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TARÔ – SENDA DA INDIVIDUAÇÃO

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TARÔ – SENDA DA INDIVIDUAÇÃO 
(Texto de PAULO URBAN, publicado na Revista Planeta, edição especial nº 337-A, outubro/2000)
Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento. É autor do livro “O que é Tarô”, da coleção Primeiros Passos, ed. Brasiliense. e-mail:  urban@paulourban.com.br
Não é por acaso que os 22 Arcanos Maiores do Tarô acham-se numerados. Suas cartas, perfiladas tal qual os capítulos de uma novela, retratam uma história verdadeira, a do ser humano em sua senda iniciática, repleta de experiências transcendentes e desafios que se nos apresentam como oportunidades para o autoconhecimento.
Desde a Antigüidade, espalhados por várias culturas, incontáveis são os mitos que abordam a imagem do homem posto à prova, chamado a enfrentar perigos e resolver enigmas, a ultrapassar limites e escolher o rumo certo nas encruzilhadas do caminho.
Foi o médico psiquiatra suíço Carl G. Jung (1875-1961), inicialmente admirador de Freud, e que desenvolveu sua teoria para a compreensão do psiquismo, a psicologia analítica, que cunhou o nome de “individuação” para esse processo ininterrupto de aprimoramento pessoal, destinado a orientar a personalidade para algo maior e transcendente, a cumprir psicologicamente o mesmo papel a que se destinavam os rituais de iniciação dos povos antigos.
A questão fulcral da psicologia junguiana esbarra num dos principais mistérios da existência, o da consciência em busca da fonte primordial, inconsciente em sua essência, de onde se desprendeu originalmente. Para Jung, o ego poderia ser comparado ao inconsciente na mesma proporção que uma ilha estaria para o oceano. Outra analogia seria a do planeta Terra, pequenina morada da civilização humana (a consciência), comparado ao Universo desconhecido, no qual estamos inseridos (o inconsciente).
Jung chamou de ego o núcleo da consciência, sendo a individuação toda busca por esta diminuta instância em direção ao presumido centro da totalidade psíquica, a abranger obviamente o mundo inconsciente. Ao ponto de fusão entre consciência e inconsciente, núcleo da personalidade total e ao mesmo tempo passagem para uma dimensão transcendente e coletiva, espécie de porta para o psiquismo universal, Jung denominou Selbst, em inglês self, que em português se traduz por “si mesmo”.
O si mesmo seria o órgão regulador do psiquismo, dotado de qualidades abissais que ultrapassam as dimensões do simples ego. Paradoxalmente, o si mesmo, ponto central da psique, preenche toda a sua circunferência, abarcando todos os fenômenos anímicos possíveis, a incluir os do próprio ego. Nicolau de Cusa, monge filósofo do século XV, já usara imagem semelhante ao referir-se à onisciência divina: “Deus é uma esfera cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não se delimita em parte alguma”.
Como veremos, as alegorias dos 22 Arcanos Maiores, ainda que veladas por intrincado hermetismo, de caráter particularmente medieval no baralho de Marselha, representam nada mais que as situações comuns, reservadas a todos aqueles que se dediquem a explorar seu mundo psicológico mais profundo. Os que partem em busca de si mesmos em geral abrem suas vidas para o amadurecimento pessoal, e sofrem experiências consideradas arquetípicas, de cunho propriamente iniciático.
Aqui convém explicar, arquétipo é palavra de origem grega, primeiramente usada por Platão, a significar “padrões arcaicos” (arqui = antigo, arcaico + typos = padrão, matriz), e Jung se valeu do termo para denominar certos padrões registrados no comportamento da humanidade, que vêm sendo manifestados ao longo de sua história pelas mais diversas culturas. Embora semelhantes entre si, expressam-se pela variedade dos mitos, religiões, lendas ou folclore; e através de padrões também identificáveis em nosso mundo onírico, quer no cerne de nossos sonhos, quer sob a forma das fantasias.
O arquétipo serve de matriz comportamental herdada por todo ser humano, como arcabouço capaz de selecionar nas experiências os elementos significativos em sintonia com o processo inato da individuação. Os arquétipos, verdadeiras potências imateriais, surgem como entidades impalpáveis e incognoscíveis, mas se manifestam por idéias e imagens e vestem-se com distintas roupagens, segundo as culturas que os representam.
Neste sentido, o Tarô os simboliza amplamente, e um mergulho no mundo dos Arcanos permite-nos espelhar nossa alma. Por isso a “leitura” das cartas, quando contemplativa e dinâmica, bem pode transportar-nos para um mundo psicológico mais profundo. Percorramos juntos então, passo a passo, esta estrada pictográfica da individuação. 
Comecemos pela especial figura do Louco, que não se mostra numerada. O Louco, por não ter um número que lhe dite a posição, acha-se livre para ser notado em qualquer parte da jornada, podendo assumir diferentes valores em nossa vida; daí talvez ter sido preservado sob a efígie do curinga nos baralhos mais comuns. Preferencialmente, o colocamos entre o tudo e o nada de Pascal, isto é, simultaneamente ocupando o início e o fim da jornada. Feito Jano dos romanos (divindade de dois rostos que nunca se olham, voltados que estão para lados opostos), é O Louco quem sabe do porvir tão bem quanto do passado, já que se acha situado antes do primeiro Arcano, O Mago, ao mesmo que ocupa tempo posição após o último, O Mundo. O Louco confere, assim, ao conjunto um caráter rotativo e perene. Ao assumir duplo papel de fechar e (re)abrir o ciclo, promete a continuidade da individuação. Representa ainda uma força inconsciente, não personificada, por isso sem número, e a figura de bobo da corte expressa a ambivalência de sua função, já que os bobos medievais, antes de idiotas, eram sábios, quiçá os únicos capazes de falar verdades ao rei sem o risco de perder a cabeça.
O Louco nos prende assim em sua mágica, na paradoxal leitura de seu sentido. Se pode ser visto como um bobo que nada sabe sobre si, caminhando a esmo, por outro lado é ele o sábio que, tendo mergulhado no abismo de si mesmo, ressurge renascido, disposto a retomar sua senda. E não há monotonia nem repetição nesse processo; embora as experiências mais fortes sejam arquetípicas, elas são inusitadas no modo como acontecem e nos propiciam leituras sempre novas do livro da vida. Também os passos do Louco nunca são lineares, pois a individuação pressupõe voltas e rodeios até que nos aproximemos do si mesmo, ou até que tropecemos em algo e caiamos dentro dele.
