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. RAIMUND ABRAHAM | DIANA AGREST|TADAO ANDO|GIULIO CARLO ARGAN | PHILIP BESS | GEOFFREY BROADBENT | ALAN COLQUHOUN | JACQUES DERRIDA I PETER EISENMAN KENNETH FRAMPTON MARCO FRASCARI UMA NOVA AGENDA PARA A ARQUITETURA | MARIO GANDELSONAS | DIANE GHIRARDO | MICHAEL GRAVES | VITTORIO GREGOTTI | KARSTEN HARRIES | FRED KOETTER | REM KOOLHAAS | LIANE LEFAIVRE | WILLIAM MCDONOUGH | ROBERT MUGERAUER | CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ|JUHANI PALLASMAA|DEMETRI PORPHYRIOS|ALDO ROSSI COLIN ROWE | THOMAS L. SCHUMACHER | DENISE SCOTT BROWN | IGNASI DE SOLA-MORALES RUBIO | ROBERT A. M. STERN | MANFREDO TAFURI | BERNARD TSCHUMI I ALEXANDER TZONIS | ROBERT VENTURI ] ANTHONY VIDLER ANTOLOGIA TEÓRICA 1965-1995 KATE NESBITT (ORG.) I No Brasil, a sensação predominante nas ultimas décadas é que os espaços de discussão de arquitetura e urbanismo tornaram-se cada vez mais escassos. Enquanto avançava a pesquisa especializada, a arquitetura parecia perder relevância cultural: sumiam pú¬ blico e críticos, periódicos de arquitetura convertiam-se em vitrines de escritórios e fabricantes, dissolviam-se os elos entre a arquitetura, as artes e o pensamento, assim como entre reflexão e prática projetual, levando o meio profissional brasileiro à deso¬ rientação e ao conformismo mais conveniente. É provável que este curto-circuito que se produziu no país depois da construção de Brasília tenha algo a ver com a forma como a modernidade arquitetônica passou a ser interpelada entre nós. Sobretudo desde o golpe militar de 1964. De um lado, a partir da exacerbação do viés produtivista da arquitetura moderna em favor da construção esta¬ tal e especulativa pesada; de outro, a partir da denúncia de sua face aparatosa e autori¬ tária em meio à crise das promessas de desenvolvimento social e autonomia nacional. A impressão que se tem é que, com o passar dos anos, o debate da profissão chegou a um ponto de saturação tal que, enrijecidas em suas próprias convicções, nenhuma das posições em voga no país - ultra, pró, pós ou anti modernas - tem muita coisa a nos dizer quando o assunto é o que fazer da arquitetura para além do mero consentimento com exercícios de estilo pessoal, de escola ou oportunidade. Neste sentido, Uma nova agenda para a arquitetura, organizada pela professora norte- americana Kate Nesbitt, traz uma contribuição inestimável ao leitor brasileiro. Ao reunir um conjunto influente de textos teóricos produzidos entre 1965 e 1995, permite romper com o longo isolamento que condenou o meio local dos arquitetos a um diálogo de surdos. A antologia, dividida em quatorze capítulos temáticos, reúne 51 dos principais tex¬ tos de teoria contemporânea de arquitetura, cada um dos quais precedidos de uma I ' ■ I '4* % . i * * •I 4 * . ♦ ' I " ■ » I i m i L : íf /K. I « i ’l > I I - * I * ■ ! i9 r t i 12 * ! I . r i - « . # » * !• » * \» 0 * f 1 í * ( * I ! * * i f 1UMA NOVA AGENDA PARA A ARQULTETURA > I I I I i * % I ' i I < I f * « 9 Agradecimentos 11 Prefácio 15 Introdução 89 CAPíTULO 1 Pós-modernismo: as respostas da arquitetura à crise do modernismo 91 Complexidade e contradição em arquitetura: trechos selecionados de um livro em preparação (1966) ROBERT VENTURI 95 O pós-funcionalismo (1976) PETER EISENMAN 101 Argumentos em favor da arquitetura figurativa (1982) MICHAEL GRAVES 108 A pertinência da arquitetura clássica (1989) DEMETRI PORPHYRIOS I 15 Novos rumos da moderna arquitetura norte-americana: Pós-escrito no limiar do modernismo (1977) ROBERT A. M. STERN CAPíTULO 2 Semiótica e estruturalismo: 0 problema da significação127 129 Semiótica e arquitetura: consumo ideológico ou trabalho teórico (1973) DIANA AGREST E MARIO GANDELSONAS 141 Um guia pessoal descomplicado da teoria dos signos na arquitetura (1977) GEOFFREY BROADBENT 163 CAPíTULO 3 Pós-estruturalismo e desconstrução: os temas da originalidade e da autoria 1 65 Uma arquitetura onde o desejo pode morar (1986) - Entrevista de JACQUES DERRIDA a EVA MEYER 172 Arquitetura e limites1 (1980) BERNARD TSCHUMI 177 Arquitetura e limites 11 (1981) BERNARD TSCHUMI 183 Arquitetura e limites m (1981) BERNARD TSCHUMI 188 Introdução: Notas para uma teoria da disjunção arquitetônica (1988) BERNARD TSCHUMI 191 A arquitetura e o problema da figura retórica (1987) PETER EISENMAN 199 Derrida e depois (1988) ROBERT MUGERAUER 11 219 CAPíTULO 4 Historicismo: o problema da tradição 221 Três tipos de historicismo (1983) ALAN COLQUHOUN 232 O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim (1984) PETER EISENMAN 252 Do contraste à analogia: novos desdobramentos do conceito de intervenção arquitetônica (1985) IGNASI DE SOLà-MORALES RUBIó 265 CAPíTULO 5 Tipologia e transformação 267 Sobre a tipologia em arquitetura (1963) GIULIO CARLO ARGAN 273 Tipologia e metodologia de projeto (1967) ALAN COLQUHOUN 284 A terceira tipologia (1976) ANTHONY VIDLER 291 CAPíTULO 6 A teoria urbana depois do modernismo: contextualismo, Main Street e outras ideias 293 Cidade-colagem (1975) - COLIN ROWE e FRED KOETTER 322 Contextualismo: ideais urbanos e deformações (1971) THOMAS L. SCHUMACHER 337 Uma significação para os estacionamentos dos supermercados A&P, ou Apren¬ dendo com Las Vegas (1968) ROBERT VENTURI e DENISE SCOTT BROWN 355 Pós-escrito: introdução à nova pesquisa sobre “A cidade contemporânea” (1988) REM KOOLHAAS 357 Por uma cidade contemporânea (1989) REM KOOLHAAS 361 Para além do delírio (1993) REM KOOLHAAS 369 CAPíTULO 7 A Escola de Veneza 371 Território e arquitetura (1985) VITTORIO GREGOTTI 377 Uma arquitetura analógica (1976) ALDO ROSSI 384 Reflexões sobre meu trabalho recente (1976) ALDO ROSSI 388 Problemas à guisa de conclusão (1980) MANFREDO TAFURI 399 CAPíTULO 8 Agendas éticas e políticas 401 Comunitarismo e emotivismo: duas visões antagónicas sobre ética e arquitetura (1993) PHILIP BESS 415 A arquitetura da fraude (1984) DIANE GHIRARDO 423 A função ética da arquitetura (1975) KARSTEN HARRIES 427 Projeto, ecologia, ética e a produção das coisas (1993) WILLIAM MCDONOUGH 438 Os princípios de Hannover (1992) WILLIAM MCDONOUGH ARCHITECTS 441 CAPíTULO 9 Fenomenologia do significado e do lugar 443 O fenômeno do lugar (1976) CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ 461 O pensamento de Heidegger sobre arquitetura (1983) CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ 474 Uma leitura de Heidegger (1974) KENNETH FRAMPTON 481 A geometria do sentimento: um olhar sobre a fenomenologia da arquitetura (1986) JUHANI PALLASMAA 491 CAPíTULO 10 Arquitetura, natureza e espaço construído 493 Por novos horizontes na arquitetura (1991) TADAO ANDO 498 Negação e reconciliação (1982) RAIMUND ABRAHAM CAPíTULO 1 1 Regionalismo crítico: cultura local versus civilização universal501 503 Perspectivas para um regionalismo crítico (1983) KENNETH FRAMPTON 520 Por que regionalismo crítico hoje? (1990) ALEXANDER TZONIS e LIANE LEFAIVRE 533 CAPíTULO 12 Expressão tectônica 535 O exercício do detalhe (1983) VITTORIO GREGOTTI 538 O detalhe narrativo (1984) MARCO FRASCARI 556 Rappel à Vordre, argumentos em favor da tectônica (1990) KENNETH FRAMPTON 571 CAPíTULO 13 Feminismo, gênero e o problema do corpo 573 O prazer da arquitetura (1977) BERNARD TSCHUMI 584 À margem da arquitetura: corpo, lógica e sexo (1988) DIANA I. AGREST 599 Visões que se desdobram: a arquitetura na era da mídia eletrónica (1992) PETER EISENMAN 609 CAPíTULO 14 Definições contemporâneas do sublime 611 En Terror Firma: na trilha dos grotextos (1988) PETER EISENMAN 617 Uma teoria sobre o estranhamente familiar (1990) ANTHONY VIDLER 623 Bibliografia 635 Sobre os autores 645 índice remissivo 662 Fontes das ilustrações CA PÍ TU LO 9 V V' I 1 1 •0 0 0 II I 0 II I 0 G CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ . O FENÔMENO DO LUGAR O nome do teórico norueguês Christian Norberg-Schulz está intimamente ligado à adoção de uma fenomenologia da arquitetura. Desde os primeiros estudos re¬ alizados na década de 1960 até seu livro Architecture: Meaning and Place (1988) Norberg-Schulz vem desenvolvendo uma interpretação textual e pictórica das ideias de Martin Heidegger (1889-1976), baseando-se sobretudo no ensaio do fi¬ lósofo alemão "Construir, habitar, pensar". Em Intentions in Architecture (1963), Norberg-Schulz usou a linguística, a psicologia da percepção (Gestalt) e a fenome¬ nologia para construir uma teoria abrangente da arquitetura. A obra foi publicada pouco an¬ tes do livro de Robert Venturi Complexidade e contradição na arquitetura, outro importan¬ tíssimo texto pós-moderno. Os últimos livros de Norberg-Schulz evidenciam seu interesse crescente pela fenomenologia. A fenomenologia, definida inicíalmente por Edmund Husserl (1859-1938) como uma investigação sistemática da consciência e seus objetos,1 é entendida por Norberg- Schulz como um "método" que exige um "'retorno às coisas', em oposição às abs¬ trações e construções mentais". Na época em que este ensaio foi publicado, poucos esforços haviam sido empreendidos para estudar o ambiente do ponto de vista feno- menológico. Norberg-Schulz identifica o potencial fenomenológico na arquitetura como a capacidade de dar significado ao ambiente mediante a criação de lugares específicos. O teórico introduz a antiga noção romana do genius loci, isto é, a ideia do espírito de um determinado lugar (que estabelece um elo com o sagrado), que cria um "outro" ou um oposto com o qual a humanidade deve defrontar a fim de habitar. Ele interpreta o conceito de habitar como estar em paz num lugar protegido. Assim, o cercamento, o ato de demarcar ou diferenciar um lugar no espaço se converte no ato arquetípico da construção e a verdadeira origem da arquitetura. O autor sublinha a importância de certos elementos arquitetônicos básicos, como parede, chão ou teto, percebidos como horizontes, fronteiras e enquadramentos da