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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO, ATUÁRIA E CONTABILIDADE DEPARTAMENTO DE TEORIA ECONÔMICA CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS ELIZABETH DA COSTA HENRIQUE FICHAMENTO: FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL – CELSO FURTADO PARTE IV – ECONOMIA DE TRANSIÇÃO PARA O TRABALHO ASSALARIADO SÉCULO XIX FORTALEZA 2018 CAPÍTULO XVI O MARANHÃO E A FALSA EUFORIA DO FIM DA ÉPOCA COLONIAL O que foi e como se desenrolou a “falsa euforia” da economia brasileira no fim do período colonial? Quais suas repercussões na região maranhense? Nos último quarto do século XVIII, a economia brasileira declina com a queda no valor das exportações: o açúcar enfrenta novas dificuldades e o valor total de suas vendas chega a níveis baixíssimos; da mesma forma, as exportações de ouro também conferem pouco rendimento à colônia. Por conseguinte — e dado o aumento populacional, com cerca de 2 milhões de pessoas livres e 1 milhão de escravos —, ao final do século XVIII, a renda per capita brasileira chega ao nível mais baixo de todo o período colonial. Nessa época, a economia brasileira se concentrava em dois polos principais: o do açúcar, ao qual se ligava — cada vez mais frouxamente — a pecuária nordestina, e o do ouro, ao qual se ligava mais intensamente o hinterland pecuário sulino — que se estendia de São Paulo ao Rio Grande. Furtado, salienta que através do Rio São Francisco, a pecuária se beneficiava na busca por melhores preços. No norte se localizavam os centros autônomos do Maranhão e do Pará. O Pará se manteve como um núcleo totalmente isolado das demais formas econômicas da colônia, vivendo exclusivamente da “economia extrativista florestal organizada pelos jesuítas com base na exploração da mão de obra indígena”; tendo esse sistema, aparentemente próspero, entrado em “decadência com a perseguição que sofreu na época de Pombal”. O Maranhão articulava-se com a região açucareira através da periferia pecuária, constituindo o único centro econômico principal que ainda conheceu uma efetiva prosperidade no fim do século XVIII, pois — empenhado em destruir a Ordem dos jesuítas — Pombal deu especial atenção a esta região, dado que os colonos maranhenses eram adversários tradicionais dos jesuítas na luta pela escravização dos índios. Pombal ajudou os colonos do Maranhão “criando uma companhia de comércio altamente capitalizada” a fim de financiar o desenvolvimento da região. Outras condições altamente propícias beneficiaram a região: as modificações no mercado mundial de produtos tropicais, provocadas pela guerra de independência dos EUA e, posteriormente, pela Revolução Industrial inglesa. Aproveitando-se acertadamente do crescimento na procura por algodão e notando a falta de restrição em pactos coloniais ao arroz produzido nas colônias inglesas e principalmente consumido no sul da Europa, os dirigentes da companhia trataram de concentrar seus recursos na produção desses dois artigos. Assim, o Maranhão — que antes era o centro econômico mais pobre da colônia — foi altamente beneficiado pela guerra de independência das colônias inglesas da América do Norte, dado que o principal centro produtor de arroz foi excluído temporariamente do mercado mundial — seu porto que antes recebia de um a dois navios por ano, passou a receber de cem a 150 navios por ano, chegando a exportar 1 milhão de libras. Enquanto isto, no fim do século XVIII, o restante da colônia sofre forte prostração econômica. A decadência da economia aurífera, que se estende até a primeira metade do século XIX, afeta indiretamente a região pecuária do sul provocando prolongado período de dificuldades internas. Contudo, no início do século XIX, fatores circunstanciais dão uma aparência de prosperidade à colônia, e a transferência do governo metropolitano, assim como a abertura dos portos, em 1808, criam um clima geral de otimismo. Dentre tais fatores circunstâncias temos os acontecimentos políticos, ocorridos entre o último quartel do século XVIII e as duas primeiras décadas do século XIX, que modificaram os mercados mundiais de produtos tropicais, tais como: • A guerra de independência dos EUA, que favoreceu o desenvolvimento maranhense como já foi citado; • a Revolução Francesa e os subsequentes transtornos nas produções tropicais de suas colônias — em 1789, a revolta dos escravos no Haiti, grande colônia açucareira francesa, desembocou na destruição por estes de grande parte da riqueza ali acumulada, modificando o mercado de açúcar mundial e culminando num novo período de prosperidade para a região açucareira do Brasil • guerras napoleônicas — que mais que duplicaram o valor das exportações de açúcar brasileiro —, com o bloqueio e o contra bloqueio da Europa, e a desarticulação do vasto império espanhol da América — cujas dificuldades surgidas nestas colônias também repercutem no mercado de produtos tropicais e couros, favorecendo os centros produtores brasileiros com aumento temporário dos preços destes produtos no mercado mundial. A intensa atividade industrial na Inglaterra durante esses anos de guerra também é um importante fator para a prosperidade brasileira neste período, dada a forte procura por algodão, favorecendo tanto o Maranhão como o Nordeste, que passa a dedicar recursos à produção desse artigo. A precariedade desta prosperidade se dá por esta ser fundamentada em anomalias no mercado mundial de produtos tropicais. Assim, nas primeiras décadas de vida como nação politicamente independente, superadas as condições de anomalia, o Brasil enfrenta sérias dificuldades para defender sua posição nos mercados dos produtos que tradicionalmente exportava. CAPÍTULO XVII PASSIVO COLONIAL, CRISE FINANCEIRA E INSTABILIDADE POLÍTICA Como o passivo colonial provocou crise financeira e instabilidade política no Brasil recém independente? Embora os acontecimentos políticos na Europa de fins do século XVIII e início do século XIX tenham acelerado a evolução política brasileira, estes também contribuíram para prolongar a etapa de dificuldades econômicas que começara com a decadência do ouro. O conjunto de tais acontecimentos é constituído pela: • Ocupação de Portugal pelas tropas francesas: com isso, o entreposto comercial de Lisboa deixou de existir, necessitando-se assim do comércio direto entre a colônia e os mercados ainda disponíveis, provocando, por conseguinte, a abertura dos portos iniciada em 1808; • assinatura dos tratados de 1810 entre Portugal e Inglaterra: este transformou a Inglaterra em uma potência privilegiada, com direitos de extraterritorialidade e tarifas preferenciais extremamente baixas, o que limitou a autonomia do governo brasileiro no setor econômico por toda a primeira metade do século XIX; • separação definitiva de Portugal em 1822 e o acordo de 1827 entre a Inglaterra e o Brasil: tal acordo, na prática, funcionou como uma renovação do tratado de 1810, consolidando o privilégio inglês, tendo este sido assinado — como salientado no capítulo VII — devido às dificuldades diplomáticas pertinentes à independência brasileira, tendo a Inglaterra garantido a aceitação do Brasil como um pais independente, mediante a contração brasileira de parte do passivo colonial português, dentre outras exigências; • abdicação de D. Pedro I: com a eliminação do poder de D. Pedro I, ocorre a ascensão definitiva ao poder da classe colonial dominante formada pelos senhores exportadoresde produtos agrícolas. Ainda que os privilégios concedidos à Inglaterra tenham sido danosos à economia brasileira, não se pode afirmar que estes são os principais responsáveis pelo Brasil não ter se transformado numa nação moderna já na primeira metade do século XIX, como ocorreu nos EUA. Como já salientado, Portugal era apenas um oneroso entreposto comercial, estando seus interesses via de regra em conflito com os da colônia — pode-se perceber isso ao vermos os resultados da abertura dos portos, tais como, redução dos preços das mercadorias importadas, maior abundância de suprimentos, facilidades de crédito mais amplas e outras óbvias vantagens para a classe de grandes agricultores. Nessa época, começaram a haver conflitos entre os dirigentes da grande agricultura