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www.lumenjuris.com.br EditoresEditoreses João de Almelmeidaida João Luiz da Silvalva Al Almeida Conselselho ho EdiEditorial Adriano Pilatti Alexandre Morais da Rosa Cezar Roberto Bitencourt Diego Araujo Campos Emerson Garcia Firly Nascimento Filho Frederico Price Grechi Geraldo L. M. Prado Gina Vidal Marcilio Pompeu Gustavo Noronha de Ávila Gustavo Sénéchal de Goffredo Helenaena El Eliasias Pinto Jean Cn Carlos os Fernandes João Co Carlos os Souto João Marcarceloelo de de Li Lima ma AssAssafim João Theotonio Mendes de Almeida Jr.João Theotontonio io MenMendesdes de de Al Almeida Jr. José Eé Emílio Medauarr Lúcio AntAntôniônio Chamhamon JunJunior Luigi gi BonBonizzizzatoato Luis Carlos Alcofooforadoo Manoel Messias PeiPeixinhoho MarMarcellus Polastritri Limama Marcelo Ribeiro Uchôa Marco Aurélio Bezerra de Melo Marcos Chut Nilo Batista Ricardo Lodi Ribeiro Rodrigo Klippel Salo de Carvalho Sérgio André Rocha Victor Gameiro Drummond Sidney Guerra Victor Gameiro Drummond Conselheiro benemérito: Marcos Juruena Villela Souto (eméemérito: o: Marcos Juruena na VilVillellela Sa Souto (in memoriamin o ( ) ConConselho Consulsultivoo Andreya Mendes de Almeida Scherer Navarroa Schecherer Na Navarvarroro Antonio Carlos Martins Soarestins Soaroares Artur de Brito Gueiros Souzas Souzouzaa Caio de Oliveira Limaa Lima Francisco de Assis M. TavaresFraFrancincisco de de Gisele CittadinoGisGisele Ricardo Máximo Gomes FerrazRicardardo Mo Máxi Filiais Sede: Rio de Janeiro Centro – Rua da Assembléia, 36, salas 201 a 204. CEP: 20011-000 – Centro – RJ Tel. (21) 2224-0305 São Paulo (Distribuidor) Rua Correia Vasques, 48 – CEP: 04038-010 Vila Clementino – São Paulo – SP Telefax (11) 5908-0240 Minas Gerais (Divulgação) Sergio Ricardo de Souza sergio@lumenjuris.com.br Belo Horizonte – MG Tel. (31) 9296-1764 Santa Catarina (Divulgação) Cristiano Alfama Mabilia cristiano@lumenjuris.com.br Florianópolis – SC Tel. (48) 9981-9353 Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2014 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO - Prof. Dr. Paulo de Tarso Brandão ................... IX PREFÁCIO - Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa ........................ XI PREFÁCIO - Prof. Dr. Paulo Cesar Busato ................................. XIII NOTA DOS AUTORES ................................................................ XIX PARA QUE(M) SERVE O DIREITO PENAL? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social ........................... 1 1. Para introduzir o tema ....................................................... 1 2. Para que (m) serve o Direito Penal? ................................. 13 3. Os segmentos informais de controle social ....................... 26 3.1 Primeiro Segmento do Controle Informal: família (Pai e mãe, onde vocês estão?) .............................. 29 3.2 Segundo Segmento do Controle Informal: escola (Ensinar ou educar?) ............................................... 38 3.3 Terceiro Segmento do Controle Informal: mídia (Você assiste; eu controlo!) ..................................... 51 3.4 Quarto Segmento do Controle Informal: religião (Quanto custa a sua fé?) ....................................... 72 3.5 Quinto Segmento do Controle Informal: moda, modismo e hiperconsumo (Não queremos ficar à margem!) ......................................................................... 79 3.6 Uma reflexão (a) final ................................................. 84 4. Os segmentos do controle social institucionalizado ......... 86 4.1 Primeiro Segmento do Controle Formal: a lei penal como instrumento de regulação da coexistência social ........................................................ 95 4.1.1 O Processo de Criminalização Primária ................. 99 4.1.2 A desigualdade refletida em outros ramos do direito: critérios para a (des) legitimação da norma penal ....... 119 4.1.3 Cifras da Ineficiência da Justiça: a questão da Cifra Negra da Criminalidade ................. 131 4.2 O Processo de Criminalização Secundária ................ 140 4.2.1Segundo Segmento do Controle Formal: as polícias (Crimes combatidos ou pessoas perseguidas?) .............. 143 4.2.2 Terceiro Segmento do Controle Formal: o Ministério Público e o Poder Judiciário ..................... 159 4.2.3 Quarto Segmento do Controle Formal: a prisão (o instrumento central de controle social) ................... 171 4.2.3.1 A (des) integração social do condenado: uma análise de “quem punir” por meio do cárcere ... 173 4.2.3.2 A (des) integração social do condenado: uma análise de “como punir” por meio do cárcere ... 186 4.2.3.3 Ambiente carcerário e fatores criminógenos: discurso preventivo, prática repressiva ..................... 188 4.2.3.4 A Violência intramuros: o panoptismo disfuncional no (des) controle interno da prisão ...... 196 4.2.3.5 A crise da ideologia do tratamento ressocializador ........................................................... 201 5. Palavras Finais ................................................................ 211 6. Referências das fontes citadas ........................................ 225 XIX NOTA DOS AUTORES Chegou a hora do esquecimento. Chegou o tempo de de- saprender os saberes outrora aprendidos. Com esta proposta, o filósofo francês Roland Barthes provocou espanto na academia, já que o esquecimento nos traduz, vulgarmente, a ideia de perda, desapego e empobrecimento, o que é oposto ao sentido de apren- der, onde educar é acrescentar. Como poderia, então, alguém sus- tentar que o esquecimento é necessário para o aprendizado? Para Barthes, o esquecimento é um processo pelo qual o cor- po raspa de sua pele as sedimentações operadas pelo passado, mor- tas, sem mais serventia. Analogicamente, o mesmo deve acontecer com a informação outrora absorvida: para renascer, temos que es- quecer. A educação é um processo de sucessivas demãos de tinta sobre o corpo: cascas. O esquecimento e a desaprendizagem são as sucessivas raspagens em busca do esquecido1. Barthes propõe o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedi- mentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. É deixar o sabido e lançar-se ao desconhecido, especialmente, por- que os horizontes interpretativos estão abertos para o leitor ativo. 2 A partir desta premissa, podemos compreender o ensino em duas frentes: a) ensino do que já é conhecido: é o processo mais básico. É ensinar aquilo que aprendemos e que se resume em re- passar aos novos o conhecimento absorvido pela tradição. Neste processo, não há nada de novo. Trata-se apenas de uma continu- ação do saber, do que já foi dito; b) ensino do desconhecido: aqui se ensina o que não se sabe. Este processo apoia-se no passado, volta-se ao futuro e se aperfeiçoa no campo da pesquisa. 1 ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer. São Paulo: Editora Planeta, 2011, p. 54-55. 2 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1996. XX Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni Ambos os ensinos são necessários. O segundo é continuação do primeiro e dele necessita para avançar. O que não podemos, é nos contentarmos apenas em conhecer o “conhecido”. Nesta perspecti- va, ensinar a pesquisar é (deveria ser) o objetivo maior da educação. O que nos motivou a escrever este livro foi a necessidade de contribuir com o esquecimento do passado, com o que é continu- amente ensinado (e não refletido) sobre os sistemas de controle social, especialmente o Direito Penal e os instrumentos que atu- am em seu nome (com fundamento nele). A proposta do trabalho é superar o senso comum teórico das academias e o senso comum folclórico das ruas para, enfim, impulsionar o leitor a buscar novos caminhos a partir da reflexão críticado Direito Penal. A particularidade desta obra não está no conteúdo aborda- do, que já foi fruto de estudo por inúmeros juristas, sociólogos e criminólogos mundo afora, mas na estruturação do trabalho que, de forma sistematizada, procura refletir os segmentos de controle social informal e formal que julgamos os mais importantes para a (des)configuração e (des)construção social. O estudo poderia ser dividido em duas grandes partes: uma primeira que trata dos segmentos de controle social informal; e uma segunda que cuida dos segmentos formais de controle. No entan- to, uma advertência é aqui necessária: apesar de estruturalmente possível, essa separação não é aconselhável, ao menos num nível de compreensão dos sistemas de controle. Inquietações como “Por que o controle funciona seletivamente?” “Em que circunstâncias alguém pode ser objeto de controle?” “Quais os efeitos sobre a pessoa contra quem recai o controle?” são avaliadas, refletidas e respondidas ao longo da obra. Para tanto, realizamos uma análise sistemática dos segmentos que atuam no controle social, que muito transcendem as suas frações formais (controle social institucionalizado). Não por outra razão, a família, a escola, a mídia, a religião e o consumismo são tratados num plano inicial. Aqui, será possí- vel verificar a importância de cada uma dessas frações de controle, XXI Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social suas eventuais falhas e o reflexo dessa deficiência no plano social, a partir do que, mostrar-se-á bastante evidente a eminência parda que maliciosamente conduz cada uma dessas frações de controle social. Num segundo momento, passaremos a avaliar a atuação das fra- ções que guardam mais significativa repercussão no controle formal institucionalizado