natureza. A arquitetura torna clara a localização da existência dos homens, que, na definição de Heidegger, está entre o céu e a terra, em face dos seres divinos. Fenomenólogos como Vittorio Gregotti também aludem à necessidade de que o local da construção intensifique, condense e indique com exatidão a estrutura da natureza e como o homem a percebe (cap. 7). A celebra¬ ção de determinados atributos do lugar também é fundamental no regionalismo crítico de Kenneth Frampton (cap. 11). Além do foco no sítio, a fenomenologia abrange a tectônica, porque, no dizer de Nor¬ berg-Schulz, "o detalhe explica o ambiente e manifesta sua qualidade peculiar" (caps. 10 e 12). Por causa dessa invocação do local e da tectônica, a fenomenologia se afirmou como influente escola de pensamento entre alguns arquitetos contemporâneos, como Tadao Ando, Steven Holl, Clark e Menefee, e Peter Waldman. Ela despertou um novo interesse nas qualidades sensoriais dos materiais, da luz, da cor, bem como na importância simbó- o ICOo-. ■2 E d) m 0) a. «3 443 lica e tátil das junções. Esses aspectos contribuem para realçar a qualidade poética que na opinião de Heidegger é essencial para o habitar. Norberg-Schulz, levado por sua grande admiração por Robert Venturi, identifica-o equivocadamente com a fenomenologia, por causa do interesse recente do arquiteto na "parede entre o interior e o exterior". Depois de Aprendendo com Las Vegas, restam pou¬ cas dúvidas de que Venturi e seus colaboradores estão mais interessados na superfície (o "galpão decorado") do que em questões espaciais, como lugares delimitados. ]1. Anthony Flew, A Dictionary of Philosophy, 2.ed. revisada. Nova York: St. Martin's Press, 1984, p. 157. CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ 0 fenômeno do lugar Nosso mundo-da-vida cotidiana consiste em “fenômenos” concretos. Compõe-se de pessoas, animais, flores, árvores e florestas, pedra, terra, madeira e água, cidades, ruas e casas, portas, janelas e mobílias. E consiste no sol, na lua e nas estrelas, na passagem das nuvens, na noite e no dia, e na mudança das estações. Mas também compreende fenô¬ menos menos tangíveis, como os sentimentos. Iáto é, o que nos é “dado” é o “conteúdo” de nossa existência. Rilke escreveu: “Quem sabe não estamos aqui para dizer: casa, ponte, fonte, portão, jarra, árvore frutífera, janela, - no máximo, pilar, torre”.1 Tudo o mais, sejam átomos e moléculas, números e todos os tipos de “dados”, são abstrações ou ferramentas construídas para atender a outros propósitos que não a vida cotidiana. Atualmente, é muito comum confundir as ferramentas com a realidade. As coisas concretas que constituem nosso mundo dado se inter-relacionam de modo complexo e talvez contraditório. Alguns fenômenos, por exemplo, podem compreender outros. A floresta compõe-se de árvores e a cidade é feita de casas. A “paisagem” é um fenômeno muito abrangente. De maneira geral, pode-se dizer que alguns fenômenos formam um “ambiente” para outros. Um termo concreto para fa¬ lar em ambiente é lugar. Na linguagem comum diz-se que atos e acontecimentos têm lugar. Na verdade, não faz o menor sentido imaginar um acontecimento sem referên¬ cia a uma localização. É evidente que o lugar faz parte da existência. Então, o que se quer dizer com a palavra “lugar”? É claro que nos referimos a algo mais do que uma localização abstrata. Pensamos numa totalidade constituída de coisas concretas que 444 possuem substância material, forma, textura e cor. Juntas, essas coisas determinam uma “qualidade ambiental” que é a essência do lugar. Em geral, um lugar é dado como esse caráter peculiar ou “atmosfera”. Portanto, um lugar é um fenômeno qualitativo “total”, que não se pode reduzir a nenhuma de suas propriedades, como as relações espaciais, sem que se perca de vista sua natureza concreta. A experiência diária nos diz, ademais, que ações diferentes exigem ambientes dife¬ rentes para que transcorram de modo satisfatório. Em consequência disso, as cidades e as casas consistem em uma multiplicidade de lugares. É claro que as teorias corren¬ tes da arquitetura e do planejamento levam em consideração esse fato, mas até aqui o problema tem sido tratado de modo excessivamente abstrato. Geralmente se entende o “ter lugar” num sentido quantitativo e “funcional”, com implicações que remetem ao dimensionamento e à distribuição espacial. Mas as “funções” não são inter-humanas e similares em toda parte? É evidente que não. Funções “similares”, mesmo as mais básicas como dormir e comer, se dão de diferentes maneiras e requerem lugares que possuem propriedades diversas, de acordo com as diferentes tradições culturais e as diferentes condições ambientais. Dessa forma, a abordagem funcional deixou de fora o lugar como um “aqui” concreto com sua identidade particular. Sendo totalidades qualitativas de natureza complexa, os lugares não podem ser definidos por meio de conceitos analíticos, “científicos”. Por uma questão de prin¬ cípio, a ciência “abstrai” o que é dado para chegar a um conhecimento neutro e “ob¬ jetivo”. No entanto, isso perde de vista o mundo-da-vida cotidiana, que deveria ser a verdadeira preocupação do homem em geral e dos planejadores e arquitetos em particular.2 Felizmente, há uma saída para o impasse, o método chamado de fenome- nologia. A fenomenologia foi concebida como um “retorno às coisas” em oposição a abstrações e construções mentais. Por enquanto, os fenomenólogos têm se ocupado principalmente da ontologia, psicologia, ética e, em certa medida, da estética, e deram pouca atenção à fenomenologia do ambiente cotidiano. Existem algumas obras pio¬ neiras que, no entanto, fazem escassas referências diretas à arquitetura.3 Uma fenome¬ nologia da arquitetura é, portanto, urgentemente necessária. Alguns filósofos que abordaram o problema do mundo-da-vida usaram a lingua¬ gem e a literatura como fontes de “informações”. Na realidade, a poesia é capaz de concretizar as totalidades que escapam à ciência e, por isso, é capaz de sugerir como se deveria proceder para obter a necessária compreensão. Um dos poemas usados por Heidegger para explicar a natureza da linguagem é o magnífico “Uma noite de inverno”,de Georg Trakl.4 As palavras de Trakl também servem aos nossos propósitos por apresentarem uma situação de vida total em que o aspecto do lugar é fortemente sentido: 445 Uma noite de inverno Quando a neve cai na janela E os sinos noturnos repicam longamente, A mesa, posta para muitos, E a casa está bem preparada. Há quem, na peregrinação, Chegue ao portal da senda misteriosa, Florescência dourada da árvore da misericórdia, Da força fria que emana da terra. O peregrino entra, silenciosamente, Na soleira, a dor petrifica-se, Então, resplandecem, na luz incondicional, Pão e vinho sobre a mesa.5 Não pretendo reproduzir a penetrante análise de Heidegger sobre o poema, mas apenas chamar a atenção para umas tantas propriedades que iluminam o tema deste ensaio. Em geral, Trakl emprega imagens concretas que todos conhecemos a partir da vida co- tidiana. Ele fala de “neve”, “janela”, “casa”, “mesa”, “porta”, “árvore”, “soleira”, “pão e vinho”, “escuridão” e “luz” e define o homem como um “peregrino”. Mas essas ima¬ gens trazem implícitas estruturas mais gerais. Em primeiro lugar, o poema distingue entre um lado de fora e um lado de dentro. O lado de fora é apresentado nas duas primei¬ ras linhas da primeira estrofe e compreende tanto elementos naturais como fabricados pelo homem. O lugar natural está presente na neve caindo, que sugere o inverno, e na referência ao anoitecer. O próprio título do poema “situa” tudo nesse contexto natural. Mas um anoitecer de inverno não é apenas um ponto no calendário. Presença concreta, também é vivido como um conjunto de qualidades, ou, em geral, como um Stimmung, um “temperamento ou caráter”, que forma o pano de fundo dos atos e acontecimentos. No poema, essa qualidade está presente na neve fria, gelada, macia, silenciosa, que bate na janela e esconde o contorno dos objetos ainda reconhecíveis no lusco-fusco. A pala¬ vra “cai” induz ainda a uma impressão de espaço,ou melhor, a sugestão da presença da terra e do céu. Com um mínimo de palavras, Trakl dá vida a todo um ambiente natural. Mas o exterior, o lado de fora, também possui propriedades criadas pela mão do ho¬ mem. Lá está o sino que toca ao anoitecer, ouvido em toda parte, que torna o “lado de dentro”, o “privado”, parte de uma totalidade “pública” abrangente. O sino vespertino, entretanto, é mais que um artefato prático, é um símbolo, que relembra os valores co¬ muns nos quais se fundamenta essa totalidade. Como diz Heidegger,“o repicar do sino ao anoitecer chama os homens, como mortais, à presença do divino”.6 Os dois versos seguintes apresentam o “lado de dentro”, descrito como uma casa que dá abrigo e segurança por ser fechada e “bem-preparada”. Mas há uma janela, 446 uma abertura que nos faz sentir o interior como complemento do exterior. Dentro da casa há um último ponto focal, a mesa que está “posta para muitos”. Em torno da mesa, as pessoas se reúnem; ela é o centro, e mais que qualquer outra coisa constitui o “de dentro”. Não se diz muito sobre o caráter desse interior, mas de todo modo ele está presente. Sabemos que é iluminado e cálido, e contrasta com o frio e o escuro do lado de fora, e seu silêncio é prenhe de sons latentes. De modo geral, o interior é um mundo de coisas compreensíveis, onde a vida de “muitos” tem lugar. As duas estrofes seguintes aprofundam a perspectiva.Aqui sobressai o significado dos lugares e das coisas, e o homem é apresentado como um peregrino que chega pela “senda misteriosa”. Em vez de ficar na segurança da casa que fez para si mesmo, ele vem de fora, do “caminho da vida”, que também representa a tentativa do homem de “orientar-se” num ambiente desconhecido dado. Mas a natureza tem um outro