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Meridiano ou O Sertao em Desencanto

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Meridiano ou o sertão em desencanto 
 
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MERIDIANO 
Ou o sertão em desencanto 
 
 
 
 
 
Samuel de Jesus 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Meridiano ou o sertão em desencanto 
 
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Jesus, Samuel de. 
Meridiano ou O sertão em desencanto./ Samuel de Jesus –. Sorocaba, publicação independente, 2013. 
 
 l. Modernidade. 2. . 3. Sertão 4. Encantamento. 
I. Título. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Meridiano ou o sertão em desencanto 
 
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 O Coronel Esperidião Lima Albuquerque não era como todos os coronéis, 
dentre seus feitos era preciso destacar a derrota do Umuarama, um monstrengo 
que mantinha preso na fazenda. O coronel era um dos seres mitológicos do lugar, 
uma espécie de Ulisses da Odisséia. Aos domingos ia a igreja, mas o padre não se 
sentia a vontade com a sua presença, pois o achava um homem que deveria ter um 
pacto com o demo. O padre recusava-se ir a fazenda ver o Umuarama, era contra 
seus princípios religiosos. Considerava o coronel Esperidião pior que o demônio, 
pois conseguiu aprisionar o belzebu, mas Esperidião era um homem católico 
praticamente fervoroso. 
Em uma tarde estava o coronel a tirar os bichos do pé e bem longe, lá no 
horizonte viu muita poeira, um redemoinho, então não deu muita atenção, mas 
perto, o redemoinho assumiu proporções assustadoras. Percebeu que o 
redemoinho rosnava e começou a se perguntar como poderia um redemoinho 
rosnar? Imediatamente pegou o seu trabucão, mirou bem nas fuças daquele 
furacão e disparou. Sentiu que tinha atingido o safado na primeira tentativa e 
quando a poeira baixou foi lá para averiguar. Quando chegou perto é que se deu 
conta do tamanho daquele monstrengão. Fincou umas estacas no chão e amarrou 
aquela fera. Sempre mostrava às visitas o Umuarama. Com uma rapidez 
impressionante o feito do coronel era sabido naquelas e noutras bandas. 
Num certo dia São Geromão topou com o Umuarama e colocou em sua 
frente para proteção o estandarte de São João que havia de proteger-lhe daquela 
aparição e pense leitor como ficaria as vozes que habitavam aquela cabeça do 
santo maltrapilho? uma dizia para que corresse dali, e a outra pedia misericórdia e 
a terceira pedia perdão ao senhor. Quando a ferrovia deitou suas raízes era dia de 
segunda. Acordaram o coronel com barulhos de martelos que pregavam as 
dormentes, tudo fora muito rápido, abriu a janela e não podia acreditar. Na linha 
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do horizonte, onde o sol se punha, encontravam-se duas linhas paralelas de ferro 
que os homens colocaram. Imediatamente fora ali saber. Perguntou para o rapaz o 
que havia de ser aquilo. O jovem esbaforido respondeu que aquelas linhas eram as 
linhas mestras do progresso. 
Noutro dia, bem de manhãzinha a terra estremecia, parecia um trovão e 
estremeceu tudo. O coronel caiu da cama e imaginou que o dia do juízo finalmente 
havia chegado. O medo de pecador tomou seu coração e desesperado já esperava 
ver os anjos do apocalipse tocando suas trombetas, mas o que viu de sua janela foi 
uma coisa grande e metálica que soltava fogo pelas ventas. Percorria as linhas 
ligeiramente, feito um animal poderoso. Quando parou viu que um homem saiu 
do bichão e imaginou que esse homem tinha realizado feito parecido ao seu que 
foi a prisão do Umuarama. Dona Clélia era esposa do coronel Esperidião e já 
estava acostumada com as suas esquisitices. Foi testemunha de muitas das 
bravuras do famigerado coronel, mas ainda se perguntava como aquele raio de 
homem poderia atrair tantas estranhezas, poderia ser a genética dele ou sua 
envergadura a bastião, os problemas é que quanto mais revirava aquele homem 
mais sarna encontrava para se coçar. 
Certa vez o coronel saíra cedo com o índio Juruna dos Terenas e ficou 
por lá quase cinco dias aprendendo muitas das habilidades dos selvagens, passou 
a concordar com o seu modo de ver a vida. Teve o corpo pintado e carregava na 
cabeça um chapéu e um colar de raras sementes. Dona Clélia conhecia Esperidião 
desde os seus quinze anos. Era uma menina que não entendia nada. O coronel já 
