei deve ser respeitada. Porém, não podemos negar que há situações em que o governo deve violar a lei para poder fazer um bem maior à sociedade. Quando os investigadores do GSS estiverem diante de uma situação em que acreditem que o suspeito possui informações relevantes e não quer for- CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 72 necê-las espontaneamente, deverão obrigar o suspeito a falar a verdade, para o bem da segurança e da vida de outros cidadãos inocentes. Em situações normais, o conflito entre a busca da verdade e a dignidade do ser humano deverá ser resolvido a favor da dignidade na maioria dos ca- sos. Porém, nos crimes graves — como é o terrorismo — deverá prevalecer o princípio da busca da verdade real, mesmo porque um criminoso não tem dignidade. Na minha opinião, todos os suspeitos da prática de crimes que não qui- serem colaborar com as autoridades espontaneamente deverão ser obrigados a tanto. Se quebraram a ordem jurídica, não podem agora querer que ela os defenda. O caso dos terroristas e dos investigadores do GSS é exemplar para comprovar minha tese de que a tortura de alguns poucos garante o bem de muitos outros. Professor DemorradicalixConcordo com o professor Emergenix quando fala que existe um confli- to de princípios. Porém, discordo quando ele sugere que o Estado ou seus agentes — policiais, juízes, investigadores do GSS etc. — possam violar a lei. Justamente o que diferencia os homens de bem dos terroristas e demais criminosos é o fato de que eles violaram as nossas leis. Ora, se também nós violarmos as leis, não teremos autoridade moral para exigir deles outro com- portamento. Além disso, se governo tem por obrigação exigir que todos obe- deçam a lei (e pune quem não o faz), como pode, justamente o governo, agir de outra forma? Esse caso concreto deve ser definido com base na lei. Se a lei proíbe a tortura, não podemos praticá-la, nem mesmo em crimes graves, já que a lei não faz essa exceção. Nem a Comissão Landau, nem o Ministro da Justiça, nem o chefe do GSS têm legitimidade para decidir em que casos pode existir tortura. Somente o povo, por meio de seus representantes democraticamente eleitos pode tomar essa decisão. Defendo que nosso país se retire da Convenção da ONU e que nosso Congresso aprove uma nova lei autorizando a tortura. Até lá a tortura seria proibida e, somente a partir da edição da lei ela seria válida (mas somente nas situações que os deputados definissem na lei). Digo isso porque a tortura já é efetivamente aplicada como prática corri- queira pelos do Estado, sobretudo nas situações de crise. Diante de um crime grave, pode-se afirmar que há grande apoio popular ao seu uso. Portanto, seria melhor se tal prática estivesse prevista em lei (poderia haver uma lista de crimes graves nos quais o suspeito pudesse ser torturado) e os agentes do GSS teriam de obter autorização judicial para torturar. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 73 Dessa forma, haveria regras e limitações que dessem visibilidade e controle sobre essa prática. Do contrário, tais fatos continuarão ocorrendo (com ou sem autorização do governo) enquanto todos fingem que não os vêem. Professor Natuliberalix Ouso discordar dos nobres professores que me antecederam. A tortura é uma prática abominável e nada justifica seu uso. A dignidade do homem não é um princípio absoluto, pois a convivência em sociedade impõe limitações a todos os direitos. Porém, a tortura representa a própria negação da dignidade; equivale a retirar completamente a dignidade de alguém. Afinal, não há limites para a imaginação do homem quando se trata de fazer sofrer outra pessoa. Será que é possível admitir determinada forma de tortura (pau-de-arara) e vedar outra (aplicação de choques elétricos)? Como avaliar a quantidade de dor sofrida por cada investigado? Reconheço que muitas situações vividas pelos agentes do GSS são graves e que eles buscam salvar vidas. Porém, sabemos que muitos “suspeitos” foram torturados e depois nenhuma acusação foi formulada contra eles. Não posso admitir, em hipótese nenhuma, nem mesmo diante de crimes graves, que um inocente seja brutalizado dessa forma. Nenhum ganho social justifica tal risco individual. Ainda que 99% dos suspeitos sejam de fato criminosos, não há como justificar que o direito deixe desprotegidos os 1% restantes. Desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, o Direito Criminal prevê que um homem deve ser considerado inocente até que um tribunal declare sua culpa. E essa sentença só será válida se esse ho- mem puder se defender. Nossas leis e as leis internacionais confirmam isso. Não posso admitir que se torture um suspeito antes que ele seja processado e julgado. Além do mais, a tortura é um meio imoral de atuação. Como bem marcou o Professor Demorradicalix, não podemos nos igualar aos criminosos. Mas, na minha opinião, ao contrário da dele, não é somente a lei que proíbe a tortura: é a moral. O governo e seus agentes não podem buscar fins morais (segurança, vida, felicidade do povo) com meios imorais (tortura). O que nos torna homens é nossa moral; se abrirmos mão dela, seremos menos que criminosos, seremos animais. Nessa mesma linha de argumentação, considero que nenhuma lei pode aprovar o uso de tortura em nosso país. A democracia tem que obedecer a limites morais que estão em nossa consciência. Nem mesmo a unanimidade das pessoas pode aprovar uma atuação do Estado que viole de modo tão bru- tal a dignidade de um ser humano inocente. Essa é minha opinião. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 74 Professor Garantilix Vejo que os colegas que falaram antes de mim estão conduzidos pela emo- ção, mais do que pela razão. Em primeiro lugar, interessa saber se a tortura é um meio eficiente de obtenção de informação. Eu considero que não é. O medo de ser torturado fará com que pessoas fracas façam declarações falsas que apenas atrapalharão as investigações. Por outro lado, pessoas fortes nada falarão, mesmo se torturadas até a morte. Nesse caso, o que fará o investigador do GSS? Passará a torturar a esposa do terrorista para que ele fale? Trará para a sala de torturas a filha de quatro anos do terrorista e começará a espancá-la? Por trás do desejo de torturar não está a busca pela informação, mas sim a vontade de determinados homens, que no momento são mais fortes que outros, de usar essa força para subjugar, ofender, humilhar, machucar e matar seus semelhantes mais fracos. A questão moral, levantada pelo Professor Natuliberalix, não se aplica. Não interessa saber se a tortura é moral ou não, pois o conceito de moral é variável. Aqueles que consideram haver uma guerra entre nós dirão que a guerra é, em si, imoral e atinge tanto culpados como inocentes e que agir assim nessa situação não é imoral. Penso que se a tortura for legalizada pelo congresso, como propõe o