lado: ela oferece a graça do crescimento e da florescência. Na imagem da árvore “dourada”, terra e céu se unem formando um mundo. Pelo labor do homem o mundo é trazido para o interior como pão e vinho, por meio dos quais o interior se “ilumina”, isto é, adquire significado. Não fossem os frutos “sagrados” do céu e da terra, o interior estaria “vazio”. A casa e a mesa recebem e reúnem, e trazem o mundo para “perto”. Habitar uma casa significa habitar o mundo.Mas esse habitar não é fácil, tem de ser al¬ cançado por caminhos escuros e uma soleira separa o dentro do fora. Representando a “brecha” entre a “alteridade” e o sentido manifesto, a soleira concretiza a dor que “se petrifica”. Assim, é na soleira que o problema do habitar se torna presente.7 O poema de Trakl Hunting alguns fenômenos essenciais de nosso mundo-da-vida e, em particular, as propriedades fundamentais do lugar. Primeiramente, ele indica que toda situação é a um só tempo local e geral. O anoitecer de inverno que o poema descreve é obviamente um local, um fenômeno nórdico, mas as sugestões de um “in¬ terior” e um “exterior” são gerais, assim como os sentidos relativos a essa distinção. Dessa forma, o poema concretiza propriedades básicas da existência. Falo aqui em “concretizar” no sentido de transformar aquilo que é genérico, “visível”, isto é, em uma situação local, concreta. Com isso o poema se move numa direção oposta à do pensamento científico, pois, enquanto a ciência parte do “dado”, a poesia nos remete às coisas concretas, desvendando os sentidos inerentes ao mundo-da-vida.8 Além disso, o poema de Trakl faz uma distinção entre elementos naturais e elemen¬ tos fabricados pelo homem, com o que sugere um ponto de partida para uma “feno- menologia do ambiente”. Os elementos naturais são, evidentemente, os componentes principais do dado, e os lugares costumam ser definidos em termos geográficos. Cabe insistir, porém, que “lugar” significa mais do que uma localização. A literatura atual so¬ bre a “paisagem” contém várias tentativas de descrição de lugares naturais, mas essa prática usual nos parece, mais uma vez, excessivamente abstrata, porque se baseia em considerações “funcionais”, ou mesmo “visuais”.9 Precisamos mais uma vez recorrer à 447 ajuda da filosofia. Heidegger estabelece uma primeira distinção fundamental entre os conceitos de “terra” e céu”, quando afirma: “A terra é o que sustenta servindo, flores¬ cendo e dando frutos, espalhando-se em rochedo e água, abrindo-se em plantas e ani¬ mais [...] O céu é o caminho arqueado do sol, o curso das várias luas, da cintilação das estrelas, das estações do ano, da luz e do crepúsculo do dia, das sombras e dos clarões da noite, da clemência e da inclemência do tempo, das nuvens errantes e do azul pro¬ fundo do espaço celeste 10 Como muitos achados fundamentais, a distinção entre terra e céu pode parecer trivial. Mas sua importância se revela quando acrescentamos a definição de Heidegger do “habitar”: “O modo como você é, eu sou, o modo como os homens são na terra, é habitar [...]”. Mas “na terra” já traz em si o sentido de “sob o céu”.11 Heidegger também chama de mundo o que fica entre a terra e o céu, e diz que “o mundo é a casa onde habitam os mortais”.12 Em outras palavras, quando o homem é capaz de habitar, o mundo se torna um “interior”. Em geral, a natureza forma ampla e extensa totalidade, um “lugar”, que, de acordo com as circunstâncias locais, possui uma identidade peculiar. É possível definir essa identidade, ou “espírito”, nos termos concretos, “qualitativos”, que Heidegger em¬ prega para caracterizar o céu e a terra, e devemos partir dessa distinção fundamental. Com isso, podemos obter uma compreensão existencialmente relevante do conceito de paisagem,que cabe preservar como principal designação dos lugares naturais. Mas a paisagem comporta lugares subordinados e também “coisas” naturais, como a “ár¬ vore” de Trakl. O significado do ambiente natural se “condensa” nessas coisas. Os elementos do ambiente criado pelo homem são, em primeiro lugar, todos os “assentamentos” de diferentes escalas, das casas às fazendas, das aldeias às cidades. e, em segundo lugar, os “caminhos” que os conectam, além dos diversos elementos que transformam a natureza em “paisagem cultural”. Quando os assentamentos es¬ tão organicamente integrados ao seu ambiente, supõe-se que são pontos focais onde a qualidade peculiar do ambiente se condensa e “explica”. Heidegger afirma: “As casas particulares, as aldeias, as cidades são construções que reúnem dentro delas e em torno delas esse entre multiforme. As construções trazem a terra, como paisagem habitada, para perto do homem e, ao mesmo tempo, situam a intimidade da vizi¬ nhança sob a vastidão do céu”.13 Logo, a propriedade básica dos lugares criados pelo homem é a concentração e o cercamento. Os lugares são literalmente “interiores”, o que significa dizer que “reúnem” o que é conhecido. Para cumprir essa função, os lugares contêm aberturas através das quais se ligam com o exterior. (A bem dizer, só um interior pode possuir aberturas.) Além disso, as construções se ligam às suas vizinhanças porque repousam sobre o solo e se elevam para o céu. Finalmente, os ambientes criados pelo homem incluem artefatos ou “coisas” que servem de focos internos e sublinham a função de reunião do assentamento. Nas palavras de Heide¬ gger:“the thing things world” [“a coisa reúne o mundo”], onde a palavra “ thinging” é 448 usada em seu sentido original de “reunir”, e, mais adiante, ele acrescenta:“Only what conjoins itself out of world becomes a thing” [“Só o que se reúne fora do mundo chega a ser coisa”].14 Essas observações introdutórias fornecem várias pistas sobre a estrutura dos lu¬ gares. Algumas já foram estudadas pelos filósofos e oferecem um excelente ponto de partida para uma fenomenologia mais completa. Demos um primeiro passo com a distinção entre fenômenos naturais e fenômenos fabricados pelo homem. Um segundo passo é representado pelas categorias terra-céu (horizontal-vertical) e fora-dentro. Es¬ tas categorias têm implicações espaciais,mas o conceito de“espaço” reaparece aqui não como uma noção essencialmente matemática, mas como uma dimensão existencial.15 Um último passo especialmente importante é dado pelo conceito de “caráter”. O ca¬ ráter é determinado por como as coisas são, e oferece como base de nossa análise os fenômenos concretos do mundo-da-vida cotidiana. Só assim podemos compreender de modo cabal o genius loci, isto é, o “espírito do lugar” que os antigos reconheciam como aquele “outro” que os homens precisam aceitar para ser capazes de habitar.16 O conceito de genius loci refere-se à essência do lugar. A ESTRUTURA DO LUGAR A análise até aqui realizada sobre o fenômeno do lugar leva-nos a concluir que a estru¬ tura do lugar deveria ser classificada como “paisagem” e “assentamento” e analisada por categorias como “espaço” e “caráter”. Enquanto “espaço” indica a organização tridimensional dos elementos que formam um lugar, o “caráter” denota a “atmosfera” geral que é a propriedade mais abrangente de um lugar. Em vez da distinção entre espaço e caráter, podemos partir de um conceito amplo, como o de “espaço vivido”.17 No nosso caso, entretanto, é mais prático distinguir espaço de caráter. Organizações espaciais similares podem ter cunhos muitQ diferentes conforme o tratamento con¬ creto dos elementos que definem o espaço (ou fronteira). A história das formas es¬ paciais básicas já recebeu novas caracterizações.18 Por outro lado, deve-se assinalar que a organização espacial impõe certos limites a essas interpretações e que os dois conceitos - espaço e caráter - são interdependentes. O conceito de “espaço” certamente não é novo na teoria da arquitetura, mas pode ter muitos significados. A literatura corrente distingue dois usos: o espaço como geo¬ metria tridimensional, e espaço como campo perceptual.19 Entretanto, nenhum deles é satisfatório, porque são abstrações a partir da totalidade intuitiva tridimensional da experiência cotidiana, que podemos chamar de “espaço concreto”. Na realidade, as ações concretas das pessoas não têm lugar num espaço isotrópico homogéneo, mas ocorrem em um espaço que se caracteriza por diferenças qualitativas, como “em cima” e “embaixo”. Muitas tentativas já foram feitas na teoria da arquitetura para definir o 449 espaço em termos qualitativos concretos. [Siegfried] Giedion distingue “exterior” de “interior” como fundamento de uma concepção grandiosa da história da arquitetura.20 Kevin Lynch investiga mais a fundo a estrutura do espaço concreto, introduzindo os conceitos de “nodo” (“marco”),“baliza”,“caminho”,“borda” e “distrito” para indicar os elementos que embasam a orientação das pessoas no espaço.21 E Paolo Portoghesi de¬ fine o espaço como um “sistema de lugares”, o que dá a entender que o conceito tem raízes em situações concretas, embora possa ser descrito por métodos matemáticos.22 Esta última concepção é compatível com a afirmação de Heidegger de que “os espa¬ ços recebem sua essência dos lugares e não ‘do espaço’”.23 A relação interior-exterior, que é um aspecto principal do espaço concreto, sugere que os espaços possuem graus variados de extensão e cercamento. Enquanto as paisagens se diferenciam por terem extensões variáveis, mas basicamente contínuas,os assentamentos são entidades mura¬ das entre fronteiras. Portanto, assentamento e paisagem mantêm entre si uma relação de figura-fundo. De modo geral, tudo o que fica encerrado se manifesta como “figura” contra o vasto fundo da paisagem. O povoamento perde sua identidade quando tal relação se corrompe, da mesma forma como a paisagem perde sua identidade de am¬ pla extensão. Em um contexto maior, tudo o que fica encerrado se torna um centro que pode exercer a função de “foco” para seu entorno. O espaço se estende a partir do centro