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Considerações estratégicas sobre a Indústria da cachaça Marco Antonio Ferreira de Souza (UFRRJ) - bauhaus@ufrrj.br Fabio Nogueira Vale (UFRRJ) – fabiovale@hotmail.com Resumo: O presente trabalho aborda o sistema agroindustrial responsável pela produção e distribuição da cachaça no Brasil. Após caracterização, abordando aspectos estratégicos, apresenta-se uma tipologia do sistema, dividindo-o em três subsistemas: industrial, artesanal clássico e artesanal modernizante. Faz-se um estudo de caso sobre o artesanal modernizante, com foco em Minas Gerais, que apresenta a melhor configuração deste subsistema. Este sistema agroindustrial enfrenta desafios no curto e no médio prazo. Internamente, tem-se um período de estagnação, produção e comercialização e a adaptação a questões como as exigências e novos hábitos de consumo e segurança alimentar. Externamente, a imagem e quantidade comercializada têm muito a melhorar, quando comparadas à Vodca e à Tequila. Procura-se apresentar dados relativos à produção, exportação e consumo interno. Serão abordados aspectos estratégicos desde o plantio da cana até a disponibilização do produto para a comercialização. Palavra-chave: aguardente, cana-de-açúcar, estratégia. 1. Introdução Considerada a legítima bebida brasileira, a cachaça é um dos produtos que melhor ilustram todas as ações, tensões e contradições por trás das transformações que permeiam a história do sistema agro-industrial brasileiro. Pode-se dizer que a história deste produto, assim como o da cana de açúcar, reflete parte das ações, tensões e contradições que permeiam a história brasileira. Amada e odiada em proporções desconhecidas, a história desta bebida se confunde com a história brasileira. Sua produção e consumo estão profundamente enraizados nas dimensões econômicas, sociais, políticas e culturais da formação do Brasil. Ao beber uma dose de cachaça, uma pessoa não estará simplesmente saboreando um aperitivo, ela estará, seguramente, bebendo mais de 400 anos de história. Atualmente o sistema agro-industrial responsável pela produção e comercialização da aguardente encontra-se dividido em três subsistemas com características bem distintas e conflitantes. O subsistema Industrial, composto pelas maiores empresas e cuja principal característica é a produção padronizada; o Artesanal Tradicional, compreendendo pequenos e médios produtores independentes, e cujas principais características são a diversidade de processos produtivos e uma profunda identificação com as regiões onde são produzidas; e o Artesanal Modernizante, também formado por pequenos e médios produtores, mas que estão institucionalmente ligados pelo vínculo a uma pessoa jurídica, criada para representar os interesses dos associados. Produzida em todos os estados brasileiros, e exportada para mais de cinqüenta países, a cachaça traz hoje atrelada a sua produção e consumo no subsistema artesanal uma rede de atores, governamentais ou não, que há anos vem se articulando para transformar a história e, portanto, o destino desta controversa bebida. Esta rede busca em suas ações aperfeiçoar a produção da cachaça para adequá-la aos padrões nacionais e internacionais de qualidade, exigida pelos mercados consumidores mais maduros e sofisticados. Além, evidentemente, de se proteger da competição com o subsistema industrial. 2. Mercados Segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de Bebida (ABRABE), o país tem mais de cinco mil marcas de cachaça e cerca de trinta mil produtores. A cachaça é a bebida destilada mais consumida no Brasil e a terceira no ranking mundial. É reconhecida como um produto de grande potencial de exportação pelo governo brasileiro, com perspectivas de aumento significativo nos próximos anos. Segundo Maia( 2002), o consumo per capta é de 11 litros. A produção passou de 418 milhões de litros para 1,3 bilhões de litros entre 1970 e 1999. Os números da produção e exportação revelam os esforços do Sistema Agro-Industrial para a consolidação da cachaça como uma bebida para todos os paladares e não apenas para pessoas de baixo poder aquisitivo e refinação cultural. O item Atuando em Rede explora algumas