A carta seguinte, O Mago, é a consciência personificada. Resulta da transformação do impulso inconsciente do Louco, agora direcionado conscientemente para o trabalho da individuação. Decididamente, O Mago é o grande herói desta jornada. Ele é cada um de nós, pois a cada passo nos transformamos, conforme desfilamos pela “estrada real” dos Arcanos. Ele está de pé; é, portanto, ativo; e, feito aprendiz de feiticeiro, opera na mesa à frente. Um dos braços aponta para cima, o outro para baixo, como se nos lembrasse da primeira máxima de Hermes Trimegistrus, a ensinar que o nível humano da existência apenas reproduz o plano cósmico da vida; que somos, sim, manifestação da divindade, mas nem por isso privilégio da natureza. O homem precisa trabalhar com o que tem às suas mãos e intuir acerca do Universo à sua volta para que venha a compreender-se.
Consoante os preceitos básicos da magia, O Mago posiciona-se como elo entre os planos humano e divino, surge como centro e medida de todas as coisas. Quatro objetos, dentre outros, despertam-nos a atenção. São eles a moeda e a baqueta que traz em suas mãos, além dos copos e da adaga postos sobre a mesa. Aludem claramente aos quatro naipes do baralho, ouros, paus, copas e espadas, que representam a inteireza do caminho ora descortinado. Isto porque o 4, assim como o 12, são números que por excelência expressam a totalidade, haja vista serem quatro as estações do ano e doze o número de seus meses, também as constelações do zodíaco por onde o Sol passeia ao longo de um ciclo. Quatro e doze sempre nos dão a idéia de algo completo.
Jungescolheu as mandalas (nome sânscrito a designar “círculo mágico”) como símbolos da integridade psíquica, visto que são geralmente representadas por formas circulares (ou outras que insinuem a presença de um centro); de mesmo modo, podemos perceber em cada um dos 22 Arcanos uma mandala oculta. No Mago ela se mostra tanto pelos instrumentos dos quatro naipes citados como pela mesa de três pés e quatro cantos, números estes cujo produto nos leva ao 12. É como se O Mago já tivesse diante de si o tesouro que deseja encontrar pelo caminho, o que, aliás, lhe permite seguir viagem mesmo que não saia do lugar onde se encontra, até porque a individuação é processo essencialmente espontâneo de nosso psiquismo.
Pois bem, tendo à frente uma senda que se desdobra em quatro caminhos, O Mago, resoluto, entende que precisa percorrer simultaneamente todos eles, sob pena de nunca alcançar a transcendência, razão pela qual se divide ele próprio no quatérnio que lhe sucede, formado pelos próximos quatro Arcanos: A Papisa, A Imperatriz, O Imperador e O Papa.
Estes representam uma diferenciação a mais da “ciência dos opostos”, já insinuada pelos braços do Mago que ligavam o em cima ao embaixo. Observemos que as quatro cartas se casam muito bem, são duas figuras femininas e duas masculinas; há da mesma forma uma dupla de imperadores e outra de sacerdotes; e é no equilíbrio de cores de suas vestes que o baralho de Marselha oculta outros mistérios. O detalhe mostra que as mulheres vestem mantos azuis sobre os vermelhos, ao passo que os homens trazem a composição contrária, com vestes vermelhas por cima das azuis. Aqui as cores também têm significado; o vermelho associa-se ao lado consciente, ao aspecto racional do psiquismo. O azul representa o inconsciente, a irracionalidade, os processos intuitivos de percepção. 
Nas personagens femininas (A Papisa e A Imperatriz), a intuição prevalece sobre a razão; já na dupla masculina (O Imperador e O Papa), são os processos racionais que estão por cima. A psicologia analítica identifica, além disso, tanto o aspecto feminino no interior do psiquismo masculino, ao qual Jung batizou de anima (no caso, definido pela Papisa), bem como a relação contrária, a essência masculina no psiquismo feminino, denominada animus (no Tarô, melhor representado pelo Papa).
A Papisa é, antes de tudo, o complemento do Mago. Guarda tudo aquilo que lhe falta, sendo, portanto, o verdadeiro moto de sua busca. Se o Mago é movimento, ela é repouso; se ele é ativo, ela é a receptividade em pessoa. Ele é ação; ela, reflexão. Em suma, todo o desenrolar do baralho a partir do Mago é a Papisa, pois tudo aquilo que estiver em seu caminho servir-lhe-á como complemento. A relação Mago-Papisa no Tarô é correlata do binômio yang-yin dos chineses; aliás, não poderia faltar no esoterismo do Ocidente o arquétipo da “ciência dos opostos”. 
Havendo o Mago experimentado as diferentes maneiras de perceber o mundo, e consciente da natureza interminável de seu caminho, pela primeira vez tem nítida noção das dificuldades que ainda enfrentará. Sua determinação estará sempre à prova.
Na situação arquetípica sucedânea, o herói depara-se com a encruzilhada do Enamorado, quando se encontra dividido entre duas mulheres que cobram dele uma escolha. A que está à sua direita, para a qual ele volta sua face, toca-lhe o ombro, e veste roupas predominantemente vermelhas. Representa a via racional. A outra moça, aparentemente mais jovem, vestindo principalmente o azul, toca-lhe o coração, como se quisesse despertar suas emoções, seu lado intuitivo. No alto, acima da cabeça do herói, em instância que transcende sua consciência, um anjo direciona sua seta para a via intuitiva, como se quisesse orientá-lo em sua escolha. Enfim, aí está representado o drama do livre arbítrio, capaz de atormentar a consciência com o conflito da eterna dúvida. O personagem acha-se cruelmente dividido entre o racional e o intuitivo, observe-se suas roupas listradas de azul e vermelho, além do amarelo, seu aspecto pessoal. Mas pouco importa por onde seguirá nosso herói, até porque razão e intuição encontram-se mescladas em todas as experiências da vida, apenas predominando ora esta, ora aquela. O principal é que o herói dê seu próximo passo, para que não reste estagnado em seu caminho. Siga por onde seguir, desembocará na tríade seguinte, O Carro, A Justiça, e O Eremita. 
Decidindo prosseguir, O Mago experimenta a extroversão das conquistas rápidas, simbolizado pelo Arcano VII, O Carro. O primeiro terço das 21 cartas numeradas se completa. O Mago está emancipado. Destemido, deixa de ser mero neófito para amadurecer na senda e, mediado pelo senso da Justiça, virtude que será assimilada no Arcano subseqüente, chega à condição de maior introversão e capacidade introspectiva, quando descobre que há sabedoria em seu próprio poço, a ser buscada por um processo sereno e cuidadoso, como o faz o velho Eremita.