com graus variáveis de continuidade (ritmo) e em diferentes direções. Na¬ turalmente, as direções principais são a horizontal e a vertical, isto é, as direções da terra e do céu. Portanto, centralização, direção e ritmo são importantes propriedades do espaço concreto. Por último, deve-se mencionar que os elementos naturais (como as montanhas) e os assentamentos podem agrupar-se ou formar feixes, com graus di¬ versos de proximidade. Todas as propriedades espaciais mencionadas são de natureza “topológica” e cor¬ respondem aos famosos“princípios de organização” da teoria da Gestalt.As pesquisas de Piaget sobre a concepção de espaço das crianças confirmam a importância existen¬ cial desses princípios.24 Os modos geométricos de organização somente se desenvol¬ vem mais tarde na vida para atender a necessidades especiais e geralmente são vistos como uma definição mais “exata” de estruturas topológicas básicas. O cercamento topológico converte-se então em círculo, a curva livre converte-se em linha reta, e o feixe numa grade. A arquitetura usa a geometria para tornar patente um sistema geral de grande abrangência, como uma ilação de “ordem cósmica”. Todo espaço cercado é definido por uma fronteira, e Heidegger afirma:“A fronteira não é aquilo em que uma coisa termina, mas, como já sabiam os gregos, a fronteira é aquilo de onde algo começa a se fazer presente”.25 As fronteiras de um espaço cons¬ truído são o chão,a parede e o teto.As fronteiras de uma paisagem são estruturalmente semelhantes e consistem no solo, no horizonte e no céu. Essa similaridade estrutural simples tem importância fundamental para as relações entre os lugares naturais e os 450 lugares feitos pelo homem. As propriedades de confinar um espaço, típicas de uma fronteira, são determinadas por suas aberturas, como Trakl intuiu poeticamente ao usar as imagens da janela, da porta e da soleira. Geralmente a fronteira, especialmente a parede, expõe a estrutura espacial como extensão, direção e ritmo contínuos ou des¬ contínuos. “Caráter” é um conceito ao mesmo tempo mais geral e mais concreto do que “es¬ paço”. Por um lado, indica uma atmosfera geral e abrangente e, por outro, a forma e a substância concreta dos elementos que definem o espaço. Toda presença real está inti- mamente ligada ao caráter.26 Uma fenomenologia do caráter deve compreender uma pesquisa sobre os caracteres observáveis bem como um exame de seus determinantes concretos. Assinalamos anteriormente que diferentes ações exigem lugares com um cunho diferente. Um habitat tem de ser “protetor”; um escritório tem de ser “prático”; um salão de baile, “festivo”; e uma igreja, “solene”. Quando visitamos uma cidade es¬ trangeira, geralmente o que nos impressiona é seu caráter peculiar, que é parte impor¬ tante da experiência. As paisagens também possuem caráter, algumas das quais são de um tipo especialmente“natural”.Falamos, por exemplo, de paisagens “áridas” e “férteis”, “sorridentes” e “ameaçadoras”. É importante assinalar que geralmente todos os lugares possuem um caráter,e que essa qualidade peculiar é a maneira básica em que o mundo nos é “dado”. Até certo ponto, o caráter de um lugar é uma função do tempo; ele muda com as estações, com o correr do dia e com as situações meteorológicas, fatores que, acima de tudo, determinam diferentes condições de luz. O caráter é determinado pela constituição material e formal do lugar. Devemos então perguntar como é o solo em que pisamos, como é o céu sobre nossas cabeças, ou de modo mais geral, como são as fronteiras que definem o lugar. O modo de ser de uma fronteira depende de sua articulação formal, que está novamente relacionada com a maneira pela qual ela foi “construída”. Olhando uma construção desse ponto de vista, temos de examinar como ela repousa sobre o solo e como se ergue para o céu. Uma atenção especial deve ser dedicada às fronteiras laterais, ou paredes, que contri¬ buem decisivamente para determinar o caráter do ambiente urbano. Devemos a Ro¬ bert Venturi o reconhecimento desse fato, depois de tantos anos em que se considerou “imoral” falar sobre “fachadas”.27 O caráter de uma “família” de construções que cons¬ titui um lugar geralmente está “condensado” em motivos característicos, como certos tipos de janelas, portas e telhados. Esses motivos se tornam às vezes “elementos con¬ vencionais” que servem para transpor o caráter de um lugar para outro. Desse modo, na fronteira, caráter e espaço se combinam e isso nos leva a concordar com Venturi quando ele define a arquitetura como “a parede entre o interior e o exterior”.28 Excetuando as intuições de Venturi, o problema do caráter do lugar quase não foi tratado na teoria corrente da arquitetura. O resultado disso foi que grande parte da teoria perdeu contato com o mundo-da-vida concreta. Isso é especialmente notório 451 no caso da tecnologia, que atualmente é considerada um meio banal de satisfazer de¬ mandas práticas. Contudo, o caráter do lugar depende de como as coisas são feitas e é, por isso mesmo, determinado pela realização técnica (a “construção”). Heidegger observa que a palavra grega téchne significava uma “re-velação” criativa (Entbergen ) da verdade e pertencia àpoíésis, isto é, ao “fazer”.29 Uma fenomenologia do lugar deve, então, abordar os métodos básicos de construção e suas relações com a articulação formal. Somente dessa maneira a teoria da arquitetura poderá ter uma base verdadei¬ ramente concreta. A estrutura do lugar se expressa em totalidades ambientais que incluem os as¬ pectos do espaço e de seu caráter. Esses lugares são chamados de “países”, “regiões”, “paisagens”, “assentamentos” e “construções”. E isso nos traz de volta a “coisas” con¬ cretas do mundo-da-vida cotidiana do qual partimos e nos relembra as palavras de Rilke: “Quem sabe não estamos nós aqui para dizer [...]” Assim, ao classificar lugares, deveríamos usar palavras como “ilha”, “promontório”, “baía”, “floresta”, “bosque”, ou “praça”,“rua”,“pátio”,“chão”,“parede”,“teto”,“telhado”,“janela”,“porta”. Por isso, lugares são designados por substantivos e isso implica dizer que os con¬ sideramos “coisas [reais] que existem”, que é o sentido original da palavra “substan¬ tivo”. O espaço, como um sistema de relações, é indicado por preposições. No dia a dia, raramente falamos sobre “espaços”, mas sobre coisas que estão “acima” ou “abaixo”, “antes” ou “atrás” umas das outras, ou usamos preposições como “de”, “em”, “entre”, “sob”, “sobre”, “para” “desde”, “com”, durante”. Todas essas preposições indi¬ cam relações topológicas do tipo mencionado acima. Por fim, o caráter é indicado por adjetivos, conforme já dissemos. Um caráter é uma totalidade complexa e um adjetivo sozinho não pode dar conta de mais de um aspecto dessa totalidade. Muitas vezes, porém, o caráter é tão nítido que uma só palavra é suficiente para captar sua essência. Como se vê, a própria estrutura da linguagem cotidiana confirma a análise que fizemos do lugar. Países, regiões, paisagens, assentamentos, construções (e seus lugares secundários) formam uma série dotada de uma escala que diminui gradativamente. Designamos os degraus nessa escala de “níveis ambientais”.30 No “topo” da série, encontramos os luga¬ res naturais mais abrangentes, que “contêm” os lugares criados pelo homem nos níveis “inferiores”.Estes possuem a função de “reunir” e “focalizar” a que nos referimos acima. Em outras palavras, o homem “recebe” o ambiente e faz convergir para ele as cons¬ truções e as coisas. Desse modo, as coisas “explicam” o ambiente e evidenciam o seu caráter. Esta é a função básica do detalhe em nosso ambiente.31 Isso não significa, po¬ rém, que os diferentes níveis tenham a mesma estrutura.Aliás, a história da arquitetura mostra que isso raramente acontece. Os assentamentos vernaculares geralmente têm uma organização topológica, embora as casas particulares possam ser rigidamente geométricas. Nas grandes cidades, não é difícil encontrar áreas organizadas de forma 452 topológica no interior de uma estrutura geométrica etc.Voltaremos mais adiante a es¬ ses problemas específicos de correspondência estrutural; por ora, é preciso dizer algu¬ mas palavras a respeito do principal “degrau” na escala de níveis ambientais: a relação entre lugares naturais e lugares criados pelo homem. Os lugares construídos pelo homem se relacionam com a natureza de três formas básicas. Em primeiro lugar, o homem deseja fazer a estrutura natural mais exata. Isto é, ele quer visualizar seu “modo de entender” a natureza, dando “expressão” à base de apoio existencial que conquistou. Para tanto, ele constrói o que viu: onde a natureza insinua um espaço delimitado, constrói uma área fechada; onde a natureza se mostra “centralizada”, ele erige um Mal [marco];32 onde a natureza indica uma direção, ele faz um caminho. Em segundo lugar, o homem tem de simbolizar seu modo de entender a natureza (inclusive ele mesmo).A simbolização implica “traduzir” para outro meio um significado experimentado. Por exemplo, um determinado caráter natural é traduzido em uma construção cujas propriedades de algum modo o exprimem.33 O objetivo da simbolização é libertar o significado da situação imediata, por meio do que se torna um “objeto cultural”, que pode fazer parte de uma situação mais complexa ou transfe¬ rir-se para outro lugar. Finalmente, o homem precisa reunir os significados aprendidos por experiência a fim de criar para si mesmo uma imago munái ou um microcosmo, que dê concretude a esse mundo. A reunião desses significados depende, é claro, da simbolização e pressupõe uma transposição de sentidos para um lugar, que por isso assume o caráter de um “centro” existencial. Visualização, simbolização e reunião são aspectos do processo geral de fixar-se num determinado lugar; e habitar, no sentido existencial da palavra, depende dessas funções. Heidegger ilustra o