pro- fessor Demorradicalix, isso incentivará sua prática. Com o tempo, será tão fácil conseguir um mandado para tortura como ocorre hoje com a busca e apreensão ou a prisão. Será instituída a “tortura para averiguações”. Além disso, será que o suspeito tem obrigação de confessar o crime? Será razoável exigir que alguém forneça as provas para sua própria condenação? Ao admitirmos a tortura, estamos supervalorizando a confissão como meio de prova. Logo, ele voltará a ser a “rainha das provas” exatamente como ocor- ria durante a Inquisição, quando muitas pessoas foram mortas por causa de perseguições religiosas. A história já deu provas que os governos não hesitam em transformar seus opositores políticos em “inimigos”, “subversivos”, “terroristas”, etc. Na minha opinião, devemos ter cuidado para que o direito não dê margem aos abusos dos governos. Admitir a tortura é um convite ao abuso do poder. Por mais pungente que seja o argumento da “bomba-relógio prestes a ex- plodir”, nós temos a responsabilidade de seguir os princípios e valores que julgamos serem corretos sem nos desviarmos desse caminho. Não devemos submeter aos argumentos de “emergência” e nos conduzirmos de acordo com nossa consciência, sob risco de destruirmos, nós mesmos, os valores pelos quais lutamos: liberdade, igualdade e fraternidade. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 75 III — DINÂMICA DA AULA O aluno deverá apresentar um quadro apontando cada argumento favorá- vel à tortura e o correspondente contra-argumento. Os alunos serão divididos em grupos para defender o uso da tortura ou sua proibição. IV — LEITURA OBRIGATÓRIA BARANDIER, Antonio Carlos da Gama — “Interrogatório do econo- mista. A tia zelosa. Injeções na barriga e o juiz mais realista do que rei”. in Contos Criminais. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 1998, p. 11 e 14. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 76 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 77 CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 78 8 A respeito do debate travado pelas escolas penais italianas sobre o princí- pio da presunção da inocência, de um lado a escola clássica, cujo expoente máximo era FrancescoCarrara, e de outro as escolas positivista e técnico- -jurídica, representadas por Enrico Ferri e Vicenzo Manzini, ver: Jaime Vegas Tor- res, Presunción de inocencia y prueba en el proceso penal, Madrid: La Ley, 1993. AULA 09 — PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA) I — INTRODUÇÃO O princípio da presunção de inocência está consagrado no inciso LVII do art. 5º da CF de 1988: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A forma como está enunciado na Constituição ensejou alguns debates a respeito do seu alcance. Isto porque não se repetiu a fórmula consagrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional Francesa, em 26 de agosto de 1789, bem como pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969. Não está dito no texto constitucional que todo homem se presumirá ino- cente, até que seja condenado, mas sim que ninguém será considerado cul- pado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Em vista disso, não se estaria consagrando propriamente o princípio da presunção da inocência, mas sim o da desconsideração prévia da culpabilidade, de aplica- ção mais restrita. De fato, a Constituição Federal brasileira adotou a redação do art. 27.2 da Constituição italiana de 1948, a qual por sua vez resultou de um movimento protagonizado por parte da doutrina italiana que defendia a restrição do alcance do princípio da inocência, com vistas a garantir a eficácia do processo penal8. Importante registrar que não se trata apenas de uma discussão semântica a respeito da propriedade de se utilizar o termo presunção em seu sentido técnico. O embate que se trava traduz, em verdade, duas diferentes concep- ções político-ideológicas da finalidade do processo penal e das garantias que devem cercar a persecução penal. Com efeito, a consagração do princípio da presunção da inocência na Declaração de 1789 reflete uma nova concepção do processo penal defendida por pensadores iluministas em reação ao siste- ma persecutório que marcara o antigo regime, no qual a prova dos fatos era produzida através da sujeição do acusado à prisão e tormento, com o fim de extrair dele a confissão. É nessa mudança de foco, em que o processo penal deixa de ser um mero instrumento de realização da pretensão punitiva do Estado, para se transformar em instrumento de tutela da liberdade, que está a chave para se compreender o conteúdo e alcance do princípio da presunção de inocência. A partir dessa premissa, acaba por ser irrelevante a diferença que se pre- tende acentuar entre o texto contido na Declaração de 1789 e o dispositi- vo constitucional brasileiro. De fato, ainda que a terminologia adotada pela 8. A respeito do debate travado pelas escolas penais italianas sobre o princípio da presunção da inocência, de um lado a escola clássica, cujo expoen- te máximo era Francesco Carrara, e de outro as escolas positivista e técnico- -jurídica, representadas por Enrico Ferri e Vicenzo Manzini, ver: Jaime Vegas Torres, Presunción de inocencia y prueba en el proceso penal, Madrid: La Ley, 1993. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 79 Constituição de 1988 seja semelhante àquela engendrada na Itália pós-fas- cista a partir das críticas capitaneadas pelas escolas positiva e técnico-jurí- dica à presunção de inocência, o certo é que na prática judiciária brasileira as expressões presunção de inocência e presunção de não culpabilidade são utilizadas indistintamente, não se suscitando suposta diferença entre ambas como fundamento para restringir as conseqüências normativas do princípio da presunção de inocência. Com efeito, os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça referem- -se ao princípio da inocência: RHC 11.387/SP; HC 13.725/RJ; RHC 9.745/ PR; RHC 8.167/SP. Já estes outros — REsp 304.521/SP; HC 32.491/MS; HC 16.541/SP; HC 28.177/MS — remetem ao princípio da não-culpabili- dade. E estes últimos — HC 19.711/SP; RHC 15.139/SP; HC 30.186/SP; HC 31.662/RS; HC 33.457/SP — citam ambos como sinônimos. Todos os julgados citados tratam, contudo, do mesmo princípio. A aplicação mais comumente defendida pela doutrina da norma sob exa- me dá-se no campo probatório. Nessa primeira formulação, o réu ser pre- sumido inocente significa, por um lado, que o ônus de provar a veracidade dos fatos que lhe são imputados é da parte autora na ação penal (em regra, o Ministério Público) e, por outro lado, que se permanecer no espírito do juiz alguma dúvida, após a apreciação das provas produzidas, deve a querela ser decidida a favor do réu. Portanto, no direito processual penal, se ao final o juiz tiver dúvidas a res- peito da procedência das alegações do réu, ele deve absolvê-lo, ainda que