A carta X, A Roda da Fortuna, traz as vicissitudes da vida, com rodopios e reveses. O herói deve saber tirar proveito do movimento do cosmos. “Há nas lides do homem uma maré que, se aproveitada enquanto cheia, o levará à fortuna”, diria Shakespeare.
No Arcano XI, A Força, alcançamos a metade do caminho, mas prosseguem as vicissitudes, até que O Mago perceba que, invariavelmente, ações sutis repercutem melhor do que as atitudes brutas, como nos mostra a figura intuitiva da vestal, que, sob um manto azul, domina com suas delicadas mãos toda a brutalidade duma besta-fera, contendo-a pela mandíbula. A fera ocupa a metade inferior da carta e, não fosse sua cor distinta, estaria misturada ao hábito da personagem. Representa os processos instintivos, aspectos brutos que esperam ser lapidados e transformados em algo mais sutil.
Os dois Arcanos seguintes trazem a experiência da morte. O Enforcado é ela própria, em seu sentido terminal. A lâmina mostra o herói dependurado, de cabeça para baixo, vendo a vida por outro ângulo; ou como se estivesse num ataúde, cercado por terra e troncos, os dois verticais com seus 12 ramos podados, a representar o esgotamento da mandala, a morte aparente do dinamismo psíquico. Mas o herói, se sobrevive à força perturbadora deste arquétipo que dele exige sacrifícios, comunga pela primeira vez com o mundo transcendente, representado pelo Arcano XIII. Por ser o único sem nome, nem deveria ser chamado Morte. O esqueleto que ceifa sugere transformações substanciais, a troca do velho pelo novo. É um momento iniciático de fértil aprendizagem, representado pelos arbustos em quantidade que brotam neste novo campo da existência. Afinal, o 13 expressa o rompimento da mandala, a transposição da ordem; a soma de 1+3, entretanto, leva-nos de volta ao 4, à mandala de uma nova dimensão.
O Arcano XIV, A Temperança, é a terceira das quatro virtudes medievais a estar representada no Tarô. As outras três, já vistas, são a justiça (Arcano VIII), a prudência (Arcano IX), e a força (Arcano XI). Este tema é chave dos alquimistas, e o segundo terço se completa com o Mago promovido a esta condição. A Temperança se (re)vela no equilíbrio parcimonioso de seu movimento, e a figura feminina aqui traz azul e vermelho em iguais proporções.
Uma vez feito alquimista, pode agora nosso herói experimentar provações mais duras, reservadas aos que penetram no Diabo, Arcano XV, ou na Casa de Deus, Arcano XVI.
Tais estações referem-se ao mundo sombrio, aos aspectos mais críticos de nossa personalidade, que são de partes pouco exploradas ou desconhecidas de nós mesmos. O demônio nada mais faz do que escravizar nossa consciência, prendendo-a em seu altar, exigindo de nós o autossacrifício da extinção de nossas buscas. É por meio do intelecto que nos sentimos separados da fonte primordial. Por causa dessa consciência é que podemos refletir acerca da única certeza que temos, a de nossa morte, de onde nasce uma natural angústia capaz de nos prender em temores pessoais. O Mago descobre que a única forma de evitar o demônio é enfrentá-lo! Se por um lado não devemos negar os méritosde nosso intelecto, por outro, de alguma forma, precisamos transcendê-lo.
A Casa de Deus é o arquétipo da destruição, das mudanças avassaladoras em nossas vidas. Por vezes, somente algo assim tem força capaz de nos arrastar para longe do Diabo que antes nos prendia. A Torre fulminada mostra o ego abalado pelo grito de um inconsciente incontido, simbolizado pela labareda de fogo que explode a cúpula da Torre, cuja forma lembra uma coroa, real adorno de uma consciência que se esquece muitas vezes de perceber a realidade por detrás da realeza. 
O Arcano XVII, A Estrela, nos entrega à esperança. Revela à consciência libertada que a individuação continua a ser possível. Ao menos é o que representam as luzes que brilham no firmamento. A jovem desnuda não é outra senão nosso herói, despido dos valores mundanos, a verter no rio do inconsciente coletivo as próprias águas (azuis) de seu mundo intuitivo, de seu inconsciente pessoal. As estrelas no céu simbolizam as almas já individuadas. Pela primeira vez, os 4 elementos se agrupam na mesma lâmina: água, fogo, terra e ar estão aí representados, este último reafirmado pela presença do pássaro, símbolo da alma inclusive. De novo descobrimos a mandala disfarçada.
A Lua, Arcano XVIII, representa as trevas, os porões da alma; na psicologia junguiana será chamada de sombra. A sombra é o lado oculto do psiquismo, fonte de inúmeros perigos e potenciais que jazem adormecidos. As trevas psicológicas apresentam sérios desafios à nossa frágil consciência, que precisará pedir ajuda à intuição para vencer a provação noturna. A Lua é receptiva, absorve a energia (as gotas) do sistema e demarca a aproximação entre consciência e inconsciente, representados pela duplicidade de símbolos, dois lobos a serem vencidos e dois templos a serem alcançados. Jung admitia que quando os símbolos se duplicavam em nossos sonhos, provavelmente estaria havendo assimilação de valores inconscientes por uma consciência que se aprimora. 
Vencida a noite negra, o Sol do Arcano XIX é quem traduz o momento áureo da jornada, quando a consciência comunga do si mesmo, inspirado instante em que ela se ilumina. A energia agora se espalha pelo sistema, e as duas crianças (consciência e inconsciente) que se tocam para cá do muro que antes as separava, descobrem-se idênticas, visto que nenhuma diferença deveria mesmo haver entre instâncias de um mesmo psiquismo. No contato mútuo das crianças, a ponte para o si mesmo se apresenta, e a iluminação preenche esta mandala.
Mas não por isso o caminho chega ao fim. Restam ainda a análise e a síntese alquímica do processo, previstos pelos últimos dois Arcanos, O Julgamento, XX, e O Mundo, XXI. Juntos simbolizam o ajuste da mandala pessoal, momento em que o herói procura reorganizar seu mundo psicológico, transformado que está por tudo aquilo que sofreu. No Mundo, a síntese (a mandala) se define claramente. O herói está liberto no núcleo da carta, em sintonia com o Universo à sua volta. As figuras nos quatro cantos da carta são alusão aos quatro naipes em que se desdobra o baralho. Mas o Mundo é apenas o fechar de um ciclo. Serve para impulsionar o herói (nós mesmos), para frente. Afinal, somos sábios apenas em relação àquilo que vivemos, e completamente Loucos frente ao que nos é desconhecido. 