exportadora brasileira e a Inglaterra, dada a falta de coerência em relação ao seu discurso liberal: o tratado de comércio de 1810 criava privilégios unilaterais à Inglaterra, isto é, não houve em contrapartida abertura comercial aos produtos brasileiros, tendo estes de competir com os privilegiados produtos das Antilhas inglesas, constituindo, deste modo, sérias dificuldades à economia brasileira. Nesse ambiente de dificuldades, os ingleses também pretendiam impor a eliminação da importação de escravos africanos — pois para os antilhanos a persistência da escravatura brasileira era o principal fator da depressão do mercado açucareiro —, como isso resultaria em uma forte elevação dos custos de produção, os grandes agricultores brasileiros se defenderam tenazmente, “provocando e enfrentando a ira dos ingleses”. Portanto, o conflito não era com os interesses comerciais ingleses locais e nem exatamente com o governo brasileiro, o qual apoiava o término do tráfico ilegal de escravos — e sim entre os interesses de produtores antilhanos de açúcar e os da classe dominante brasileira. Desta forma, como já salientado, “não se pode afirmar que, se o governo brasileiro houvesse gozado de plena liberdade de ação, o desenvolvimento econômico do país teria sido necessariamente muito intenso”. Contudo, não se pode negar que o privilégio aduaneiro concedido à Inglaterra criou dificuldades financeiras ao governo brasileiro. O imposto sobre importações é o recurso pelo qual economias primárias de exportação arrecadam suas receitas básicas. Com a tarifa única — 15% ad valorem — concedida à Inglaterra, a única alternativa seria taxar as exportações — cortando os lucros dos senhores da agricultura. Isso fomentou um clima de insatisfação em todo o Brasil, enquanto a autoridade do governo central, que enfrentava “extraordinária escassez de recursos financeiros”, se reduzia. Os preços do açúcar e do algodão caem acentuadamente na primeira metade do século XIX. A renda per capita na Bahia, Pernambuco e Maranhão caem. Com o declínio da economia aurífera, principal mercado para os gados produzidos no sul, essa região também sofre dificuldades. Como resposta a esse processo de empobrecimento e dificuldades, há rebeliões armadas ao norte e prolongada guerra civil ao sul. Em meio a tantas dificuldades, o café surge como nova fonte de riqueza para o país. Já em 1830, ele se consolida como o principal elemento de exportação brasileira, com progressão firme. Com isso, firma-se um sólido núcleo de estabilidade na região central do Brasil, tornando-se este o “centro de resistência contra as forças de desagregação que atuam no norte e no sul”. Furtado salienta, “a quase inexistência de um aparelhamento fiscal no país, para captar a importância que na época cabia as aduanas como fonte de receita e meio de subsistência do governo”. Com a limitação do acesso a esta fonte, apesar do aumento de receita conferido pela eliminação do entreposto lusitano, o governo central enfrentou graves “dificuldades financeiras para desempenhar suas múltiplas funções na etapa de consolidação da independência”, ficando impossibilitado de aumentar a arrecadação até a expiração do acordo com a Inglaterra em 1844. Nos anos 20, o governo mal arrecada metade do necessário para cobrir seus gastos agravados com a guerra na Banda Oriental, optando por financiar, em grande parte, o déficit com a emissão de moeda-papel. Esta forma de financiar o déficit, a medida que elevava os preços dos produtos importados devido à desvalorização externa da moeda, incidia principalmente sobre a população urbana — pequenos comerciantes, empregados públicos, militares, etc. —, os senhores da agricultura eram pouco afetados pois estes, em boa medida, se auto-abasteciam e seus cujos gastos monetários eram amortecidos pelo sistema escravagista. Com isso, a inflação acarretou em empobrecimento dessas classes urbanas, gerando revoltas. CAPÍTULO XVIII CONFRONTO COM O DESENVOLVIMENTO DOS EUA Por que o Brasil não seguiu os passos dos EUA para tornar-se uma nação industrializada? Como já referido no último capítulo, os acordos comerciais de 1810 e 1827 entre Brasil e Inglaterra provocaram forte instabilidade política e econômica no Brasil. Recapitulemos os fatos: 1. A exclusão do entreposto lusitano provoca a abertura dos portos em 1808. 2. Firmas inglesas se estabelecem no Brasil facilitando o transporte e a comercialização, acarretando em queda relativa dos preços das importações e um rápido crescimento da demanda por bens importados. 3. Essa forte pressão sobre a balança de pagamentos, aliada ao acordo de 1827 e à criação de uma tarifação única que beneficiava os produtos ingleses, sem a devida contrapartida para os produtos brasileiros na Inglaterra — “ausência de uma corrente substancial de capitais estrangeiros ou de uma expansão adequada das exportações” —, força o governo a adotar medidas impopulares que repercutem na taxa de câmbio. 4. A emissão de moeda-papel para financiar o déficit brasileiro provoca desvalorização cambial e consequente aumento dos preços dos artigos importados. Furtado salienta, que mesmo que o Brasil tivesse adotado tarifas aduaneiras de 50% ad valorem, “possivelmente o efeito protecionista não tivesse sido tão grande como resultou ser com a desvalorização da moeda”. De modo que não se pode afirmar que os acordos referidos impossibilitaram a industrialização do Brasil nesse período, ao impedirem a tomada de medidas protecionistas. Tais medidas só foram utilizadas nos EUA, no século XIX, quando as bases de sua economia já estavam consolidadas. Enquanto no Brasil, após a independência, a classe dominante era a dos grandes agricultores escravagistas, nos EUA eram os pequenos agricultores e um grupo de grandes comerciantes que dominavam. Enquanto o principal representante dos ideais da classe dominante brasileira, o Visconde de Cairu, acreditava piamente no laissez-faire e na mão invisível do mercado, o representante americano, Alexander Hamilton, advogava uma decisiva ação estatal em prol da industrialização com “estímulos diretos às indústrias e não apenas medidas passivas de caráter protecionista”. Como a agricultura de exportação não alcançou êxito nas colônias do norte — lá não era viável a produção de produtos tropicais de grande demanda —, a relação colônia-metrópole seguiu em um caminho distinto: a metrópole incentivou na colônia a implantação de indústrias que não competissem com sua própria produção, permitindo a redução de suas importações de outros países. Assim, por exemplo, no caso do aço houve preocupação em dificultar sua produção nas colônias, mas já o ferro foi estimulado a ser produzido, para que a Inglaterra reduzisse sua dependência dos países do Báltico. Por outro lado, dadas as dificuldades quetinham para importar as manufaturas de que precisavam, as próprias colônias criaram consciência da conveniência de estimular a produção interna. Em 1655, Massachusetts criou uma lei obrigando todas as famílias a produzir os tecidos de que necessitassem. Além disso, havia a proibição da exportação de algumas matérias-primas, como o couro, para que fossem usadas na manufatura interna. Por último, o autor ressalta o avanço da indústria da construção naval, que antes da independência já representava ¾ da produção dos barcos americanos usados em seu comércio, e que representou um papel fundamental no desenvolvimento ocorrido na época das guerras napoleônicas. A Guerra da Independência cortou por vários anos todo o suprimento de manufaturas inglesas, constituindo mais um forte estímulo para a produção interna, que já tinha base para se expandir. Logo depois, houve grandes transtornos políticos na Europa, que criaram extraordinários incentivos para o desenvolvimento da economia norte-americana. Com as dificuldades para o abastecimento europeu das Antilhas inglesas e francesas, estas voltaram-se para o mercado norte-americano de alimentos. Furtado ilustra a prosperidade desse período citando que, de 1789 a 1810, “a frota mercante norte-americana cresceu de 202 mil para 1.425.000 toneladas”, sendo todos esses barcos construídos no próprio país. O autor ressalva que o know how acumulado no período colonial, o entendimento de seus