não esteja plenamente convencido daquelas alegações. Em uma palavra, a dúvida não resolvível quanto à matéria de fato é sempre dirimida a favor do réu, independentemente das regras ordinárias de distribuição do ônus da prova. A mera alegação do réu de que agiu, por exemplo, sob uma excludente de antijuridicidade, não o exime de produzir prova de sua alegação. A solução pro reo só existe se o juiz não chegar a um juízo de certeza contra o réu, ou seja, se ele ficar realmente em dúvida quanto à ocorrência ou não da situação que justificaria sua conduta, em vista da prova produzida. Diz-se assim que o in dubio pro reo é uma regra de julgamento que se extrai do princípio da presunção de inocência. Mas o princípio da presunção de inocência não se aplica exclusivamente no campo probatório, o in dubio pro reo é apenas uma de suas repercus- sões. Deve ser dispensado tanto ao investigado quanto ao réu tratamento compatível com seu estado de inocente. A condição de investigado e de réu em processo criminal já traz, por si, indiscutível constrangimento. Em vista disso, todas as medidas restritivas ou coercitivas que se façam necessárias no curso do processo só podem ser aplicadas ao acusado na exata medida de tal necessidade. Se houver várias formas de conduzir a investigação, deve-se adotar a que traga menor constrangimento ao imputado e que enseje a me- CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 80 nor restrição possível a seus direitos. Eventual prisão anterior à condenação definitiva, por exemplo, deverá estar pautada em decisão judicial que indique quais circunstâncias presentes no caso concreto autorizam e recomendam a excepcional privação da liberdade do réu. O mesmo ocorre com outras me- didas que impliquem restrição de direitos fundamentais, como se observa da necessidade de que a quebra de sigilo bancário e de comunicação telefônica, ou ainda a busca e apreensão no domicílio do acusado, sejam precedidas de decisão judicial devidamente fundamentada. II — O CASO Filme 12 homens e uma sentença que será passado em aula Um jovem porto-riquenho é acusado de ter matado o próprio pai e doze jurados devem decidir se ele é culpado ou não pelo assassinato, sob pena de morte. Onze têm plena certeza que ele é culpado, enquanto um não acredi- ta em sua inocência, mas também não o acha culpado. Decidido a analisar novamente os fatos do caso, o jurado número 8 não deve enfrentar apenas as dificuldades de interpretação dos fatos para achar a inocência do réu, mas também a má vontade e os rancores dos outros jurados, com vontade de irem embora logo para suas casas. III — DINÂMICA DA AULA Antes da aula cada aluno deverá entrevistar pessoas (professores e alunos de períodos mais avançados da FGV Direito Rio; ou de outras escolas; ou quelquer pessoa conhecida) preenchendo o seguinte questionário: (1) você conhece o princípio da presunção de inocência? (2) como definiria esse prin- cípio? (3) vocêpode citar um exemplo concreto de aplicação prática desse princípio? (4) você concorda com a forma como essa garantia é aplicada pela justiça no Brasil? CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 81 IV — LEITURA OBRIGATÓRIA Artigo Thiago Bottino — O empate decide o jogo? O empate decide o jogo? Autor(es): Thiago Bottino O Globo — 22/08/2012 O Supremo é composto por 11 ministros, e as decisões são tomadas por maioria simples. Porém, se algum dos ministros deixar a Corte (e a hipótese que se apresenta é a aposentadoria do ministro Cezar Peluso), pode haver empate na votação. O que ocorreria, por exemplo, se houvesse exatos cinco votos pela condenação de um acusado e outros cinco pela absolvição? O regimento interno do Supremo traz três critérios de desempate. No caso de habeas corpus, o empate favorece a defesa (art. 146, parágrafo único e art. 150, §3º). No caso de mandado de segurança, o empate faz prevalecer o ato impugnado, ou seja, a decisão de autoridade pública contestada na ação (art. 205, II). O presidente do Supremo tem o poder de desempatar uma decisão sempre que o regimento não dispuser de outra forma, se o empate decorrer de impedimento ou suspeição de algum ministro ou quando a ausência do ministro for devido a uma licença superior a 30 dias (art. 13, IX). Nenhuma regra trata de empate em ação penal decorrente de aposentadoria de ministro. Mas se o Regimento é omisso, como decidirá o Supremo? Talvez recorren- do a princípios. Nesse caso, a presunção de inocência pode ser interpretada como último critério para solução de incertezas jurídicas (in dubio pro reu). Para condenar é preciso ter certeza; no caso, maioria de votos. Não havendo maioria, prevaleceria o status original do cidadão: inocente, até que se prove o contrário. Essa é uma regra que não interessa só aos réus. Interessa a toda a sociedade Mesma regra legal que permitiu fugas evita que haja punição de inocentes Thiago Bottino — Especial para a Folha Há dois tipos de prisão na lei brasileira. Uma prisão-pena, que é resulta- do de uma condenação definitiva. Nosso sistema só admite o início do seu cumprimento depois que o processo termina. E há a prisão-cautelar, como o flagrante, a prisão temporária e a preventiva. Prisão-cautelar vem de cautela. É para garantir que algo não aconteça: que o acusado não fuja, que não ameace testemunhas, que não traga risco à ordem pública. No passado, a prisão era a regra. Havia prisões automáticas. Se fosse condenado em primeiro grau, seria preso. Mesmo se coubesse recur- CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 82 so. Em alguns Estados norte-americanos, isso funciona dessa forma até hoje. Devemos tratar todos como culpados, mesmo que a condenação ainda não seja definitiva? Ou devemos tratá-los como inocentes? O próprio STF tem colocado em liberdade centenas de pessoas contra as quais não havia dados concretos que justificassem a prisão-cautelar. Alguns foram posteriormente considerados culpados, tendo se aproveitado da deci- são judicial para fugir (isso ocorreu com Salvatore Cacciola e Roger Abdel- massih, por exemplo). É verdade que essa regra permite que acusados ainda não condenados de- finitivamente fujam. Mas é essa mesma regra que permite que inocentes não sejam punidos em nome de uma condenação que poderá ser modificada. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 83 AULA 10 — PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (VEDAÇÃO DE AUTOINCRIMINAÇÃO) I — INTRODUÇÃO Um dos mais importantes direitos atualmente é o famoso direito ao si- lêncio. Este direito é provavelmente um dos mais famosos do Direito Penal. Diz-se isto pois é o direito concretizado pelos famosos “Miranda Warnings” dos filmes americanos: “você tem o direito de permanecer calado. Tudo que disse poderá ser usado contra você no tribunal”. A concepção geral sobre este direito é que uma pessoa poderá escolher permanecer calada, como diz o avi- so. Contudo, este direito ganhou vários contornos diversos na jurisprudência brasileira, tornando-se o princípio da vedação de autoincriminação Na Constituição, este princípio é positivado no art.5º, LXII com o se- guinte texto: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de per- manecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. A interpretação de que este pequeno trecho se expande à vedação de au- toincriminação não é clara, contudo de acordo com a princípio de interpre- tação extensiva de Direitos Fundamentais. A primeira mudança importante que este dispositivo trouxe foi a clara não recepção da antiga redação do art. 186 do CPP, que instituia que o silêncio do acusado poderia ser interpretado em prejuizo do mesmo. Deste modo, uma primeira expansão é a proibição da interpretação do silêncio a desfavor do réu, isto já foi completamente incorporado pelo CPP em diversos dispo- sitivos (exemplo: art.198, CPP). Além desta expansão, várias outras foram feitas: o acusado poderá mentir, se negar a colaborar e até tentar fraudar os testes que possam produzir alguma evidência contra o acusado. Um exemplo prático disto é que, com a adoção da lei seca, a percentagem de álcool no sangue passou a ser requisito para ca- racterizar a embriaguez, deste modo, com o princípio em questão, não mais é possível caracterizar a embriaguez sem violar um direito do acusado. Vale notar que a garantia de vedação de auto-incriminação desempenha um papel estruturante na construção de um sistema punitivo compatível com um Estado Democrático de Direito. Embora haja outras garantias igual- mente fundamentais — tais como o juiz natural, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, a vedação de provas ilícitas, a presunção de inocência etc.—, o regime jurídico da auto-incriminação é crucial para a diferenciação entre dois modelos opostos de sistema punitivo: o modelo de- mocrático e o modelo autoritário. Mas qual o alcance dessa garantia? CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 84 II — DINÂMICA DA AULA O aluno deverá identificar situações concretas de aplicação prática do princípio de vedação de autoincriminação e identificar outros contornos que o princípio ganhou pela jurisprudência. IV — LEITURA OBRIGATÓRIA A BUSCA DA VERDADE NO PROCESSO PENAL E A OBTENÇÃO DE TECIDO HUMANO PARA FINS DE EXAME PERICIAL Thiago Bottino. Carta Forense, 05 de outubro de 2010. (http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/obtencao-de-tecido- -humano-para-fins-de-exame-pericial/6067) Quando se define um determinado sistema processual penal, a caracte- rística que mais chama atenção diz respeito aos limites postos à busca da verdade. Pode-se dizer que quanto menor o número de limites na ativida- de investigatória do Estado, mais autoritário é o modelo penal e, de forma oposta, quanto maior o número de limites, mais democrático. Obviamente, essa afirmação deve ser compreendida a partir da premissa de que tais limites somente se justificam quando protegem direitos fundamentais do indivíduo. Em nome da busca da verdade, muitos ordenamentos previam a tortu- ra do suspeito. Esse modelo autoritário encontra defensores até hoje, cujos argumentos a favor da brutalização da autonomia individual em nome do “combate ao crime” vêm travestidos sob a roupagem da supremacia do bem comum sobre os direitos individuais. Nessa percepção, os direitos e garantias fundamentais funcionariam como “obstáculos ao funcionamento eficiente do sistema”. De outro lado, há quem prefira um modelo democrático de processo pe- nal, no qual os indivíduos (sejam culpados ou inocentes) não perdem a pro- teção jurídica da dignidade e têm assegurado o direito de defesa. É o reco- nhecimento de que não se pode exigir do indivíduo um comprometimento maior com a busca da verdade e a realização da justiça penal pelo Estado maior do que o comprometimento que tem — e deve ter — com suaprópria liberdade. Uma questão cada dia mais tormentosa que toca nesse debate diz respei- to à busca de provas no corpo do indivíduo que está sendo investigado. A obtenção compulsória de tecido humano violaria o direito de não se auto- -incriminar? Criada pela Constituição de 1988 e consolidada pelo Supremo Tribunal Federal ao longo de sucessivos julgamentos, a vedação de auto-in- criminação já está incorporada à cultura jurídica nacional. São exemplos do CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 85 exercício dessa garantia: (1) o direito de não responder perguntas e outras formas de inatividade (recusar-se a participar de reconstituição simulada da cena do crime, deixar de fornecer material gráfico ou padrões vocais para exame pericial); e (2) o direito de negar falsamente a acusação, mentir ou mesmo utilizar malícia ao fornecer material gráfico visando a prejudicar as conclusões do exame pericial. Esses comportamentos não acarretam piora na situação processual do acusado (aumento de pena, regime mais gravoso de execução), não configuram crime de desobediência e tampouco podem justi- ficar a decretação de uma prisão cautelar. Estabelecido esse conceito, a questão que se coloca é se haveria alguma restrição para obtenção de material corpóreo (DNA, sangue, tecido) do sus- peito. Em outras palavras: já que não se pode compelir o suspeito a fornecer material, seria possível obter esse material contra sua vontade? Algo como uma autorização judicial para coleta de sangue de um suspeito com a finali- dade de realizar um exame toxicológico ou genético? O direito alemão prevê essa possibilidade (Art. 81-A do Código de Pro- cedimento Criminal), mas a Corte Européia de Direitos Humanos já anulou um julgamento baseado em prova obtida dessa forma, alegando que a vio- lência e brutalidade com que a prova foi colhida, apesar de não caracterizar um método de tortura, reviveu a lógica do sistema inquisitório, segundo o qual a prova da acusação deve provir do próprio acusado (Jalloh v. Germany, julgado em 11/07/2006). No caso, foi administrado um medicamento para que o suspeito regurgitasse as cápsulas de entorpecente que havia ingerido para ocultar da polícia. Nos EUA, uma prova obtida de forma semelhante à de Jalloh também foi considerada ilícita (Rochin v. Califórnia, de 1952). Por outro lado, num caso envolvendo um acidente de trânsito, admitiu-se a coleta de sangue por médico no hospital, enquanto o suspeito estava inconsciente (Breithaupt v. Abram, de 1957, posteriormente confirmado em Schmerber v. Califórnia, de 1966). O critério diferenciador foi a forma de obtenção que, no segundo caso, não “choca a consciência” nem ofende o “senso de justiça”. Mais recen- temente, no caso Winston v. Lee (1985), a Suprema Corte dos EUA proibiu a realização de uma cirurgia que seria realizada com anestesia geral para a retirada de um projétil para exame balístico, por considerar que a magnitude da intervenção constituiria