problema com a menção à ponte, “construção” que visualiza, sim¬ boliza e liga, e faz do ambiente um todo unificado. Heidegger escreve o seguinte: A ponte se estende lépida e forte sobre o rio. Ela não junta as margens que já existem, as margens é que surgem como margens somente porque a ponte cruza o rio. É a ponte propriamente dita -que faz com que as margens fiquem uma defronte da outra. É pela ponte que um lado se opõe ao outro. Tampouco as margens correm ao longo do rio como faixas de fronteira indiferentes da terra firme. Com as margens, a ponte leva ao rio as duas extensões de paisagem que se encontram atrás delas. Põe o rio, as margens e a terra numa vizinhança recíproca. A ponte junta a terra, como paisagem, em torno do rio.34 Heidegger também descreve o que a ponte junta e assim revela seu valor como sím¬ bolo. Não podemos nos estender aqui sobre esses detalhes, mas eu gostaria de salien¬ tar que a paisagem como tal obtém seu valor por intermédio da ponte. Antes dela, o significado da paisagem estava “oculto” e a construção da ponte lhe retira o véu. 453 A ponte liga o Ser a uma certa “localização” que podemos chamar de um “lugar”. Só que esse lugar não existia como entidade antes da ponte (embora sempre houvesse muitos “sítios” ao longo da margem do rio em que o lugar poderia surgir), mas se faz presente com e como ponte.35 O propósito existencial do construir (arquitetura) é fazer um sítio tornar-se um lugar, isto é, revelar os significados presentes de modo latente no ambiente dado. A estrutura de um lugar não é fixa e eterna. É normal que os lugares mudem, às vezes muito rapidamente. Isso não significa, porém, que o genius loci necessariamente mude ou se extravie. Mais adiante veremos que ter lugar pressupõe que os lugares con¬ servem suas identidades durante determinado período de tempo. Stabilitas loci é uma condição necessária para a vida humana. Como então essa estabilidade é compatível com a dinâmica da mudança? Deve-se assinalar, primeiramente, que qualquer lugar deveria ter a “capacidade” de receber diferentes “conteúdos”, naturalmente dentro de certos limites.36 Um lugar que só é próprio para certos fins logo se torna inútil. Se¬ gundo, é óbvio que se pode “interpretar” um lugar de diferentes maneiras. Na verdade, proteger e conservar o genius loci implica concretizar sua essência em contextos histó¬ ricos sempre novos. Poderíamos dizer também que a história de um lugar deveria ser sua“autorrealização”. O que, a princípio, eram simples possibilidades é revelado pela ação humana, iluminado e “conservado” em obras de arquitetura que são ao mesmo tempo “velhas e novas”.37 Assim sendo, um lugar comporta propriedades que têm um grau variável de invariância. A conclusão geral é que o lugar é o ponto de partida e o objetivo de nossa investi¬ gação estrutural; no início, o lugar se apresenta como um dado, espontaneamente vi¬ vido como uma totalidade e, ao fim e ao cabo, ele surge como um mundo estruturado, iluminado pela análise dos aspectos do espaço e do caráter. 0 ESPÍRITO DO LUGAR Genius loci é um conceito romano. Na Roma antiga, acreditava-se que todo ser “inde¬ pendente” possuía um genius, um espírito guardião. Esse espírito dá vida às pessoas e aos lugares, acompanha-os do nascimento à morte, e determina seu caráter ou essên¬ cia. Até os deuses tinham seus genius, o que bem ilustra a natureza fundamental do conceito.38 O genius denota o que uma coisa é, ou o que “ela quer ser”, para usar uma expressão de Louis Kahn. Não precisamos nos estender aqui na história do conceito de genius e sua relação com o daimon dos gregos. Basta assinalar que os antigos viviam seu ambiente como constituído de caracteres definidos. Principalmente, os antigos re¬ conheciam a suma importância de entrar em acordo com o genius da localidade onde viviam. Em tempos passados, a sobrevivência dependia de uma boa relação com o lugar, 454 tanto num sentido físico como psíquico. No Egito antigo, por exemplo, o campo era não somente cultivado de acordo com os fluxos e refluxos do rio Nilo, mas a estrutura mesma da paisagem servia de modelo para o traçado dos edifícios “públicos” que de¬ viam dar uma sensação de segurança por simbolizarem uma ordem ambiental eterna.39 No curso da história,o genius loci tem se mantido como uma realidade viva, apesar de nem sempre ser designado por esse nome. Artistas e escritores buscam inspiração no caráter local e tendem a “explicar” fenômenos da vida cotidiana e da arte por refe¬ rência a paisagens e ao contexto urbano.Goethe, por exemplo, afirmou:“É claro que o olho é educado pelas coisas que vê desde a infância e, por isso, os pintores venezianos enxergam tudo com mais clareza e alegria do qjte outros povos”.40 Em i960, Lawrence Durrell escreveu: “À medida que você vai conhecendo a Europa, saboreando lenta¬ mente seus vinhos, queijos e as qualidades peculiares dos diferentes países, começa a perceber que o determinante mais importante de qualquer cultura é, no fim de tudo, o espírito do lugar”.41 O turismo moderno comprova que as pessoas têm grande inte¬ resse pela experiência de diferentes lugares, embora, ao que parece, esse também seja um dos valores em declínio nos dias de hoje. O fato é que, durante muito tempo, o ho¬ mem moderno imaginou que a ciência e a tecnologia 0 haviam libertado da dependên¬ cia direta dos lugares.42 Mas essa crença logo se revelou ilusória - de repente, surgiram, como tenebrosa nêmesis, a poluição e o caos ambiental, devolvendo ao problema do espaço sua verdadeira relevância. Usamos a palavra “habitar” para nos referirmos às relações entre o homem e o lugar. Para entender melhor o que esta última palavra significa, vale a pena retomar a distinção entre “espaço” e “caráter”. Quando o homem habita, está simultaneamente localizado no espaço e exposto a um determinado caráter ambiental. Denominarei de “orientação” e “identificação” as duas funções psicológicas implicadas nessa con¬ dição.43 Para conquistar uma base de apoio existencial, o homem deve ser capaz de orientar-se, de saber onde está. Mas ele também tem de identificar-se com o ambiente, isto é, tem de saber como está em determinado lugar. O problema da orientação tem recebido considerável atenção por parte da literatura teórica recente sobre planejamento e arquitetura. Devemos citar novamente a obra de Kevin Lynch, cujos conceitos de “nodo”, “caminho” e “distrito” indicam as estruturas espaciais básicas que são objetos da orientação das pessoas. A percepção de uma in- ter-relação entre esses elementos forma uma “imagem ambiental”, sobre a qual Lynch afirma: “Ter uma boa imagem ambiental confere ao indivíduo uma importante sensação de segurança emocional”.44 Assim, todas as culturas criaram “sistemas de orientação”, ou seja, estruturas espaciais que facilitam o desenvolvimento de uma boa imagem am¬ biental. “O mundo pode organizar-se em torno de um conjunto de pontos focais, ou fragmentar-se em regiões indicadas por nomes próprios, ou articular-se por cami¬ nhos fixados na lembrança”.45 Esses caminhos geralmente se baseiam ou derivam de 455 uma dada estrutura natural. Quando o sistema é frágil, a pessoa tem dificuldade de formar aquela imagem e se sente “perdida”. “O medo de se perder decorre da neces¬ sidade característica do organismo vivo de orientar-se em seu entorno.”46 Evidente¬ mente, estar perdido é justo o oposto do sentimento de segurança que distingue o habitar. A qualidade ambiental que protege o ser humano de perder-se é denominada por Lynch de “imagibilidade”, que designa “aquela forma, cor ou organização que facilita a formação de imagens mentais vividamente identificadas, fortemente estru¬ turadas e de grande utilidade do ambiente”.47 O que Lynch pretende acentuar é que os elementos componentes da estrutura espacial são “coisas” concretas, dotadas de “caráter” e de “significado”. Mas Lynch se limita a analisar a função espacial desses elementos e, por conseguinte, nos lega um entendimento fragmentário do habitar. Mesmo assim, a análise de Lynch é uma contribuição essencial para a teoria do lugar. A importância de seu livro decorre ainda do fato de seus estudos empíricos sobre a estrutura urbana concreta confirmarem os “princípios gerais de organização” da percepção, definidos pela psicologia da Gestalt e pelas pesquisas sobre psicologia infantil de [Jean] Piaget. Não querendo reduzir a importância da orientação, é preciso ressaltar que habi¬ tar pressupõe, antes de tudo, uma identificação com o ambiente. Embora orientação e identificação sejam aspectos de uma relação total, esses fatores mantêm certa indepen¬ dência no interior da mesma totalidade. Sem dúvida, uma pessoa é capaz de orientar- se bem sem se sentir profundamente identificada; ela se safa sem sentir-se “em casa”. E é possível sentir-se “em casa” sem conhecer a fundo a estrutura espacial do lugar, isto é, o lugar é percebido por ter um caráter genericamente agradável. O sentimento profundo de ser do lugar pressupõe que as duas funções psicológicas estejam plena¬ mente desenvolvidas. Nas sociedades primitivas, até os menores detalhes do meio são conhecidos e significativos, constituindo estruturas espaciais complexas.49 As socie¬ dades modernas, porém, concentram toda a atenção quase exclusivamente na função “prática” de orientação, enquanto a identificação é deixada ao acaso. Em consequência disso, a alienação tomou o lugar do verdadeiro habitar, no sentido psicológico. Existe, portanto, uma urgente necessidade de compreender melhor os conceitos de “identifi¬ cação” e de “caráter”. “Identificação” significa, para os fins desta análise, ter uma relação “amistosa” com determinado ambiente. O homem nórdico tem de se relacionar bem com o nevoeiro, a neve e os ventos gelados; tem de gostar do ruído da neve rangendo sob seus pés quando sai para passear, tem de sentir a poesia de estar envolto pelo nevoeiro, como Herman Hesse, que escreveu: “Estranho, caminhar no nevoeiro! Solitário é cada ar¬ busto e pedra, uma árvore não enxerga a outra, todas as coisas estão sós [...]”