das prováveis razões para o notório sucesso da bebida. Entretanto, paralelo a esse importante sucesso, assiste-se nos bastidores do Sistema um pesado confronto entre os subsistemas formadores: o da produção industrial e o da produção artesanal. O item processo produtivo explora com mais profundidade as características de cada um. A bebida é consumida atualmente em mais de sessenta países, entre eles, alguns que têm sua população como sendo as mais sofisticadas e ricas do mundo. O Quadro 2 traz o ranking dos principais países importadores. Ainda que os números não revelem, a cachaça é exportada praticamente para todos os continentes do mundo. Quadro 2 – Principais países Importadores de cachaça. Fonte: www.pdbac.org.br. Países % Paraguai 28,19 Alemanha 23,31 Itália 6,05 Uruguai 5,94 Portugal 5,68 Bolívia 4,28 EUA 4,13 Chile 3,69 Espanha 3,00 Outros 15,75 O interesse dos alemães pela bebida constitui um interessante exemplo a ser estudado de perto por todos os setores do agronegócio nacional que queiram atuar mais ativamente no exterior. A entrada da bebida no mercado alemão ocorre em meados dos anos 90, sendo quase que exclusivamente consumida como ingrediente da caipirinha, e muito beneficiada pelo fato da graduação alcoólica ter mudado de 51 para 40 graus. Também contribui para o êxito da bebida à imagem positiva que os alemães têm de alguns dos principais símbolos que formam a cultura brasileira: a música, a tradição nos esportes, as praias, sua riqueza de manifestações populares, principalmente o carnaval, etc. (Maia, 2002). A preferência dos alemães pela caipirinha exerce significativa influencia nos resultados das marcas mais vendidas (ver Quadro 3), que são as da variante clara da cachaça, vendida pelo subsistema industrial. Apesar de importantes, as cachaças mais escuras, as artesanais, são menos conhecidas e, portanto, menos bebida, fato também influenciado pela falta de hábito de beber o destilado puro. Quadro 3 – Principais marcas operando na Alemanha. Fonte: Maia (2002) Marcas Fabricante/Distribuidor Pitu Undenberg Pirassununga Pirassununga Ypioca(Standard Ouro, Prata e 150) Ypioca Nega Fulo Não disponível Manga Rosa Marca própria (Importador Italiano) Cana Rio Marca própria (Importador) De meados da década de 90 até o ano passado, as exportações aumentaram significativamente, numa média de 100% ao ano. Acredita-se que o desempenho teria sido melhor se o produto não fosse classificado nas aduanas como rum, impedindo o seu reconhecimento como categoria de produto independente e genuinamente brasileira. Entretanto, os números são fortes. Segundo a ABRABE, no ano de 1996 foi exportado um milhão de litros, e para 2003, as projeções apontavam um total de 20 milhões de litros. Os esforços de promoção da aguardente no exterior vão no sentido de fortalecer a categoria de produto “aguardente de cana”, a marca cachaça, aspectos do sabor e do aroma diferenciados e da origem brasileira. O foco é a construção da imagem do mais original e genuíno destilado. Também são feitas ações para promover os cuidados que estão sendo tomados com a adoção de padrões rígidos de qualidade na produção. Entretanto, a imagem da bebida está invariavelmente ligada a da caipirinha, um drinque cuja imagem é genuinamente nacional. O que, por outro lado, revela outra vantagem da bebida: sua versatilidade, combinando bem com as frutas e sucos apreciados nas diversas regiões onde pode ser exportada. Nove estados dividem o ranking de principais produtores da bebida. São Paulo é o maior produtor, e onde se concentram algumas das plantas industriais de maiorescala. Também merecem destaque o Ceará, onde se encontram plantas industriais da Ypioca, e Pernambuco, com Plantas da Indústrias Muller e da Pitu. Segundo Coutinho (2001), embora seja produzida em todos os Estados brasileiros, apenas os citados no Quadro 4 se destacam. Quadro 4 – Principais estados produtores no Brasil. Fonte: www.pdbca.org.br. Estado % SP 44 CE, PE 12 (cada) MG, RJ, GO 8 (cada) PR 4 BA e PB 2 (cada) Total 100 O subsistema industrial corresponde a maior parte da produção, estando as maiores empresas localizadas em São Paulo. Com destaque para as Indústrias Mûller de Bebida, da cidade de