Vamos dar outra volta?
OS MISTÉRIOS dos NÚMEROS
 Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição nº 376, janeiro/2004
Embora lidemos de modo natural diariamente com os números, raramente percebemos o quanto eles expressam idéias e forças arquetípicas que se encontram muito além de sua simples utilidade matemática.
A mentalidade tradicional, porém, essencialmente integrada à natureza, incapaz de aceitar o acaso em sua espontaneidade animista, sempre projetou nos números valores transcendentes no intuito de alcançar por meio deles a verdadeira compreensão das coisas e dos seres, conferindo-lhes caráter e personalidade, fazendo deles entidades insofismáveis, veículos de expressão de aspectos divinos. Culturas arcaicas, sem exceção, perceberam nos números qualidades primordiais que residem por trás de suas meras quantidades, fonte de uma infinita e enigmática elaboração simbólica. Nossa curiosidade por decifrar os mistérios numéricos encontra-se, portanto, atrelada não só à necessidade de enumerar os fatos e ordenar os eventos cósmicos para melhor compreensão da natureza, mas também à de entender a estreita relação entre os deuses e os homens.
Nesse sentido, a arte da interpretação dos números, constitui-se, possivelmente, numa das mais antigas práticas esotéricas. O mestre Pitágoras, séc. VI a.C., por exemplo, imortalizado pela máxima O universo é número, julgava fosse a música, dentre todas as artes, a melhor maneira de expressar a natureza, visto que ela reproduz a harmonia das esferas. Suas idéias, importadas do hermetismo egípcio e mescladas aos mistérios órficos, influenciariam sobretudo Platão, sábio grego para quem a música representava o mais alto grau de conhecimento, elo entre a harmonia cósmica e a interior.
Curiosamente, o séc. XX mostrou-se cientificamente capaz de atestar essas verdades intuídas pela mente antiga. A química a física descobriram, por exemplo, a bipolaridade intrínseca aos átomos. Elétrons dotados de carga negativa circunscrevem nos diferentes níveis energéticos de seus orbitais, o núcleo atômico, composto por nêutrons e prótons, estes últimos dotados de carga positiva. Cada átomo, pois, é uma pilha micro-cósmica, capaz de emitir uma freqüência, resultado de seu movimento rítmico, a atestar que mesmo as dimensões infinitésimas da natureza não repousam, mas pulsam, e que, portanto, são vida!
Com o advento da mecânica quântica, entretanto, a ciência desvendou todo um universo infinito composto por sub-partículas e forças semelhantemente vibracionais, deparando-se com fenômenos naturais imponderáveis, inexplicáveis pela ótica dos velhos paradigmas. Hoje admitimos que toda a complexidade organizacional da matéria seja produto último de energia pura, a confirmar incrivelmente o modelo animista, intuído pela mente primitiva, segundo o qual tudo na natureza está vivo, seja o átomo, o grão de areia, a pedra, os seres orgânicos, os planetas, as estrelas e galáxias que habitam o espaço sideral. Paradoxalmente, os olhos assustados da ciência testemunham a antiga máxima pitagórica, segundo a qual o universo inteiro é expressão de forças vivas, em última análise, perfeitamente bem representadas pelos números e arquétipos que estes denominam.
Cabe aqui uma milenar história, a ilustrar o conceito de que os números sublimam verdades transcendentes, absolutamente incapturáveis, entretanto, pela mente lógica acostumada a reduzi-los a simples cifras quantitativas. Conta-se que na velha China, numa época muito anterior à construção da grande muralha, quando os reis tinham por hábito a guerra, certa noite, dezoito generais achavam-se sentados ao redor do fogo, discutindo longamente se teriam ou não sucesso num ataque que planejavam fazer, naquela madrugada, à fortaleza vizinha. Como não chegavam à conclusão alguma decidiram promover um escrutínio secreto: os que fossem contra o ataque deveriam pôr numa bolsa uma pedra negra; os que estivessem a favor da empreitada colocariam dentro dela uma pedra branca. Aberta a urna, esta revelou 15 pedras negras e 3 brancas. Por conta disso, “evidentemente”, levantaram seus exércitos, deram ordens para o ataque e venceram. Ora, o sinal lhes fora claro, posto que o 3, diferentemente do 15, revela-se um número perfeito, cujo sentido é o da realização plena dos ideais! Entenderam os sábios generais que, se justamente três deles eram concordantes entre si, estava aí o sentido de unidade promissora de que todos precisavam para que a batalha fosse vencida.
Tal história bem revela o quanto o antigo pensamento oriental ultrapassa os limites do raciocínio lógico, valorizando o aspecto sutil e sincronístico dos eventos em detrimento de seu simples caráter objetivo e concreto. A numerologia chinesa, com característicaspróprias, tem suas raízes centradas no taoísmo cujos primórdios perdem-se na Antigüidade. Alguns atribuem a origem da interpretação dos números às famílias Hi e Ho de Ming-t’ang, que viveram sob cetro do semilendário imperador Yao (2357-2258 a.C.). Outros reputam a idealização desta arte a Huang-Ti, o Imperador Amarelo, antepassado de Yao e sistematizador de toda a medicina taoísta.
Os chineses vêem nos números, sobretudo, a interação entre macro e microcosmo, entre o Céu (K’ien, cuja natureza é ímpar e yang) e a Terra (K’uen, essencialmente par e yin), de onde depreendem todas as leis do império em conformidade com o Tao. O I Ching, principal sistema oracular chinês, por exemplo, fundamenta-se sobre o número 8, que, para os chineses, assume um papel integrador entre o homem e as forças cósmicas do Tao. Curiosamente, em algarismos arábicos, o 8 escreve-se com dois círculos, um sobre o outro, como se aludissem à reciprocidade tangente entre o mundo divino e nosso plano de existência humana.
Mesma verdade encontra-se na numerologia pitagórica, para a qual os ritmos cósmicos manifestam-se sob números, sendo a geometria uma ciência oculta, espécie de assinatura de Deus a ser descoberta por trás das relações matemáticas. Tal pensamento, resgatado pelo neoplatonismo, serviu de arcabouço às estruturas arquitetônicas das igrejas e catedrais construídas ao longo de toda a Idade Média e do Renascimento, visto que estas preservam em seus arcos, espaços interiores, portas e janelas, a famosa proporção áurea, a estabelecer um jogo harmônico de metragens, de modo que a menor parte de uma linha tenha com sua maior parte a mesma relação que esta guarda com o todo. A proporção áurea, abundante no pitagorismo, também encontrada noutros sistemas numerológicos, desde orientais até os das civilizações pré-colombianas, respeita a economia da natureza, servindo de base para que as construções idealizadas pelos homens melhor reproduzam, em sua intenção, a perfeição da criação divina.