era homem feito e já sabia muitas coisas desse velho mundo. Falava para ela das 
cidades grandes e como era diferente a vida lá, pois não tinha a poeira da terra e 
nem o leite da vaca, mas do saquinho. Falava também dos automóveis que 
circulavam velozmente pelas vias de asfalto. Ela escutava tudo e ficava sempre 
muito impressionada. Ele sempre tinha a resposta para as suas perguntas. 
Sentia-se segura com ele que era para ela tão garboso, galante e inteligente. Casar 
com ele era um desejo que nutriu por alguns anos e quando finalmente se casaram 
sentia-se realizada na vida. Com o tempo ela ficou a par de suas manias. Parece 
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que não, mas bem rapidinho se passaram 40 anos e tantas coisas viveram nesse 
tempão, vacas gordas e magras, sol e tempestades, guerra e paz e as sereias. 
As terras à margem esquerda da linha do trem eram do coronel. No outro 
lado foram construídas as casas que abrigavam os funcionários da ferrovia. Logo 
fora construída uma estação ferroviária e outras casinhas na margem direita da 
linha férrea e muito rapidamente já se amontoavam chegando ao ponto de formar 
uma vilinha. Com o tempo parecia a um formigueiro que ia aumentando noite e 
dia e não demorou muito para o coronel colocar uma cerca por ali, do lado 
esquerdo da linha férrea. Ele sempre podia ver o trem parando na estação que 
dava de frente para a sua janela. Duas vezes ao dia o trem chegava à estação e seu 
apito era ensurdecedor, o primeiro era ao meio dia e o segundo era às dez horas da 
noite. Esse horário da noite fazia o coronel ir dormir muito tarde, pois seu som era 
escutado de longe e demorava muito para seu barulho desaparecer por completo. 
Dois anos se passou rapidinho e já tínhamos do lado direito da linha 
férrea uma pequena cidade. Nesse tempo o coronel andava dia e noite armado, 
seu rifle winchester velha amiga, pois não se sentia mais seguro ali. No terceiro 
ano começaram as fábricas que soltavam fumaça das chaminés. Homens com 
horário de entrada e saída. Passou a existir por ali crimes sem solução e carros que 
trafegavam pela avenida principal. Com o tempo tudo cresceu e prosperou na 
margem direita da linha férrea. A fazenda nesses tempos parecia uma barragem. 
Dois mundos. O mundo da margem esquerda e o mundo da margem direita. 
O Santo Geromão também via o inferno ali. Resolveu lutar contra o 
diabólico que se avizinhava. Aquele povaréu era um monstro mais perigoso que o 
Umuarama, pensava que o inferno abriu uma de suas filiais ali, pois as tentações 
de todo o tipo de mundanidade estavam na margem direita. São Geromão não 
sabia onde ficava a garganta daquele monstro para transpassá-la com seu 
estandarte de São João que tinha uma seta afiada em seu cume. Serviria também 
se encontrasse o coração da cidade para atingi-la de morte. 
No sertão não era mais escuro como era antes. As luzes ao longe traziam 
o som das buzinas dos carros, das fábricas que trabalhavam vinte e quatro horas 
por dia. Antes o luar do sertão embalava o sono, agora não era possível nem vê-lo 
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mais. Nem ao horizonte tinham mais direito, pois os prédios impediam-no de ser 
visto. O horizonte agora era propriedade privada. O por do sol na linha do 
horizonte é uma lembrança, apenas observarmos o sol se por na linha dos 
edifícios. A insegurança começava a estender as suas garras. Pulavam a cerca e 
invadiamos cafezais para fazer Deus lá sabe o quê. Um dia colocaram fogo no 
canavial ao lado do cafezal. Foi um fogo muito alto e que ameaçou a fazenda, mas 
os bombeiros depois de 24 horas começaram a controlar o fogo. Depois dessa o 
coronel pensou na construção de um muro de grande extensão. Na verdade o 
muro isolou o coronel Esperidião e Dona Clélia. A fazenda, agora se parecia um 
castelo medieval com muros por todos os lados. 
São Geromão foi para a praça pública e começou a bradar contra aquela 
Sodoma e Gomorra que deveria perecer no pecado. Segundo ele, Deus lançaria 
seus raios da decência que colocariam tudo a baixo. Aqueles ainda com fé ouviam 
suas profetizações mesmo com o padre ameaçando excomungar quem desse 
ouvidos às suas sandices. Dizia Geromão que o demônio de ferro vindo do inferno 
trazia a perversão e a corrupção àquelas cercanias e que o fim estava próximo. 
Muitos acreditavam que as vozes ouvidas pelo santo eram de origem divina, 
