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Saber fazer frente ao real Sérgio de Campos1 Refleti, por algum tempo, no que trazer para vocês nessa noite sobre um tema, cujo real é um terreno tão árido de saber. Então, considerei em trazer algo da minha pequena experiência com a psicose. Experiência essa que confesso não ser “toda”, contudo, creio que possa ser uma “não-toda” experiência, a partir de uma posição de douta ignorância. Confidencio que se por um lado não há conforto, pelo menos há surpresas nas relações com o real na psicose. Talvez seja justamente esse real que, por um lado, causa desconforto e por outro, surpresa, nos impele e nos anima a um saber fazer que dele decante a “não-toda” experiência. Insisto no termo “não-toda”, pois nem sempre sabemos o que fazer com a psicose, uma vez que a experiência que adquirimos ao assistir esses sujeitos não é acumulativa. O labor que envolve o saber fazer frente o real na psicose é múltiplo e variado. Há toda uma diversidade de profissionais que se envolvem nas diferentes etapas que se constrói um tratamento. Portanto, a partir de uma figura de linguagem, pode-se dizer de modo alusivo que se estivéssemos numa linha de montagem que vai do desencadeamento à suplência, o real com que lido e do qual extraio a “não-toda” experiência, está no inicio dessa linha. Aliás, quem sabe a minha função não seria a de oferecer ao sujeito algumas chaves para que ele apertasse alguns parafusos soltos, algumas peças soltas que são todos nós, sujeitos. A teoria da prática da qual me refiro não se trata de acompanhar o sujeito na sua estabilização, nem tampouco secretariá-lo na construção de sua suplência, pois o saber de onde lhes transmito diz respeito ao momento de crise. Os trabalhos para uma estabilização e depois para uma suplência se darão por outros colegas, e comigo também, num outro momento e num outro espaço de rede, ambulatórios, consultórios e hospitais dia. Já alguns anos, trabalho na enfermaria de psiquiatria no Instituto Raul Soares, na qual desempenho a função de preceptor da Residência de Psiquiatria. Então, é desse lugar de ensino que colhi algumas observações que, hoje, lhes ofereço. Trata-se de um lugar muito inicial, porém essencial no processo terapêutico. O conhecimento do qual lhes falo é de um saber fazer sobre o desencadeamento, um saber acolher o sujeito na crise, um saber evitar as passagens ao ato, um saber testemunhar o seu delírio e um saber manejar a transferência. Nesse debate é preciso indagar se o delírio ensina e o que ele nos ensina. Indagamos se o delírio é uma modalidade de saber e se for, qual é o seu estatuto de linguagem? Também se pode perguntar qual é o tipo de ação é possível diante desse saber, visto que pela via do delírio, presumi-se que não há sujeito suposto saber, nem tampouco suposição, uma vez que o sujeito do saber está inteiramente encarnado numa certeza. Mas, haveria algum tipo de suposição, na medida em que o psicótico endereça ao Outro seu delírio, tomando-o como testemunha? A princípio haveria diferença entre os termos suposto e suposição? Às vezes usamos suposição no mesmo sentido de suposto, mas nem sempre são sinônimos. Na maior parte dos casos emprega-se a suposição como versão do que chamaríamos hoje de semânticas da doutrina escolástica. Suposição é uma das propriedades fundamentais do termo. Na realidade, é aquilo que pode responder por um nome. Assim, da mesma maneira que um mesmo nome responde aos vários modos significativos, também há diversas suposições. Por exemplo, existe a suposição que o sol seja quente. Com efeito, 1 Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. a suposição é a forma que assume a relação entre a significação do termo e a entidade que esse termo designa. Já o suposto se refere à existência ou ao pensamento do homem. Ele está relacionado ao subsistente, à natureza e à pessoa. O suposto é a substancia subsistente e singular. Por exemplo, para psicanálise o que é subsistente no sujeito é o saber. Quanto à natureza do suposto, pode-se dizer que é aquilo em que o suposto age. Assim, as ações são dos supostos. Por exemplo, o inconsciente é suposto a partir dos sonhos, chistes e parapraxias. Por fim, quanto à pessoa, o homem é suposto racional e o sujeito é suposto saber2. O suposto é quantificacional, ou seja, o suposto é a quantidade de ficção experimentada pelo sujeito. É aquilo com que se conta, e dentro do qual, uma proposição adquire sentido. Não é propriamente “um pensar no inconsciente”, mas “um estar em análise”. O suposto é constituído por uma experiência, por