Um dos maiores discípulos do neoplatonismo, a conceber leis universais segundo bases matemáticas pitagóricas, foi o astrônomo Johann Kepler (1571-1630), que viu nos 5 sólidos perfeitos de Platão (o tetraedro, o cubo, o octaedro, o dodecaedro  e o icosaedro) um mapa da relação harmônica entre as órbitas planetárias de nosso sistema solar, em função do que exclamou: Deus geometriza!
Poderíamos discorrer aqui infinitamente (advérbio este dos mais adequados quando o tema é numerologia) sobre nomes e fatos pertinentes ao universo dos números sem que esgotássemos o fascínio que ele nos causa. Detenhamo-nos, entretanto, sobre nossos personagens principais: os números. Passemos em revista, de modo sucinto, os segredos guardados pelos números da unidade, ou ciclo matricial, que alicerçam numerologias desenvolvidas por muitas culturas. Outros números de importância poderiam ser citados, mas fugiríamos à dimensão e ao enfoque deste texto. Limitaremos nossa digressão simbólica ao ciclo matricial, posto que os sistemas numerológicos, sem exceção, adotam métodos de redução de toda e qualquer cifra a seu correlato número da unidade.
1 - Símbolo do absoluto, do Criador; também do homem em pé, em união com o divino. O Um é ainda o Princípio e o regente universal do ato criativo. É força arquetípica masculina, símbolo do pai, do Céu; também do ser primordial, centro cósmico de onde tudo se origina. O Tao nos ensina: O Um gera o dois, o dois gera o três, para daí serem geradas as dez mil coisas. Na dimensão humana é expressão da individualidade, do ego, da personalidade.  
2 – Expressa a complementaridade e a relatividade. É força arquetípica feminina, símbolo da mãe, da Terra e da fertilidade. Designa a criatura, também o ato criativo assimilado e o dualismo sobre o qual repousa a dialética, responsável pelo movimento evolutivo da vida. Em termos pessoais representa a intuição e a sabedoria da alma, o estado de espírito complacente e sensível ao ritmo da vida.
3 - Oriundo da soma ou fusão dos dois princípios precedentes, o 3 é o primeiro número a expressar o mundo manifesto. Haja vista a tridimensionalidade à qual estamos presos, ou ainda o triângulo, primeira e mais simples das formas geométricas. Por isso, o 3 é símbolo da vida, fruto da concepção do 2, estimulada pelo princípio fertilizador do 1. Em termos pessoais, representa a satisfação do ego, pleno de si e realizado por meio de suas obras. Seu arquétipo designa a gestação, a família, também a vida sustentada pela complementar oposição entre os princípios masculino e feminino. 
4 - Arquétipo sobre o qual a vida se sustenta. Também símbolo da completude e da inteireza, depreendido pela mente arcaica a partir da dança cíclica das quatro estações. Daí os antigos ocidentais intuírem que são 4 os elementos da natureza, também quatro os cantos do mundo sobre os quais a condição humana se ancora. Em termos práticos, refere-se à solidez dos projetos pessoais, à segurança e à boa base dos empreendimentos, conferindo estabilidade e bom agouro ao reger as mudanças impostas pela vida.
5 - Um passo além da estabilidade, traduz toda incerteza e exige a adaptabilidade de todo aquele que deseja crescer em harmonia dinâmica com a vida. Rege as vicissitudes e o imprevisível dos fatos; também a comunicação, a inteligência, a argúcia, a palavra, o pensamento. Designa ainda nossos cinco sentidos, por meio dos quais experimentamos o mundo à nossa volta. Por isso, é número que estimula a percepção.
6 - Esotericamente representado pela estrela de seis pontas, ou Estrela de Salomão (formada pelo entrelaçamento de dois triângulos eqüiláteros, um dos quais aponta para cima e o outro para baixo), o número 6 alude à interação entre o mundo espiritual e o plano terreno. É tanto signo do equilíbrio cármico como emblema dos dilemas humanos, posto que cada um dos 6 cruzamentos de linhas que a figura apresenta sugerem as encruzilhadas da vida que nos cobram sempre uma decisão.
7 - Número mágico por excelência, corresponde aos sete dias da Criação, a uma semana completa, aos sete planetas e seus correlatos metais alquímicos, às sete cores do arco-íris, às sete notas musicais. Consagrado a Apolo pelos gregos, era tido como a cifra da antevisão dos fatos, dos vaticínios, das profecias. Em termos pessoais designa conquistas, viagens, extroversão, perspicácia e oportunidades.
8 - Dobro do 4, reforça o caráter deste e constitui-se em símbolo de empreendimentos sólidos, bem erguidos sobre bases de justiça e equilíbrio. Em termos práticos, sua influência benéfica nos traz a orientação necessária para o curso da vida, visto que o 8 é símbolo da rosa-dos-ventos, com suas demarcações cardeais e intermediárias.
9 - Número da ascese e da espiritualidade. Sua forma propriamente sugere uma espiral ascendente voltada à sublimação e à transcendência da consciência, reforçada pelo fato de ser o 9 o último número da unidade. Seu desígnio é o da introspecção e o das práticas contemplativas da alma. Também sugere o renascimento, posto serem 9 os meses da gestação da espécie humana.
Zero - Termo derivado do árabe cifa, que se traduz por “vazio”. Simboliza o não-ser, o incriado, a virtualidade da alma. O conceito de zero, desconhecido da maioria dos povos, entrou na Europa por meio das invasões árabes a partir do século VIII. Antes destes, era considerado apenas pelos hindus e mais remotamente pelos maias, que o representavam por uma concha. O zero nos sugere a idéia de marco divisor de águas, de interregno entre existências, de mudanças cruciais a demarcar o ciclo da vida.
Importante esclarecer ao leitor que são inúmeros os métodos numerológicos que se propõem a orientar nossos passos pela vida. Não nos interessa comprometermo-nos com nenhum. Evidentemente, não só há sistemas mais ou menos complexos, como também intérpretes da numerologia mais aprofundados em seus estudos em meio a outros tantos muito superficiais em seu propósito. Via de regra, os estudos numerológicos, além de valorizarem certas datas, costumam atribuir às letras dos nomesvalores numéricos em acordo com tabelas (que variam enormemente entre si), conforme o alfabeto adotado. Dá-se o nome de gematria ao estudo da relação mágica depreendida entre letras e números, havendo o judaísmo hermético se aprofundado bastante nesta técnica. Entretanto, outras correntes numerológicas têm igual valor, guardadas suas características próprias, o que origina uma série de sistemas apoiados no pitagorismo, ou no I Ching, outros no calendário maia, outros ainda na astrologia árabe, etc…
Boa receita diante dessa diversidade é que o leitor, antes de entregar seu nome a qualquer estudo numerológico, saiba antes avaliar minimamente o caráter do numerologista que se propõe a este intento. Afinal, os números, mais que simples cifras, são temas a interpretar, e a elucidação de seus mistérios, sempre que adequada, pode nos conduzir a uma maior compreensão de nossas tendências inatas.