certamente eram os anjos que falavam com ele, mas os médicos diriam 
racionalmente ser a mais pura esquizofrenia. Santo Geromão dizia que os tempos 
de ventania estavam chegando e que tudo aquilo era só o inicio, pois estava 
chegando tempos difíceis e que somente os fortes ficariam de pé frente à sua força 
avassaladora. 
Certo dia o coronel recebeu a visita dos homens daquela cidade. Eram as 
autoridades e membros de uma empresa de empreendimentos imobiliários. 
Falaram para ele sobre a importância do progresso e a necessidade da cidade se 
expandir. Isso seria bom para todos, pois era a democracia e um mundo novo que 
estavam acontecendo. Sua fazenda estava impedindo que a cidade se expandisse 
na margem esquerda da estrada de ferro. O coronel escutou tudo atentamente e 
falou muito pouco ou quase nada até aquele momento, mas assim que os homens 
pararam de falar, levantou-se e olhou da janela, lá bem longe, voltou e se sentou e 
começou a dizer em resposta que sua família estava ali desde a época das 
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capitanias hereditárias. Seu tetravô chamado Serapião que expulso pela igreja de 
Portugal investira todo o seu dinheiro no engenho. Encontrou Serapião, nas novas 
terras, bravos índios Aimorés, ele encarou seus novos vizinhos com o seu 
mosquetão, fora Serapião que inicia o massacre das populações indígenas, 
escravizou-os também. 
Lamentavelmente seus três vizinhos não fizeram o mesmo que 
Esperidião, o problema é que suas fazendas formavam um cinturão, o que tornava 
a fazenda do valente coronel uma ilha no meio do progresso. Sabia então que a 
cidade ia se expandir e o cercaria por todos os lados. Como os gregos liderados por 
Agamenon que cercaram Tróia. Sabia que mais cedo ou tarde a cidade o engoliria. 
Achava tudo aquilo um desagravo à sua patente, não que tivesse sido militar, mas 
o título de coronel já não impunha mais respeito havia um bom tempo, então ficou 
furioso. Pediu licença e saiu para dentro da casa e quando voltou empunhava sua 
espingarda winchester. Os homens ficaram assustados, então o coronel disse aos 
homens que eram muito ousados e tinham muita sorte, pois há não muito tempo 
passaria fogo em todos eles e arrancariam as suas orelhas. Assustados os homens 
saíram correndo e não se sabe se registraram Boletim de Ocorrência na delegacia 
mais próxima. 
Após o episódio o coronel Esperidião não conseguia dormir direito. 
Nessas noites pegava um dos cobertores e ficava na cadeira da varanda com a 
winchester no colo. O céu já não tinha mais tantas estrelas e perguntava-se como 
tudo aquilo podia acontecer? Santo Geromão Acordou pela manhã envolto aos 
papelões que usou para combater o frio daquela noite e seu companheiro, o 
perdigueiro deveria estar ali. Queria voltar para o sertão, mas ele estava 
desaparecendo e não se habituava àquele novo modo de vida em meio ao asfalto e 
os prédios. As vozes de sua cabeça diziam que seria bom voltar, mas para onde? 
Perguntava ele. Sentia-se perdido no inferno e realmente poderia já estar lá há um 
bom tempo. Quando recobrou sua consciência em um certo dia frio estava em um 
lugar de paredes brancas, deitado na cama, mas em seguida aplicaram uma nova 
injeção e logo perdeu-se novamente. Era um sanatório para doentes mentais e não 
demorou para que, depois da fase das injeções, a pregar novamente, agora, para 
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os considerados loucos. Com ele ali o padre se sentiu mais tranquilo, pois sua 
paróquia não estava sendo mais dividida ao meio. 
As sereias não paravam de cantar. Elas estavam pedindo socorro e a 
única pessoa que poderia ajudar era o coronel Esperidião, mas era complicado 
para o coronel, pois o único caso de infidelidade em seu longo casamento com 
Dona Clélia foi o dia que ouviu o canto da sereia naqueles tempos de 
sonambulismo. Eram três as sereias chamadas terrenamente, a primeira, Estrela, 
tinha os cabelos loiros e seus olhos eram de um azul profundo poderia facilmente 
levar qualquer homem à tentação, a segunda chamava-se Lua, era ruiva de olhos 
verdes e seu corpo tinha uma cintura fina e atraente e a terceira chamava-se Sol, 
era morena, olhos castanhos e de cabelos longuíssimos. Os homens ficaram loucos 
para encontrar o lago das sereias, mas as moças aquáticas versadas em encantos 
davam o caminho apenas ao merecedor. A maioria invadira a fazenda nos tempos 