exemplo, a experiência de uma análise. Também ele pode ser algo que existe por antecipação. Por exemplo, para que exista uma análise pressupõe um analista. O suposto é entendido num sentido semelhante à crença. A escolástica debateu amiúde “crença e ciência”, “crença e saber” e “crença e razão”, termos esses que nem sempre se opunham, conforme a máxima escolástica de santo Anselmo: Creio para compreender, possivelmente extraída da Bíblia, Isaias, VII, 9, A menos que creias não entenderás3. Assim, para se analisar é preciso crer no sujeito suposto saber. Contudo, retornando ao tema da psicose, pode-se dizer que não há um saber suposto ao pai, referido ao significante, como função que organiza a linguagem. Tampouco se estabelece uma forma de satisfação pulsional, já que o gozo, não é senão o do Outro. Assim, pode-se depurar que sobre esse gozo do Outro, o sujeito tem o máximo de certeza de saber. Essa verdade tem uma certeza de saber, na qual a verdade e a certeza se superpõem. Em sua atividade discursiva e delirante, o sujeito está identificado entre o saber delirante e a verdade4. O saber do psicótico não há suposição, nem sujeito suposto saber, apenas invenção, seja no campo do sujeito ou do objeto. O saber do psicótico não precisa de provas, nem experimentos, como a construção do conhecimento neurótico sobre os aspectos da realidade. Aliás, o psicótico não necessita confrontar sua certeza, visto que o sofrimento e as dores no real do corpo são testemunhos inquestionáveis da verdade. A psicose é uma forma de pensar a si mesmo, sem o recurso da autarquia do eu. O pensar não é o objeto da consciência, nem tampouco de sua alteridade, mas uma forma espontânea do pensar engajado por um Outro e encarnado de certeza. Trata-se de um saber imaginário no real, na qual o sujeito como objeto é manipulado pelo gozo Outro. O delírio como remendo, que leva em conta algo insuportável que entra em cena para fazer frente ao real. Assim, a forclusão do nome do pai suscita um apelo a um pai não castrado, que tende a se encarnar, colocando o sujeito numa posição de exceção5. A reconstrução delirante conduzirá o psicótico ao encontro de um lugar no mundo, que como acentua Freud, poderá não resultar esplendido, mas será habitável e será capaz de suportar os embates de um gozo mortificante6. Às vezes, temos a oportunidade de assistir alguém que nos fez interrogar se a tese de Freud sobre a função do delírio como uma tentativa de cura, que remenda o real, se mantém na atualidade, sobretudo na era da medicação. No tempo inicial em que 2 MORA, F. Suposto, Dicionário de filosofia, Tomo IV, Q-Z, São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 2798. 3 MORA, F. Crença, Dicionário de filosofia, Tomo I, A-D, São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 604. 4 Idem, p. 187. 5 MALEVAL, JEAN-CLAUDE, La Forclusion du Nom-du-Père, Chapitre XII, Paris: Éditions Seuil, Champ Freudian, 2000, p. 156 6 MILLER, J. –A y outros. El saber delirante, Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 31 antecede o desencadeamento, não há saber na psicose, há apenas perplexidade e desorganização, já que há uma disjunção entre saber e verdade. Quando o delírio se desencadeou,se fez muito semelhante ao de Schereber7, além de encontrar soluções muito próximas, nas quais poderíamos alegar como Freud que existe método em sua loucura8. Recentemente assisti alguém cujo delírio se assemelhava com o de Schereber, não era apenas pela presença de Deus, mas, sobretudo, pelo empuxo a mulher. Haveria variações do empuxo à mulher quando deparamos com as questões de gênero? Quando o empuxo à mulher ocorre num homem, o que fica patente é o transexualismo. Contudo, como se tratava de uma mulher, o que se tornava digno de nota era sua condição radical de exceção assumida como singularidade de ser A Mulher que iria casar com Deus. Aliás, o sujeito era mulher de Deus, visto que a mãe de Cristo era mulher de José. Se por lado, o objeto é abandonado, como resto e miséria, por outro, ela se encontra como objeto mais de gozar9. Portanto, o delírio evoca, dessa forma, a tese de Lacan cuja formula geral da loucura, assinala que o singular do sujeito, como experiência de gozo mortificante em relação ao Outro, é transcendido à necessidade universal, pois o sujeito aspira a elevar-se a condição de uma instancia universal, paradigma do arrebatamento e do gozo10. O empuxo à mulher é considerado um dos principais índices de forclusão11. Com efeito, o empuxo à mulher é uma tentativa de pacificação de um gozo absoluto.12 Quando o semblante do