.50 O árabe, por sua vez, tem de ser amigo da infinita imensidão do deserto de areia e do sol escaldante. Isso não quer dizer que seus assentamentos não devam protegê-lo contra 4> 456 as “forças” da natureza: um assentamento humano no deserto visa principalmente ex¬ cluir a areia e o sol. O que queremos dizer é que o ambiente é vivido como portador de um significado. [Otto Friedrich] Bollnow escreveu com bastante propriedade qutfijede Stimmung ist Úbereinstimmung” , isto é, todo caráter consiste em uma correspondência entre o mundo externo e o mundo interno, entre corpo e alma.51 No caso do homem urbano moderno, a relação amistosa com um ambiente natural limita-se a relações fragmentárias. Em vez disso, ele tem de identihcar-se com coisas fabricadas pelo ho¬ mem, como ruas e casas. O arquiteto norte-americano de origem alemã Gerhard Kall- man certa vez contou uma história que ilustra bem essa situação.Ao visitar sua cidade natal, Berlim, no final da Segunda Guerra Mundial, depois de muitos anos de ausência, ele quis rever a casa em que crescera. Como era de esperar, tratando-se de Berlim, a casa tinha desaparecido, e Kallman se sentiu um pouco perdido. De repente, ele reco¬ nheceu o desenho típico das calçadas: o chão em que brincava quando criança! E teve a forte sensação de, enfim, voltar para casa. Essa história nos mostra que os objetos de identificação são propriedades con¬ cretas do ambiente e que as pessoas geralmente desenvolvem relações com elas du¬ rante a infância. A criança cresce em espaços verdes, marrons ou brancos; passeia ou brinca na areia, na terra, na pedra ou no musgo, sob um céu nublado ou sereno; agarra e levanta coisas duras e macias; ouve ruídos, como o som do vento balançando as folhas de uma certa espécie de árvore; tem experiências do calor e do frio. É assim que a criança toma conhecimento do ambiente e elabora esquemas perceptuais que determinam todas as suas futuras experiências.52 Os sistemas perceptuais se compõem de estruturas universais, inter-humanas, e também de estruturas condicionadas pela cultura e determinadas pelo lugar. É evidente que todo ser humano precisa possuir tanto sistemas mentais de orientação como de identificação. A identidade de uma pessoa se define em função dos sistemas de pensamento de¬ senvolvidos, porque são eles que determinam o “mundo” acessível. Esse fato é con¬ firmado pelo uso corrente da linguagem. Quando uma pessoa quer declarar quem é, geralmente diz: “Sou nova-iorquino” ou “Sou romano”. Isso tem um significado bem mais concreto do que dizer: “Sou arquiteto” ou, então, “Sou um otimista”. Nós enten¬ demos que a identidade das pessoas é, em boa medida, uma função dos lugares e das coisas. Heidegger disse:“Wir sind die Be-Dingen” .53 Por isso, é importante não só que nossa ambiência possua uma estrutura espacial que facilite a orientação, mas também que esta seja constituída de objetos concretos de identificação. A identidade humana pressupõe a identidade do lugar. Identificação e orientação são aspectos essenciais do estar-no-mundo do homem. Enquanto a identificação é a base do sentimento de pertencer, a orientação é a fun¬ ção que o torna capaz de ser aquele homo viator [homem peregrino] que faz parte de sua natureza. Caracteristicamente, o homem moderno, por muito tempo, deu ao 457 peregrino um papel de honra. Ele desejou ser “livre” e conquistar o mundo. Hoje começamos a compreender que a verdadeira liberdade pressupõe um sentimento de pertencer e que “habitar” significa pertencer a um lugar concreto. A palavra “habitar” tem muitas conotações que confirmam e iluminam nossa tese. Em inglês, a palavra dwell [habitar] deriva do norueguês antigo dvelja, que significa residir ou permanecer. De modo análogo, Heidegger relacionou o alemão“wohnen” [morar, residir] a bleiben [permanecer] e sich aufhalten [deter-se, ficar].54 O filósofo assinala que o gótico wunian significava “estar satisfeito”,“estar em paz”.A palavra em alemão para “paz”, Friede, significa ser livre, isto é, protegido do perigo e das amea¬ ças. Essa proteção é obtida por um Umfriedung, ou confinamento. Friede também se relaciona com zufrieden (conteúdo), Freund (amigo) e o gótico frijõn (amor). Hei¬ degger usa essas relações linguísticas para mostrar que habitar significa estar em paz num lugar protegido. Acrescente-se que a palavra em alemão para habitar, Wohnung, vem de das Gewohnte,o que é conhecido ou habitual. As palavras “hábito” e “ habitat” revelam uma relação análoga. Isto é, o homem sabe ao que tem acesso por meio da morada. Com isso, voltamos ao Úbereinstimmung ou a correspondência entre o ho¬ mem e seu ambiente, e tocamos então na raiz do problema do ato de “reunir”. Reu¬ nir significa que o mundo-da-vida se tornou gewohnt ou “habitual”. Mas reunir é um fenômeno concreto e isso nos conduz à conotação final do “habitar”. Mais uma vez é Heidegger quem desvenda a relação fundamental, quando assinala que a palavra “construir” no inglês antigo e no alto alemão equivalente, buan, significava morar e é estreitamente relacionada com o verbo ser. “Então, o que significa ich bin [eu sou]? A antiga palavra bauen, com a qual tem a ver bin, responde: ich bin, du bist, quer di¬ zer: eu habito, tu habitas. O modo como tu és e eu sou, a maneira pela qual nós, os seres humanos, somos na terra é buan, o habitar.”55 Pode-se concluir que habitar sig¬ nifica reunir, juntar, o mundo como uma construção concreta, ou uma “coisa”, e que o ato arquetípico de construir é o Umfriedung ou confinamento. A intuição poética de Tiakl sobre a relação fora-dentro confirma isso e nos faz entender que o conceito de concretização denota a essência do habitar.56 O homem habita quando é capaz de concretizar o mundo em construções e coisas. Já dissemos que a “concretização” é a função da obra de arte em oposição à “abstra¬ ção” da ciência.57 As obras de arte concretizam o que fica “entre” os puros objetos da ciência. Nosso mundo-da-vida cotidiana consiste nesses objetos “intermediários”, e compreendemos que a função essencial da arte é reunir as contradições e complexi¬ dades do mundo-da-vida. Sendo uma imago mundi, a obra de arte ajuda o homem a habitar. [Friedrich] Hõlderlin estava certo quando disse: Cheio de mérito, mas poeticamente, o homem Habita nesta terra.58 458 Esses versos dizem que os méritos do homem não contam muito se ele é incapaz de habitar poeticamente, isto é, de habitar no verdadeiro sentido da palavra. Heidegger afirma o seguinte: “A poesia não voa acima e sobrepuja a terra a fim de escapar dela e de pairar sobre ela.A poesia é o que primeiro traz o homem para a terra, fazendo-o pertencer a ela, e assim trazendo-o à morada”.59 Somente a poesia, em todas as suas formas (e também a “arte de viver”) dá sentido à vida humana, e o significado é a ne¬ cessidade humana fundamental. A arquitetura pertence à poesia, e seu propósito é ajudar o homem a habitar. Mas é uma arte difícil. Fazer construções e cidades concretas não é suficiente. A arquitetura começa a existir quando “faz visível todo um ambiente”, para citar uma definição de Su¬ zanne Langer.60 Isso significa concretizar o genius tod.Vimos que isso acontece por meio de construções que reúnem as propriedades do lugar e as aproximam do homem. Logo, o ato fundamental da arquitetura é compreender a “vocação” do lugar. Dessa maneira, pro¬ tegemos a terra e nos tornamos parte de uma totalidade compreensível. O que se defende aqui não é uma espécie de “determinismo ambiental”. Apenas reconhecemos o fato de que o homem é parte integral do ambiente e que ele somente contribui para a alienação e ruptura do ambiente quando se esquece disso. Pertencer a um lugar quer dizer ter uma base de apoio existencial em um sentido cotidiano concreto. Quando Deus disse a Adão: “Serás um fugitivo e um peregrino na Terra”,61 pôs o homem frente a frente com seu pro¬ blema fundamental: atravessar a soleira e reconquistar o lugar perdido. [“The Phenomenon of Place” foi extraído de Architectural Association Quarterly 8, n. 4, 1976: pp. 3-10. Cortesia do autor e da editora.] 1 . R. M. Rilke, The Duino Elegies, ix Elegy. Nova York:1972. 2. O conceito de “mundo-da-vida cotidiana” foi criado por Husserl em The Crisis of European Scien¬ ces and Transcendental Phenomenology,1936. 3. Martin Heidegger, “Bauen Wohnen Denken”; Bollnow, “Mensch und Raum”; Merleau-Ponty, “Phenomenology of Perception”; Bachelard, “Poetics of Space”; também L. Kruse, Raumliche Um- welt.Berlim: 1974. 4. Heidegger,“Language”, in Albert Hofstadter (org.), Poetry, Language, Thought.Nova York:1971. 5. Tradução de Liliane Stahl. Ein Winterabend Wenn der Schnee ans Fenster fallt, Lang die Abendglocke lãuter, Vielen ist der Tisch bereitet Und das Haus ist wohlbestellt. Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden. 459 Golden bluht der Baum der Gnaden Aus der Erde kilhlem Saft. Wanderer tritt still herein; Schmerz versteinerte die Schwelle. Da erglãnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein. 6. Heidegger, op. cit., p.199. 7. Ibid., p. 204. 8. Christian Norberg-Schulz,“Symbolization”, em Intentions in Architecture.Oslo e Londres:1963. 9. Ver, por exemplo, J. Appleton, The Experience of Landscape.Londres:1975. 10. Heidegger, op. cit.,p.149. 11. Ibid., pp.147,149. 12. Heidegger, Hebei der Hausfreund.Pfullingen:1957, p.13. 13. Ibid.,p.13. 14. Heidegger, op. cit., pp.181-82. 15. Norberg-Schulz, Existence, Space and Architecture. Londres e Nova York: 1971, onde adoto o con¬ ceito de “espaço existencial”. 16. Heidegger chama a atenção para a relação entre as palavras gegen (contra, contrário) e Gegend (ambiente, localidade). 17. Foi o que fizeram alguns autores, entre os quais K. Graf von Dtirckheim, E. Straus e O. F. Bollnow. 