uma medida desproporcional e violaria o devido processo legal. No Brasil, houve poucos casos em que o Supremo Tribunal Federal foi cha- mado a se pronunciar sobre o tema. No Habeas Corpus nº 71.373 (1994), em que se discutia investigação de paternidade e a possibilidade de condução coercitiva do réu para a coleta de material genético e realização de exame de DNA, a Suprema Corte entendeu que tal medida era abusiva. Estabeleceu-se CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 86 ali a doutrina da intangibilidade do corpo humano, como forma de preserva- ção da dignidade humana. Em matéria penal, há o caso da cantora Gloria Trevi, que engravidou quan- do estava presa e alegou ter sido estuprada na carceragem da Polícia Federal. Um juiz atendeu ao pedido dos policiais suspeitos do crime e determinou o exame de DNA a partir de fios de cabelo da criança, de células da mucosa oral, de sangue ou ainda da placenta. Por maioria, o Supremo Tribunal Fede- ral entendeu que a única intervenção possível seria na placenta, tecido morto que não pertencia mais ao corpo da mãe, nem da criança (Questão de Ordem na Reclamação nº 2040, julgada em 2002). Pode parecer que uma amostra de sangue, saliva ou cabelo constitui uma intervenção mínima no indivíduo e que, portanto, deveria ceder ante o inte- resse na busca da verdade. Ocorre que esse é o primeiro passo para a criação de bancos de DNA de suspeitos e, posteriormente, de todo e qualquer cida- dão. E, ao contrário de fotos e impressões digitais, o DNA humano reúne uma quantidade enorme de informações extremamente íntimas que não de- vem estar à disposição de governos e, quiçá, de particulares. A ideia que ani- ma o direito de não produzir prova contra si e de preservar a intangibilidade do corpo humano é impedir que o Estado sucumba à tentação autoritária de buscar a prova do crime por meio do (ou no) sujeito acusado no processo, o que acabaria por reduzir o indivíduo à condição de objeto dos processos e ações estatais, ferindo-lhe a autonomia moral e a dignidade humana. O debate sobre se a intangibilidade do corpo do indivíduo deve prevale- cer sobre a busca da prova penal admite diversos outros argumentos. Com a palavra, o leitor. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 87 AULA 11 — ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO PENAL I — INTRODUÇÃO Trechos do artigo “Análise Econômica do Crime”, de AMARAL, Thiago Bottino Do e SHIKIDA, Pery F. A.. In: Luciano Benetti Timm. (Org.). Aná- lise Econômica no Brasil. 1ed.São Paulo: Atlas, 2012, v. 1, p. 296-317 O objetivo deste texto é fazer um estudo introdutório de Análise Econô- mica do Direito (AED) aplicada ao Direito Penal. (...) Em face do aumento generalizado da criminalidade em todo o Brasil, es- tudiosos e pesquisadores vêm procurando perscrutar este fenômeno social, no intuito de identificar as suas principais causas e propor medidas eficientes que possam melhorar o nível de segurança pública. Para Ib Teixeira, pesqui- sador da Fundação Getúlio Vargas (RJ), o Brasil gasta cerca de R$ 37 bilhões por ano para se proteger de crimes e perde muito dinheiro com a fama de inseguro. Como exemplo, o País perde com a atrofia do setor turístico, seria- mente afetado pela questão da segurança. Outrossim, em dias de parco cres- cimento do PIB, o faturamento de empresas de segurança privada e vigilância eletrônica pode chegar a R$ 8 bilhões e a perspectiva é cada vez melhor, com taxas de crescimento de 10% ao ano (GOLDBERG, 2004). Embora Becker (1968, p.170) tenha colocado que “[...] ‘crime’ is an eco- nomically important activity or ‘industry’, notwithstanding the almost total neglect by economists”, atualmente alguns economistas e demais profissio- nais ligados ao tema da economia do crime têm demonstrado interesse por este problema, posto que o aumento da criminalidade pode arrefecer o nível de atividade econômica de uma região à medida que desestimula novos in- vestimentos, os preços dos produtos são majorados com a incorporação dos custos com a segurança, entre outros. Isto sem considerar que parcela dos recursos e agentes produtivos atuantes no crime poderia estar sendo alocado no setor produtivo lícito da economia, gerando benefícios para a sociedade como um todo. Mas, o que vem a ser crime econômico ou lucrativo? Os crimes são agru- pados de acordo com o bem jurídico que pretendem proteger, sejam eles individuais ou coletivos. Há crimes que atentam contra a vida, o patrimônio, a honra, a administração pública, a administração da justiça, a fé pública, o meio ambiente, o sistema financeiro, a ordem tributária, a ordem econômica e a segurança pública, dentre vários outros. No sentido econômico, o crime pode ser classificado em dois grupos: o lucrativo (furto, roubo ou extorsão, usurpação, estelionato, receptação, etc.) e o não-lucrativo (estupro, abuso de poder, tortura, etc.) (BECKER, 1968). A raiz principal dessa divisãoestá no fato do primeiro grupo visar, em última análise, a obtenção do dinheiro ou de CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 88 9 Competentes revisões de literatura sobre economia do crime, nacional e internacional, foram feitas por Araujo Jr. (2002), Cerqueira e Lobão (2003), Brenner (2009), Mariano (2010) dentre outros. Maiores considerações sobre tais revisões, além de trabalhos empí- ricos sobre esta temática, ver os autores supracitados. coisa alheia (que tenha valor pecuniário) por meios ilícitos (usando ou não o atributo da violência); enquanto o segundo grupo não apresenta esta relação aparente. Neste sentido, o criminoso econômico pode ser encarado como um “em- presário”, o qual é descrito por Schaefer (2000) como um agente que irá organizar a sua produção, reunindo os fatores de produção disponíveis, as- sumindo os riscos inerentes à atividade criminal. As expectativas do “em- presário” criminoso também são de auferir lucro ou prejuízo. No caso de malogro de uma operação ilegal, o prejuízo pode significar punições previstas no Código Penal. Se o crime lucrativo faz parte da questão econômica, as questões nucleares que emergem desta contextualização resumem-se em: quais as circunstâncias socioeconômicas da escolha ocupacional entre o setor legal e ilegal da econo- mia, e por que os indivíduos decidem praticar crimes econômicos? Analisar esses aspectos para uma amostra de réus − julgados e condenados −, oriundos de estabelecimentos carcerários paranaenses, a partir de dados primários ob- tidos via aplicação de questionário seguido de entrevista, poderá contribuir para elucidar questões que outros delineamentos metodológicos não permi- tem inferir. Reconhece-se, portanto, a importância e a necessidade do estudo científico como ferramenta para a elaboração e implementação de políticas de prevenção e combate à criminalidade, com um aspecto diferente, as causas e imbricações da criminalidade lucrativa