pai fracassa, emerge A Mulher cujo gozo, se por um lado é infinito, por outro contribui para um movimento de contenção do mesmo. Pode-se dizer que A Mulher é a outra face de Deus que suporta o gozo feminino13. Aliás, A Mulher é a derradeira proteção contra a malignidade do pai gozador14, visto que é na encarnação de exceção que o delírio é capaz amarrar o gozo ao semblante15. Portanto, a clínica da psicose nos oferece a oportunidade de verificar que Deus e a Mulher se encontram apenas no real.16 Freud vem assinalar que aquilo que consideramos manifestações da enfermidade é sua tentativa de cura e é isso que vocês denominam de tentativa de compensação17. O saber delirante é a tradução imaginária do horror com que experimenta à invasão do Outro, ao qual se está entregue e sem recurso18. Como defesa à invasão da vontade de gozo, resta apenas à invenção delirante, na qual o sujeito aposta na sua recuperação endereçando seu gozo à Deus. Esse endereçamento a Deus como A Mulher desloca a posição de objeto de gozo do Outro, onde o saber e a verdade se coincidem. Se a psicanálise considera que o delírio possa ser um discurso em resposta ao real, se faz necessário certa cautela para extrair sua função de cura. Talvez, seja preciso reduzir o 7 FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia, Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XII, Rio de Janeiro: Imago editora, 1990, pp. 15-105. 8 Idem, p. 37. 9 MAROTTA, M., Presidente Schereber, Scilicet, Os objetos a na experiência analítica, Associação Mundial de Psicanalises, Rio de janeiro: Contra capa, 2008, p. 284. 10 RIVAS, E., Pensar la psicosis, El saber en la psicosis, Buenos Aires: Grama ediciones, 2006, p. 190. 11 LACAN, J. D’une question preliminaire à tout traitament possible de La psychose, in Écrits, Paris: Seuil, 1966, p. 566. 12 MALEVAL, JEAN-CLAUDE, L’emergence de La femme, Chapitre IV, Paris: Éditions Seuil, Champ Freudian, 2000, p. 331 13 Idem, p. 334. 14 Idem, p. 335. 15 Idem, p. 346. 16 Idem, p. 343. 17 FREUD, S. y C. JUNG, Correspondência, Madrid: Taurus, 1978, p. 28. 18 Mortificada como Janaina e vivificada como Nossa Senhora. caráter arborescente do delírio ao seu ponto essencial, para que a função se estabeleça em certo lugar no laço social. Pode-se lançar mão da medicação para moderar o gozo de tal sorte que o sujeito não seja tragado pelo seu aspecto terrificante. O uso da medicação como meio e não como fim, tem a finalidade de moderar o gozo, propiciando porosidade e arestas na certeza, de tal sorte que o sujeito possa dizer de si como autor de seu destino. Do ponto de vista evolutivo, pode-se dizer que alguns delírios não se reduzem, não obstante se modifiquem. Paulatinamente, com o tratamento quase sempre é possível acessar a história de vida, relacionamentos familiares e amorosos, fatos de importância afetiva e relatos da infância. Ademais, se o sujeito desenvolve uma erotomania, essa pode ser contornada com o manejo da transferência de vinculo frouxo e entrevista curtas. Aliás, quando o delírio se torna consistente e ao mesmo tempo circunscrito, torna-se viável a necessidade de vínculo com um hospital dia para facilitar a adesão ao tratamento. Se interrogarmos sobre qual é o lugar que o analista deve ocupar frente à transferência na psicose, o analista deve ter a função de testemunha e de secretário, funções essas fundamentais para circunscrever, delimitar e bordejar o real, num trabalho de escritura sobre o gozo. O papel de testemunhar a crise, não deixa de ser uma modalidade de secretariar o psicótico19. Tanto testemunhar, quanto secretariar o psicótico pode encontrar pontos de divergência, na qual os dois não se coincidem, particularmente, nos momentos em que já houve a estabilização e pontos de convergência, nos quais testemunhar e secretariar estão justapostos, como nos momentos de desencadeamento. Entretanto, testemunhar não é injetar sentido que reforce a certeza do psicótico, mas desalojar o psicótico de sua posição objetal, na medida em que o analista acolhe os significantes do sujeito. O ato de dizer para o psicótico induz uma limitação de gozo, uma revitalização do sujeito e uma tentativa de separar-se do objeto. Em definitivo, o analista não deve interpretar o psicótico, que traduzam as significações de seus ditos e os confrontem com a forclusão. Contudo, o analista pode promover intervenções que recorte e isole alguns significantes que tenham haver com a história do sujeito. Essas intervenções cortam e separam o sujeito do gozo mortífero que o invade. A finalidade desse tipo de intervenção é interromper