Pirassununga, detentora da marca mais conhecida e consumida no Brasil, a Caninha 51, e a maior exportadora do produto. O Quadro 5, extraído do trabalho de Coutinho, demonstra o prestígio da marca no Brasil. Quadro 5 – Posição das Marcas no Mercado. Fonte: Coutinho (2001, p. 95). Área Mercados Classificação I Nordeste 1) Caninha 51 2)Pitu 3)Ypioca 4)Velho Barreiro II MG, ES e RJ (interior) 1) Caninha 51 2) Velho Barreiro 3)Ypioca 4) Caninha da Roça III Grande Rio 1) Caninha da Roça 2) Caninha 51 3)Velho Barreiro 4) Paduana IV Grande S Paulo 1) Caninha 51 2) Velho Barreiro 3) Cavalinho 4) Ypioca V SP(Interior) 1) Caninha 51 2) Velho Barreiro 3) Oncinha 4) Ypioca VI Sul 1) Caninha 51 2) Velho Barreiro 3) Sete Campos 4) Caninha Jamel VII Norte e C. Oeste 1) Caninha 51 2) Caninha Jamel 3) Velho Barreiro 4) Caninha da Roça No subsistema artesanal, destaca-se o Estado de Minas Gerais. Em seu site, a AMPAQ (Associação Mineira dos Produtores de Cachaça com Qualidade) afirma que existem cerca de 25 mil produtores no Brasil, produzindo em torno 200 milhões de litros/ano, gerando um movimento de 1,5 bilhão de reais só com o mercado interno. São gerados cerca de 240 mil empregos em 8.466 alambiques. Entretanto, aproximadamente 95% dos alambiques são informais, somente 500 possuem registro no Ministério da Agricultura. Várias marcas se destacam neste subsistema, entre elas a conhecidíssima Havana, produzida em Salinas, que agora recebe o nome do proprietário, Anísio Santiago, impossibilitado de usar o antigo nome. Outras marcas são: Germana, Volúpia, São Paulo, Espírito de Minas e Fazenda do Boi Parido. 3. Processo Produtivo A cachaça é o terceiro item de maior interesse na cadeia produtiva da cana-de-açúcar, perdendo para o álcool e o açúcar. Até o final da segunda guerra predominava no Brasil o modelo de produção artesanal. Coutinho (2001) afirma que com o advento de tecnologia no período de 1945 a 1960, o setor começou a se industrializar, surgindo os primeiros exemplos de empresas com produção em escala, dissociando sua imagem de um engenho de açúcar. A partir daí novos atores surgem e a cadeia produtiva assume a forma e as características que serão aqui descritas. A Figura 1 apresenta uma breve descrição do panorama atual da cadeia. Esta cadeia produtiva é fortemente influenciada por dois fatores: o ciclo produtivo da cana de açúcar e a variação dos preços do álcool e do açúcar no mercado. O primeiro fator leva à concentração da produção nos meses de junho a novembro, época da safra, gerando uma conhecida capacidade ociosa no setor. O Segundo fator, por sua vez, influencia a especialização de atividades e o comportamento dos atores, que passam a necessitar de modos de coordenação que gerem maior proximidade e confiabilidade às relações pela cadeia. Convém ressaltar a situação do subsistema artesanal tradicional, que depende sobremaneira das redes interpessoais e dos brokers, atravessadores, para efetivar sua comercialização. Esta situação pode ser identificada na Figura 1b, linhas pontilhadas, que descreve o canal deste subsistema. Figura 1: Cadeia produtiva nas versões industrial e artesanal. Produção da Cana Alambique Associaçõe Cooperativas Brokers/ Distribuidor Venda Direta 1b - Cadeia Produtiva Versão Artesanal Insumos, Máquinas e Equipamentos. Produção da Cana Usina de Açúcar Destilarias de álcoolDestilarias de Aguardente Estandardizadores ou Padronizadores Venda Interna Direta/Indireta Venda Externa Consórcio 1a - Cadeia Produtiva Versão Industrial Insumos, Máquinas e Equipamentos. Venda Interna Venda Externa Consórcio A organização da produção é um dos fatores de maior diferenciação entre os subsistemas, mas, como será visto adiante, a organização a jusante também é bastante diferenciada. O subsistema industrial, por exemplo, tem maior presença no mercado externo, com trabalho de desenvolvimento de marcas, composto de produto variado e parceria com distribuidores locais. A Figura 2 traz uma descrição do processo de obtenção e distribuição da cachaça. As caixas amarelas e as setas pontilhadas apontam processos e itens que comprometem a qualidade da cachaça. 