e que abrange, também, o Sistema Penal. Neste caso, o estudo recairá sobre a lei penal, a polícia, o Ministério Público, a Justiça (atuação dos juízes e tribunais) e, por fim, sobre a prisão. Após a leitura, será possível verificar que o denominador comum de todos esses segmentos é a sua fatal e discriminatória seletividade. Acreditar, hoje, que esses sistemas de controle foram elaborados e instituídos para todas as pessoas em nome de um bem comum só pode ser sustentado diante de uma incomensurá- vel ingenuidade. Precisamos abrir os olhos e enxergar um pouco além daquilo que nos mostram (ou nos querem mostrar): além do discurso dos professores nas salas de aula, muitas das vezes mani- pulados ou amordaçados nas palavras pelo estado que os paga o mísero salário; além daquilo que noticia a televisão, que mais com- promisso tem com o patrocinador que garante sua manutenção do que com o destinatário do conteúdo transmitido; além do teor ofertado (ou imposto) pelo padre ou pastor da igreja que frequen- ta; além dos padrões de modismo que ditam as regras daquilo que devemos vestir, com o que devemos nos alimentar, os locais que precisamos frequentar, etc.; e além, muito além do falso discurso de que o Direito Penal causa melhoramentos na sociedade e trans- forma pessoas para melhor. Na verdade, a constatação é que todos esses segmentos são operados por uns para que se aplique a outros. Não podemos mais ficar inertes assistindo o que se passa. Não somos apenas telespectadores. Para melhor compreender a marca registrada dos segmentos de controle – a seleção de pessoas - pre- cisamos nos colocar como protagonistas desse fenômeno, ora na condição de agentes de controle, ora como alvos e sujeitos que sofrem as consequências desse mesmo controle. Como lembrou XXII Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni Zaffaroni3, nosso poder é o poder do discurso. É o que temos. Mas o discurso, para expor as feridas, precisa ser renovado. E essa afir- mativa pode ser extraída a partir das lições da filosofia de quase três séculos. David Hume, por exemplo, já anotava que o ser humano é uma “coleção de diferentes percepções”, pois não pode resistir a todas as mudanças pelas quais viveu. Assim, não se pode dizer que alguém é exatamente a mesma pessoa que era em qualquer momento do passado. Daí, o “desaprender” é imprescindível quan- do há necessidade de se incorporar novas experiências (Roland Barthes). Não na forma de negação do saber, mas na configuração de complementaridade, por mais paradoxal que isso possa parecer. Enfim, o estudo reflete a experiência que o discurso ganha maior legitimidade na medida em que maior reflexo traga na conten- ção (limitação) do poder punitivo do Estado. Só assim poderemos legitimar o poder do nosso discurso, mesmo cientes que “a capaci- dade para agir é a mais perigosa de todas as aptidões e possibilidades humanas” 4. A dúvida que resta é a seguinte: perigosa para quem? Itajaí/SC, maio de 2014. Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni 3 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Debates in KARAM, Maria Lúcia (org).Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lu- men Juris, 2005, p. 34. 4 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed., São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 95. 1 PARA QUE(M) SERVE O DIREITO PENAL? UMA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DA SELETIVIDADE DOS SEGMENTOS DE CONTROLE SOCIAL 1. PARA INTRODUZIR O TEMA Uma das maiores dificuldades da produção de um escrito é saber exatamente por onde começar. E a dificuldade desse pon- ta-pé inicial é diretamente proporcional à sua importância, pois ali se inicia o processo de organização de ideias na tentativa de argumentar acerca do objeto já delimitado. Já registrou Eduardo Galeano1 que, na arte da escrita, em todo o resto, o começo é o mais importante. Tão fundamentais como os primeiros tijolos de uma casa ou de um templo. Ludwig Wittgenstein2 dizia que é muito difícil encontrar o começo, ou, melhor dizendo, é difí- cil começar no começo e, depois disso, não tentar recuar a ele. No caso do estudo que aqui se propõe, o recuo parece mesmo inevitável. Não porque o caminho que se pretende traçar é con- siderado inadequado, mas, especialmente, porque a densidade do objeto que pretendemos analisar neste livro requer avaliação sistemática, sobretudo, em razão do ruidoso afastamento entre o eixo daquilo que ressoa teoricamente e o eixo da experiência real de qualquer indivíduo que exerce atividade no âmbito da justiça 1 GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. 2. ed. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 16. 2 WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Trad. Maria Elisa Costa. Lisboa: Edições 70, 1969. § 471. 2 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni criminal. Essa discrepância existente entre a teoria e a prática no campo do Direito Penal, tão evidente para alguns, não parece se apresentar manifesta para a maioria das pessoas3. Talvez porque exista um aparente deslocamento do objeto observado (Direito Penal), que é causado por mudanças no posicionamento dos pró- prios observadores, fenômeno que pode ser explicado por meio da paralaxe cognitiva4, muito bem trabalhada pelo professor e filósofo Olavo Luiz Pimentel de Carvalho. Agradar e confortar não estão entre os objetivos do estudo que aqui iniciamos. Se assim o quiséssemos, cremos que melhor seria traçar um panorama que parece mais equitativo para a maioria dos leitores, pois, como registrou Platão5 no diálogo entre Fedro e Sócrates, “para quem quer tornar-se orador consumado não é indispensável conhecer o que de fato é justo, mas sim o que parece justo para a maioria dos ouvintes, que são os que decidem; nem precisa saber tampouco o que é bom ou belo, mas apenas o que parece tal – pois é pela aparência que se consegue persuadir, e não pela verdade”. Talvez por isso a humanidade tenha tanto a aprender com os camaleões. Eduardo Galeano6 já dizia que es- ses animaizinhos, peritos no disfarce, revelamtambém essa ca- racterística muito bem delineada no ser humano, especialmente naquilo que o autor chama de “dupla linguagem dos artistas da dissimulação”. Neste caso, uma moral é refletida no discurso (no dizer); outra na prática (no fazer). Quem sabe, por isso, a conso- nância entre o “dizer” e o “fazer” não precisa guardar qualquer correspondência para que seja tomado como “aceito” ou então, “legítimo” pelo seu destinatário. Explicamos com um exemplo de incomensurável importância simbólica: 3 Sobre a lógica do direito de punir, ver Fabiano Oldoni in Aquisição da propriedade ilícita pela usucapião. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. 4 Trata-se do deslocamento entre o eixo da construção teórica de um pensador e o eixo da sua experiência humana real. 5 PLATÃO. Fedro. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 98. 6 GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 176. 3 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social O tema “redução da maioridade penal” ressurge sempre que se tem um ilícito penal de grande repercussão nacional envolvendo, como autor da infração, criança ou adolescente. A partir disso, a mí- dia clama por penas exemplares, encarceramentos e instrumentos que aparecem camuflados no perigoso discurso: “algo precisa ser feito”. Esse “algo” a que se referem é “uma dose a mais de Direito Penal”. Enraíza-se, então, um macabro consenso por meio de um in- tenso bombardeio de justificativas, todas elas, extremamente pro- pensas a se utilizar do sistema repressivo em um instrumento polí- tico promocional de bem viver. Acredita-se, num primeiro plano, que os problemas da criminalidade infanto-juvenil e segurança pública serão resolvidos com o encarceramento de alguém. Tanto isso ocorre que, em pesquisa do Datafolha7 divulgada em abril de 2013, constatou-se que 93% dos moradores da cidade de São Paulo concordam com a diminuição da idade em que uma pessoa deve responder criminalmente por seus atos. A mesma pesquisa revelou que apenas 6% dos entrevistados eram contra a redução. Em consultas anteriores, em 2003 e 2006, a aprovação à medida pelos moradores da cidade foi de 83% e 88%, respectivamente. Em nível de Brasil, a pesquisa da CNT8 (Confederação Nacional do Transporte), feita em parceria com o instituto MDA, divulga- da em junho de 2013, revelou que a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos é aprovada por 92,7% dos brasileiros. A peça publicitária sustentadora da redução da maioridade penal – muito bem desenhada – concentra-se em algumas premissas bastante divulgadas e incorporadas ao discurso: a) é cada vez maior o número de menores envolvidos em práticas criminosas; b) o Es- tatuto da Criança e Adolescente não é eficaz, porque as respostas (“medidas socioeducativas”) nele previstas são muito brandas; c) os autores intelectuais dos crimes (maiores) se utilizam dos menores 7 BENITES, Afonso. Folha de São Paulo. 93% dos paulistanos querem redução da maioridade penal. Matéria veiculada em 17/04/2013. 8 DOURADO, Kamilla. Portal R7 Notícias. Mais de 90% da população aprova a redução da maioridade penal. Matéria veiculada em 11/6/2013. 