Sendo a palavra a realização do signo; os números, como arquétipos, são suas raízes secretas, e buscá-las essencialmente, pode mesmo nos levar a trilhar a mágica estrada do autoconhecimento.
O SIMBOLISMO DA SERPENTE
 Texto de PAULO URBAN, publicado na Revista Planeta, edição nº 341, fev/2001
Dentre os símbolos primordiais, a serpente é aquele que mais fortemente encerra toda uma complexidade de arquétipos. Presente em todas as culturas de qualquer época espalhadas pelos cinco continentes, sua imagem mitológica assume sempre um papel fundamental, associada que está, antes de tudo, à essência primordial da natureza, à fonte original de vida, ao princípio organizador do Caos, anterior à própria Criação.
A víbora guarda em si intrigantes paradoxos; se por um lado exprime uma ameaça, já que de seu veneno pode sobrevir a morte, por outro, resume no processo de renovação de sua pele escamosa todo o intrincado mistério da vida, que se atualiza em movimento rejuvenescente.
Diferentes cultos e cerimônias ritualísticas reverenciam este réptil sorrateiro, atribuindo-lhe as mais díspares qualidades. As serpentes podem estar associadas a cultos solares ou lunares, a sociedades matriarcais ou patriarcais, (quando assumem valores masculinos ou femininos); podem significar a luz ou as trevas; a vida ou a morte; o bem e o mal; a sabedoria ou seu oposto, a paixão cega; representar ora o falo, por seu corpo assemelhar-se ao bastão, ou mesmo simbolizar a vulva, conforme se lhe parecem as escamas que a recobrem, bem como o formato de sua goela quando esta se abre para devorar sua presa. Tanto quanto as energias yin e yang expressam no taoísmo as polaridades negativa e positiva que estão por detrás de toda manifestação da natureza, os ofídios, miticamente, ocultam em si a síntese desta dicotomia universal.
Uma das figuras mais intrigantes do simbolismo alquímico, presente milenarmente em diversas culturas, é a da cobra (ou dragão) que morde o próprio rabo e opera, num movimento circular e contínuo, todo o processo dinâmico e transformador da vida. “Meu fim é meu começo”, diz a cobra nesse ato mágico de devorar-se e cuspir-se, a representar a unidade indiferenciada da vida, e seu caráter divino implícito na perfeição do círculo. À serpente devorando a própria cauda, os alquimistas chamaram Oroboro. Tal palavra não consta da maioria dos dicionários, e em alguns livros da Grande Obra aparece grafada como “ouroboros”, principalmente na língua inglesa; outras fontes, menos comumente, escrevem-na “uróboro”. Prefiro, particularmente, o termo oroboro, visto não ter sido nunca tão oportuno em nossa língua nomearmos um símbolo cuja singularidade é a de não ter começo nem fim, por meio de palavra tão especial, que permite ser lida de trás para a frente sem prejuízo sequer de sua pronúncia, transmitindo ela própria a idéia de algo que se expressa ciclicamente.
Etimologicamente, o termo tem curiosa explicação: óros, em grego, significa “termo, limite”, podendo ser também “meta, regra ou definição”; borós se traduz por boca, ou por voracidade. Daí que oroboro representa aquilo que se delimita ou se atinge pela boca, também aquilo que se define por sua própria função. Órobos, em grego, ainda significa “planta”, mais especificamente a alfarroba (fruto da alfarrobeira), uma vagem de polpa doce e nutritiva indicada no tratamento das doenças inflamatórias digestivas. O dicionário Aurélio traz para órobo o significado de “cola”, palavra esta que além de se referir a outro tipo de árvore, a Cola acuminata, cuja semente produz alcalóides tônicos, também pode significar “cauda”, conforme certos regionalismos do Brasil, sendo igualmente encontrada na língua espanhola a designar o rabo dos animais. Para orobó (só muda o acento), o Aurélio reserva o sinônimo “coleira”, em nova referência à aromática árvore acima citada, cujas sementes guardam extrato lenhoso de propriedades estimulantes, semelhantes à cafeína. Coincidentemente, coleira é o nome dado ao colar que cinge o pescoço dos animais, e o oroboro lembra sua forma; além disso, nossas vísceras intestinais assemelham-se à serpente enrolada, e o aparelho digestivo como um todo, se tomado da boca ao ânus, bem desenha a serpente aprumada, prestes a dar seu bote, a devorar sua presa.
Outra aproximação do significado implícito no oroboro encontramos entre os caldeus, que com uma mesma palavra designavam vida ou serpente. Por influência destes, os árabes também denominam de el-hayyah a cobra, e por el-hayat, a vida. El-Hay, por sua vez, um dos principais nomes divinos do islamismo, não deve ser traduzido por “o que está vivo”, mas sim por “aquele que vivifica”, sendo El-Hay o princípio primário da vida.
Dialeticamente, a cobra que morde sua cauda e não pára de girar sobre si mesma, evoca a roda da vida à qual estamos presos, bem representada pelo décimo arcano do Tarô, denominada em sânscrito roda de Samsara, que se traduz por “fluir junto”. Samsara nos condena a experimentar as ilusões do mundo sem que jamais escapemos de seu giro, salvo quando rompemos o ciclo vicioso pelo despertar da serpente Kundalini, como veremos logo adiante.
Numa tentativa de resgate arcaico, cumpre lembrar que desde o paleolítico este réptil era representado por inscrições rupestres em forma de linha, assim como até hoje o fazem os pigmeus caçadores do sul da República dos Camarões. Mas como da linha só enxergamos a parte desenhada, e intuímos que ela se prolongue por suas duas extremidades ao infinito, talvez provenha daí o conceito de que a cobra que vemos (que pode nos envenenar, ser caçada, sacrificada em rituais etc) nada mais seja do que encarnação da verdadeira serpente universal, invisível, fundamento da vida e também o eixo e a base sobre os quais se escora o mundo conhecido.