3.1 O Subsistema Artesanal Tradicional No subsistema artesanal tradicional, berço da indústria, predominam as unidades produtivas do tipo agricultura familiar, onde a pecuária e a agricultura estão em sinergia constante. Este fato é fundamental para a caracterização do subsistema, que é fortemente vinculado ao seu espaço de produção, recebendo muitas influencias das tradições locais e que apresenta bastante heterogeneidade na organização da produção e no uso de equipamentos. O que representa um grande desafio aos movimentos para organização do setor em torno de uma qualidade aceitável para comercialização. O trecho a seguir, extraído de Martinelli et al (2000) caracteriza bem este setor: “Em geral, a aguardente artesanal vem sendo produzida a partir de antigas receitas familiares, passando de pai para filho, e muitas vezes não garantido a manutenção das especificações exigidas pelo ministério da agricultura. Por outro lado, a maioria dos equipamentos utilizados não sofreu melhoras ou inovações suficientes que venham garantir as devidas correções do processo, o que seria fundamental para levar a uma certa padronização da aguardente bem como a maiores ganhos de produtividade”. O peso da tradição neste subsistema é significativo. Tomando a região de Salinas como exemplo, a tradição no modo de produzir a cachaça vem passando de geração a geração desde o início do povoamento no século XVIII. Ainda há que se considerar a articulação econômica e social desta região com a economia açucareira predominante no Nordeste da época de formação desta região (Oliveira e Ribeiro, 2002). Tem-se mais de dois séculos de construção desta tradição. Trata-se de unidades que produzem em pequenas quantidades, quando comparadas às empresas do subsistema industrial. Oliveira e Ribeiro (2002), abordando a região de Salinas no Norte de Minas Gerais, apresenta uma tipologia de unidades produtivas artesanais que serve, possivelmente, para caracterizar o subsistema artesanal tradicional pelo Brasil. Quadro 6: Tipologia das unidades produtivas artesanais (Oliveira e Ribeiro, 2002) Tipo Produção anual média/litros Mini 2000 Pequeno 9500 Médio 22500 Grande 55562 O subsistema de produção artesanal possui as seguintes características (Coutinho, 2001): • A maioria das unidades não tem firma constituída; • Fermentação em alambique de diversos tipos, o que depende do capital do produtor; • Não uniformidade tecnológica, havendo produtores com equipamentos e procedimentos ultrapassados, convivendo com produtores mais modernizados; • Vinculada ao seu espaço de produção. Recebe influencias das tradições locais; • Cana colhida sem queimada e moída em ate 24 horas após sua colheita; • Forte integração da produção da cachaça com outra atividade agropecuária; • Geralmente a Produção da cana é própria; • Acesso a mercados locais.Depende de redes interpessoais e de brokers(atravessadores). 3.2 O Subsistema Industrial No subsistema industrial têm papel predominante as empresas estandardizadoras ou padronizadoras, as destilarias de aguardente e os produtores de cana. Segundo Martinelli et al (2000), no geral os padronizadores compram a cachaça com alto teor de álcool das destilarias de aguardente, a diluem com água, e fazem a filtragem e adicionam o xarope de açúcar. Possivelmente, esta forma de organização permite aos atores o melhor aproveitamento das variações dos preços do álcool e do açúcar. Uma notória exceção é a Ypioca Industrial, que tem sua própria produção de cana, mas que não chega a satisfazer toda a sua demanda. A empresa também produz as caixas que embalam seus produtos. Apesar do seu porte, a empresa se assemelha bastante às empresas do subsistema artesanal, pois aproveita bem a sinergia entre as atividades agropecuárias. Do bagaço da moenda da cana a empresa: industrializa suas caixas de embalagem, gera energia elétrica para uso próprio, e desenvolve a ração que alimenta o gado em suas fazendas. Além de usar o vinhoto como adubo nestas mesmas propriedades, de onde saem os alimentos servidos aos funcionários do grupo (Martinelli et al, 2000). O subsistema de produção industrial tem como características (Coutinho, 2001): • Cana submetida à queima para aumento do rendimento do corte; • Adquirem aguardente e cana de terceiros; • Utilizam colunas de aço inox para a fermentação do produto; • Alta tecnologia de produção e controle. Possui mão-de-obra especializada; • Fermentação com leveduras selecionadas e produtos químicos; • Acesso aos grandes canais de distribuição e preços mais baixos; • Parcerias com atores internacionais para a distribuição no mercado externo; • Mix variado de produtos, focando a sofisticação e a associação com a caipirinha. 