4 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni para sua prática; d) para reduzir essa violência promovida pelo pú- blico juvenil, o Direito Penal é a saída mais rápida e eficaz. Esse “sa- ber” jurídico e o sistema de comunicação de mídia produzem uma realidade irreal, e que não dá espaço para que as pessoas permitam perceber a deslegitimação perante os problemas colocados. A discussão deixa os bancos das Academias de Direito para invadir a sociedade, que com o apropriar dos meios de comuni- cação de massa, torna toda e qualquer pessoa legitimado para proferir juízos sobre o Direito Penal. Todos têm respostas prontas, criativas e brilhantes quando o tema em voga é criminalidade (ainda que imaginária) e a solução que deve se ofertar a ela.9 A filosofia10 tem demonstrado, ao longo dos séculos, que o que torna um objeto dificilmente compreensível é o contraste entre a compreensão do objeto e aquilo que a maior parte das pessoas quer ver. Por isso, o que deve ser superado não é uma dificuldade de enten- dimento que se tem sobre o Direito Penal, mas da vontade de enxer- gá-lo como ele realmente se mostra, pois, como registrou Wittgens- tein11, o fato de algo que parece ser, não se segue que o seja realmente. Extrai-se, então, uma vontade quase que insuperável de se en- contrar, no Direito Penal, um efeito farmacológico na redução daqui- lo que se convenciona politicamente como comportamentos indese- jáveis, desconexão que é denunciada há pelo menos três décadas por autores adeptos àquilo que se denominou criminologia crítica. A dificuldade, então, está em compreender as meticulosas e perceptivas funções do Direito Penal a partir desse ponto, já que, em tempos de (des) informação, qualquer âncora de um tele-jornal de boa audiência é capaz de fornecer guarida e limites às políticas criminais, vez que influencia diretamente a opinião pública que, por sua vez, não faz ideia, ou então, comporta uma vaga ideia, uma 9 CARVALHO, Amilton Bueno. Direito Penal a Marteladas (algo sobre Nietzsche e o Direito). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 40. 10 TOLSTÓI, Liev. Apud WITTGENSTEIN, Ludwig. Filosofia. Trad. Antônio Zilhão. In Manuscrito. Vol. XVIII. Nº. 2. São Paulo: Unicamp, 1995, p. 5. 11 WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Trad. Maria Elisa Costa. Lisboa: Edições 70, 1969. § 1. 5 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social noção puramente abstrata daquilo para o qual o Direito Penal se apresenta. E isso já se inicia nos bancos dos Cursos de Direito. É que, sedimentou-se no senso comum de que a criminologia se limita à dimensão reflexiva acadêmica, sem conteúdo prático no âmbito das políticas criminais. Talvez por isso que a esmagado- ra maioria dos cursos de direito tem relegado o estudo da crimino- logia a um âmbito optativo ou mesmo excluído a disciplina de suas grades curriculares. Além disso, quando dispensada uma cadeira, a investigação da criminologia em si, via de regra, trabalha-se com a criminologia positivista, tratamento que vem sendo muito bem anunciado pela Prof. Dra. Vera Regina Pereira de Andrade12: a disciplina Criminologia ocupa pouco espaço no Ensino Jurídico e as “Criminologias Críticas”, pouco espaço na Criminologia. Em termos gerais, a Criminologia propõe observar as ciên- cias criminais a partir de fatos concretos, inseridos no cotidia- no e que fazem parte do nosso dia-a-dia. Devemos lembrar que, quando não diretamente visualizados, esses fatos chegam até nós por meio de uma gama de veículos extremamente diversificados, alguns deles, pouco confiáveis. A informação e a credibilidade do transmissor daquele que informa determinado fato deve ser, en- tão, verificada com cuidado máximo. Uma consciência crítica se faz imprescindível frente às complexidades que nos são colocadas com máxima frequência no mundo contemporâneo. Não queremos aqui, dizer que o estudo da criminologia é de uma importância maior do que as demais disciplinas. Mesmo por- que, isso seria uma tarefa que, consideramos, num aspecto sistê- mico, impossível. Um eventual exercício comparativo para tanto, demandaria de técnicas bem diversificadas àquelas empregadas no presente livro. No entanto, é oportuno lastrear e dimensionar o peso da Criminologia dentro das Ciências Jurídicas, especial- 12 ANDRADE. Vera Regina Pereira de. Por que a Criminologia (e qual Criminologia) é im- portante no ensino jurídico? Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas. RECJ. 05.05/08. Disponível em www.pgj.ma.gov.br/ampem/ampem1.asp. Acesso em 28 de janeirode 2013. 6 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni mente na formação intelectual e prática daquele que militará, em qualquer de suas esferas, na Justiça Penal. Isso facilitará que possibilitemos enfoques diversificados e que resultem em algumas aberturas nas rígidas construções dog- máticas que tomam conta do universo jurídico. E essa rigidez da qual tratamos não é fruto do acaso. Há um discurso legalista que toma conta de todas as esferas de atuação no âmbito da justiça penal. As instituições acadêmicas, via de regra, norteiam as dis- cussões fundamentadas numa interpretação exegética, análise de textos, comparativo entre legislações e decisões judiciais. Pouco se questiona. As respostas estão: a) No texto legal (porque está escrito); b) Nos precedentes dos tribunais (porque é assim que já se decidiu). Com relação à primeira resposta (porque está escrito), é pre- ciso entender que o sentido da norma jurídica (norma + regra + princípio) demanda um círculo hermenêutico, fundamentando, essencialmente, na filosofia da linguagem,13 de ordem objetivada e pública, ao invés daquela superada concepção introspectiva e privada, própria da filosofia da consciência. Todo texto legal, para comportar legitimidade empírica, deve ser interpretado a partir des- sa tríade. Não fosse assim, “um bom linguista ou professor de por- tuguês seria o melhor jurista”14, porque bastaria avaliar “aquilo que está escrito” sem situá-lo no plano concreto do mundo. Conforme Streck, por razões de baixa densidade hermenêutica, os intérpretes (tribunais, etc.) lançam mão de ampla discricionariedade. Como os tribunais não estão acostumados a julgar principiologicamen- te e, sim, politicamente, acaba predominando o seguinte: quando interessa, vale a palavra da lei, a sua sintaxe, o verbo nuclear, etc.; quando não interessa, as palavras são fugidias, líquidas e amorfas. 13 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 2. 14 STRECK, Lenio. É possível fazer direito sem interpretar? In Consultor Jurídico. 19 de abril de 2012. 7 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social E existem boas razões empíricas para se sustentar isso. A decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, na Ação Penal 565(Caso Senador Ivo Cassol - PP-RO), que, em um dia decide com base na “letra” da Constituição que é o Congresso que tem o poder de cassar mandatos e, dias de- pois, determina a anulação da decisão do Congresso que não cas- sou o mandato do Deputado Donadon (Mandado de Segurança 32.326), desta vez com base em argumentos metajurídicos.15 A Ação Penal 470 havia sedimentado posição do Supremo no sentido de que, quando havendo condenação criminal definitiva de mandatário de cargo eletivo, a cassação do mandato seria conse- quência automática da pena, independente de qualquer manifesta- ção da Casa Legislativa. O Caso Cassol, porém, trouxe outro rumo de entendimento. Na Ação Penal 565, a perda do mandato eleti- vo passou a depender de decisão das Casas Legislativas, na forma como dispõe a CRFB/88. Como se vê, muito mais se enaltece uma Filosofia da Consciência, pois é possível que se extraia da norma absolutamente qualquer sentido, um hoje, outro amanhã. Outro ponto que, neste aspecto, julgamos ser alvo necessá- rio de debate e que está intimamente atrelado à questão do texto legal positivado, é o alcance da interpretação que se dá àquilo que “está escrito”. Para exemplificar, não é difícil encontrar alguém que pretende explicar sobre tudo aquilo que as pessoas falam que existe ou que acontece. Quando dizemos que “é cada vez maior o número de menores envolvidos em práticas criminosas” (pre- missa registrada para fundamentar a necessidade de redução da maioridade penal), temos que essa afirmação pode ser verdadeira, pois se relaciona com uma maneira adequada de avaliar a questão numérica de menores alcançados pelas agências de repressão em razão de envolvimento em práticas de atos infracionais. Por outro lado, quando falamos “para conter a criminalidade infanto-juve- 15 Exemplo ofertado por STRECK, Lênio. Como se mede a “régua” para aplicar a lei: quem a fixa? In Consultor Jurídico. 24 de outubro de 2013. 8 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni nil, temos que encarcerar os menores envolvidos nessas práticas”, o que dizemos é falso, e aqui temos um problema, pois a primeira premissa (sobre o aumento de registro de atos infracionais) não per- mite que concluamos isso, pelo que, essa afirmação simplesmente não pode ser o elemento legítimo dessa relação. E por que não? A maioria das pessoas não nota que ignora a essência das coisas, o que não os impede de acreditar erroneamente que a co- nhecem.16 Falamos muitas coisas que simplesmente não o são, ou então, são falsas. E isso não exclui por completo a possibilidade de se encontrar verdade nesta fala, pois uma coisa é o discurso, ou- tra é o significativo que ele comporta. Isso é bastante evidente no plano midiático. Discursos de âncoras que nada dizem. O discurso, porém, é verdadeiro. Ele está lá, basta ter ouvidos para recebê-lo. Ele gera efeitos, gera consequências. O problema dele (do discurso) está na carência de seus significados, ou, conforme a filosofia da linguagem, trata-se de ideia alguma. É como se falássemos “Papai Noel existe!” A frase é verdadeira, mas não seu significado, embora ainda possa conter algum significativo para alguns seres humanos de tenra idade e que, por questões culturais, são submetidos (ainda que temporariamente), ao mundo da fantasia. Para compreender as verdadeiras funções do Direito Penal dentro da nossa sociedade, portanto, temos que fechar as portas para a fantasia e transitar no mundo do real. Assim, pretendemos, com esta obra, abater dogmas (verdades absolutas) que dão sustentação, desde sempre, a essas fantasias. Em contrapartida, objetivamos direcionar as luzes ao dis- curso oculto, mas latente e verdadeiro do Direito Penal e das ins- tâncias de controle social formal e informal que o cercam. A segunda resposta (porque assim já se decidiu) se encontra mais voltada ao campo do Direito Processual Penal e não é menos preocupante. Conforme Alexandre Morais da Rosa17, a situação chega a ser patológica. É que as gerações antecedentes, a saber, os 16 PLATÃO. Fedro. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 69. 17 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 2. 9 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social atuais atores jurídicos, em grande parte, não sabem também com- preender e reproduzir uma cultura democrática. Esses, portanto, acreditam que trabalhar o Direito é fazer “feira da jurisprudência”. O problema de “fazer feira” é que, desse modo, eternalizam-se precedentes que beiram o absurdo, para dizer o mínimo. Exemplo disso pode ser extraído da problemática levantada em torno da (im) possibilidade de progressão de regime prisional para os condenados pela prática de crimes hediondos e equiparados. Ve- jam que a CRFB/88, ao criar a figura do crime hediondo no art. 5º, XLIII, não fez qualquer menção à vedação de progressão de regime, e tampouco receitou tratamento penal stricto sensu mais severo, quer no que tange ao incremento, quer no tocante à execução das penas. No entanto, dois anos mais tarde, com a entrada em vigor da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), passou-se a decidir pela impos- sibilidade absoluta de progressão de regime prisional para os condena- dos dessa estirpe, pois a lei referida, em seu artigo 2º, §1º, anotava que a pena deveria ser cumprida em “regime integralmentefechado”. O dispositivo que tolhia o direito a progressão era, notada- mente, inconstitucional, sobretudo, diante das várias facetas que compreendem o princípio da individualização da pena. No entan- to, por 15 anos ele surtiu efeitos jurídicos em todas as cortes e ins- tâncias do Brasil, sob o prisma da constitucionalidade. Para exem- plificar, leia-se: “Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário constitucional contra decisão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça. 2. Estupro e atentado violento ao pudor praticado contra menores (arts. 213 e 214, ambos c/c art. 224, alínea “a”, do Có- digo Penal). 3. Alegação de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, quando aplicada a regra do art. 224, alínea “a”, do CP, não se caracterizam como hediondos. 4. Improcedência da alegação. 5. Incurso o paciente nos arts. 213 e 214, independen- temente de a violência ter sido real ou ficta, a pena deverá ser cumprida em regime integralmente fechado, por força do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072 , de 1990. 6. Precedentes: HC 81288, Rel. Min. Mauricio Corrêa, Red. Acordão Min. Carlos Velloso; 10 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni RHC 82.098/PR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 29.11.02. (STF - Habeas Corpus nº 82712 – RJ, 2ª Turma, Rel. Min. GILMAR MENDES, j. 20/05/2003, D.J.U. de 27/06/2003, p. 54).18 No ano de 2006, no julgamento do Habeas Corpus 82.959, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitu- cionalidade do § 1º, do art. 2º, da Lei dos Crimes Hediondos, sustentando, dentre outras considerações, que a vedação abso- luta a progressão de regime para determinados tipos de crimes só poderia ser realizada por norma de hierarquia constitucional.19 A partir desse exemplo, é possível notar o quão desastroso pode ser o direito produzido a partir daquilo que Alexandre Morais da Rosa chama de “feira de jurisprudência”. A norma constitucio- 18 Idêntico posicionamento acerca da impossibilidade de progressão de regime prisional anterior a 2006 pode ser extraído em pesquisa a qualquer tribunal brasileiro. Desta- camos aqui, também, o Superior Tribunal de Justiça: CRIMINAL. RECURSO ES- PECIAL. EXECUÇÃO. REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA. HOMICÍDIO QUALIFICADO, LESÕES CORPORAIS GRAVES E TRÁFICO DE ENTORPE- CENTES. EXISTÊNCIA DE CONDENAÇÃO POR CRIME ELEVADO À CATE- GORIA DE HEDIONDO. REGIME INTEGRALMENTE FECHADO. LEI 8.072/90. VEDAÇÃO LEGAL À PROGRESSÃO. CONSTITUCIONALIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. I. As condenações por delitos elencados, equiparados ou elevados à categoria de hediondos pela Lei nº 8.072/90, devem ser cumpridas em regime integralmente fechado, vedada a progressão. Precedentes. II. Constitucionali- dade do art. 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos já afirmada pelo E. S.T.F. III. Recur- so conhecido e provido para impor o regime prisional integralmente fechado. Habeas Corpus nº 27554 – SP, 5ª Turma, Rel. Min. LAURITA VAZ, j. 27/05/2003, D.J.U. de 30/06/2003, p. 281. Outros precedentes do mesmo Tribunal: Recurso Especial nº 476466, 6ª Turma, Rel. Min. PAULO MEDINA, j. 03/06/2003, D.J.U. de 23/06/2003, p. 456; REsp 252.886/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 21/08/2000). 19 “(...) Evidente, assim, que, perante a Constituição, o princípio da individualização da pena compreende: a) proporcionalidade entre o crime praticado e a sanção abs- tratamente cominada no preceito secundário da norma penal; b) individualização da pena aplicada em conformidade com o ato singular praticado por agente em concre- to (dosimetria da pena); c) individualização da sua execução, segundo a dignidade humana (art. 1º, III), o comportamento do condenado no cumprimento da pena (no cárcere ou fora dele, no caso das demais penas que não a privativa de liberdade) e à vista do delito cometido (art. 5º, XLVIII). Logo, tendo predicamento constitucional o princípio da individualização da pena (em abstrato, em concreto e em sua execu- ção), exceção somente poderia aberta por norma de igual hierarquia nomológica.” Voto do Ministro Cezar Peluso. 11 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social nal que trouxe à baila a figura dos crimes hediondos é de 1988 e, neste momento, não fez qualquer registro acerca da eventual ve- dação à progressão de regime prisional. Em 1990, uma lei ordiná- ria passa a prever a impossibilidade de progressão, registrando que a pena deve ser cumprida em regime integralmente fechado, o que entrava em choque como alguns princípios constitucionais, dentre os quais, o da individualização da pena. Tem-se, então, que desde a entrada em vigor da Lei 8.072/90, o seu art. 2º, § 1º, sempre esteve eivado de inconstitucionalidade, não só a partir de 2006. Entretanto, ao “fazer a feira”, os operadores só encontravam ma- nifestações de “constitucionalidade” nos Tribunais Superiores. É como dizer: “me diga como você fez para eu fazer igual, ainda que eu não concorde ou nem mesmo entenda o porquê de ser assim”. Não podemos negar,apesar disso tudo, que o “porquê está escrito” e o “porquê assim já se decidiu” pode trazer uma espécie de “segurança” no entendimento daquilo que se pretende. No entanto, conforme a crítica de Wittgenstein20, a menor existên- cia de negação a essa “verdade” pode fazer ruir aquela segurança inicialmente implementada. E onde estaria o núcleo dessa fragi- lidade? Essas construções escritas ou faladas com caráter descri- tivo têm a pretensão de verdades e assumem um perfil filosófico, provocando naquele que lê ou ouve uma impressão de obviedade, tal como: “é isso mesmo!”. E, para esses casos, conforme bem lembra Zaffaroni21, não existe teoria que, por si mesma, tenha for- ça suficiente para vencer uma estrutura que se interioriza, desde cedo, na vida das pessoas, se não vier acompanhada de um fato de particular evidência, e que opere como “choque” com aquela re- alidade até então enaltecida. A percepção de determinados fatos notórios pode ser perturbada, mas não pode ser negada. 20 Ver WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 21 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimida- de do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Concei- ção. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 38. 12 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni Luiz Alberto Warat22afirma que precisamos admitir a exis- tência de certos efeitos de verdade (consequenciais), detectados a partir da observação do discurso de objetivação, especialmente, quando esse discurso se torna estratégico e estereotipado, o que é complementado com aquilo que Foucault registrara: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” 23. E essas regras epistemológicas apare- cem como marcas sagradas no discurso e que furtam das relações conceituais a sua função referencial, perpetuando uma reprodu- ção ideológica dentro dos Cursos de Direito, daquilo que se pode chamar de verdadeiras “fábricas de reprodução ideológica”24. Assim, analisar essas questões em paralaxe é de importân- cia primeira para a compreensão das finalidades do Direito Penal (“legislação penal” e “saber do Direito Penal”), pois, não raro, os observadores do objeto (Direito Penal) também se deslocam para a condição de desviantes, muito embora poucos sejam alcançados pelas agências de repressão. Para compreender isso, porém, anota Paulo César Busato25, a análise do Direito Penal deve ser feita de forma mais ampla possível, muito além da norma penal, pois o objeto de estudo implica relações sociais, políticas e culturais (in- clusive as normas), relacionadas à reação humana e ao fenômeno do desvio. Daí porque é importante a constante interação com outrospontos de vista atinentes ao Direito Penal, como a sociolo- gia, a filosofia, a antropologia e, é claro, a criminologia. 