são explicitadas e discutidas pelo próprio criminoso. (...) O crescimento do número de crimes e a insatisfação com as tradicionais explicações da participação dos indivíduos em atividades ilícitas têm moti- vado os economistas a estudarem com mais afinco a criminalidade (BAL- BINOTTO NETO, 2003). Isso, no entanto, não é recente. Para Araujo Jr. (2002), talvez tenha sido Fleisher (1963) o primeiro autor a relacionar a importância de fatores econômicos na determinação da variação das taxas de criminalidade. Mas, foi Becker (1968), com forte suporte em teoria econô- mica, que fez o clássico trabalho que veio preencher a lacuna existente entre a economia e o crime, e que apresentou “um modelo microeconômico no qual os indivíduos decidem cometer ou não crimes, ou seja, fazem uma escolha ocupacional entre o setor legal e o setor ilegal da economia” (ARAUJO JR., 2002, p.3). A hipótese mor de Becker (1968) é que os agentes criminosos são racionais, calculando o seu benefício de atuar ou não no setor ilícito da eco- nomia.9 No tocante à concepção de Becker (1968), Balbinotto Neto (2003, p.1) expõe que: O argumento básico da abordagem econômica do crime é que os in- fratores reagem aos incentivos, tanto positivos como negativos e que o 9. Competentes revisões de literatu- ra sobre economia do crime, nacional e internacional, foram feitas por Araujo Jr. (2002), Cerqueira e Lobão (2003), Brenner (2009), Mariano (2010) dentre outros. Maiores considerações sobre tais revisões, além de trabalhos empí- ricos sobre esta temática, ver os autores supracitados. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 89 10 Embora até hoje seja comum associar o crime à pobreza e o criminoso com alguém marginal à sociedade, foi o es- tudo pioneiro de Sutherland, apresen- tado em 1939 durante uma conferência conjunta da Sociedade Americana de Sociologia e da Associação Americana de Economia, que afirmou que há pes- soas absolutamente saudáveis e bem criadas que praticam crimes. Ainda segundo Sutherland, as práticas negli- gentes adotadas por grandes empresas ocorriam com a mesma freqüência e de forma tão profissional como crimes praticados por quadrilhas de assaltan- tes. A pesquisa de Sutherland consta- tou que das 70 maiores corporações dos EUA, 100% delas já havia sido condenada pela prática de infrações relacionadas a fraudes fiscais, violações à livre concorrência ou venda de produ- tos defeituosos. A pesquisa constatou ainda a média de 14 condenações por corporação e um índice de 91,7% de reincidência. número de infrações cometidas é influenciada pela alocação de recursos públicos e privados para fazer frente ao cumprimento da lei e de outros meios de preveni-los ou para dissuadir os indivíduos a cometê-los. Para os economistas, o comportamento criminoso não é vista como uma atitude simplesmente emotiva, irracional ou anti-social, mas sim como uma atividade eminentemente racional. A hipótese de que os criminosos econômicos são, per se, doentes mentais, coitados excluídos pela família e/ou sociedade, sem condições de competir pelas alternativas legais do mercado de trabalho, não encontram sustentação na teoria econômica do crime. Estes indivíduos são comumente racionais e impetuosos, oportunistas diante de um ambiente propício e factível, e sem nenhuma preocupação com o lado moral do negócio ou com o bem estar social (BRENNER, 2009). Especificamente nos crimes econômicos, Coleman (1995) relata que as principais causas são a motivação e a oportunidade. A primeira está relacio- nada tanto à personalidade do indivíduo10 como à cultura da competição que caracteriza a sociedade capitalista. Jogam um papel importante nesse “efeito criminógeno” o fato de que o conceito de sucesso esteja diretamente atrelado à riqueza e à manutenção de um alto padrão de vida (aqueles que não alcan- çam tais padrões são vistos como incompetentes ou preguiçosos), fazendo com que haja um sopesamento entre moral e compensação financeira. A mo- tivação para o crime é a crença de que, violando a lei, o indivíduo terá mais prazer e menos dificuldade do que se utilizasse os meios lícitos existentes para ficar rico. Por sua vez, a segunda causa é a oportunidade, entendida como um sope- samento entre quão grande poderá ser o lucro e quão ruim poderá ser a pu- nição. Nesse ponto, são fatores importantes a regulação de determinado setor de indústria ou comércio (quando não há normas de fiscalização e transpa- rência, aumentam as oportunidades de crimes econômicos), as práticas de concorrência predatória de determinado segmento econômico (setores com margem de lucro pequena vêem na sonegação um diferencial competitivo) e a função que o criminoso ocupa na empresa (contadores, diretores e ad- ministradores têm mais e melhores oportunidades de praticarem os crimes econômicos). Este insight da racionalidade do criminoso também está evidente na relação de risco verificada na estrutura de mercado do crime, porquanto numa ativi- dade criminal está implícito o princípio hedonístico do máximo ganho com o mínimo de esforço, isto para variados graus de risco (FERNANDEZ, 1998). “Criminalistas poderiam também descrever alguns criminosos como aprecia- dores do risco, especialmente quando cometem assaltos com grandes possibi- lidades de apreensão e punição” (PINDYCK e RUBINFELD, 1994, p.189). 10. Embora até hoje seja comum as- sociar o crime à pobreza e o criminoso com alguém marginal à sociedade, foi o estudo pioneiro de Sutherland, apre- sentado em 1939 durante uma confe- rência conjunta da Sociedade Ame- ricana de Sociologia e da Associação Americana de Economia, que afirmou que há pessoas absolutamente saudá- veis e bem criadas que praticam crimes. Ainda segundo Sutherland, as práticas negligentes adotadas por grandes em- presas ocorriam com a mesma freqüên- cia e de forma tão profissional como crimes praticadospor quadrilhas de assaltantes. A pesquisa de Sutherland constatou que das 70 maiores corpora- ções dos EUA, 100% delas já havia sido condenada pela prática de infrações relacionadas a fraudes fiscais, violações à livre concorrência ou venda de produ- tos defeituosos. A pesquisa constatou ainda a média de 14 condenações por corporação e um índice de 91,7% de reincidência. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 90 11 “Não é à toa assinalava Bentham que ‘a pena mais econômica será aquela que não cause nem uma partícula de mal que não seja convertido em pro- veito; as penas pecuniárias têm esta qualidade em grau acentuado, pois todo mal que sente o sujeito que a paga converte-se em proveito para o sujeito que a recebe’” (apud SANCHEZ, 2004). Neste contexto, a análise econômica do crime baseia-se fortemente na re- lação delito-punição como determinante da taxa criminal, em que a eficácia policial e judicial relaciona-se com a possibilidade dos benefícios da atividade criminosa suplantarem seus custos e compensarem o risco estipulado (FER- NANDEZ, 1998; BALBINOTTO NETO, 2003). Por isso, o objetivo da sociedade é tornar nulo o retorno lucrativo médio do empresário criminoso e/ou aumentar o risco desta atividade — neste caso, “a ausência de crime pode ser definida como segurança” (JONES, 1977, p.163). Ou seja, a so- ciedade não criminosa procura maximizar os custos da atividade infratora e/ ou minimizar seus lucros. A conclusão de que o crime não deve compensar é a solução ótima a ser perseguida (BRENNER, 2009). Para tanto, a socie- dade deve estar atenta aos elementos coibidores do crime, como melhoria dos aparatos policiais, formação educacional, oferta de trabalho, urbanização planejada, distribuição de renda, etc. (FERNANDEZ, 1998). Por outro lado, é preciso analisar o custo da penalização em relação ao custo da tolerância do delito, pois a criminalização/punição podem se tornar fatos ineficientes. Determinados crimes podem apresentar penas superiores ao custo da tolerância, como parecia ser o caso do crime de adultério (que vigorou até 2005, mas há muito tempo já havia “caído em desuso”), e deter- minadas penas podem apresentar vantagens inferiores para a sociedade no que tange à “readaptação” do criminoso, como é o caso do usuário de drogas (que não é mais punido com pena de prisão desde 2006). Outro dado importante que merece ser considerado é o custo das penas, sendo preferível a aplicação de penas que gerem a mesma eficiência com menor custo, o qual é mais reduzido nas penas pecuniárias e extremamente elevado nas penas de prisão11, muito embora o grau de intimidação destas últimas seja maior que o das primeiras. Assim como outra atividade econômica qualquer, os ganhos na atividade empresarial do crime são incertos e dependem da probabilidade de sucesso de suas operações. Não existem dados que estimem a probabilidade de detenção de um indivíduo no Brasil, mas supõe-se ser menor que verificada nos Estados Unidos, que é de apenas 5%. Isto implicaria dizer que no Brasil a probabilida- de de sucesso no setor do crime pode ser maior do que 95% (FERNANDEZ, 1998). Para Adorno (2002, p.50), “não são poucos os estudos que reconhecem a incapacidade do sistema de justiça criminal, no Brasil — agências policiais, ministério público, tribunais de justiça e sistema penitenciário —, em conter o crime e a violência respeitados os marcos do Estado democrático de Direito.” Diante do crescimento quantitativo e qualitativo do negócio ilícito no mundo, a monta que esta economia específica movimenta é significativa, conforme descreve Fernandez e Maldonado (1999): “para a surpresa de mui- tos especialistas, o tráfico de drogas, que movimenta anualmente algo em torno de US$ 750 bilhões, passou a ser considerado um dos grandes negó- 11. Não é à toa assinalava Bentham que a pena mais econômica será aquela que não cause nem uma partí- cula de mal que não seja convertido em proveito; as penas pecuniárias têm esta qualidade em grau acentuado, pois todo mal que sente o sujeito que a paga converte-se em proveito para o sujeito que a recebe’” (apud SANCHEZ, 2004). CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 91 cios no ranking mundial, perdendo apenas para o setor de petróleo e para a indústria automobilística”. O crime econômico está tomando veemência e atingindo toda a socie- dade. O fito de investigar suas causas enquanto ato exclusivo da espécie hu- mana perpassa por psicólogos, sociólogos, filósofos, advogados, economistas, dentre outros profissionais dos diversos ramos da ciência. Dentre as correntes de pensamento econômico que discutem a economia do crime podem ser destacadas três, segundo compilação de Engel (2003, p.9-10): Uma corrente de origem marxista, que acredita que o aumento da criminalidade, principalmente aquela ligada à prática de crimes lu- crativos, está relacionada às características do processo capitalista e é resultado direto das alterações do comportamento empresarial no pe- ríodo pós-industrial [...]. Os cientistas enquadrados nessa corrente de pensamento acreditam que devido o processo empresarial centralizador de capital e os avanços tecnológicos resultantes, os ambientes sociais tornaram-se mais propensos às atividades criminosas. Segundo essa li- nha de pensamento, o convívio social do capitalismo pós-industrial in- centivou a chamada degeneração moral e assim permitiu o crescimento da atividade criminosa (FERNANDEZ e PEREIRA, 2001). Outra corrente, mais ampla, associa o aumento da criminalidade a problemas estruturais e conjunturais, tais como índices de desemprego, analfabetismo, e baixos níveis de renda bem como a desigualdade so- cial. Pode-se ainda relacionar a esta corrente as ineficiências policiais e judiciais, que contribuem para a manutenção e crescimento das organi- zações criminosas. Fernandez e Maldonado (1999), em seus trabalhos, apontaram para razões dessa natureza. E uma terceira e importante corrente de pensamento da economia do crime analisa a prática de crimes lucrativos como atividade ou se- tor da economia como qualquer outra atividade econômica tradicional (BECKER, 1968). A economia do crime assume que uma pessoa age racionalmente com base nos custos e benefícios inerentes às oportunidades legais e ilegais. Grande parte dessa idéia advém do modelo de escolha ocupacional de trabalho. Na realidade, essa teoria do comportamento criminal baseia-se na suposição de escolha racional proposta por Beccaria e Bentham (EIDE, 1999; MARIA- NO, 2010). Outrossim, fundamentada na sua maioria em modelagens matemáticas, a teoria econômica do crime experimentou mais recentemente alguns avanços no estudo da criminalidade. A partir de citação de Borilli e Shikida (2002, p.198) esses modelos podem ser classificados em: CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 92 • modelo de alocação ótima do tempo — postula que o indivíduo escolhe quanto do seu tempo ele deverá alocar em uma atividade econômica, seja legal ou ilegal, procurando maximizar sua função de utilidade esperada, que depende, fundamentalmente, dos ren- dimentos das atividades legal e ilegal — a atuação no setor ilegal ocorrerá se os custos de operação nessa atividade forem menores que os seus benefícios (BECKER, 1968); • modelo comportamental — procura explicar a atividade criminal através das interações sociais (GLAESER et al., 1996) — segundo Glaeser (1999) citado por Araujo Jr. e Fajnzylber (2000, p.632) “if one person’s criminal activities increases the benefits (or decreases the costs) of his neighbour engaging in crimen then we should expect to find a high variance of crime rates over space”; • modelo de migração — os indivíduos irão avaliar as oportunidades disponíveis nos setores legal e ilegal e poderão migrar para a ativi- dade criminal se os ganhos esperados superarem os custosde migra- ção, no qual estão inclusos os custos financeiros