3.3 O Subsistema Artesanal Modernizante Este subsistema nasce do Artesanal Tradicional, e como uma resposta estruturada aos desafios que a produção artesanal vem enfrentando, mas que não consegue dar conta. Principalmente no que diz respeito à adequação às questões de segurança alimentar e das exigências de um mercado cada vez mais sofisticado. Maiores informações podem ser obtidas no próximo item. O subsistema em questão possui as seguintes características (Coutinho, 2001): • Fermentação feita em alambique de Cobre; • Explora vinculo com as tradições do território como fator de diferenciação; • Procura uniformidade tecnológica, procedimentos e equipamentos; • Cana colhida sem queimada e moída em ate 24 horas após sua colheita; • Integração da produção da cachaça com outra atividade agropecuária; • Produção da cana é própria; • Acesso a mercados nacionais e externos; • Organização produtiva vem se fundamentando no associativismo. 4. O exemplo de Minas Gerais “Minas Gerais é o berço da organização do setor aguardenteiro, onde a tradição é mais referenciada como herança que consolida formas de produção e procedimentos específicos; é o estado em que o segmento artesanal se encontra mais organizado e modernizado; é o território em que se desenvolveu uma convenção de qualidade específica para a cachaça artesanal; é o espelho dos programas estaduais de outras regiões produtoras de cachaça (Coutinho, 2001)”. Este item explora como que a organização produtiva do subsistema artesanal modernizante vem se fundamentando no associativismo e na valorização das tradições como fator de diferenciação. Será dada atenção especial ao caso de Minas Gerais, que desponta no cenário nacional como o produtor mais especializado na produção artesanal, e que procura construir todo o simbolismo de sua marca a partir de elementos enraizados nas dimensões culturais, sociais e políticas de sua história. As palavras acima exprimem, e com muita propriedade, a importância de Minas Gerais para a história contemporânea da aguardente. Atuando em rede, atores governamentais e não governamentais se articulam tendo como foco a qualificação dos relacionamentos estratégicos para a transformação da realidade do subsistema artesanal em relação à informalidade do setor, a forte concorrência do subsistema industrial e ao esvaziamento econômico das localidades produtoras de cachaça. Assim, nasce o subsistema artesanal modernizante. O fato é que os esforços da rede mineira estão sendo vitais para a mudança da imagem do produto no Brasil e no mundo, fazendo com que sua produção e consumo reflitam bem mais que as mazelas sociais nacionais. Hoje ela está associada à emprego, inovação, e melhoria da qualidade de vida, através de programas ambientais e de qualificação das pessoas. Praticamente todos os maiores Estados produtores de cachaça possuem suas redes de atores, porém não foi encontrado na literatura material significativo. A ação dessas redes envolve a modernização das unidades produtivas, a padronização e reprodução das melhores práticas e o desenvolvimento de uma cultura de consumo e produção diferenciados para a bebida. As principais táticas são o desenvolvimento de associações, a oferta de cursos, o desenvolvimento de um programa de certificação e de uma convenção de qualidade específica, a promoção de eventos e de parcerias com instituições governamentais de fomento e de pesquisa. De acordo com Coutinho, a primeira ocorrência da organização mineira data de 1982, através de um pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Industrial de Minas Gerais (INDI) que elabora e propõe, para avaliação pelo Instituto, um programa e um projeto de pesquisa para avaliar o potencial da atividade aguardenteira no estado. Os primeiros resultados dos estudos apontam um quadro