22 Luís Alberto Warat. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004c, p. 27-34. 23 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 19. ed. São Paulo: Loyola, 2009, p. 10. 24 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimida- de do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Concei- ção. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 237. 25 BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. São Paulo. Atlas, 2013, p. 5. 13 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social 2. PARA QUE (M) SERVE O DIREITO PENAL? Feitas essas considerações introdutórias, vamos formular o questio- namento que servirá de mola propulsora para este estudo: o Direito Pe- nal, como hoje é concebido, é produto de quê (m) e para que (m)?26 Para chegar a essa resposta, não podemos perder de vista o legado que nos deixou Karl Marx, quando afirmou que, se se sou- ber olhar bem, todo produto traz os traços do sistema produtivo que o engendrou. Esses traços lá estão, mas não são vistos, pois são invisíveis. Certa análise pode torná-los visíveis, de forma que é possível postular que a natureza de um produto só é inteligível em relação às regras sociais de seu engendramento.27 Assim, no campo das ideias, a resposta sofre influência de fontes bastante diferentes daquelas observadas, quando levamos em conta a materialidade e a concretude do objeto que passaremos a analisar: o Direito Penal. Tratar a questão apenas do ponto idealmente, pode trazer severas dificuldades para a avaliação do Direito Penal empre- gado da concepção de mundo, em que se exige sua materialização. Isso se torna bastante claro quando se formula uma pergun- ta aos acadêmicos do último ano dos cursos jurídicos, indagação esta que, a priori, e diante da complexidade do tema, pode cau- sar desconforto: “Para que serve o Direito Penal?” Aqueles que arriscam a resposta, fundamentados na Teoria Geral do Direito Penal, colocam que o Direito Penal serve, prioritariamente, de instrumento protetor dos bens jurídicos. Essa concepção funcio- nal ganhou força a partir da década de 1970 com o escrito sobre Política Criminal e Sistema Jurídico Penal de autoria do penalista 26 Por questão terminológica, adotaremos a concepção ofertada por Winfrie Hassemer e Francisco Muñoz Conde (In Introdución a lá Criminologia. Valencia: Tirant ló Branch, 2001, p. 100 e ss.), e oferecida por Paulo César Busato: objetivos ou missões são propósitos, o que deve buscar o Direito Penal; funções são aquilo que efetiva- mente provoca, independentemente de ser ou não a pretensão do Direito Penal. In Direito Penal: parte geral. São Paulo. Atlas, 2013, p. 5. 27 VERON, Eliseu. A produção do sentido. São Paulo: Cultrix, 1980, p. 54. 14 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni alemão Claus Roxin28. Desde então, a ideia de um Direito Penal instrumental e protetor do “bem jurídico” é bastante difundida, sobretudo, após a sedimentação dos critérios de subsidiariedade e fragmentariedade tratados pelo jurista, que reunidos, buscam uma intervenção penal minimalista. Trata-se de uma das facetas do fun- cionalismo penal29: o Direito Penal como missão tutelar, proteto- ra. Mas, protetora do que ou de quem? Conforme Roxin30, o Direito Penal deve garantir os pres- supostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens, na medida em que isso não seja possível, através de outras medidas de controle sócio-políticas menos gravosas. Essa finalidade estaria condicionada a um pressuposto limitador: a pena só poderia ser cominada, quando fosse impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas, de maneira que o Direito Penal seria desnecessário quando se pudesse garantir a proteção desses bens através do Direito Civil, uma proibição administrativa ou medidas preventivas judiciais. Essa teoria do bem jurídico31 se refere ao funcionalismo mo- derado, teleológico ou valorativo. A ideia de valor está bastante 28 Ver ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 29 Neste caso, refere-se ao Funcionalismo moderado, teleológico ou valorativo. O ou- tro aspecto é chamado de Funcionalismo radical, estratégico normativo, construído pelo também penalista alemão Günther Jakobs, a partir do funcionalismo sistêmico do sociólogo Niklas Luhmann.É “sistêmico” porque a preocupação dele não é com bem jurídico, mas com o sistema. Assim, para Jakobs, a finalidade primeira do Di- reito Penal é a reafirmação da autoridade da norma. Neste caso, a função do direito penal é proteger e resguardar o sistema. 30 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2. ed. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 32-33. 31 Acerca da expressão “bem jurídico”, são importante os registros de Luís Greco: “No Brasil, a doutrina tradicional, a rigor, nem sempre utilizar as palavras “bem jurídico”, preferindo por vezes o termo objeto ou objetividade jurídica. Como esta diferença é apenas terminológica, pode-se dizer que ela já conhecia o conceito de bem jurídico, mas em sua dimensão exclusivamente dogmática. Ou seja, a nossa doutrina, acos- tumada exclusivamente com o conceito dogmático de bem jurídico, não costuma reconhecer qualquer função crítica ou política-criminal à ideia. Em geral, só a partir 15 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social presente na construção funcionalista desenvolvida por Roxin, de maneira que cada conceito (conduta, tipicidade, ilicitude e culpabilidade) deve ser avaliado sob um prisma Político Criminal, ou seja, analisado sob uma orientação voltada aos direitos funda- mentais e aos valores do Estado Social e Democrático de Direito. Bem Jurídico, neste ínterim, pode ser definido como “pressupostos que a pessoa necessita para a sua auto-realização e desenvolvi- mento de sua personalidade na vida social.”32 Não se recorre, então, a categorias ontológicas do ser. Leva- se em conta, por outro lado, o aspecto normativo, o fundamento, o sentido que cada conceito tem de cumprir no sistema da Teoria do Delito, especialmente no que se refere ao injusto penal, com a chamada teoria da imputação objetiva. Conforme essa teoria, o injusto não é apenas um acontecimento causal (causalismo), nem tampou- co final (finalismo), mas primariamente a realização de um risco não permitido criado pelo autor da conduta. Assim, o núcleo do injusto penal se desloca de um dado ôntico de caráter físico (causalismo) ou psicológico (finalidade) para se firmar num ponto de vista normati- vo, que seria o risco juridicamente desaprovado, criado e realizado. As- sim, para a teoria da imputação objetiva, ainda que presentes os dois citados dados ônticos, caso o comportamento do sujeito não tenha criado um risco proibido, está-se diante de um indiferente penal.33 Neste contexto, Roxin34 explica que o ato de vender um pu- nhal a uma pessoa de aparência suspeita, apesar de criar certo de investigações mais recentes se começou a propor um conceito de bem jurídico como diretriz para o legislador.” In “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Biblioteca Cláudio Guimarães. Obra nº 960. Julho – agosto de 2004. Ano 12, p. 93-94. 32 MUNÕZ CONDE, Francisco; GARCÍA-ARÁN, Mercedes. Derecho Penal: parte general. 3. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998, p. 65. 33 GRECO, Luiz Felipe. Funcionalismo Penal. Dicionário de Filosofia do Direito.Vi- cente de Paulo Barreto (Coord.). São Leopoldo/RS: Editora Unisinos; Rio de Janei- ro: Editora Renovar. 2006, p. 369. 34 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2. ed. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 105. 16 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni risco, não pode ser considerado risco proibido, pois uma vida or- denada em sociedade só é possível se o indivíduo, em princípio, puder confiar que as pessoas com quem interage não cometerão crimes dolosos. Do contrário, além dos punhais, igualmente não poderiam ser vendidos ou emprestados materiais inflamáveis, fós- foros, machados, enxadas, etc. Então, a doutrina funcionalista traz o Direito Penal como instrumento para um fim. Trata-se de uma concepção metodo- lógica segundo a qual os conceitos e o sistema do Direito Penal devem ser construídos com base em considerações normativas, bem como aos seus pressupostos de legitimidade. Há, no entanto, construções funcionalistas diversas daque- la sustentada por Claus Roxin. Exemplo disso é o Funcionalismo Radical, estratégico normativo, idealizado pelo também penalista alemão Günther Jakobs, com base teórica no funcionalismo sistê- mico do sociólogo Niklas Luhmann. É chamado sistêmico porque a preocupação dele não é com bem jurídico, mas com o sistema. Para Jakobs, a finalidade primeira do Direito Penal é a reafir- mação da autoridade da norma.35 A missão do Direito Penal é pro- teger e resguardar o sistema, tanto que para Jakobs36, o delito não é tomado como princípio de uma evolução que deve ser solucionado de modo cognitivo, mas sim, como uma falha de comunicação so- cial, sendo imputada, essa falha, ao autor do crime como respon- sabilidade sua. Assim, a sociedade mantém as normas e se nega a conceber-se a si mesma de outro modo. Por consequência, a pena não deve ser vista apenas como um meio para manter a identida- de social, mas a própria manutenção dessa sociedade. Enaltece-se, neste caso, a chamada prevenção geral positiva, que objetiva preser- var a confiança da sociedade na vigência da norma penal. 