A “Grande Serpente Invisível” acha-se representada em diversas culturas. Entre os egípcios ela é Ra-Atum, divindade que ao emergir das águas primordiais cuspiu, ou expeliu pela masturbação conforme outras versões, Shu (o ar) e Tefnut (a umidade), que por sua vez engendraram Geb (a Terra) e Nut (a noite). Várias são as passagens do Livro dos Mortos em que Rá-Atum se pronuncia. No capítulo VII diz estar situado no centro do oceano celeste, frisa ser seu nome um mistério e seu poder, absoluto. No capítulo XVII diz ser o deus solitário dos vastos espaços do Céu, ser deus Rá levantando-se na aurora dos tempos, também a suprema divindade que nasce de si mesma, e que seus misteriosos nomes criam as hierarquias celestes; Ra-Atum, maravilhado pela própria criação, noutra passagem adverte: “Sou aquele que não passa; (…) quando tudo retornar ao indiferenciado, então me transformarei de novo na serpente que nenhum homem conhece nem os deuses podem ver”.
Na mitologia hindu encontramos concepção cosmogônica semelhante. O tantrismo roga que entre cada um dos ciclos de vida e morte do Universo há um período de repouso durante o qual Vishnu, o princípio conservador de Brahma, repousa sobre Ananta, a serpente da eternidade. Nesta condição atemporal, Shiva, o princípio desorganizador de Brahma, está imiscuído de modo indiferenciado em seu próprio poder, Shakti.Quando Shiva inicia sua dança, o Universo é então criado, e Shakti, operando agora como Prakriti (energia primordial incapturável e imperceptível da qual todas as formas de vida evoluem) desenvolve todo o Universo desde os tattva (mundos) mais sutis até os mais densos, até criar a mente, os sentidos e a matéria sensível sob suas cinco formas, éter, água, fogo, terra e ar. Quando Shakti penetra no último e mais grosseiro dos tattva, a “terra”, ou seja, a matéria sólida, sua missão está acabada. Shakti aí adormece sob a forma de Shesha, a serpente que sustenta o mundo, até a próxima era da nova Criação. Shesha nada mais é que um correlato da serpente cósmica Ananta, o infinito, e sua função é a de suportar o orbe e tudo o que nele se manifeste. Shesha e Ananta compõem, respectivamente, o sono divino e o divino despertar de Brahma.
 Além da serpente, outros animais podem ser carregadores do mundo; há versões mitológicas em que o touro, o crocodilo, a tartaruga e o elefante exercem tal papel; mas estes são meros substitutos da serpente em sua função cósmica, haja vista que em sânscrito o termo naga designa ao mesmo tempo cobra e elefante, e nenhum indiano sensato constrói sua casa sem antes descobrir geomanticamente (pela radiestesia) em seu terreno qual o ponto relacionado ao “centro do mundo”, quando então enterra uma estaca na cabeça do naga subterrâneo, em torno do qual erigirá sua morada.
Análoga à serpente macrocósmica Ananta-Shesha é Kundalini (cuidado, a palavra é feminina e oxítona), serpente esta que se encontra enrolada na base coccigiana, na extremidade inferior da coluna vertebral humana. Afinal, o hinduísmo considera indistintos macro e microcosmo, de modo que todas as forças universais encontram no ser humano perfeita correlação. Também o corpo físico do homem é mera manifestação do corpo sutil, dizem os hindus, e nele se distribuem os chakras, centros energéticos com funções específicas, em concordância com a ordem de emanação dos tattva, isto é, indo dos mais sutis aos mais densos em sentido descendente. Kundalini jaz dormente no último e mais grosseiros dos chakras, denominado muladhara, que se traduz por “suporte”. Despertar a Kundalini é tarefa das mais arriscadas, mas ao mesmo tempo necessária à nossa transcendência. A serpente, potencialmente perigosa, obstrui com sua cabeça a entrada para o canal de Sushumna, via direta para que a mente suba aos Céus e comungue diretamente com Brahma, o deus supremo. Perturbar Kundalini em seu sono, por conseguinte, é viabilizar este contato transcendente. Quando a serpente desperta, sibila e se enrijece, permitindo nesse momento a ascensão sucessiva da libido pelos chakras imateriais situados ao longo da coluna até que se alcance o sétimo e mais sutil deles, relacionado à fontanela superior, no alto da cabeça; este recebe o nome de Sahasrara, ou chakra coronário, posto que “coroa” todos os demais. Isto porque Kundalini, uma vez acordada, não pára em sua ascensão, que se faz por etapas que podem durar anos ou mesmo a vida inteira, sempre numa progressão que dissolve o tattva inferior naquele que lhe é imediatamente superior. E cada um dos degraus só pode ser galgado à custa de importante sacrifício pessoal, de modo que o homem se purifique, passo a passo, até que se dissolva na essência bramânica universal de onde se originou.
Inúmeras culturas incutem na serpente essa idéia de espiritualidade confrontada aos padrões mais grosseiros da existência, fazendo deste réptil enigmático o emblema da síntese dos opostos, da coniunctioni opositorum dos alquimistas. O dragão, exemplo de serpente alada, traz em suas asas o tom de espiritualidade inerente ao símbolo. Aliás, entre os chineses, butaneses e outros povos do oriente, nem se faz distinção entre a cobra e o dragão, suas imagens são intercambiáveis, e há oroboros em que o dragão que morde a própria cauda é branco na metade superior do círculo e negro em sua parte inferior, a reforçar a noção de complementaridade dos opostos. O dragão celeste é o pai mítico de muitas dinastias, e os imperadores chineses o traziam estampado em suas vestes e estandartes para que o povo não se esquecesse de sua origem divina.
Curiosamente, entre os astecas e outras culturas da América Centrla e andina, Quetzacoatl, a serpente emplumada (uma combinação de Quetzal pássaro e serpente), é divindade solar e surge como elo entre os deuses e os homens, podendo ainda estar associada à chuva, ao vento, aos raios e trovões, bem como ao sopro de vida, ou ainda ao tempo incriado.
Destarte, vemos que a serpente expressa antes de tudo um desejo de hegemonia espiritual em detrimento das forças mundanas que nos iludem quanto ao sentido da existência. Preocupação semelhante encontramos na mitologia grega, no episódio em que Zeus enfrenta Tifão, filho da cólera de Hera, criado pela serpente Píton. Tifão é gigantesco dragão de cem cabeças, de cujos olhos saem labaredas de fogo infernal, com asas no lugar dos dedos, “vestido” de víboras que, presas em torno de sua cintura, alcançam seus calcanhares. Tifão afugenta todos os deuses, exceto Zeus e sua filha Atena (a razão), que resistem a seus ataques. Por fim, Zeus o fulmina com seus raios e o lança ao fundo do Etna, de onde, vez por outra, moribundo, volta a cuspir fogo. Derrotar Tifão é tarefa das mais árduas, necessária, porém, a todo aquele que, decidindo lapidar seus aspectos brutos e terríveis, deseje alcançar a maestria.