dirigentes da necessidade de fomentar a industrialização em prol de um real desenvolvimento econômico e a grande acumulação de capitais da fase das guerras napoleônicas não são suficientes para explicar as transformações ocorridas, na primeira metade do século XIX, nos EUA. Ainda por muito tempo a economia norte-americana continuou a ter seu desenvolvimento condicionado à exportação de produtos primários. Com efeito, foi como exportadores de algodão — matéria-prima para a crescente indústria têxtil inglesa — que os EUA tomaram posição na vanguarda da Revolução Industrial. A Inglaterra era responsável pela mecanização dos processos manufatureiros, enquanto os Estados Unidos eram responsáveis por prover grandes quantidades de algodão, que substituiria a lã, pela sua maior facilidade de expansão produtiva — “entre 1780 e a metade do século XIX, o consumo anual de algodão pelas fábricas inglesas aumentou de 2 mil toneladas para cerca de 250 mil”. A baixa dos preços do algodão, possibilitada pelas condições americanas, que favoreciam a produção em grande escala desse artigo, ajudou enormemente a Revolução Industrial inglesa, a medida que fomentou a redução nos preços das manufaturas inglesas de algodão, dando a estas o controle do mercado têxtil num período sem expansão autônoma da demanda. O algodão representa o principal fator dinâmico do desenvolvimento da economia norte-americana na primeira metade do século XIX, chegando a constituir mais da metade de suas exportações. As formas extensivas de tal agricultura obrigavam a buscar sempre novas terras e penetrar no interior do continente — por conseguinte, a expansão ao sul provocou a povoação do meio- oeste americano e abriu espaço para grandes correntes de colonização europeia, “as quais penetravam no centro do continente subindo os grandes rios que as ligavam com os mercados do sul”. Semelhantemente ao que ocorreu no Brasil, a abertura de portos nos EUA, no começo do século, criou uma balança comercial deficitária com a Inglaterra. Porém, esse déficit tendia a transformar-se em dívidas de médio e longo prazos, invertendo-se em bônus dos governos central e estaduais. Isso criou uma corrente de capitais, importante para o desenvolvimento do país. “Isto foi possível graças à política financeira do Estado, concebida por Hamilton, e à ação pioneira do governo central primeiro e estaduais depois na construção de uma infraestrutura econômica e no fomento direto de atividades básicas”. CAPÍTULO XIX DECLÍNIO A LONGO PRAZO DO NÍVEL DE RENDA: PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX Qual a razão do fracasso do fomento a indústrias no Brasil na primeira metade do século XIX? Como se deu o declínio econômico brasileiro nesse período e quais suas consequências sobre o nível de renda per capita? Enquanto no capitulo anterior, Furtado concentra-se em explicar a razão para o Brasil não ter se industrializado na primeira metade do século XIX abordando as diferenças que este tinha em relação aos EUA e em como os acontecimentos políticos da época influenciaram nossa economia; no capitulo 19, o autor foca nos aspectos econômicos brasileiros e nas consequências do declínio econômico sobre a renda per capita brasileira. Para Furtado, o desenvolvimento econômico do país, neste período, dependia da expansão de suas exportações. Contudo, o país estava sobrevivendo basicamente da produção e do consumo interno, pois os ciclos econômicos estavam em decadência. Seria inútil estimular a industrialização em um pais sem capacidade para importar em expansão e sem base técnica – o que pode ser comprovado pela iniciativa das indústrias siderúrgicas na época de D. João VI. Dada a decadência da mineração, o mercado para produtos siderúrgicos era praticamente inexistente e disperso, exigindo uma complexa organização comercial. O autor salienta que a industrialização deveria ter começado pelos produtos que já tinham mercado substancial: tecidos, por exemplo — “única manufatura cujo mercado se estendia inclusive à população escrava”. Porém, a exemplo do que ocorreu na própria Inglaterra, a intensa baixa dos preços de tecidos ingleses dificultou a subsistência do pouco artesanato têxtil que existia no Brasil. Furtado frisa que nem mesmo a criação de altas tarifas aduaneiras seria capaz de defender uma indústria têxtil nascente no Brasil, esta defesa deveria se dar pela criação de cotas de importação, contudo isto reduziria significativamente a renda real da população numa etapa de grandes dificuldades. Além disso, o fomento à industrialização têxtil enfrentaria outro grave problema: a dificuldade da importação de máquinas, já que a Inglaterra fazia o possível para impedir a exportação dessas — devido à alta expansão do mercado têxtil norte-americano, visando altos lucros, operários ingleses especializados migraram para os EUA, escapando do controle das autoridades britânicas e, assim, com sua cooperação foi possível criar as máquinas necessárias no próprio país. Mesmo abstraindo-se da impraticabilidade de uma política inteligente de industrialização num pais dominado por grandes senhores agrícolas escravistas, o êxito de tal política dependeria de uma firme e ampla expansão de suas exportações. Desta forma, o estancamento das exportações brasileiras, na primeira metade do século XIX, foi a principal causa do grande atraso relativo da economia brasileira no período. Todo o aumento das exportação do período deve-se ao café — cuja produção se concentrava em áreas próximas ao Rio de Janeiro (cidade) — tendo os demais produtos apresentado queda substancial de preços. Os exportadores de algodão, por exemplo, receberam metade do valor que haviam recebido no período anterior, reduzindo apenas 10% da quantidade exportada, já os de açúcar mais que dobraram a quantidade exportada e só receberam 24% a mais. Enquanto a baixa nos preços das exportações foi de cerca de 40%, o índice de preços das importações se manteve estável, portanto, caracterizando uma queda de aproximadamente 40% no índice dos termos do intercâmbio, isto é, “a renda real gerada pelas exportações cresceu 40% menos que o volume físico destas”. Assim, o aumento de 40%no valor médio anual das exportações, no período, foi resultado de um aumento de quase 100% no volume físico destas, tendo gerado um aumento na renda real de apenas 40%. Com isso, a renda per capita declinou sensivelmente na primeira metade do século XIX, tendo o valor da exportação por habitante, da população livre, caído de aproximadamente 2 libras — no fim do século XVIII — para pouco mais de 1 libra — no período discutido nessa capítulo. Somente um desenvolvimento intenso do setor não ligado ao comércio exterior teria contrabalanceado o declínio das exportações e ajudado a manter o nível de renda per capita, esse setor seria o da indústria e de serviços urbanos. Contudo, não houve aceleração da urbanização nesse período. O que ocorreu foi um aumento relativo do setor de subsistência. Como sua produtividade era bem inferior ao do setor exportador, o aumento de sua importância relativa significava uma redução da renda per capita geral — em caso extremo, o poder aquisitivo anual caiu de 50 para 43 dólares. Ao considerarmos as várias regiões do país em conjunto, é provável que a renda per capita nessa época tenha sido a mais baixa de todo o período da colônia. CAPÍTULO XX GESTAÇÃO DA ECONOMIA CAFEEIRA Como o café se transformou no maior responsável pelo valor das exportações brasileiras — isto é, como se deu a gestação da economia cafeeira no Brasil — e quais suas consequências? Os primeiros ¾ do século XIX foram caracterizados, predominante, por estagnação ou decadência econômica, com esporádicas fases de prosperidade local — como no caso do Maranhão —, não afetando o pais como um todo. O resultado líquido desse período de dificuldades foi a criação de um banco nacional, instalação de um sistema administrativo (rudimentar), preservação da unidade territorial e outras poucas iniciativas governamentais. Pouquíssimas foram as novas técnicas advindas da Revolução Industrial que penetraram no país — no geral, sob a forma de bens ou serviços de consumo — não afetando a estrutura do sistema produtivo brasileiro. Além disso, não havia mais a