35 Ver JAKOBS, Günther. Fundamentos de Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 36 JAKOBS, Günther. Sociedade, Norma e Pessoa. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri/SP: Editora Manole, 2003, p. 4. 17 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social Chaïm Perelman37 já dizia que a concepção funcional do di- reito vê nele (no Direito) um meio para a obtenção de um fim buscado pelo legislador. O fim a que se destina o Direito Penal dependerá do funcionalismo com que se pretenda trabalhar. As diferenças práticas são incomensuráveis. Para exemplificar, no funcionalismo moderado a subtração de algo de ínfimo valor pode ser um irrelevante penal. Imaginemos que alguém vai até um supermercado e lá esconde, por entre as vestes, uma barra de chocolate no valor de R$ 3,00, deixando o estabelecimento sem realizar o pagamento pela mercadoria. Não há dúvidas que o comportamento, formalmente, se enquadra àquilo descrito no art. 155, caput, do Código Penal. Diante disso, faremos alguns questionamentos: a) qual o bem jurídico protegido pelo crime tipificado em referido dispositivo? Resposta: o patrimônio; b) a subtração do chocolate ofendeu o patrimônio do estabelecimen- to? A resposta não pode ser outra, senão, negativa. Não haveria como sustentar, num plano material, que o ínfimo valor tenha causado “prejuízo patrimonial” ao supermercado. Por outro lado, para o funcionalismo sistêmico de Jakobs, pou- co importa se a conduta foi ou não insignificante. Para esse autor, o bem jurídico, que deveria ter sido protegido pelo Direito Penal, já foi violado e por isso o que está em jogo agora é a garantia de vigência da norma, ou seja, o agente que praticou a infração penal deverá sofrer as reprimendas previstas no tipo, para que se afirme que a norma atacada pelo autor está vigente. O objetivo aqui é pro- teger o sistema. A questão é: o comportamento do sujeito violou a norma penal? Numa análise puramente formal, não é possível negar que a subtração do chocolate violou aquilo que dispõe o art. 155 do Código Penal. Neste caso, deve o violador da norma ser punido. Essa teoria é a base de construção do chamado “Direito Pe- nal do Inimigo”: punem-se os atos preparatórios, tipificam-se cri- 37 PERELMAN, Chaïm. La lógica juridica y la nova retorica. Tradução de Luis Diez -Picazo. Madri: Civitas, 1988. 18 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni mes de mera conduta; tipificam-se infrações de perigo abstrato, dentre outras situações que serão trabalhadas mais a frente. Em suma, é uma doutrina que restringe o alcance dos direitos e ga- rantias fundamentais, previstas constitucionalmente. Neste contexto, para o funcionalismo moderado, a subtra- ção da barra de chocolate não pode ser considerada crime, pois não ofendeu o bem jurídico “patrimônio” daquele que seria a ví- tima. Como a missão do Direito Penal é a proteção do bem jurídi- co, não deve atuar neste caso, pois é carente de razões para tanto. Vale registrar que, no Brasil, adota-se, com preponderância, o funcionalismo moderado. Isso pode ser constatado pelo reco- nhecimento de um princípio que nasceu a partir dessa doutrina: o princípio da insignificância. Importa colocar que, além dos crimes que protegem o bem jurídico “patrimônio” (STF, Habeas Corpus 117.903), a insignificância pode ser reconhecida em outras es- pécies de infrações: porte de droga para consumo pessoal (STF, Habeas Corpus 110.475); Crimes Ambientais (STJ, AgRg no RHC 32220); Crimes Funcionais (STF, Habeas Corpus 107370); Crimes Militares (STF, Habeas Corpus 107.638); entre outros. Atento a isso, no Brasil os Tribunais Superiores consolidaram critérios para o reconhecimento do princípio da insignificância. São eles: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão provocada. Em outras palavras, o Direito Penal tem como missão a tutela dos interesses vitais e fundamentais das pessoas e da sociedade. Nes- te caso, definem-se como vitais e fundamentais os interesses que, tra- dicionalmente, são tomados em consideração pelo Direito Penal.38 Esta concepção está intimamente atrelada à compreensão de Direito Penal como último instrumento de proteção. Mas, se é o último, devemos ter como certo que não é o único. Todos 38 BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal: linea- mentos de uma teoria do bem jurídico. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, RT, ano 2, n. 5, jan./mar. 1994, p. 10. 19 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social os ramos do direito pensam na harmônica convivência social. Apesar de a missão ser exatamente a mesma, o que diferencia o Direito Penal dos outros ramos é a violência da sua intervenção e as suas consequências jurídicas. O Direito Penal é direcionado pelo princípio da intervenção mínima. É o único que tem como consequência a pena privativa de liberdade. E, sendo o Direito Penal instrumento de proteção dos bens jurídicos mais importantes, como é feita essa proteção pelo Esta- do? O Estado tipifica comportamentos e impõe sanções àqueles que violarem as regras (tipicidade e pena). Aliás, Rogério Greco39 bem lembra que a censura vem corporificada por meio da pena. É ela que irá ditar a gravidade do mal praticado. Não podemos esquecer, porém, que a pena, além de conse- quência do crime, é também uma manifestação de violência. No Direito Penal Brasileiro, por exemplo, existem as penas de morte (somente para os crimes militares próprios em tempo de guerra),de privação de liberdade, de restrição de direitos e de multa. O fato é que, quaisquer destas penas atingem os bens jurídicos prote- gidos pelo Direito Penal. Se pelo crime de homicídio (CP, art. 121) incrimina-se a produção da morte de alguém, pela pena de morte também se mata alguém; se pelo crime de sequestro (CP, art. 148) incrimina-se a violação da liberdade de locomoção de uma pessoa, pela pena privativa de liberdade se viola esta mesma liberdade; se pelo crime de furto (CP, art. 155) incrimina-se a violação do patri- mônio de alguém, pela pena de multa também se viola o patrimô- nio de uma pessoa.40 Se é a pena, também, uma forma de gerar um 39 GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. 4. ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 65. 40 BRANDÃO, Cláudio. Significado Político-Constitucional do Direito Penal. In Jus- tiça e Sistema Criminal – Revista produzida pelo Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal. Curitiba: FAE Centro Universitário. V. 3. Nº 4, jan./jun. 2011, p. 81. 20 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni dano 41, devem as suas finalidades e efeitos colaterais da punição relacionar-se a sua própria legitimidade político-criminal. Assim, o primeiro limite imposto ao direito de punir do Estado é a mais estrita necessidade de recorrer à punição (pena ou medida de segurança), consubstanciado em dois princípios fundamentais: a) o da subsidiariedade na seleção dos bens jurídicos (que opera in abs- trato); b) a proteção aos bens jurídicos deve suportar a forma frag- mentária, limitada a ataques mais perigosos (que ocorre in concreto). Conforme Mir Puig42, negligenciar esses critérios seria abandonar al- gumas das tarefas sócio-políticas que o Estado se propõe a cuidar. A utilidade principal que cobre o estudo desse limite do po- der punitivo do Estado é que ele deriva, especialmente, de uma operação funcional, de condições de justificação da punição e a sua necessidade de proteger a sociedade. O fundamento político (que anuncia uma abordagem impositiva de respeito ao Estado democrático de direito) ficaria num segundo plano. Resumidamente, conforme os adeptos do funcionalismo mo- derado, o Direito Penal é um dos instrumentos de proteção dos bens jurídicos e, neste caso, de proteção daqueles bens de maior relevância ao convívio social. Mas, algumas dúvidas aqui são levantadas: quais os critérios de seleção desses bens jurídicos para tutela penal? Como chegar ao quantum para determinar que um comportamento é mais grave que o outro e, consequentemente, deve comportar pena maior? A seleção dos bens jurídicos varia de sociedade para socie- dade. Assim, o critério de seleção será o valorativo-cultural, con- forme a necessidade de cada época. Existe uma zona de consen- so, comum a toda e qualquer sociedade, no sentido de proteção a determinados bens, com a criação de certas figuras típicas, como ocorre, por exemplo, com as condutas que encontram tipicidade nos crimes de roubo e homicídio. Por outro lado, existem zonas de 41 Conforme registrou Francesco Carnelutti, in El problema de la pena. Buenos Aires: Europa América, 1947, p. 14. 42 MIR PUIG, Santiago. Introduccion las bases Del Derecho Penal. Montevideo: Julio César Faria Editor, 2003, p. 112. 