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A África Tradicional: Matrizes Africanas

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Aula 3 – A África Tradicional: Uma Análise das Matrizes Africanas
Um dos grandes equívocos cometidos ao se estudar a história da África Subsaariana é imaginar que todos os povos que habitaram essa região eram iguais. Existiram comunidades tradicionais africanas que sobreviviam da atividade pesqueira; outras que dependiam da criação de gado e muitas que viviam da produção agrícola. Além disso, nem todas essas sociedades se organizavam da mesma forma: existiram aldeias, clãs de aldeias e até mesmo cidades-estados e reinos.
O convívio entre essas comunidades também não era sempre pacífico e harmonioso. Por diferentes razões esses grupos travavam guerras entre si e muitas vezes escravizavam grupos vizinhos. Todavia, embora os pequenos grupos que habitavam não se enxergassem como iguais, havia semelhanças significativas entre eles que devem ser entendidas. Muitas das características em comum encontradas em diversas sociedades africanas, sobretudo na África Subsaariana, são decorrentes de um movimento migratório ocorrido entre três e quatro mil anos atrás, denominado Expansão Bantu.
A Expansão Bantu
O bantu era umas das subdivisões da família linguística Níger-congo, que era falado por populações que habitavam as proximidades do rio Níger. Segundo pesquisas arqueológicas recentes, graças ao aumento populacional e ao desmatamento decorrentes da pesca farta e do cultivo de gêneros alimentícios como o arroz, o inhame e as palmeiras oleaginosas (como a do dendê), os grupos humanos que ocupavam essa região iniciaram dois grandes processos de migração em busca de novas terras.
O primeiro processo migratório partiu da região central de Camarões e rumou para o norte da atual República Democrática do Congo e para a África oriental. Esse movimento migratório ainda desenvolveu a atividade pastoril e adquiriu os conhecimentos necessários para o manejo do ferro com sociedades que habitavam o norte do continente. Já o segundo movimento de migração das línguas bantu saiu da região da floresta do Sudeste na Nigéria e expandiu-se para a bacia do rio Congo e seus afluentes, chegando ao sul da África. Essas regiões só aprenderam o manuseio do ferro anos depois. Os grupos de caçadores coletores que entraram em contato com essa “onda de migração” adotaram as línguas bantas para se aproximarem e negociarem com os grupos recém-chegados. Desse encontro de culturas surgiriam inúmeras sociedades que, embora fossem diferentes e muitas vezes inimigas, guardavam traços socioculturais semelhantes.
As Famílias de Linhagem
Uma das principais instituições das chamadas sociedades tradicionais africanas era a família, pois era ela que primeiro definia o pertencimento dos indivíduos no grupo. No entanto, na África subsaariana, a noção de família é diferente do modelo europeu. As famílias africanas eram extensas, formadas não só pela mãe, pai e seus filhos, mas também pelos avós, tios, sobrinhos, netos e primos que tinham um ancestral em comum. A família extensa, também chamada de linhagem, era a organização que assegurava a existência física e a perpetuação dos indivíduos, permitia a socialização no grupo e proporcionava o sentimento de pertencer a um coletivo, na medida em que possibilitava a conexão de cada membro à sua ancestralidade, ou seja, à sua história.
Conforme dito anteriormente, as condições naturais de muitas regiões africanas nem sempre eram as mais favoráveis para a sobrevivência humana. Desse modo, por meio de uma rede de direitos e deveres que, estabelecidos hierarquicamente, as famílias extensas conseguiram garantir a vida da comunidade. Cada geração de uma determinada linhagem tinha obrigações a cumprir e direitos a gozar. Geralmente, os adultos eram responsáveis pelo sustento da linhagem e deveriam produzir o suficiente para alimentar os idosos e as crianças. Os mais velhos, grupo mais respeitado de cada família, ocupavam os cargos de chefia das comunidades e eram responsáveis pelos rituais de iniciação dos mais jovens e cultos aos ancestrais familiares.
Sendo assim, quanto maior fosse o tamanho de uma linhagem, principalmente no que diz respeito ao número de adultos, maiores eram as chances desta família sobreviver. Não por acaso, a poligamia era prática comum nessas sociedades, pois permitia o crescimento constante das linhagens e a manutenção da ampla rede de parentesco. As linhagens também determinavam o prestígio social de um homem. Quanto maior o número de pessoas dependentes dele (fossem mulheres, filhos, netos, sobrinhos e irmãos), maior era a importância que ele tinha dentro da comunidade. Esse prestígio exercia grande influência nos acordos nupciais feitos entre as diferentes famílias - permitindo a união de grandes linhagens por meio de casamentos – e na escolha dos chefes da comunidade, escolhidos dentre os líderes das famílias mais extensas, pois eram os homens que detinham maiores recursos econômicos e maior respeitabilidade social. O chefe recebia ajuda de um conselho composto pelos anciões de cada família da comunidade. Juntos, o chefe e os membros do conselho deveriam cuidar de assuntos relacionados à administração e justiça da aldeia, garantir a segurança de seus habitantes em momentos de guerra, assim como zelar pelos costumes e tradições de seu povo.