possibilidade de expandir a força de trabalho do país com a fonte africana, e não se vislumbrava solução alternativa. O Brasil era carente de base tecnológica própria e de capitais que pudessem ser remanejados para novas atividades, desta forma, sua única saída para superar a estagnação econômica era “reintegrar-se nas linhas em expansão do comércio internacional”. Furtado assinala que os poucos empréstimos externos, contraídos na primeira metade do século XIX, tinham objetivos improdutivos, agravando ainda mais a situação fiscal. Dentre as razões para o pouco crédito público, o autor lista a estagnação das exportações e a impossibilidade do governo de aumentar a alíquota de imposto das importações, resultando em sérias dificuldades fiscais relacionadas à dívida externa. Portanto, devido à sua baixa confiabilidade, conseguir recursos nos mercados de capitais tornou-se bem difícil, fazendo-se “necessário apresentar projetos com perspectivas muito atrativas ou oferecer garantias de juros subscritas por quem tivesse o necessário crédito”. Como podemos perceber, para atrair capital estrangeiro, o pias deveria “retomar seu crescimento com seus próprios meios”. Contudo, como vimos no capítulo anterior, na primeira metade do século XIX, os produtos tradicionalmente exportados pelo país apresentavam preços com tendência declinante. O mercado de açúcar tornou-se menos promissor. A Europa era suprida pelo açúcar de beterraba, cuja produção se desenvolvera durante as guerras napoleônicas. A Inglaterra ainda tinha o açúcar fornecido pelas Antilhas. Os EUA, além de terem a produção de Louisiana, agora tinham a de Cuba, que tinha aberto seus portos a “todas as nações amigas” e contava com fretes extremamente baixos para a nação norte- americana. A situação do algodão era ainda pior, pois a produção norte-americana, integrada aos interesses ingleses, dominava totalmente o mercado — contando com fretes relativamente baixos, regime escravista com mão de obra abundante e terras de primeira qualidade. Quando a produção desse produto em larga escala passou a ser usada nos EUA, tornando-se a principal matéria-prima do comércio mundial, seu preço caiu para menos de ⅓. Assim, o que antes era um produto altamente rentável para o Brasil — sendo um dos fatores responsáveis pela prosperidade que o Maranhão viveu — passou a constituir apenas um complemento da economia de subsistência, com baixíssima rentabilidade, só tornando-se vantajoso novamente para o nosso país quando os EUA passam pela Guerra de Secessão. Os outros produtos — fumo, couro, arroz e cacau — eram menos relevantes, com mercados que inadmitiam grandes possibilidades de expansão. Analisemos o problema de cada um destes produtos: • Couro: a produção do rio da Prata nos prejudicava cada vez mais; • arroz: a produção norte-americana passava por fundamentais transformações nos métodos de cultivo, tornando a disputa pelo mercado ainda mais desigual; • fumo: após a eliminação do tráfico de escravos, perde-se o mercado africano, sendo necessário orientar o produto para outras regiões; • cacau: seu uso apenas começava a expandir-se, constituindo apenas uma esperança. Não dispondo de capital remanejável, nem crédito e com boa parte do estoque de mão de obra escrava — pouco mais de 2 milhões — estando imobilizada na indústria açucareira ou prestando serviços domésticos, o Brasil teria que basear sua expansão em produtos que tinham como fator básico a terra — o fator de produção mais abundante no país. Pela metade do século, esse produto já era definido: o café. O produto, que já era produzido desde o início do século XVIII para consumo local, passa a ter importância no fim desse século, quando seu preço aumenta, devido à desorganização de seu grande produtor: a colônia francesa no Haiti. No primeiro decênio após a independência, ela figura em terceiro lugar, representando 18% do valor das exportações do país — atrás do açúcar e do algodão —, assumindo a liderança nos dois decênios seguintes, representando 40% do valor das exportações. O desenvolvimento da produção de café — quando este passou a ser produto de exportação — se deu na região montanhosa próxima à capital do país, isso se deve à abundância de mão de obra disponível — resultante da desagregação da economia mineira — e à proximidade do porto. Ou seja, a primeira fase da expansão cafeeira se deu com base em recursos preexistentes e subutilizados. Não só o Brasil aproveitou a alta nos preços do café, a partir do último decênio do século XVIII, a produção cafeeira se expande em várias partes da América e da Ásia; consequentemente, os preços declinaram pelos anos 1830 e 1840. Contudo, essa baixa de preços, não desencorajou os produtores brasileiros, já que a produção do café utilizava recursos produtivos semi-ociosos desde a decadência da mineração. De modo que apesar de ter ocorrido uma redução de cerca de 40% no preço médio, entre 1821–30 e 1841–50, a quantidade exportada mais que quintuplicou. Durante o segundo e, principalmente, terceiro quarto do século XIX ocorre a gestação da economia cafeeira. Assim como o sistema açucareiro, a empresa cafeeira permite a utilização intensiva da mão de obra escrava; todavia, o sistema açucareiro apresenta um grau de capitalização muito menor, por não precisar de tanta reposição monetária — já que utiliza equipamentos mais simples, em geral, de fabricação local —, além de ter como principal fator a terra. Ou seja, seus custos monetários eram ainda menoresque o da empresa açucareira. Desta forma, havendo abundância de terras, somente um forte aumento nos preços da mão de obra poderia interromper o desenvolvimento da economia cafeeira. Como já salientado, em sua primeira etapa, havia abundância de mão de obra subutilizada por causa da desagregação da mineração, possibilitando seu intenso desenvolvimento, a despeito dos preços declinantes. Posteriormente, no terceiro quarto do século XIX, os preços voltaram a se recuperar amplamente, enquanto os do açúcar permaneciam baixos, provocando uma crescente transferência de mão de obra do norte para o sul do país. Atrelada à etapa de gestação da economia cafeeira, temos a formação de uma nova classe empresária — “que desempenhará papel fundamental no desenvolvimento subsequente do país” —, originada por homens da região, responsáveis pelo comércio de gêneros e de animais para o transporte desses, que abasteciam a população do Rio de Janeiro — principal mercado de consumo do país, devido à transferência da corte portuguesa. Com a transferência da corte portuguesa, tal comércio adquiriu certa importância na região, formando um grupo de empresários comerciais locais. Furtado salienta que muitos desses empresários, que acumularam capital com o comércio e transporte de gêneros e de café, “passaram a interessar-se pela produção deste, vindo a constituir a vanguarda da expansão cafeeira”. O processo de formação das classes dirigentes na economia açucareira e cafeeira foram fundamentalmente diferentes. Na economia açucareira, as fases produtiva e comercial — que era “monopólio de grupos situados em Portugal ou na Holanda” — estavam rigorosamente isoladas, com as decisões fundamentais tomadas a partir da etapa comercial, não podendo os dirigentes produtivos desenvolver uma consciência clara de seus próprios interesses. Com o tempo, estes foram perdendo sua verdadeira função econômica, que podia ser feita por feitores e outros empregados. Com isso, os dirigentes da economia açucareira acabaram involuindo numa classe de rentistas ociosos. Após a independência brasileira não houve modificações fundamentais nesse sistema, “permanecendo a etapa produtiva isolada e dirigida por homens de espírito puramente ruralista”. Isso explica a facilidade com que os interesses ingleses dominaram as atividades comerciais do Nordeste açucareiro. Já a economia cafeeira, como vimos, teve em sua vanguarda homens com experiência comercial. Deste modo, durante toda a etapa da gestação, os interesses produtivos e comerciais estavam entrelaçados, e a proximidade da capital do país constituía uma vantagem — governo como instrumento da ação econômica, isto é, a subordinação do instrumento político aos interesses dos cafeicultores (que alcança “sua