21 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social conflito, nas quais condutas que são incriminadas e determinadas sociedades já não o são em outras, a exemplo do crime de aborto.43 Vale dizer, no entanto, que essas questões são bastante tor- mentosas. E por que afirmamos isso? Vejam que a seleção de bens jurídicos nem sempre observa critérios legítimos. Disso derivam bens jurídicos menos relevantes e com grande proteção e outros que, apesar de sua maior importância não encontram no Direito Penal a proteção merecida. Mas há razões dessa incongruência, especialmente, quando constatamos que a proteção dos bens ju- rídicos não ocorre em escala universal. A coerção penal (basicamente, a pena) deve procurar ma- terializar uma aspiração ética que será a razão de atuação do pró- prio Direito Penal (seu “por que” e seu “pra quê”) a fim de buscar a prevenção de futuras afetações de bens jurídicos. Por isso, con- forme registram Zaffaroni e Pierangeli44, não se pode penalizar a mulher que usa a saia dez centímetros mais longa ou mais curta porque contraria as últimas tendências da moda ou então, porque desagrada às comadres do bairro. Por outro lado, pode-se penali- zar quem pratica um ato sexual na via pública e à vista de todos, porque esse comportamento afetaria o sentimento de recato e reserva sexual daqueles que se vêem constrangidos a presenciar aquele comportamento contra a vontade. Isso, é bom anotar, relação alguma tem com moralidade. Uma pessoa que se dispõe a fazer sexo em troca de dinheiro pode, a de- pender de quem enxerga, praticar um comportamento que ataca a moralidade. No entanto, referida prática não pode ser alvo de atu- ação do Direito Penal, pois não afeta qualquer bem jurídico alheio. Por isso, a sanção penal só seria legítima quando se prestasse para restabelecer a ordem jurídica afetada pela conduta humana, violadora de interesses do corpo social. Mas, indaga Nilo Batis- 43 GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. 4. ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 67. 44 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 88. 22 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni ta45: o que significarão interesses do corpo social numa sociedade dividida em classes, na qual os interesses de uma classe são estru- tural e logicamente antagônicos aos da outra? E é justamente aí que esbarra a teoria do bem jurídico. Ao que parece, há uma falsa universalidade do bem jurídico, o que resta consubstanciado na manipulação do Direito Penal como instrumento a serviço de proteção dos bens de alguns setores da sociedade. Vejam que, segundo o discurso oficial, o Direito Penal tem a missão de tutelar os interesses vitais e fundamentais das pessoas e da sociedade. Mas, neste caso, quais seriam os interesses definidos como “vitais”? Qual seria o âmbito de proteção? Inicialmente, é necessário lembrar que em nossa sociedade existe uma estrutura de poder político e econômico. Nesta estru- tura, há segmentos ou setores mais próximos (ou hegemônicos) e outros mais afastados dos centros de poder.46 De acordo com essa estrutura, se procura “controlar” socialmente o comportamento das pessoas. Esse controle é exercido por diversos segmentos de poder denominado Sistema Penal. Esse Sistema engloba as ativida- des do legislador, do público, da polícia, do ministério público, do judiciário e dos funcionários que atuam na execução penal. Zaffaroni e Pierangeli47 destacam três grupos humanos que con- vergem na atividade institucionalizada do sistema penal: o policial, o judicial e o executivo penal. No entanto, por óbvio que são também importantes os legisladores e o público. Este último exerce impor- tantíssimo papel, pois com as delações, tem a faculdade de pôr em funcionamento o sistema. Além disso, controla a atuação dos demais segmentos de forma que, quando o público se retrai, as denúncias diminuem e o sistema encontra dificuldades em criminalizar pessoas. 45 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. 8. ed. Rio de Ja- neiro: Revan, 2002, p. 21. 46 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 70. 47 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 2006, p. 64-65. 23 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social Os legisladores, por outro lado, são os que dão os padrões de configuração, embora frequentemente eles mesmos ignorem o que realmente criaram, superestimando seu poder seletivo. Para os autores supra referidos, a polícia é o segmento que comporta maior poder seletivo, pois opera diretamente sobre o processo de “filtragem” do sistema. Por esta razão é que não se tem uma po- lícia independente, mas sim limitadíssima, mormente quando o Poder Executivo possui um especial interesse na apuração ou não apuração de determinado fato com aparência de crime. Agora, será que temos uma sociedade homogênea política e economicamente? Acreditamos que não. Contudo, não olvi- damos que há grupos mais e outros menos próximos aos centros de decisão. Essas pessoas, consideradas aptas a decidir, fazem isso para proteger bens jurídicos de quem? A resposta, um tanto per- turbadora, é trazida por Nilo Batista48, quando anota que numa sociedade dividida em classes, o Direito Penal está protegendo relações sociais (ou “interesses”) escolhidos pela classe dominan- te, ainda que aparentem certa universalidade, contribuindo assim para a reprodução dessas relações sociais desiguais. Há mais de dois séculos, diagnosticando o domínio do poder econômico so- bre o império das leis, Mayer Amshel Rothschild49 já havia deixa- do consignado: “Dai-me o controle sobre a moeda de uma nação, e não terei por que me preocupar daqueles que fazem suas leis.” Nesse ínterim, não é difícil constatar que a escala de proteção dos bens jurídicos considerados “úteis para a sociedade” coincidi- rão com aqueles alinhados aos valores das classes sociais hegemô- nicas da formação social. E qual a razão? Sabemos que somente essas pessoas que detém certa medida de poder (e consideradas especialmente preparadas), poderão decidir acerca daquilo que é 48 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro.8. ed. Rio de Janei- ro: Revan, 2002, p. 116. 49 Banqueiro alemão de origem judaica e fundador do império bancário da Família Rothschild. Viveu entre 1744 e 1812 e foi considerado pela Revista Forbes, em 2005, como “pai fundador das finanças internacionais”. 24 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni “socialmente útil” para o equilíbrio interno do sistema50, pelo que, utilizam-se do Direito Penal para realizar a autoproteção. Agora, se os bens jurídicos que o Direito Penal tem a missão de proteger não são universais, o discurso que serviria de instru- mento de proteção desses bens, não encontra correspondência no plano prático operativo. Vejam que, a partir desse tradicional discurso jurídico de missão protetiva de bens e ainda, preventiva do sistema penal, é possível concluir duas situações: 1ª. O Direito Penal tem como missão precípua a proteção subsidiária e fragmentária de bens jurídicos (prevenção geral positi- va). Caso isso não funcione, conforme o proposto, entra em cena a segunda missão; qual seja 2ª. O Direito Penal, por meio da pena (privativa de liberdade ou não), busca a “ressocialização”51 do condenado (prevenção especial positiva). Tem-se, com isso, o discurso declarado do sistema penal. Um discurso largamente difundido e que, a partir dele, o sistema procura legitimidade para operar. E, conforme veremos mais adiante, essa le- gitimidade parte de todos os segmentos formais e informais da socie- dade. Conforme esse discurso, então, o Direito Penal objetiva (tem a missão) de proteger aquilo que é necessário para a coexistência e, incessantemente, busca esses objetivos por meio de seus segmentos. O ponto de partida é: essa missão comporta correspondência com as suas funções? Ao que parece, a discrepância é flagrante! 50 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Críticos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 34. 51 Se admitirmos que a pena tem por função ressocializar o infrator, estaremos reconhe- cendo que o direito penal é seletivo e estruturado para alcançar uma determinada classe social. Historicamente, a corrupção é prática comum dentro da política bra- sileira. A elite ali concentrada, como regra, frequentou os melhores colégios (tem educação), possui os melhores planos de saúde e, como sabemos, não passa por qual- quer privação de ordem alimentar. Dentro dessa perspectiva, será que precisam eles ser ressocializados? Essa compreensão, por óbvio, destoa por completo daquilo que frequentemente se enxerga. A ideia de pena como instrumento ressocializador é a confissão de que o Direito Penal se destina a quem está à margem social. 25 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social A Criminologia Crítica e a Sociologia do Direito Penal con- temporâneo assinalam que as suas reais funções são bastante di- vorciadas das missões difundidas no discurso oficial (aparente). Conforme Zaffaroni e Pierangeli52, para alguns, o sistema penal teria a função de selecionar, de forma mais ou menos arbitrária, pessoas dos setores sociais mais humildes, criminalizando-as para indicar aos demais desses mesmos setores os limites de seu espaço no âmbito social. Para outros, cumpriria a função de sustentar a hegemonia de um setor social sobre outro. Essas funções, obviamente, não são anunciadas de forma manifesta. Na verdade, são funções invertidas àquelas propostas confessadas. Neste sentido, a proteção subsidiária e fragmentária de bens jurídicos e a “ressocialização” do condenado seriam ape- nas missões aparentes (não reais) do Direito Penal. Sua função latente (objetivo verdadeiro) seria contribuir para a reprodução das relações sociais de desigualdade, sustentando a hegemonia de um setor social sobre outro. Para citados autores53, isso já é o su- ficiente para concluir acerca da enorme dificuldade de se teorizar uma função socialmente útil para esse instrumento de controle. O sistema penal faz parte do segmento de controle social punitivo institucionalizado (ou formal). Controle social é tudo aquilo que influencia o comportamento dos membros da socieda- de.54 Esse controle é extremamente amplo, de maneira que trans- cende aos segmentos formais (controle social institucionalizado). Temos, nesta seara, uma fração de controle informal (difusa) e outra fração formal (institucionalizada). A partir desse ponto iniciaremos a análise do controle social pelos segmentos informais. Depois de avaliados aqueles que, em nossa ótica, repercute mais contundentemente no plano social, 52 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 70. 