crítico das quase 1500 empresas produtoras: baixo rendimento agrícola, baixo nível tecnológico e falta de estrutura para comercialização. Além disso, alertou para a necessidade de uma organização setorial para aproveitar melhor a existência de nicho de mercado para o produto artesanal. Em seguida é feito estudo de viabilidade econômica. Certos da viabilidade econômica, o INDI e a Secretaria do Trabalho e da Ação Social desenvolvem o projeto para a produção de uma cachaça com qualidade, envolvendo a parte de moagem, fermentação e destilaria. As primeiras fontes literárias utilizadas vieram da ESALQ, que desenvolvia estudo para o subsistema industrial. Conforme Coutinho: “a fusão das informações da literatura e das observações da pesquisa de campo resultou na construção de conceitos de qualidade fundamentados nas tradições locais, valorizando as características dos processos exitosos. O discurso da qualidade enfocava o respeito às tradições, que foram traduzidas como a prática artesanal, a produção da cachaça a partir do caldo da cana e da destilação em alambiques de cobre”. O exemplo reforça o conceito de que para ter e sustentar qualidade, esta deve nascer bem antes do projeto, que os valores a ela associados devem estar enraizados no modo de vida das pessoas. Em termos práticos, isso significou que os produtores do estado não adeririam maciçamente à tecnologia de colunas de aço para a fermentação, preservando o tradicional alambique de cobre, e que produziriam sua cachaça a partir do caldo da cana, e não proveniente da fermentação da rapadura, melado ou melaço. Em sua convenção de qualidade, a cachaça artesanal mineira é definida como uma bebida produzida em pequena quantidade, seguindo princípios que remontam à época escravista. Em 1988 nasce o primeiro ator não governamental e que em pouco tempo assumiria papel decisivo na história futura do subsistema artesanal nacional: a AMPAQ, Associação dos Produtores Mineiros de Cachaça com Qualidade. Foi a primeira associação nacional, tendo inicialmente trinta associados. Hoje são mais de quinhentos. Uma das maiores contribuiçõesda AMPAQ foi seu estímulo a criação de outras associações em Minas e outros estados, entre elas as da Paraíba e Rio de Janeiro. Em 2001 já existiam cerca de sete associações, respondendo aos interesses de tradicionais regiões produtoras do estado. No site da organização, as pretensões são assim delineadas: • Promover e valorizar a cachaça no mercado interno; • Cultivar as relações entre as pessoas ligadas à produção da cachaça; • Apoiar pesquisas tecnológicas para aperfeiçoar a produção do destilado; • Incentivar a produção da cachaça promovendo a sua interiorização e conseqüente desenvolvimento econômico; • Apoiar os projetos de leis que atendam ao desenvolvimento do setor; • Prestar assistência (assessoria) técnica e jurídica aos associados,amparando-os em seus interesses perante os poderes públicos; • Estabelecer normas técnicas e regulamentos para disciplinar as atividades do setor; • Colaborar na legalização da produção e comercialização da cachaça; • Estabelecer o padrão de qualidade da cachaça em Minas Gerais. Já na década de 90, outro parceiro institucional importante adere ao projeto de consolidação do modelo de produção artesanal Mineiro: o Banco de Desenvolvimento de Minas, o então BDMG. Pela primeira vez na história, o setor passa a receber auxilio econômico. O banco financia projetos de novas unidades produtoras, que apesar de não terem sido muitos, deu novo animo ao movimento. A ação da AMPAQ foi decisiva na qualificação de relacionamento com atores-chave como algumas Universidades do estado, como a UFMG, UFJF e UFLA. O resultado foi o lançamento de estudos que tinham como focos os aspectos produtivos não apenas da cachaça, mas da cana-de-açúcar. Em ação conjunta com o INDI, a AMPAQ envolve a ABNT (Associação Brasileira das Normas Técnicas) na problemática do setor, com o objetivo de desenvolver padrões de qualidade para a aguardente brasileira. Pesquisou-se uma metodologia de análise para avaliação da qualidade da cachaça, unificando uma nomenclatura técnica em nível nacional. Participaram do projeto outros importantes atores, como o CETEC (Fundação Tecnológica de Minas Gerais), FUNED (Fundação Ezequiel Dias), as Universidades (UFMG, UFV, UFJF e UFLA), EPAMIG (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais), MAA (Ministério da Agricultura e Abastecimento). Em 1990 começa o trabalho de caracterização da Aguardente Mineira, realizando o zoneamento da produção no Estado, identificando suas tradições e peculiaridades regionais. Primeiro passo para a convenção de qualidade que regula a certificação de origem. Também são realizadas viagens aos principais países produtores de destilados, como a Escócia, França e Cuba. O objetivo era a busca de novos referenciais de qualidade para a cachaça artesanal. Ainda em 1990, a AMPAQ e a INDI articulam-se para o desenvolvimento do Programa de Controle da Qualidade da Aguardente de Cana da Associação. Destacam-se os seguintes objetivos do Programa: • Estabelecer normas de certificação de identidade, qualidade e origem da cachaça mineira ; • Executar o controle e fiscalização da produção das empresas que participam do programa; • Conferir o Certificado de conformidade e o Selo de qualidade às empresas vinculadas ao programa e que cumpram todas as exigências previstas em regulamento. A obtenção do selo é uma tarefa que exige muito dos produtores de cachaça. Entre os itens requeridos destacam-se os registros do estabelecimento e do produto feitos no Ministério da Agricultura; cópia do ato declaratório (registro especial emitido pela Secretaria da Receita Federal);contrato social da empresa proprietária da marca que está concorrendo ao selo; declaração informando sobre o período de safra, média anual de produção e perspectiva de venda nos principais mercados abastecidos; Requerimento de inclusão do produto no Programa de Garantia do Selo. Como pode ser observado, o processo de adesão ao movimento associativista é exclusivista, representando um grande obstáculo para a maioria dos produtores artesanais clássicos. A década de 90 é marcada por eventos e fatos que comprovam os efeitos positivos da busca pela qualificação do relacionamento entre os atores empresariais, governamentais e não- governamentais: • 1991: AMPAQ lança um jornal trimestral, o Copo Liso. Importante meio de comunicação com atores interessados na cachaça. Pesquisadores, comerciantes e consumidores. • 1992: Assembléia Legislativa Mineira contribui para a institucionalização do movimento de transformação da cachaça mineira. Aprova o Projeto de Lei n.º 10.853, que previa a criação do Programa Mineiro de Incentivo à Produção de Cachaça – O PRÓ-CACHAÇA. 1994: SEBRAE alia-se ao programa e começa a oferecer cursos e programas especiais. • 1995: AMPAQ elabora Plano Diretor para o período de 1995-2000. Um dos pontos altos: desenvolver agroturismo no setor. Cria o chamado roteiro da Cachaça, abrindo à visitação alambiques específicos em locais turísticos. • 1997: É aprovado o Decreto Lei n.º 2314, “a nova lei de bebidas”, que promove o reconhecimento legal do termo cachaça, adapta a rotulagem aos padrões internacionais. • 1997: Desenvolvimento do PBDAC, o Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Aguardente de Cana, Caninha ou Cachaça. • 1998: AMPAQ organiza em BH a 1ª Feira/Festival Nacional da Aguardente de Cana, Caninha ou Cachaça. Participam os seguintes estados BA, CE, GO, PB e RJ. • 2000: Em resposta ao pedido do PBDAC, governo brasileiro inclui a cachaça no Programa Especial de Exportação (PEE). • 2001: Criação da FENACA - Federação Nacional das Associações dos Produtores de Cachaça de Alambique. • 2002: Aprovação dos Decretos 4.062/01 e 4.072/02, que tornam oficialmente a denominação “Cachaça” exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil. O Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Cachaça reforça a importância da articulação de atores governamentais ou não para o fortalecimento de setores econômicos. O PBDAC foi criado dentro da Associação Brasileira de Bebidas (ABRABE) em novembro de 1997, pelos produtores de Cachaça com a participação do Governo Federal, através dos Ministérios da Agricultura e Abastecimento, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e da Ciência e Tecnologia. O propósito do PDBAC consiste em organizar