De forma geral, todas as atividades que estivessem relacionadas com o espaço doméstico eram realizadas pelas mulheres adultas (entre 15 e 40 anos). Eram elas que tratavam de todos os afazeres da casa, criavam os filhos, cortavam lenha para o fogo, buscavam água, confeccionavam utensílios de cerâmica e, principalmente, cuidavam da produção dos gêneros agrícolas. Já aos homens da mesma idade cabia a criação de animais, a atividade pesqueira, a caça (quando essa atividade era realizada), a segurança da comunidade, as diferentes atividades artesanais, sobretudo o manuseio do ferro e as produções artísticas. Por meio de vias fluviais ou terrestres, o excedente daquilo que era produzido nas comunidades tradicionais era comercializado nos mercados locais próximos. Tais mercados viabilizavam não só a troca de produtos oriundos de diferentes localidades, mas também possibilitavam a circulação de informação e a formação de redes sociais entre duas ou mais sociedades.
Religiosidade: O Culto Ancestral e as Divindades da Natureza
Junto com a noção de família extensa, a religiosidade era uma das características definidoras das sociedades da África Subsaariana. Embora cada comunidade acreditasse em um Deus ou em deuses próprios, as formas por meio das quais os membros desses grupos entravam em contato com o divino era muito semelhante. Isso porque em praticamente toda a África abaixo do Saara a religião era vivenciada no cotidiano. Toda ação humana era uma ação religiosa. O cultivo da terra era geralmente antecedido por cerimônias que visavam a fertilidade. Quando meninos e meninas entravam na fase adulta, era comum que fossem feitos rituais de iniciação secretos, nos quais os jovens ficavam reclusos por algum tempo aprendendo os ensinamentos da idade adulta e da profissão que deveriam seguir. Em algumas comunidades, o processo de iniciação dos meninos que se transformariam em ferreiros chegava a durar anos. Até a família extensa era compreendida por meio da religião. Praticamente todas as sociedades da África subsaariana acreditavam na coexistência do mundo dos mortos e por isso realizavam o culto aos antepassados acreditando que eles eram uma espécie de semideuses que serviam como intermediários na comunicação com forças maiores. De forma parecida com o que aconteceu com o império romano antes da conversão ao cristianismo, quase todas as casas africanas tinham pequenos altares particulares, no qual cultuavam seus ancestrais familiares.
Junto o culto aos antepassados, as comunidades africanas também cultuavam deuses específicos que estavam diretamente relacionados com elementos da natureza. Esses cultos geralmente eram acompanhados de muita música e dança e, em alguns casos, envolvia o transe de pessoas que estavam iniciadas para incorporaros deuses ancestrais. Em diversos casos, esses deuses tinham sido os chefes fundadores da sociedade que após a morte tinham se transformado em deuses do trovão, deuses da chuva, deuses da Lua e do Sol. Muitos povos acreditavam em entidades que viviam nas águas dos rios e dos lagos, ou então na força de uma determinada árvore e de animais específicos. Mas é importante lembrar que as aldeias africanas não acreditavam nos mesmos deuses. Cada comunidade, cidade ou reino tinha seus deuses e entidades próprios e formas específicas de realizar seus cultos e cerimônias religiosas. Embora a religião fosse praticada por toda comunidade, pois era ela que dava o sentido de coletividade aos diferentes povos, existiam figuras que tinham relação ainda mais intensa com o mundo do divino, como os sacerdotes e os feiticeiros. Os sacerdotes eram as pessoas (homens ou mulheres) responsáveis por boa parte das cerimônias religiosas, comandavam os rituais de iniciação e eram as pessoas mais capazes para ler os possíveis sinais dos deuses, bem como os jogos de adivinhação. Os feiticeiros tinham atributos semelhantes ao dos sacerdotes, mas o fato de saberem alterar as características físicas de alguns elementos da natureza fazia com que fossem figuras ao mesmo tempo temidas e respeitadas pelo grupo. Não por acaso, muitos dos feiticeiros também eram ferreiros, pois ambos detinham o poderoso conhecimento de como alterar a natureza.
O Poder da Palavra Falada
De maneira geral, era por meio da palavra falada que o conhecimento era transmitido de geração para geração. Isso porque a palavra era uma das formas que o homem tinha de se conectar com o mundo divino e sobrenatural, era o elo entre o passado, o presente e o futuro. Dessa feita, era por meio da tradição oral que o conhecimento, os costumes, as histórias e os mitos eram contados. Embora a palavra fosse respeitada por todo o grupo, assim como ocorria com a religião, cada sociedade tinha um sacerdote da palavra, ou seja, uma pessoa responsável por guardar a palavra.
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