plenitude com a conquista da autonomia estadual, ao proclamar-se a República”). Segundo Furtado, “a nova classe dirigente formou- se numa luta que se estende em uma frente ampla: aquisição de terras, recrutamento de mão de obra, organização e direção dá produção, transporte interno, comercialização nos portos, contatos oficiais, interferência na política financeira e econômica”. A descentralização do poder, com o advento da República, integrará ainda mais os dirigentes da empresa cafeeira e a maquinaria político-administrativa — que antes, exposta a demandas heterogêneas demais, era incapaz de atender os interesses locais com a devida prontidão ou eficiência. O controle sobre a máquina pública não é o que difere os dirigentes da economia cafeeira de outros grupos anteriores ou contemporâneos e sim a consciência clara de seus próprios — que os possibilita a utilizar tal controle em prol de “objetivos perfeitamente definidos de uma política”. Concluída a etapa de gestação, o país já podia se reintegrar ao comércio mundial, a economia cafeeira tinha condições de autofinanciar sua expansão e estava formada a nova classe dirigente que chefiaria tal expansão. Assim, restava solucionar o problema da mão de obra. CAPÍTULO XXI O PROBLEMA DA MÃO DE OBRA I Oferta interna potencial A que se deve o problema da mão de obra no Brasil do século XIX? Por que não foi usada a mão de obra interna livre na expansão da econômica deste período? Pela metade do século XIX, a mão de obra brasileira era constituída principalmente por escravos — que já não chegavam a 2 milhões. O censo demográfico de 1872 aponta que a taxa de mortalidade destes era maior que sua taxa de natalidade — indo na contramão do caso norte-americano, que apresentava elevada taxa de crescimento vegetativo da população escrava —, desta forma qualquer empreendimento brasileiro enfrentaria uma inelasticidade da oferta de trabalho. Apesar de os EUA e o Brasil terem começado o século XIX com aproximadamente 1 milhão de escravos cada, e os EUA terem importado muito menos escravos que o Brasil durante os primeiros 50 anos do século XIX — cerca de ⅓ —, ao iniciar-se a Guerra da Secessão, os EUA contava com um força de trabalho escrava de cerca 4 milhões, enquanto o Brasil possuía, na mesma época, em torno 1,5 milhão de escravos. Essa evolução diversa no estoque escravagista se deve às diferentes condições às quais os escravos eram submetidos nos dois países, enquanto os escravos brasileiros enfrentavam condições de vida extremamente precárias, os estadunidenses, em sua maioria, viviam em propriedades pequenas, com condições de alimentação e trabalho relativamente favoráveis — isso deriva, também, do fato de seu valor de mercado ser permanentemente crescente, auferindo renda aos seus proprietários com o incremento natural dos mesmos; enquanto no Brasil, a crescente importação destes em períodos diversos ocasionava o declínio de seu valor de mercado. Os escravos nascidos em solo norte-americano apresentavam vantagens “pois estavam culturalmente integrados nas comunidades de trabalho que eram as plantações, haviam sido melhor alimentados, já tinham o conhecimento da língua, etc.”. Com a proibição do tráfico negreiro nos EUA, apesar de certo contrabando ter persistido até 1860, bem como da ocorrência de grande expansão algodoeira nos novos estados do sul, a oferta de escravos passou a depender basicamente do crescimento da população escrava dos antigos estados escravistas. Já no Brasil, a crescente procura de escravos no sul para as plantações de café, intensificou o tráfico interno em detrimento das regiões que já estavam operando com rentabilidade reduzida, prejudicando principalmente “as decadentes regiões algodoeiras — particularmente o Maranhão —", enquanto “a região açucareira, mais bem capitalizada, defendeu-se melhor”. Além disso, com a redução do abastecimento de escravos e consequente elevação de seu preço, intensificou-se a utilização da mão de obra escrava já existente, aumentando o desgaste dessa população. Na Europa — que se industrializou no século XIX —, o crescimento econômico consistiu fundamentalmente numa revolução tecnológica, que desagregou o sistema pré-capitalista, formando — em sua fase inicial — um grande exército de mão de obra — suficiente para “alimentar o setor mecanizado em expansão e ainda exercer forte pressão sobre os salários” — e intensificou o processo de urbanização, facilitando a assistência médica e social, acarretando em um crescimento vegetativo — embora seja inegável a piora nas condições de vida da classe trabalhadora. Já no Brasil, o crescimento se dava puramente em extensão — ampliação da utilização do fator disponível, a terra — mediante a incorporação de mais mão de obra. Desta forma, o problema econômico brasileiro consistiaem como aumentar a oferta da mão de obra, dada a eliminação da “única fonte importante de imigração, que era a africana”. Embora houvesse a mão de obra da agricultura de subsistência, que mantinha um crescimento constante, além do seu recrutamento ser difícil por ser uma atividade dispersa — se estendendo do norte ao extremo sul do país —, ela é caracterizada por um estilo de vida, de organização social e de estruturação do poder político que a atavam “por vínculos sociais a um grupo, dentro do qual se cultivava a mística de fidelidade ao chefe como técnica de preservação do grupo social”. Assim, o roceiro estava intimamente ligado à propriedade onde estava sua roça, propriedade esta pertencente ao grande senhor detentor da terra — que exercia nesta atividades diversas, ao longo dos anos —, que cedia partes desta às famílias que queriam plantar para sua subsistência, tendo em contrapartida proteção em suas terras e a capacidade de poder recrutar tal mão de obra quando quisesse — quanto mais homens em sua terra, que este pudesse utilizar a qualquer momento e para qualquer fim, maior o seu prestígio. Furtado salienta que algumas regiões de maior concentração demográfica e características um tanto diversas se excetuavam, contudo, no geral, na economia de subsistência imperava a dispersão, provocando a necessidade de grande mobilização de recursos para o recrutamento dessa mão de obra. Para ele, tal recrutamento só seria possível se contasse com a cooperação da classe de grandes proprietários da terra. Todavia, dado seu já salientado estilo de vida, organização e de estruturação, isso dificilmente seria alcançado. Não somente o sistema de subsistência contava com uma potencial reserva de mão de obra, nas zonas urbanas havia se acumulado uma população sem ocupação permanente. As dificuldades, nesse caso, “eram de adaptação às disciplinas do trabalho agrícola e às condições de vida nas grandes fazendas”. As dificuldades de adaptação dessas duas grandes massas de reserva de força de trabalho corroboraram “para formar a opinião de que a mão de obra livre do país não servia para a ‘grande lavoura'”. Contribuindo para a não evolução da ideia de um amplo recrutamento interno com financiamento governamental. O problema de oferta de mão-de-obra era tão grave, no terceiro quarto do século XIX, que chegou- se a pensar na importação de mão-de-obra asiática em regime de semiescravidão, como nas Índias Ocidentais inglesas e holandesas, não tendo ocorrido nem mesmo a Mauá pensar numa solução melhor que essa. CAPÍTULO XXII O PROBLEMA DA MÃO DE OBRA II A imigração europeia Como surgiu o uso de mão de obra europeia para suprir à carência de mão de obra no Brasil? Como foi fomentada a imigração europeia para o trabalho nas grandes lavouras? Quais as consequências desta imigração? Como solução alternativa para sanar a escassez de mão de obra, sugeria- se incentivar a imigração europeia. Já antes da independência, por iniciativa governamental, houvera a instalação de colônias de imigrantes europeus. Todavia, tais colônias vegetavam, não contribuindo para o país e ainda constituindo custos às finanças brasileiras. Além disso, a intenção era aumentar a oferta de força de trabalho destinada à grande lavoura — denominação correspondente à plantation — e não haviam precedentes, no continente, de “imigração de origem europeia de mão de obra livre para trabalhar em grandes plantações”. Nos EUA, a imigração