antigos, andavam..andavam e nada encontravam, então muitos acharam que era 
apenas uma lenda e consideravam mentirosos aqueles que disseram terem se 
encontrar com elas. O leitor poderá perguntar como elas foram parar lá? A 
resposta é simples, houve um tempo em que o sertão tinha virado mar, mas a seca, 
as transposições dos rios e todas as danuras que fazem com o planeta 
transformaram o mar do sertão em um lago, mas até aí tudo bem, pois era bonito 
o seu canto e com o tempo passaram a fazer parte das lendas e dos encantamentos 
desse grande sertão, mas isso até agora, pois começaram a jogar entulhos no lago, 
substâncias químicas e a saúde das sereias não eram mais a mesma. 
Dona Clélia sabia por que o coronel não tinha ido saber o que ocorrera 
com as sereias. O coronel queria pedir para ela, mas não tinha coragem, pois 
passado tanto tempo ainda tinha vergonha de sua infidelidade. A cada dia o 
chamado delas era mais sonoro, carregava uma dor profunda e foi aí que dona 
Clélia, atingida pela misericórdia, disse para o coronel que deveriam ir saber o que 
ocorria, pois naqueles tempos não era difícil de imaginar que era alguma diabrura 
daquele ninho de pessoas mal educadas, grosseiras e insanas. Saíram dona Clélia 
e coronel Esperidião na madrugada e quando chegaram l áencontraram as sereias 
muito debilitadas e doentes. Estrela quase não podia falar, mas pediu socorro e 
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pelo que entenderam elas só teriam alguma chance de sobrevivência se chegassem 
ao mar, embora isso não fosse garantia, pois o mar também estava poluído, mas 
suas chances seriam maiores. 
Viveram por muito tempo naquele lago sertanejo, conheciam tudo ali, 
não queriam ir para o mar, pois o achavam insegura e para elas era mais fácil viver 
ali dentro de seu pequeno mundo, o mar era perigoso, cheio de variáveis e de 
coisas que elas não podiam entender. Ali só entenderiam as coisas do ponto vista 
de seu pequeno mundo. Quem diria? O coronel imaginou que poderia utilizar um 
caminhão pipa para levar as sereias para o mar e assim foi feito. Na madrugada 
seguinte ele e dona Clélia colocaram as sereias no caminhão pipa e foram pela 
estrada rumo ao litoral. Tudo certo no trajeto e já no mar as sereias cantaram em 
sinal de agradecimento, parecia que se sentiam mais fortalecidas, pois seucanto 
estava ainda mais alto. O coronel e dona Clélia as levou a praia de Ubatuba que 
sempre estáava limpa e própria para o banho. Quando voltavam sentiam uma 
grande solidão, um aperto no coração. Sentiam que seu mundo estava cada vez 
mais vazio e imaginou que Umuarama pudesse estar sofrendo algum tipo de 
depredação, já pensava em se despedir do bichão que já domesticado. O sertão se 
desencantara rapidamente. 
Em 1929 irrompeu uma crise mundial, os títulos supervalorizados 
artificialmente resultaram no quebra-quebra generalizado na economia do mundo. 
No Brasil o preço do café despencou, foi à bancarrota dos barões do café como 
Esperidião. O café minguou no pé sem ter sido colhido. A fazenda que era cheia de 
gente na época da colheita estava deserta, assim como seus criados. Todos foram 
embora!! A cidade os cercavam devido ao impulso industrial. O coronel e dona 
Clélia ficariam por ali. Em uma dessas noites solitárias, o coronel foi ao quintal e 
soltou Umuarama, bicho que ele já era de estimação, mas que não era dali. Pensou 
o que era manter o bichão ali em um lugar estranho. Como seu mundo estava 
acabando o coronel ficou sensibilizado e imaginava como era estar em um mundo 
estranho e que não é o seu. Achava Umuarama até humilde, pois deixou ser 
domesticado, mas era o momento de soltá-lo para voltar o seu lugar, onde quer 
que fosse. Certamente não foi decisão fácil, pois o Umuarama representava sua 
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valentia e fizera outrora, dele, uma figura legendária, pois afinal quem agora lhe 
dava os méritos? Todos esquecerem essa história, a história de quando o coronel 
Esperidião aprisionou o Umuarama. O bichão quando solto olhou para trás 
algumas vezes, mas seguiu seu caminho. Lá nos limites da fazenda virou um 
redemoinho e nem deixou seu rastro. Naquele dia foi dormir tarde da noite, 
deitou na cama e abraçou dona Clélia como há muito tempo não fazia, então os 
dois adormeceram, pois era o fim de seu tempo.

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