18. Compare-se com a distinção de Alberti entre “beleza” e “ornamento”. 19. Norberg-Schulz, op. cit.,1971, p.12SS. 20. S. Giedion, The Eternal Present: The Beginnings of Architecture.Londres:1964. 21. K. Lynch, The Image of the City.Cambridge: i960. 22. P. Portoghesi, Le Inibizioni deli’Architettura Moderna.Bari:1975, pp.88ss. 23. Heidegger, op. cit., p.18. 24. Norberg-Schulz, op. cit.,1971, p.18. 25. Heidegger, op. cit., p.154. “Presença é a velha palavra para o ser.” 26. O. F. Bollnow, Das Wesen der Stimmungen.Franfurt am Mein:1956. 27. Robert Venturi, Complexity and Contradiction in Architecture. Nova York: 1967, p.88. 28. Ibid.,p.89. 29. Heidegger,“Die Frage nach der Technik”, in Vortrãge unãAufsãtze Pfullingen,1954, p.12. 30. Norberg-Schulz, op. cit.,1971, p. 27. 31. Ibid., p.32. 32. D. Frey, Grundlegungzu einer vergleichenden Kunstwissenschaft.Viena e Innsbruck:1949. 33. Norberg-Schulz, op. cit.,1963. 34. Heidegger, op. cit., p.152,1971. 35. W. J. Richardson, Heidegger, Through Phenomenology to Thought.The Hague: 1974, p. 585. 36. Para o conceito de“capacidade”,ver Norberg-Schulz, op. cit,1963. 37. Venturi, op. cit. 38. Paulys, Realencyclopedie der Klassischen Alterumwissenschaft VII, I, col.,1155SS. 39. Norberg-Schulz, Meaning in Western Architecture.Londres e Nova York:1975, pp.8oss. 40. Goethe, Italienische Reise 8, out.1786. 460 41 . L. Durrell, Spirit of Place (Londres,1969), p.156. 42. Ver M. M. Weber, Explorations into Urban Structure (Filadélfia: 1963), que fala de “uma esfera urbana sem lugares”. 43. Norberg-Schulz, op. cit., 1963, em que utilizo os conceitos de “orientação cognitiva” e “orienta-'' ção catéctica”. 44. Lynch, op. cit., p. 4. 45. Ibid., p.7. 46. Ibid., p 125. 47. Ibid., p. 9. 48. Para uma exposição mais detalhada, ver Norberg-Schulz, op.cit.,1971. 49. A. Rapoport, “Australian Aborigines and the Definition of Place”, in P. Oliver (org.), Shelter, Sign, Symbol.Londres:1975. 50. Seltsam, im Nebel zu wandern! Einsam ist jeder Busch und Sein, kein Baum sieht den anderen, jeder ist allein. 51 . Bollnow, op. cit., p.39. 52. Norberg-Schulz, op. cit.,1963, pp. 41 ss. 53. Heidegger, op. cit.,1971, p.181.“Nós somos os coisificados”’, os condicionados. 54. Heidegger,“Building Dwelling Thinking”, in op. cit.,1971, pp.146 ss. 55. Ibid., p. 147. 56. Norberg-Schulz, op. cit.,1963, pp. 61 ss, 68. 57. Ibid., pp.168 ss. 58. Full of merits, yet poetically, man Dwells on this earth. 59. Heidegger, op. cit.,1971, p. 218. 60. S. Langer, Feeling and Form. Nova York: 1953. 61 . Génesis,cap. 4, versículo 2. CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ . 0 PENSAMENTO DE HEIDEGGER SOBRE ARQUITETURA Esta lúcida explicação de "O pensamento de Heidegger sobre arquitetura" contém uma análise linguística de vários escritos do filósofo, seguindo 0 interesse do próprio Heidegger pela etimologia das palavras de uso corrente. Em resumo, 0 ensaio desen¬ volve a crítica de Norberg-Schulz à arquitetura moderna, que ele considera a origem de uma crise de significado por ter criado um ambiente diagramático e funcionalista que não favorece o habitar. Referíndo-se a um "momento de confusão e crise", Nor¬ berg-Schulz reconhece que o problema do significado na arquitetura foi abordado por outros autores e que alguns partiram da semiologia (estudando a arquitetura como sistema de signos convencionais), método que lhe parece inadequado para explicar a disciplina. Ele propõe como alternativa para compreender a arquitetura a leitura da fenomenologia heideggeriana. Norberg-Schulz afirma que 0 propósito da arquitetura é fornecer um "ponto de apoio existencial" que propicie uma "orientação" no espaço e uma "identificação" com 0 caráter 0««o D 4) % 461 específico de um lugar. Oposto de alienação, o conceito de "ponto de apoio existencial" sugere que o ambiente é vivenciado como portador de significado. (Peter Eisenman e An¬ thony Vidler adotam perspectivas muito diferentes para tratar do problema da alienação em seus ensaios sobre o grotesco e o estranho no capítulo 14.) Norberg-Schulz demons¬ tra compreender a importância da diferença na produção de significado: "Uma fronteira também pode ser vista como um limiar, isto é, como a materialização de uma diferença". Em "O fenômeno do lugar", ele fala da influência do livro de Kevin Lynch Image of the City (1960), em que o autor descreve os elementos que tornam a cidade "legível". Os ele¬ mentos citados por Lynch - nodo, baliza, caminho, margem, bairro - constituem, portanto, aspectos orientadores da cidade e funcionam como o lugar de Norberg-Schulz. Para ele, a arquitetura faz o mundo visível e espacial, agregando sua presença numa coisa. Em outras palavras, a obra de arquitetura apresenta ou "faz uma coisa presente": logo, ela não pertence à ordem da representação. Os autores cujos ensaios estão reunidos neste capítulo e nos três seguintes, Kenneth Frampton, Juhani Pallasmaa, Tadao Ando, Raimund Abraham, Vittorio Gregotti e Marco Frascari, adotam postu¬ ras fenomenológicas. Além desses, Karsten Harries discute problemas éticos de um ponto de vista fenomenológico no capítulo 8. ] CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ 0 pensamento de Heidegger sobre arquitetura Heidegger não deixou nenhum texto sobre arquitetura e, no entanto, a arquitetura tem um papel muito importante em sua filosofia. Seu conceito de ser-no-mundo supõe um ambiente produzido pela mão do homem, e quando ele discute o problema do “habitar poeticamente”, refere-se explicitamente à arte de construir. Uma exposição do pen¬ samento de Martin Heidegger sobre arquitetura deve, por isso mesmo, fazer parte de nossa interpretação de sua filosofia. Essa exposição poderá ainda contribuir para um melhor entendimento dos complexos problemas ambientais de nosso tempo. No ensaio “A origem da obra de arte”, Heidegger usa um importante exemplo tirado da arquitetura, que será nosso ponto de partida: 462 Um edifício, um templo grego, não representa nada. Simplesmente está ali, erigido no meio de um vale rochoso e escarpado. O edifício encerra a figura do deus e nesse abri¬ go oculto deixa que ele se projete em todo o recinto sagrado através do pórtico aberto. Graças ao templo, o deus está presente no templo. Essa presença do deus é em si mes¬ ma a extensão e a delimitação do recinto como santuário. Mas o templo e seu recinto não se desvanecem no indefinido. Ao contrário, a obra-templo é que primeiro articula e reúne ao seu redor a unidade de todos os caminhos e relações em que nascimento e morte, desgraça e ventura, vitória e derrota, permanência e deterioração, conquistam para o ser humano a forma do seu destino. A extensão reinante desse contexto de rela¬ ções abertas é o mundo desse povo histórico; somente a partir dessa extensão e dentro dela, a nação volta a encontrar-se consigo mesma para cumprir sua missão. Ali erigido, o edifício repousa sobre o solo rochoso. Repousando sobre a rocha, a obra extrai dela o mistério encerrado em seu suporte tosco, mas natural. Ali erigido, o edifício aguenta firme a tormenta que se desencadeia sobre seu teto e assim faz com que a tormenta se revele em sua violência. O lustro e a luminosidade da pedra, cujo brilho parece ser apenas um efeito do sol, evidenciam a luz do dia, a amplitude do céu, a escuridão da noite. O firme alçar-se do templo torna visível o espaço invisível do ar. A estabilidade da obra contrasta com as ondas do mar, e a serenidade daquela põe em evidência a fúria deste. A árvore e a grama, a águia e o touro, a cobra e o grilo adquirem dessa maneira sua forma distinta e aparecem como são. Os gregos designavam essa aparição e surgimento em si e em todas as coisas de physikós. Ela ilumina e explica também aquilo sobre que e em que o homem funda sua morada. Nós o chamamos de terra. O que essa palavra indica não deve ser associado nem à ideia de uma massa ou material sedimentado em algum lugar, nem à noção puramente astronómica de um planeta. A terra é aquilo de onde o surgimento traz de volta e acolhe tudo o que surge sem violação. Nas coisas que surgem, a terra está presente como o agente acolhedor. A obra-templo, ali erigida, abre um mundo e ao mesmo tempo volta a situá-lo sobre a terra, que somente então aparece como solo natal. Mas os homens e os animais, as plantas e as coisas, nunca estão presentes nem se conhecem como objetos imutáveis para depois proporcionarem a esse templo uma ambiência adequada, que um belo dia vem somar-se ao que já está lá. Estaremos mais perto do que é se pensamos tudo isso às avessas, supondo, é claro, que, para começar, estejamos preparados para perceber como tudo nos aparece de outra maneira. Por que meramente pensar de modo inverso, só por fazê-lo, não resolve nada. O templo, por simplesmente estar ali, dá às coisas sua face e aos homens a visão de si mesmos.1 O que nos diz essa passagem? Primeiramente, temos de examinar o contexto da citação. Quando Heidegger menciona o templo,o faz para esclarecer a natureza da obra de arte. A escolha de uma obra que “não pode ser classificada como figurativa” é proposital. 