europeia não tinha tal objetivo, posto que seu problema foi solucionado pela manutenção do crescimento da oferta de escravos por meio da natalidade, e esses não trabalhavam em plantações de grande porte. A imigração de europeus para os EUA se deu de forma autônoma à oferta de mão de obra para as grandes plantações, embora estas estivessem interligadas. A expansão das plantações norte-americanas ocorreria mesmo sem essa forte imigração europeia, todavia esta aumentou a procura interna por algodão e barateou a oferta de alimentos, dando impulso a tal expansão. Além disso, a expansão das plantações explica a forte vinda de europeus para os EUA: 1. Enquanto o algodão era um produto volumoso, que ocupava grandes espaços nas embarcações — a madeira, produto ainda mais volumoso, também era muito exportada —, as manufaturas que os estadunidenses importavam apresentavam grande densidade econômica, favorecendo a baixa dos fretes de retorno da Europa para os EUA. Com essa baixa dos preços das passagens — em navios cargueiros e semicargueiros —, permitiu-se que se avolumasse de tal forma a emigração espontânea da Europa para os EUA. 2. O grande desenvolvimento das plantações do sul estadunidense — com o uso de trabalho escravo — conferia ao país um mercado interno em forte expansão, sendo assim o fundamento de sua atratividade para os europeus que queriam auferir maiores lucros com a venda de seus produtos. As colônias criadas no Brasil pelo governo imperial não tinham fundamentos econômicos: tinham como razão a crença na superioridade inata do trabalhador europeu, principalmente se as colônias eram formadas por imigrantes de países que não tinham colonizado o Brasil. Pagava-se transporte, gastos de instalação e promoviam-se obras públicas artificiais e com prolongamento absurdo para dar trabalho a tais colonos. E quase sempre, após tantos gastos, largava-se a colônia à própria sorte, que acabava por involuir para uma economia de subsistência. Um exemplo disto é a colônia alemã no Rio Grande do Sul que apresentava vida econômica precária devido à falta de mercado para escoar seu excedente produtivo — o que provocava o atrofiamento de seu setor monetário e consequente involução da divisão do trabalho, levando seu sistema econômico a regredir à subsistência. Com isso, formou-se na Europa um movimento de opinião contra a emigração para o império escravista da América, que creditava a forma primitiva de vida de tais colonos às leis inadequadas do país ou a outras razões dessa ordem. Assim, “já em 1859 se proibia a emigração alemã para o Brasil”. Para que tais colônias tivessem êxito e passassem a atrair imigrantes de forma espontânea, estas deveriam ter se dedicado imediatamente a atividades produtivas rentáveis, isto é, deveria ter-se integrado a colônia nas linhas de produção de um artigo de exportação ou na produção de um artigo que possuísse mercado no país. Como vimos, o Brasil se caracterizava por produção em grandes plantações, o que exigiria uma mobilização de capital inacessível aos colonos em sua etapa de instalação. Se estes decidissem se dedicar a plantar café, “teriam que concorrer com empresas que exploravam a mão de obra escrava”. Além disso, a classe dirigente da economia cafeeira — que tinha forte influência política — não teria interesse em subsidiar uma imigração que além de não contribuir para solucionar o problema de sua falta de mão de obra — percebendo a ineficiência da política de colonização do governo imperial para solucionar tal problema, a própria classe cafeeira passou a ser dedicar à solução do mesmo —, ainda viesse a concorrer consigo no mercado do café. Já “a possibilidade de produzir para o mercado interno dependia da expansão deste, e pressupunha o desenvolvimento da economia de exportação. Como a chave do problema das exportações era a oferta de mão de obra, retornava-se ao ponto de partida.” Em 1852, o senador Vergueiro, grande plantador de café, decidiu contratar diretamente europeus. Conseguindo financiamento do governo para o translado, transferiu 80 famílias de camponeses alemães para sua fazenda em Limeira. Isso despertouinteresse, e até 1857, mais de 2 mil pessoas foram transferidas, principalmente dos Estados alemães e da Suíça. A ideia era de que o imigrante vendia o seu trabalho futuro — para o pagamento da passagem da família —, como no caso dos colonos ingleses que foram para os EUA na época colonial, contudo, diferente desses, os imigrantes que vinham para o Brasil — através deste sistema — não tinham um tempo limite de servidão temporária fixado. “O Estado financiava a operação, o colono hipotecava seu futuro e o de sua família, e o fazendeiro tinha todas as vantagens.” O colono tinha um contrato com o fazendeiro de que não abandonaria a fazenda até pagar todas as suas dívidas. Em 1867 um observador alemão apresentou, à Sociedade Internacional de Emigração de Berlim, uma exposição em que demonstrava que os colonos emigrados para as fazendas de café no Brasil, eram na verdade submetidos a uma escravidão disfarçada. Tendo em vista a falha da forma anterior, a partir de 1860, quando o problema da mão de obra agravou-se — pois a Guerra da Secessão provocou enorme alta nos preços do algodão, estimulando sua plantação no norte do país, por consequência, restringindo o tráfico interno de escravos do norte para o sul do Brasil — e a melhora do preço do café tornou ainda mais atrativa a expansão de tal cultura, “introduziu-se um sistema misto pelo qual o colono tinha garantida a parte principal de sua renda”. Este tinha como tarefa cuidar de um certo número de pés de café, e recebia um salário monetário anual, que era completado por outro variável, pago no momento da colheita, em função do volume da mesma. Ainda restava a se resolver o problema do custeio da passagem: • se esta ficasse por conta do colono, ele teria o temor de que sua liberdade futura estava comprometida; • se os fazendeiros de café a tivessem que custear, somente os mais ricos poderiam promover a imigração; além disso, a impossibilidade de obrigar o colono a permanecer em suas terras, “resultaria que uns pagariam o transporte do imigrante que serviria a outros”. Como solução, a partir de 1870, o governo imperial ficou responsável por todos os gastos do transporte dos imigrantes, enquanto ao fazendeiro cabia cobrir os gastos do imigrante durante seu primeiro ano de atividade — etapa de maturação de seu trabalho. Além disso, era concedida uma terra ao colono para que cultivasse os gêneros de primeira necessidade para a manutenção de sua família. Esse conjunto de medidas tornou possível, pela primeira vez, uma volumosa corrente imigratória europeia com destino à América para trabalhar grandes plantações. Durante o mesmo período, ocorria a unificação política da Itália. A região do sul — de menor grau de desenvolvimento e mais baixa produtividade agrícola — encontrou-se em grande dificuldade, por não conseguir competir com as regiões mais desenvolvidas do norte, criando uma situação de depressão que facilitaria a imigração, possibilitando a expansão da produção cafeeira no Estado de São Paulo — que recebeu, no último quarto do século XIX, 803 mil imigrantes europeus, sendo 577 mil provenientes da Itália. CAPÍTULO XXIII O PROBLEMA DA MÃO DE OBRA III Transumância amazônica O que foi a transumância amazônica? Que condições a provocaram e quais foram suas consequências? A economia amazônica sofreu forte recessão desde o final do século XVIII com a desarticulação do sistema de exploração de mão-de-obra indígena instalado pelos jesuítas. Dentre as especiarias cultivadas na região, o cacau continuava sendo a mais importante, embora não tivesse a maior significação econômica. A quase inexistência de população local dificultava o cultivo de outros produtos. Entre 1875 e 1910, ocorreu uma grande migração da região nordestina para a região amazônica. À essa época, a borracha transformara-se em uma matéria- prima de crescente procura no mercado mundial. A indústria de veículos terrestres a motor de combustão interna configurara-se no principal fator dinâmico das economias industrializadas ao longo do último decênio do século XIX e os três primeiros do século XX. Dado que a borracha é um produto