o setor em torno de três objetivos básicos: • Valorizar a imagem da Cachaça como produto genuinamente nacional, com características históricas, culturais e econômicas significativas para o povo brasileiro; • Organizar o setor de Cachaça com o intuito de capacitá-lo para a disputa do mercado internacional de bebidas, visando a competitividade, eficiência e qualidade e o aumento das exportações brasileiras, gerando assim, divisas e empregos para o país; • Dar suporte técnico-comercial aos produtores para proporcionar sua inserção tanto no mercado nacional, quanto no internacional. Atualmente diversos atores e programas compõem a rede de articulação que defende os interesses dos produtores de cachaça em Minas e no Brasil. Sao citados no site da AMPAQ como “setores da Cachaça”. Entre eles estão: Pró-cachaça, PBDAC, Fenaca, diversas secretarias de estado, SEBRAE-MG, EPAMIG, EMATER, IMA - Instituto Mineiro de Agropecuária, CETEC - Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais, CEFET, CREA-MG, FAEMG - Federação da Agricultura do Estado de Minas Gerais, FEAM - Fundação Estadual do Meio Ambiente, FIEMG, IBAMA, IEF - Instituto Estadual de Florestas, INDI, APEX - Agência de promoção de exportação e Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Os números da produção e exportação revelam os esforços deste sistema industrial para a consolidação da cachaça como uma bebida para todos os paladares e não apenas para pessoas de baixo poderaquisitivo e refinação cultural. Entretanto, paralelo a esse importante sucesso, nos bastidores do sistema assiste-se um pesado confronto entre os subsistemas formadores: o industrial, o artesanal tradicional e o modernizante. Conclusão O presente trabalho abordou o sistema agroindustrial responsável pela produção e distribuição da cachaça no Brasil. Apresentou-se uma tipologia do sistema agroindustrial, dividindo em subsistema industrial, artesanal tradicional e artesanal modernizante. Aspectos da competitividade foram destacados. A competitividade no setor está centrada na defesa de padrões de qualidade setoriais. A qualidade padrão, do subsistema industrial, e a qualidade artesanal, do subsistema artesanal modernizante. Merece destaque na análise o caso de Minas Gerais, o estado mais articulado na formação e consolidação do Artesanal Modernizante e que tem influenciado os demais estados no processo de consolidação deste subsistema. O Artesanal Tradicional, o mais antigo e berço desta indústria, precisa receber estímulos, pois é intenso no emprego de mão de obra e representa a resistência da agricultura familiar, modelo alternativo e mais sustentado de desenvolvimento rural. Bibliografia - Coutinho, E. P. Dinâmica da Modernização do Setor de Produção de Aguardente de cana- de-açúcar no Brasil: construindo uma cachaça de qualidade. Tese Doutorado. PEP/COPPE/UFRJ. 2001 - Maia. F. S. Alternativa para a Exportação de Cachaça Artesanal: um Exemplo da Alemanha. Boletim Agropecuário da Universidade Federal de Lavras, nº. 57. Disponível no site http://www.editora.ufla.br/Boletim/pdf/bol_57.pdf, acessado em 10/07/2004. - Martinelli, D. P.; Spers, E. E.; Costa, A. F. YPIÓCA: Introduzindo uma bebida genuinamente brasileira no mercado global. Estudo de Caso. Obtido no site http://www.fia.com.br/pensa/pdf/estudos_caso/2000/EC00_Ypioca.pdf - Oliveira, A. F.; Anefalos, L.C; Garcia, L. A. F.; Istake, M; Burnquist, H. L. Sistema agroindustrial da Cachaça e Potencialidades de Expansão das Exportações. Artigo apresentado no IV Congresso Internacional de Economia e Gestão de Redes Agroalimentares, disponível no site http://www.fearp.usp.br/egna/resumos/Oliveira.pdf. Acessado em 10/07/2004. - Oliveira. E. R.; Ribeiro, E. M. Industrial Rural, Agricultura Familiar e Desenvolvimento Local: o Caso da Produção de Cachaça Artesanal em Salinas – Minas Gerais. Artigo apresentado no X Seminário sobre a Economia Mineira, realizado pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – UFMG – 2002. Disponível no http://www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2002/textos/D23.PDF. Acessado em 10/07/2004. - http://www.abrabe.org.br/ - http://www.ampaq.com.br
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