463 Isto é, a obra de arte não representa, mas apresenta, torna alguma coisa presente. Hei¬ degger define essa “alguma coisa” de “verdade”.2 O exemplo citado mostra ainda que um edifício, para Heidegger, é, ou pode ser, uma obra de arte. Como obra de arte, o edifício “preserva a verdade”. O que é preservado e como se faz isso? A citação oferece respostas às duas perguntas, mas temos de nos remeter a outros escritos de Heidegger para compreendê-las adequadamente. O que de nossa pergunta inclui três elementos. Primeiro, o templo faz o deus pre¬ sente.Segundo, ele articula o que dá ao ser humano a forma do seu destino. Finalmente, o templo torna visíveis todas as coisas do mundo: a rocha, o mar, o ar, as plantas, os animais e até a luz do dia e a escuridão da noite. Em geral, o templo “abre um mundo e ao mesmo tempo volta a situá-lo sobre a terra”. Fazendo-o, confere verdade à obra. Para entender o que tudo isso significa, vamos examinar a segunda pergunta, o como. Por quatro vezes, Heidegger insiste em dizer que o templo faz o que faz por es¬ tar “ali erigido”. Ambas as palavras são importantes. O templo não está em qualquer lugar, ele se ergue ali,“no meio de um vale rochoso e escarpado”. As palavras “vale rochoso e escarpado” certamente não são introduzidas como enfeite. Bem ao contrᬠrio, elas indicam que os templos são construídos em lugares especiais e proeminentes. Graças ao edifício, o lugar obtém extensão e delimitação, e constitui um recinto sa¬ grado para o deus.Em outras palavras, aquele lugar determinado tem um significado oculto que é revelado pelo templo. O texto não deixa explícito como o edifício torna presente o destino das pessoas, mas leva a supor que isso se faz simultaneamente com a hospedagem do deus, isto é: o destino das pessoas também está intimamente relacionado com o lugar. Por fim, o templo proporciona a visualização da terra. Por isso, ele repousa sobre o solo e se alteia no ar. Assim fazendo, dá uma aparência às coisas. Heidegger enfatiza ainda que o templo não se soma ao que já está lá, mas o ato de construir faz com que as coisas surjam como são. A interpretação de Heidegger da arquitetura como um “pôr em obra a verdade” é nova e mesmo desconcertante. Hoje em dia estamos habituados a pensar na arte como expressão e representação e a ver no homem ou na sociedade a sua origem. Hei¬ degger, porém, ressalta que “não é o‘N.N.fecif que deve ser conhecido. Em vez disso, o simples factum est deve ser exposto pela obra”.3 Esse factum é revelado quando um mundo se mostra à vista para dar às coisas sua aparência. Logo, mundo e coisa são conceitos interdependentes, que precisamos examinar para entender melhor a teo¬ ria de Heidegger. Em “A origem da obra de arte”, Heidegger não dá uma verdadeira explicação e chega a observar que “aqui, a natureza do mundo só pode ser indicada”. Entretanto, em O ser eo tempo,ele define o mundo de um ponto de vista ôntico, como a totalidade das coisas, e do ponto de vista ontológico, como o Ser dessas coisas. A palavra significa, em particular, em que um ser humano está vivendo.4 Em seus escri¬ tos posteriores, Heidegger formula uma interpretação desse em que como uma qua- 464 ternidade formada pela terra, céu, os seres mortais e os seres divinos. Isso talvez nos pareça, novamente, desconcertante, porque estamos habituados a pensar o mundo em termos de estruturas físicas, sociais ou culturais. É evidente que Heidegger deseja nos fazer lembrar que nosso mundo-da-vida cotidiana consiste em coisas concretas e não em abstrações da ciência.Assim, ele escreve: A terra é o suporte do construir, nutrindo com seus frutos, cuidando da água e da rocha, das plantas e dos animais. O céu é o caminho do sol, o curso da lua, o resplendor das estrelas, as estações do ano, a luz e o crepúsculo do dia, a escuridão e a claridade da noite, a clemência e a inclemência do tempo, a passagem das nuvens e o azul profundo do éter. Os divinos são os mensageiros de deus que nos acenam. Do poder secreto desses divinos surge o deus como ele é, o que o isenta de qualquer comparação com seres presentes. Os mortais são seres humanos. São chamados de mortais porque podem morrer. Morrer é ser capaz da morte como morte.5 Cada um dos quatro elementos é o que é porque reflete os demais. Todos pertencem igualmente a um jogo de espelhos que constitui o mundo.6 Pode-se entender o jogo de espelhos como um “entre” aberto, em que as coisas aparecem conforme são. Em seu ensaio sobre Johann Peter Hebei, Heidegger realmente fala da permanência do homem “entre terra e céu, entre nascimento e morte, entre a alegria e a dor, entre a obra e a pala¬ vra”, e chama esse “entre multiforme” de mundo.7 Vemos, então, que o mundo de Heide¬ gger é uma totalidade concreta, conforme já sugeriam as referências feitas na discussão do templo grego. Em vez de ser concebido como um distante mundo de ideias, passa a ter um aqui e agora. Mas, como totalidade das coisas, o mundo não é mera coleção de objetos. Quando Heidegger entende a coisa como uma manifestação da quaternidade, recupera o sig¬ nificado original da coisa como uma “reunião”.8 Assim, ele escreve: “As coisas visitam os mortais com um mundo”.9 Heidegger também cita alguns exemplos para ilustrar a natureza da coisa. Uma jarra é uma coisa, uma ponte é uma coisa, e cada uma reúne os quatro elementos à sua maneira. Os dois exemplos são relevantes nesta discussão. A jarra faz parte dos equipamentos que constituem o ambiente próximo do homem, enquanto a ponte é uma construção que mostra propriedades mais complexas do en¬ torno. Desse modo, escreve Heidegger: A ponte une a terra como paisagem em torno do riacho. [...] Não une apenas as mar¬ gens que já estão lá. As margens surgem como margens somente quando a ponte cru¬ za o riacho.10 465 Por conseguinte, a ponte faz presente um lugar ao mesmo tempo em que seus elemen¬ tos surgem como são. As palavras “terra” e “paisagem” não são usadas aqui como sim¬ ples conceitos topográficos, mas para denotar coisas que são reveladas por meio da reunião da ponte.A vida humana tem lugar na terra e a ponte torna manifesto este fato. O que Heidegger quer mostrar com seus exemplos é a “coisidade” das coisas, isto é, o mundo que elas reúnem. Em 0 ser e o tempo, a técnica foi chamada de “fenomenolo- giá’.11 Posteriormente, ele introduziu o termo Andenken para indicar o tipo de pen¬ samento autêntico que é necessário para revelar uma coisa como uma reunião. Nesse tipo de pensamento, a linguagem tem um papel central como fonte de entendimento. Quando escreveu “A origem da obra de arte”, Heidegger ainda não tinha chegado ao conceito da quaternidade, mas, ao descrever o templo grego, todos os elementos que a compõem estão lá: o deus, os seres humanos, a terra e, implicitamente, o céu. Como coisa, o templo se relaciona com todos esses elementos e faz com que se mos¬ trem como são, ao mesmo tempo em que se unem num “todo simples”. O templo é uma obra dos homens, criado com a intenção deliberada de revelar um mundo. No entanto, as coisas naturais também reúnem o quaterno e pedem uma interpretação que dê a conhecer sua “coisidade”. Esse desvelamento se dá na poesia e, em geral, na linguagem que “em si é poesia no sentido essencial”.12 Nomeando coisas pela primeira vez, a linguagem é a primeira a dar às coisas o acesso à palavra e à aparência.13 A última citação mostra que, para entender a teoria da arte de Heidegger, é pre¬ ciso examinar seu conceito de linguagem. Assim como ele não entende a arte como representação, não aceita uma interpretação da linguagem como meio de comuni¬ cação baseado no hábito e na convenção. Quando as coisas são nomeadas pela pri¬ meira vez, são reconhecidas como são. Antes disso, eram apenas fenômenos passa¬ geiros, mas os nomes as conservam, e um mundo se abre. Logo, a linguagem é a arte original, e dá a conhecer aquilo em que no ser humano como ente histórico já é dado. Isto é a terra e, para um povo histórico, é terra, o terreno que se fecha por si no qual esse povo permanece junto com tudo o que já é, embora ainda oculto dele mesmo. Mas é seu mundo, que prevalece devido à relação do ente humano com o desvendamento do Ser.14 Essa citação é importante porque nos diz que a terra e o mundo de um povo histórico são o que são porque se relacionam com a terra e o mundo em geral. A linguagem preserva o mundo, mas é usada para dizer um mundo. Por isso, Heidegger define a linguagem como a “Casa do Ser”. O homem habita na linguagem, isto é: quando ouve e responde à linguagem, o mundo que ele é se abre e uma existência autêntica se torna possível. Heidegger designa isso de“habitar poeticamente”.15 E diz: 466 Mas onde nós, seres humanos, obtemos informações acerca da natureza do habitar e da poesia? [...] [Nós as recebemos] do que diz a linguagem. É claro que somente quan¬ do e na medida em que [respeitamos] a própria natureza da linguagem.16 A própria natureza da linguagem é poética, e, quando usamos a linguagem poetica¬ mente, a casa do ser é aberta. A poesia fala por imagens, diz Heidegger, e “a natureza da imagem é deixar ver.Ao contrário, cópias e imitações são meras variações da imagem genuína [...] que deixa ver o invisível [...]”,17 Heidegger explica o significado dessa afirmação em sua belís¬ sima análise do poema de [Georg] Trakl “Um anoitecer de inverno”.18 Qual é, então, a origem das imagens poéticas? Heidegger responde com todas as letras: “A memória é a origem da poesia”.19 A palavra alemã para memória, Gedãchtnis, significa “o que foi pensado”. No caso, deve-se entender “pensado” no sentido de Andenken, isto é, como a revelação ou desvendamento da “coisidade”, ou do “Ser dos seres”. Heidegger assinala que os gregos já tinham noção da relação entre memória e poesia. Para eles, a deusa da memória, Mnemosine, era mãe das Musas e Zeus, o pai. Zeus precisou da memória para gerar a arte: Mnemosine, ela mesma, era filha da terra e do céu, o que sugere que as lembranças que dão origem à arte representam nosso modo de entender as relações entre terra e céu. Nem a terra nem o céu produzem sozinhos uma obra de arte. Sendo uma deusa, Mnemosine é simultaneamente humana e divina, e suas filhas são frutos de um mundo completo: terra, céu, seres humanos e seres divinos. Portanto, a imagem poética é verdadeiramente integral e radicalmente diferente das categorias analíticas da lógica e da ciência. “Somente a imagem formada preserva a visão”, es¬ creve Heidegger, e acrescenta: “Contudo, a imagem formada permanece no poema”.20 Melhor dizendo, a memória é conservada na linguagem.
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