extrativo, cujas árvores se concentravam na bacia amazônica, atender à crescente demanda mundial pela borracha configurou- se em um verdadeiro desafio. A longo prazo, poder-se-ia expandir sua produção plantando árvores que produzissem a matéria-prima da borracha em outras regiões de clima similar, onde houvesse adequado suprimento de mão de obra e recursos para financiar o seu longo período de gestação. Contudo, a rápida expansão de sua demanda nos países industrializados, em fins do século XIX, exigia uma solução a curto prazo. A evolução da economia mundial da borracha é marcada por duas fases: • solução de emergência para o problema da oferta do produto extrativo; • solução definitiva com a organização da produção em bases racionais, permitindo que a oferta adquira a elasticidade requerida pela rápida expansão da demanda mundial. A primeira fase da economia da borracha — marcada por preços crescentemente elevados, até a introdução da produção oriental, após a Primeira Guerra Mundial, e consequente redução permanente dos preços — se desenvolve na região amazônica e é marcada pelas dificuldades apresentadas pelo meio. O aumento de produção se deu com um influxo de mão-de-obra, já que os métodos de produção em nada se modificaram. O aumento de mão-de- obra na região amazônica foi tal, que se leva a crer que caso a economia cafeeira não tivesse como solução a imigração europeia, teria encontrado sua solução dentro do próprio pais. Porém, como se voltou para a mão-de-obra europeia, “deixou disponível o excedente da população nordestina para a expansão da produção da borracha”. Segundo censos de 1872 e 1900, a população nos estados do Pará e Amazonas duplicou de 329 mil para 695 mil habitantes. A população nordestina, desde o primeiro século da colonização, estava ocupadas em dois sistemas econômicos: o açucareiro e o pecuário. Após o declínio da economia açucareira, houve uma progressiva transformação da pecuária nordestina, que passou a ser uma produção de subsistência. Nesse tipo de produção, a população cresce em função da disponibilidade de alimentos/terra. Na região sul, havia uma favorável disponibilidade de terras de boa qualidade — possibilitando “um suprimento mais que adequado de alimentos, mesmo em um nível baixo de técnica agrícola”, e por conseguinte, um enorme crescimento demográfico vegetativo. Na central — onde florescia a mineração —, nem tanto, ocasionando uma migração em direção ao atual estado de São Paulo e outra em direção às terras bem irrigadas do Triângulo Mineiro. Segundo Furtado, a vanguarda desses movimentos populacionais — exceto nas regiões de colônias — era formada por “indivíduos de iniciativa e com algum capital que logo se apropriavam de grandes extensões de terras, cujo usufruto, entretanto, era compartilhado por muitos outros em um sistema de economia de subsistência”. O Nordeste, após passar por fase de prosperidade (Guerra de Secessão), enfrentou um longo período de seca, entre 1877 e 1870, no qual desapareceu quase todo o rebanho da região e pereceram de 100 a 200 mil pessoas. Com isso, foi promovida — pelo movimento de ajuda às populações vitimadas — a emigração para outras regiões, principalmente a amazônica, cujo recrutamento foi facilitado pela concentração populacional nas cidades litorâneas. Enquanto os grupos dominantes da economia nordestina — que “viam na saída da mão de obra a perda de sua principal fonte de riqueza”— tinham sua reação dificultada pelas condições de miséria predominantes; os governos dos estados amazônicos aproveitaram a corrente transumante já iniciada, promovendo propagandas e subsídios para o transporte, formando assim a grande corrente migratória que tornou possível a expansão da produção de borracha na região amazônica, “permitindo à economia mundial preparar-se para uma solução definitiva do problema”. Enquanto o imigrante europeu chegava aos cafezais com todos os gastos pagos, residência garantida, gastos de manutenção assegurados durante a maturação de seu trabalho, terra para plantar os alimentos para sua família, etc.; possibilitando que este, ao final do ano, pudesse buscar outra fazenda em que lhe oferecessem alguma vantagem. A condição de vida do nordestino na região amazônica era extremamente precária. O imigrante nordestino — seduzido pelas fantasiosas propagandas dos agentes pagos pelos interesses da borracha ou pelos poucos exemplos daqueles que retornaram enriquecidos — já chegava na região endividado pelos custos do transporte, instrumentos de trabalho, entre outras despesas, e endividava-se ainda mais pois tinha que comprar seu alimento com preços exorbitantes, em regime de monopólio realizado pelo próprio empresário que o contratou. Este acabava reduzido à um regime de servidão — dado seu isolamento e a precariedade de sua situação financeira —, vivendo em cabanas rudimentares e trabalhando em meio insalubre e perigoso. Quando o preço da borracha se reduziu de forma permanente, rapidamente a população imigrante se viu em condições ainda piores do que em sua região de origem, em um ambiente que não possibilitava outro sistema de produção com alguma rentabilidade e sem condições de arcar com seu retorno, tendo que complementar seu orçamento com recursos locais de caça e pesca, “regredindo à forma mais primitiva de economia de subsistência, que é a do homem que vive na floresta tropical, e que pode ser aferida por sua baixíssima taxa de reprodução”. Assim, fora as consequências políticas — criação do território do Acre — e o enriquecimento de um pequeno grupo, a grande transumância amazônica “consistiu basicamente em um enorme desgaste humano em uma etapa em que o problema fundamental da economia brasileira era aumentar a oferta de mão de obra”. CAPÍTULO XXIV O PROBLEMA DA MÃO DE OBRA IV Eliminação do trabalho escravo Como a abolição da escravatura se refletiu no problema da mão de obra brasileira? Quais os desdobramentos da abolição — suas consequências econômicas e sociais? Como a antiga escravidão se refletiu na vida dos descendentes pós abolição? Já vimos como o problema da mão de obra foi resolvido nas duas regiões em rápida expansão econômica — o planalto paulista e a bacia amazônica. Agora trataremos de outro aspecto deste problema: a "questão do trabalho servil" ou o fim da escravidão. Mesmo no século XX, muitos ainda viam os escravos como “riqueza”, considerando que abolição da escravatura provocaria o empobrecimento do setor responsável pela criação de riqueza no país. Contrariamente, outros acreditavam que a abolição traria uma “liberação” de vultuosos capitais, antes gastos com os escravos — capitais antes imobilizados nestes ou gastos com sua comercialização. Contudo, semelhantemente a uma reforma agrária, a abolição da escravatura constituí, em si, apenas “uma redistribuição da propriedade dentro de uma coletividade” — a propriedade da força de trabalho deixa de ser um ativo ao passar do senhor de escravos para o indivíduo. Do ponto de vista econômico, a abolição acarretaria modificações na forma de organização da produção, no grau de utilização dos fatores, na distribuição da renda e na utilização final dessa renda. Podemos analisar dois cenários opostos ligados à abolição da escravatura: • No primeiro não há disponibilidade de terras para os escravos ou chance de emigração, com a abolição limitando-se a “uma transformação formal dos escravos em assalariados”, não provocando quaisquer modificações na organização da produção ou na distribuição da renda — como o ocorrido em algumas ilhas das Antilhas inglesas, onde os ex-escravos passaram a receber um salário monetário fixado pelo nível de subsistência que refletia as condições de vida destes enquanto escravos. • No segundo, a oferta de terra é totalmente elástica, provocando enormes modificações na estrutura de produção, redução no grau de utilização dos fatores e na rentabilidade do sistema, com os ex-escravos abandonando as antigas plantações e passando a dedicarem-se à agricultura de subsistência. Ou, ainda nesse cenário, os empresários ofertariam salários suficientemente altos para reter os antigos empresários como assalariados, ocasionando “uma redistribuição da renda em favor da mão de obra”. No Brasil, “a região açucareira