e não financeiros (FERNANDEZ e MALDONADO, 1999) — este modelo é, na realidade, derivado do clássico trabalho de Becker (1968); • modelo de portfólio — a decisão individual em participar do crime ocorrerá mediante escolha de quanto da riqueza deve ser alocada no mercado legal e ilegal, sendo o envolvimento numa atividade de cunho ilegal uma operação considerada mais arriscada (ver: FER- NANDEZ e PEREIRA, 2000). Jones (1977) e Schaefer (2000), por intermédio de uma exposição gráfica, corroboram importantes pontos da teoria econômica do crime. De acordo com o gráfico 1, no eixo da abscissa observa-se o volume de crime e no eixo da ordenada observa-se o retorno líquido médio do crime. O crime, nesta exposição, é um bem negativo, haja vista a suposição da não existência de demanda para este tipo de produto. Ao revés, a sociedade pagará e/ou terá um determinado custo para que o crime não vigore. Desse modo, a curva de demanda negativa D evidencia o preço que a sociedade terá de pagar para coibir/eliminar o crime. A curva D não inicia em zero porque numa socie- dade normal existe sempre algum nível de crime “tolerável” (uma sociedade com segurança total seria utópica; sempre existirão pessoas amantes ao risco no que diz respeito às atividades ilegais) (RODRIGUES, 2007). CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 93 GRÁFICO 1 — Oferta do crime e a curva de demanda negativa para o combate ao crime GRÁFICO 1 – Oferta do crime e a curva de demanda negativa para o combate ao crime FONTE: Adaptado de JONES (1977) e SCHAEFER (2000) Neste panorama, o nível de equilíbrio do crime indica um determinado volume de crime OA, para um determinado retorno líquido médio do crime OB. Supondo uma reformulação dos aparatos policiais, isto é, tornando-o mais eficaz, têm-se o deslocamento da curva de demanda para a esquerda (D1). Isto provoca uma diminuição no volume de crime para OC, e uma redução do retorno líquido médio do crime para OE. Uma situação oposta seria o caso de uma hipotética desestruturação dos aparatos policiais, ou seja, a curva de demanda numa situação inicial D1 seria deslocada para a direita (D). Haveria, portanto, um crescimento do retorno líquido médio do crime de OE para OB, enquanto o volume de crime cresceria de OC para OA. A cursa S representa a + Volume de crime O S A C B E _ D D Retorno líquido médio do crime FONTE: Adaptado de JONES (1977) e SCHAEFER (2000) Neste panorama, o nível de equilíbrio do crime indica um determinado volume de crime OA, para um determinado retorno líquido médio do crime OB. Supondo uma reformulação dos aparatos policiais, isto é, tornando-o mais eficaz, têm-se o deslocamento da curva de demanda para a esquerda (D1). Isto provoca uma diminuição no volume de crime para OC, e uma redução do retorno líquido médio do crime para OE. Uma situação oposta seria o caso de uma hipotética desestruturação dos aparatos policiais, ou seja, a curva de demanda numa situação inicial D1 seria deslocada para a direita (D). Haveria, portanto, um crescimento do retorno líquido médio do crime de OE para OB, enquanto o volume de crime cresceria de OC para OA. A cursa S representa a oferta do crime (quando o retorno líquido médio do crime se eleva, o volume de crime aumenta). CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 94 A escolha pela corrente da economia do crime para nortear 10 anos de estudo (BECKER, 1968) reside no fato de se analisar a criminalidade, de cunho lucrativo, sem perder de vista a associação deste fenômeno com pro- blemas estruturais e conjunturais do contexto socioeconômico em que o in- divíduo criminoso se insere, e admitindo que o comportamento criminoso não é visto como uma atitude irracional, emotiva ou anti-social, mas sim como uma atividade racional em que o criminoso, notadamente o econômi- co, é considerado um agente que assume riscos. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 95 THIAGO BOTTINO Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Ja- neiro (1999), Mestre (2004) e Doutor (2008) em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. ; Pós-Doutor (visiting scholar) na Columbia Law School (2014); Professor Adjunto da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas e Coordenador do Cur- so de Graduação em Direito. Leciona as disciplinas Crime e Sociedade, Direito Penal Econômico e Direito Processual Penal na Graduação e na Pós-Graduação lato sensu. É professor do curso de mestrado em Direito e Regulação, lecionando a disciplina Reflexos Penais da Regulação Eco- nômica.; Membro efetivo do IAB onde integra a Comissão Permanente de Direito Penal.; Membro da Comissão de Estudos Penais da OAB/RJ.; Coordenou projeto de pesquisa sobre as medidas cautelares no Proces- so Penal em parceria com o Ministério da Justiça e com financiamento do PNUD (base para o PL nº 2902/2011, em tramitação na Câmara dos Deputados). ; Coordenou projeto de pesquisa sobre Habeas Corpus na condição de Pesquisador-Visitante do IPEA (2014).; Integrou a Comis- são de Exame de Ordem da OAB/RJ e a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, tendo recebido a Medalha Chico Mendes oferecida pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ por sua atuação nesse período.; Autor de livros e artigos sobre Direito Penal e Processual Penal, tendo proferido palestras no Brasil e no exterior (Alemanha, França e Índia).; Link para o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3134056986747443 COLABORADORES Colaboraram na elaboração dessa apostila em 2013 a ex-aluna Paloma Caneca e o aluno da Graduação Arthur Lardosa dos Santos.; Colaborou na elaboração dessa apostila em 2014 o aluno da Graduação David Casz Schechtman. CRIME E SOCIEDADE FGV DIREITO RIO 96 FICHA TÉCNICA Fundação Getulio Vargas Carlos Ivan Simonsen Leal PRESIDENTE FGV DIREITO RIO Joaquim Falcão DIRETOR Sérgio Guerra VICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO Rodrigo Vianna VICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO Thiago Bottino do Amaral COORDENADOR DA GRADUAÇÃO André Pacheco Teixeira Mendes COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA Cristina Nacif Alves COORDENADORA DE ENSINO Marília Araújo COORDENADORA EXECUTIVA DA GRADUAÇÃO BLOCO 1 – Direito Penal Aulas 01 e 02 — Princípio da Legalidade (taxatividade, reserva legal, vedação ao uso do costume; vedação de analogia) Aula 03 — Princípio da legalidade (anterioridade) Aula 04 — Princípio da legalidade (insignificância) BLOCO 2 — SISTEMA PENAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Aulas 05 a 07 — Preparação para o Júri Simulado Bloco 3 — Direito Processual Penal Aula 08 — Princípio do devido processo legal (vedação de prova ilícita) Aula 09 — Princípio do devido processo legal (presunção de inocência) Aula 10 — Princípio do devido processo legal (vedação de autoincriminação) Aula 11 — Análise Econômica do Direito Penal