53 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1: parte geral. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 70. 54 Conceito operacional proposto por SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 113. 26 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni trataremos do controle formal institucionalizado, que abrange o Sistema Penal, mais especificamente. 3. OS SEGMENTOS INFORMAIS DE CONTROLE SOCIAL55 Podemos compreender o sistema de controle social como um conjunto de sistemas normativos (religião, ética, costumes, usos, terapêutica e direito [aqui compreendido a lei, a polícia, o judici- ário, o Ministério Público]) cujos portadores, através de processos 55 Na sociologia, o tema do controle social informal está diretamente ligado ao processo de socialização, ou seja, processo no qual somos preparados para viver em sociedade por meio dos sistemas sociais e seus símbolos, valores, linguagens, crençasetc., que definem um padrão social para se garantir um consenso mínimo de vida coletiva. Se olharmos na perspectiva do padrão individual, são os sistemas sociais que permitem ao indivíduo desenvolver a sua identidade, seus próprios valores e crenças. Durante muito tempo a Sociologia entendeu que este processo de socialização era universal, linear, hierárquico e tinha o poder demoldar os sentimentos, pensamentos e com- portamentos dos indivíduos, e que o processo de individuação nada mais era do que fruto da socialização. No entanto, a partir das últimas décadas do século XX, vários autores/as questionaram estas características da socialização em busca de um novo entendimento do papel do indivíduo e da sociedade (“retorno do ator”). Apenas para ilustrar, foi no campo dos estudos da infância que este questionamento foi mais efetivo, pois ali havia uma tradição sociológica de compreender a teoria da sociali- zação como um processo no qual a criança absorve passivamente as regras e o com- portamento socialmente esperado para elaspor intermédio de dois tipos de ações: 1) a ação das instituições, sobretudo a escola e a família, e 2) a ação de uma geração hierarquicamente superior a ela, isto é, os adultos, principalmente os pais e os/as professores/as. Ao questionar a forma como as crianças eram socializadas mediante única e exclusivamente a ação das instituições e dos adultos, originou-se um amplo e atual debate sobre a Sociologia da Infância, que veio “emancipar” as infâncias e as crianças, antes restritas a uma só forma de socialização. Como diz o sociólogo português Manoel Sarmento, a desconstrução da teoria da socialização permitiu a “emancipação da infância como objecto teórico e a interpretação das crianças como seres sociais plenos”, isto é, “dotados de capacidade de acção e culturalmente criati- vos.” Logo, não há como discutir, no caso da Sociologia, o controle social sem antes saber das atuais críticas ao modelo de socialização, que em resumo, significa dizer que há vários tipos de socialização, e não mais uma única operada pelas instituições tida como a certa e as demais como deficiente (In OLIVEIRA, Ana Cláudia Delfini Capistrano de. Estudos sociológicos sobre infância no Brasil: crianças sem gênero? Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia Política, linha de pesquisa Gerações, gênero, etnia e educação, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Doutora em Sociologia Política. UFSC, Florianópolis, 2011, p. 44-51). 27 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social seletivos (estereotipia e criminalização) e estratégias de socializa- ção (primária e secundária ou substantiva), estabelecem uma rede de contenções que garantem a fidelidade das massas aos valores do sistema de dominação, o que, por motivos inerentes aos potenciais tipos de conduta dissonante, se faz sobre destinatários sociais dife- rencialmente controlados segundo a classe a que pertencem.56 O controle social determina os limites de atuação do ho- mem ou, nas palavras de Muñoz Conde, determina a “liberdade humana na sociedade”57. Portanto, apresenta-se como algo im- prescindível, não havendo “alternativas ao controle social”. Neste capítulo, procuraremos identificar e analisar alguns dos segmentos do controle social informal que, neste aspecto, parecem ser os mais importantes e significantes, tais como a famí- lia, a escola, a mídia, a moda (consumo, capitalismo) e a religião. Cada segmento do controle social informal possui regra- mentos próprios, que podem ser escritos ou consuetudinários, com previsão ou não de sanção, em caso de descumprimento. Mas o que diferencia este regramento/punição daquele previsto no controle social formal é a imperatividade e a exigibilidade. Apesar de atribuírem ao Direito (controle social formal), as ca- racterísticas da exterioridade, da heteronomia, da coação e da bilate- ralidade, apenas a imperatividade e a exigibilidade lhe são inerentes. A exteriorização– visa regular a conduta exterior dos ho- mens – não é uma característica sempre presente no Direito, que também pode regular as condutas interiores, na medida em que anuncia ou deixa esperar uma conduta exterior. Ex: diferentes formas de culpa e a boa-fé; o perigo moral a um menor já autoriza a intervenção e proteção do Estado58. No controle informal temos os costumes, ritos e mitos que norteiam diariamente a vida social. 56 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan/ ICC, 2005, p. 54-55. 57 MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Rio de Janeiro: Fo- rense, 2005, p. 22. 58 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes,2004, p. 179. 28 Airto Chaves Junior Fabiano Oldoni A heteronomia – homem necessariamente obrigado a obede- cer regras postas por outrem – também não é impreterível ao Direi- to. Para Reale59 o Direito também pode ser autônomo (inerente à moral) quando as regras são postas pelo indivíduo ou reconhecidas espontaneamente por ele. Pode haver cumprimento de uma regra jurídica com plena correspondência entre a “vontade da lei” e a “vontade do obrigado”. No controle informal, temos os costumes morais/éticos/grupais, interferindo e norteando o fazer humano. Se para Kant e Jhering a coação é elemento necessário e intrínseco ao Direito, para Thomasius o Direito não se realiza sempre pela força, podendo haver a realização espontânea. Deve- mos diferenciar a coação no sentido de coercível (coercibilidade) – estado latente, em potencial (Thomasiuse Reale) – da coação no sentido de coercitivo (coercitividade) – coerção sem a qual não haveria Direito (Kant e Jhering). Ora, a coação também se apresenta como característica da religião, dos costumes, da famí- lia, não sendo, portanto, exclusiva do controle formal. Já a imperatividade e a exigibilidade são características ex- clusivas do Direito, na medida em que a aplicação da norma jurí- dica é destinada a todos, indistintamente, a qual deve ser obriga- toriamente observada, estando amparada pelo Estado. Sintetizando, o controle social informal possui as características da coação (a escola que frequentamos nos coage (influencia) a agir desta ou daquela forma; da exteriorização (regula a conduta exterior dos homens, como cada um deve agir perante a sociedade) e da hete- ronomia (o homem está sujeito a cumprir regras postas por outrem). Isso é importante para que possamos compreender que o controle social informal não possui a imperatividade e a exigibili- dade. Ou seja, determinada família possui algumas regras próprias de conduta: fazer uma oração antes das refeições; os filhos não devem sentar-se à mesa ou servir-se antes dos pais. Estas regras não são imperativas, eis que elas podem valer para uma família, 59 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. Saraiva, 2002, p. 286. 29 Para que(m) serve o Direito Penal? - Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social mas não para outra. Também não são exigíveis, pois apesar do seu descumprimento poder gerar uma punição, não há instrumento legal que obrigue os seus destinatários a cumpri-las. Outro exem- plo: podemos fazer parte de uma associação religiosa que possui regras próprias, que valem apenas para esta instituição privada, as quais não somos obrigados a seguir, nem que para isso sejamos expulsos da instituição, num típico ato de censura social, como diz Russell60, o que é diverso do controle social formal, onde a lei vigente vale para todos, querendo ou não, e o seu descumprimen- to gera ao Estado o direito de fazer com que nós a cumpramos61. Colocadas estas informações, passaremos a descrever cada um dos segmentos de controle social informal que nos parecem importantes e mais determinantes, procurando
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