A serpente, na mitologia clássica e em outras tantas, surge ainda associada à prática da adivinhação. Prova-o deus Apolo ao subjugar a serpente Píton que jazia na caverna do santuário de Delfos, da qual derivou o nome “pitonisa”, dado às sacerdotisas de seu templo, exímias profetizas. Também os ofídios vêm atrelados ao cultivo das artes, poesia e música principalmente, mas, sobretudo, à medicina.
Consoante a versão mais aceita, Asclépio é filho de Apolo e Corônis, filha de Flégias, um dos reis de Tebas. Certa feita, devendo retornar a Delfos, Apolo deixa um corvo branco ao lado de sua esposa prenhe, para guardá-la. Mas Corônis, muito bela, temendo que Apolo, eternamente jovem, a abandonasse na velhice, mesmo grávida, une-se a Ísquius. Consumado o coito, o corvo, que estava encantado, torna-se preto, o que faz com que Apolo descubra o adultério. Apolo atira Ísquius ao Tártaro, nível infernal do mundo dos mortos, onde até hoje está a envenenar tudo aquilo que ele toque. Corônis é morta ao parir o menino, por uma flecha de Ártemis, irmã de Apolo. Asclépio passa então a ser amamentado por uma cabra, o que para os gregos é distinção de divindade, e é deixado pelo pai, na infância, aos cuidados do centauro Quíron. O nome “quíron” é abreviatura de queirourgós, a designar aquele que trabalha com as mãos, de onde se deriva o termo “cirurgião”. O sábio, cujo corpo era metade humano e metade eqüino, ensina as artes nobres a seu pupilo: a música, a poesia, a guerra e a caça e, principalmente, a medicina, na qual era especialmente versado. Acidentalmente, porém, Quíron teve seu joelho ferido numa batalha por uma flecha de Heracles, um de seus pupilos, cuja ponta estava envenenada pelo sangue verde e tóxico da Hidra de Lerna. Por conta disso, Quíron, imortal por ser filho de Cronos, vê-se fadado a sofrer por toda a eternidade. Mesmo sendo médico, não tinha poderes para desfazer-se do veneno assimilado. Daí dizer-se que os médicos feridos são os que melhor sabem curar, ou os que, ao menos, por terem experimentado a dor, são aqueles que podem com sabedoria ensinar a arte médica. Pois bem, o atroz sofrimento de Quíron só se resolve quando Zeus, compadecido de sua sina, permite-lhe trocar com Prometeu sua natural condição; este lhe cede seu direito à morte e assume para si a imortalidade do nobre centauro. Quíron sobe então aos céus para brilhar numa constelação. Ele é Sagitário, aquele que tem o dom de aspirar às coisas belas, símbolo da alma zelosa, do caráter arguto e altruísta. A esta constelação, os antigos consagravam a serpente, o galo e a tartaruga.
Asclépio, cuja arteera a de saber observar, certa feita feriu uma serpente que estava prestes a dar-lhe o bote, e pôde ver que outra veio em seu socorro, trazendo em sua goela a erva que curaria a primeira. Desde então teria tomado para si completo domínio sobre as drogas e assumido a serpente como símbolo da vida. Asclépio, presume-se, viveu por volta do século XIII a.C. Seu nome já aparece na expedição dos Argonautas, quando trouxe de volta à vida alguns mortos em combate, o que atraiu contra si a ira de Hades, que o acusou diante de Zeus de estar sonegando almas ao mundo inferior. Por conta deste crime, Zeus fulmina o médico com seus raios para impedir-lhe de estabelecer um desequilíbrio no Cosmo. Asclépio seria ainda assimilado pelos romanos como Esculápio; estes o tinham em tão grande respeito que chegaram a importar a serpente de Epidauro e construir um templo ao novo deus na ilha tiberina, a fim de que pudessem conter uma epidemia que assolava Roma no ano de 293 a.C., creditada à ira de Apolo.
Em Epidauro, o culto de Asclépio ganhou força principalmente dos fins do século VI a.C. ao final do V d.C., mais de um milênio de glória. O médico, conhecido como “o bom e o simples”, hábil ao buscar nas plantas seus remédios, fundara aí sua Escola de Medicina, fundamentada na magia. De Epidauro ramificaram várias escolas, ditas Asclepíades, de medicina “científica”, a formar alunos dentre os quais Hipócrates (de Cós) é o melhor exemplo. As principais Asclepíades estabeleceram-se na ilha de Cós, em Corinto, Pérgamo e outras regiões. Epidauro era famoso por seu labirinto, no centro do qual se guardava a serpente sagrada. A víbora, um ser ctônico, habitante das entranhas da terra, detinha o dom da adivinhação e, enrolada num bastão, em alusão ao ancião Asclépio, passou a ser símbolo da medicina.
Não devemos, porém, confundir o símbolo de Asclépio com o caduceu de Hermes, sobre o qual se enrolam duas serpentes, guardiãs de nosso adormecer e despertar, representantes também de um dos atributos dessa divindade, que é o de levar a alma dos vivos ao mundo dos mortos, ou de lá voltar com as almas que renascerão em nosso mundo. A confusão toda foi feita na época da Primeira Guerra Mundial, quando tropas médicas francesas passaram a usar o caduceu de Hermes (em vez do de Asclépio), antes de ser adotado o símbolo cristão da Cruz Vermelha nos uniformes. Daí para frente, os E.U.A., a partir de meados do século XX, por meio de seus laboratórios farmacêuticos, que nada sabem de mitologia nem têm por princípio respeitar a medicina, também por meio de suas insígnias militares durante a Segunda Guerra, vieram a repetir a equivocada associação, reforçando e difundindo o erro. Cumpre dizer que nenhuma representação mitológica de Asclépio o traz com duas serpentes em torno de seu caduceu. E deus Hermes, dentre os inúmeros atributos que têm, nunca foi médico absolutamente.
De qualquer modo, o fato é que a serpente encerrará para sempre seus mitos de tantas sutilezas. Nas curvas de seu dorso deslizam sinuosos mistérios; em seu veneno oculta-se a dose curadora; em sua goela está o portal para as entranhas da Terra. Essencialmente guardado, a víbora detém o serpentino enigma da morte e da vida.
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