e cortar o processo em cadeia das significações delirantes arborescentes e facilitar a cristalização de uma identificação subjetiva, ainda que seja delirante, porém que situa o sujeito num gozo limitado. O analista com essa manobra levará certa indeterminação subjetiva que poderá, senão vacilar, poderá reduzir a certeza psicótica20. O tratamento visa mover o sujeito de sua condição de objeto à de autor de seu discurso, com os efeitos inerentes de delimitação de gozo e de desbridamento de sua submissão à vontade obscura do Outro. O analista deve acolher as elaborações que possam adiar ou retardar o encontro com o Outro sinistro. Também deve evitar que caia as identificações precárias pelas quais se sustenta o psicótico. A escuta da palavra do psicótico por parte do analista, não é neutra e nem quase silenciosa como na neurose. O fato de o analista escutar a palavra do psicótico, não quer dizer que está simbolizando o real, como poderíamos supor no tratamento com os neuróticos. Na realidade esse ato, não é senão uma transformação do real, que retorna pelo buraco da forclusão, promovendo a escritura do gozo, a escrituração do ser e a assinatura de uma obra. Ademais, o dizer pode-se assegurar as atividades laborais criativas, assim como a inclusão-inscrição de um discurso que promova novos vínculos. Por fim, o analista deve 19 LACAN, J. O Seminário, Livro III, As psicoses, São Paulo: Jorge Zahar editor, 1985, p. 238. 20 RIVAS, E., Pensar la psicosis, El saber en la psicosis, Buenos Aires: Grama ediciones, 2006, p. 114. criar condições de possibilidade para reconstituição da subjetividade e para a inclusão do psicótico no âmbito do laço social e elaborar dispositivos possíveis para reabilitar o direito, a responsabilidadee o desejo do ser vivente como sujeito. Em síntese, o que se pode recolher como orientação lacaniana para a condução de um tratamento, se trata fundamentalmente de uma operação que institui a subjetividade, o que implicaria em cinco pontos cruciais: a) primeiro, fazer uma barreira frente ao gozo: a medicação e a internação é algumas das modalidades de moderar o gozo; b) em segundo, manobrar a transferência através de uma prudente secretaria e oportuna intervenção, fazendo deslocar o psicótico da posição de objeto de gozo do Outro para a de sujeito, que possa operar como ancora e freio de uma língua desencadeada; c) terceiro, acompanhar o sujeito como testemunha de seu intento de sustentar sua existência, orientando-o na sua estrutura em relação à linguagem, criando o campo de um Outro precário que permita endereçar um certo testemunho; d) quarto, efetuar intervenções que promovam um corte no delírio arborescente ou nos significantes congelados ou holo-fraseados no discurso, assim como não injetar sentido ou traduzir o delírio; no entanto, se a metáfora delirante acontecer, não impedir que ela se estabeleça; e) por último, construir um laço de conversação com o sujeito psicótico, que o implique no laço social e que a erotomania e a odiomania sejam evitadas ou assimiladas pela trivialidade da transferência de vinculo frouxo. Referências Bibligráficas: ALVARENGA, E., Há algo de novo nas psicoses. Curinga, Revista da escola Brasileira de psicanálise, Seção Mina, Belo Horizonte: EBP-MG, Vol. 14, 2000, p. 20. Associação Mundial de Psicanálises, Scilicet, Os objetos a na experiência analítica, Rio de janeiro: Contra capa, 2008, CLÉRAMBAULT, G. G., Automatismo Mental Paranóia. Buenos Aires: Polemos, 1995. EY H. Manual de Psychiatrie. Paris: Masson Editeu, 5º. Ed. p.1-1257, 1985. FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia, Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XII, Rio de Janeiro: Imago editora, 1990, pp. 15-105. FREUD, S. Inconsciente. Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV, Rio de janeiro: Imago editora, 1990. FREUD, S. y C. JUNG, Correspondência, Madrid: Taurus, 1978. HOUAISS, A. Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa. 2. ed. Objetiva, p.574, 2004. LACAN, J. O Seminário, Livro III, As psicoses, São Paulo: Jorge Zahar editor, 1985. LACAN, J. D’une question preliminaire à tout traitament possible de La psychose, in Écrits, Paris: Seuil, 1966. MALEVAL, JEAN-CLAUDE, La Forclusion du Nom-du-Père, Paris: Éditions Seuil, Champ Freudian, 2000. MILLER, J. –A y outros. El saber delirante, Buenos Aires: Paidós, 2005. MORA, F., Dicionário de filosofia, Tomo I-IV, São Paulo: Edições Loyola, 2000. RIVAS, E. Pensar la psicosis, El saber en la psicosis, Buenos Aires: Grama ediciones, 2006.
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