aproximou-se mais do primeiro caso e a cafeeira mais do segundo”. Na região nordestina, na época da abolição, já havia se dado a ocupação praticamente total das terras de utilização agrícola mais fácil. Com efeito, os escravos que eram liberados e saíam dos engenhos encontravam grandes dificuldades para sobreviver. Nas regiões urbanas já havia um excedente populacional que se tornara um problema social desde o começo do século. No interior a economia de subsistência já se expandira por onde fosse possível, se alastrando até às terras semi-áridas do agreste e da caatinga. Tais barreiras limitavam a mobilidade dos ex-escravos, que partiam de engenho para engenho, com apenas poucos tendo saído da região. Por isso, não foi difícil atrair e fixar os ex-escravos mediante um salário relativamente baixo. Tanto as inovações técnicas da indústria açucareira — sob o abrigo de “uma lei autorizando o governo imperial a dar garantia de juros a capitais estrangeiros invertidos na indústria açucareira até o montante de 3 milhões de libras” —, no último decênio antes da abolição, quanto a dificuldade de exportação — devido à libertação política de Cuba que possibilitou enormes vantagens ao comércio desta com os EUA — fizeram reduzir a procura por mão-de-obra. Assim, não houve modificações significativas na distribuição de renda ou sobre a utilização dos recursos com a contração da oferta, provocada pela abolição. Na região cafeeira, nas zonas que tinham por base o trabalho escravo — nas províncias que hoje constituem os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e, em pequena escala, em São Paulo —, houve rápida destruição da fertilidade das terras ocupadas na primeira expansão do café — nas regiões montanhosas erodíveis — e com “a possibilidade de utilização de terras a maior distância com a introdução da estrada de ferro”, tais zonas já se encontravam em situação desfavorável, para tal cultivo antes da abolição. Desta forma, se esperaria que ao proclamar-se a abolição, ocorresse migração de mão-de-obra em direção às novas regiões em rápida expansão, que podiam pagar salários mais altos. Porém, essa foi a mesma época do grande fluxo de imigração europeia para São Paulo. A despeito das “vantagens que apresentava o trabalhador europeu com respeito ao ex-escravo”, a situação destes foi muito mais favorável do que na região açucareira nordestina. A grande quantidade de terras permitia ao escravo poder viver de subsistência. A dispersão, no entanto, foi menor do que a esperada, provavelmente por motivos de caráter social. Devido a tais condições favoráveis aos ex-escravos, para reter a força de trabalho, foi necessário oferecer salários maiores. Desta forma, tudo indica que a abolição na regiãocafeeira provocou uma efetiva redistribuição de renda em favor da mão-de-obra. Porém, como o escravo normalmente não respondia a estímulos econômicos — ele via o trabalho como maldição e o ócio como bem inalcançável —, a elevação do salário acima de suas necessidades determinou uma preferência pelo ócio. Dessa forma, reduziu-se o grau de utilização da força de trabalho. Esse problema se deve aos aspectos sociais da forma de vida à qual o escravo estava submetido antes da abolição — sem o conceito enraizado de família ou acumulação de riqueza, acostumado a viver no nível de subsistência —, e acabará por provocar a sua segregação parcial, “retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país”. Assim, durante toda a primeira metade do século XX, os descendentes dos ex-escravos continuarão vivendo dentro de “seu limitado sistema de ‘necessidades', cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformações econômicas do país”. Abolida a escravidão, de um ponto de vista amplo, praticamente em nenhum lugar houve significativa mudança na forma de organização da produção e na distribuição de renda, alterando-se apenas o sistema regional de poder formado na época colonial e cuja perpetuação “constituía um fator de entorpecimento do desenvolvimento econômico do país”. CAPÍTULO XXV NÍVEL DE RENDA E RITMO DE CRESCIMENTO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX Qual teria sido o aumento conjunto da renda gerada e o nível de crescimento no território brasileiro no correr desse meio século? E no âmbito regional? Quais as consequências deste crescimento? Em conjunto, a economia brasileira alcançou taxa alta de crescimento na segunda metade do século XIX, tendo como responsável o comércio exterior. Comparando-se os valores médios de 1791–1800 com os de 1841–50, nota-se um aumento de 214% nas exportações, acompanhado de uma elevação de 46% no preço dos produtos exportados e uma redução de 8% no preço dos produtos importados, ocasionando uma melhora de 58% na relação de preços do intercâmbio — significando um incremento de 396% na renda real gerada pelo setor exportador. Porém, esse desenvolvimento não alcançou todo o pais: sendo a economia cafeeira a principal responsável por esse desenvolvimento, a região onde se encontrava foi a mais beneficiada. Podemos denotar isto ao analisarmos os produtos de exportação mais expressivos no Nordeste: a quantidade de açúcar exportado cresceu apenas 33%, com queda de 11% no preço médio, e a de algodão, 43%, com aumento de 32% no preço; e a renda real gerada conjuntamente, por esses dois produtos, aumentou somente 54% no mesmo período. Assim, no tocante à análise do comportamento da renda real, nessa época, convém dividir a economia brasileira em três setores principais: 1. Economia açucareira e algodoeira (e a economia de subsistência a elas ligada — de forma cada vez mais fraca): Formado pela faixa que se estende do Maranhão até Sergipe — “exclui-se a Bahia pelo fato de que sua economia foi profundamente modificada durante essa etapa pelo advento do cacau” —, tal setor representava — em 1872 — ⅓ da população do país — chegando quase à metade desta se acrescentássemos a população baiana. Os dados indicam um aumento populacional anual, de 1872 a 1900, de 1,2%. Aplicando-se a mesma taxa para o período que estamos considerando (1851–1900), obtém-se um incremento demográfico de 80%, bem superior ao da renda real gerada pelo setor exportador (54%). Considerando-se que a região nordestina era composta por dois sistemas — litorâneo (exportador) e mediterrâneo (subsistência) — pode-se admitir que a população de ambos os sistemas cresceram com igual intensidade, e que com a queda substancial da renda per capita do sistema exportador, houve transferência da população litorânea para o setor de subsistência — cuja renda permaneceu estável —, causando uma queda na renda média da região, já que a subsistência era menos produtiva. Desta forma, para se evitar a queda da renda per capita, fazia-se necessário aumentar a produtividade da subsistência, o que é uma hipótese inadmissível — devido à já enorme “pressão demográfica sobre as terras agricolamente aproveitáveis da região” na época. Com isso, admite-se a queda da renda per capita deste setor, embora não seja possível quantificá-lo precisamente. 2. Economia (principalmente) de subsistência do Sul: A produção de subsistência do sul foi indiretamente beneficiada pela expansão das exportações. Encontrando um mercado interno capaz de absorver seus excedentes, alguns setores desta economia conseguiram expandir a faixa monetária de suas atividades produtivas. No Paraná, por exemplo, a grande expansão da produção de erva-mate para exportação possibilitou aos colonos que se encontravam mais no interior aumentar significativamente sua renda dividindo “seu tempo entre a agricultura de subsistência e a extração de folhas de erva-mate”, já os colonos mais próximos do litoral aproveitaram a expansão do mercado urbano. No Rio Grande do Sul, o impulso dinâmico se deu através da pecuária, que passou a exportar sua produção para o mercado interno do país, reintegrando a pecuária riograndense na economia brasileira. Assim, a região das colônias se beneficiou diretamente — colocando alguns produtos de qualidade à venda, como vinhos e banha de porco — e indiretamente — com a expansão urbana do estado, possibilitada pelo aumento da produtividade de seu principal setor exportador. A região sulina teve um aumento anual populacional de 3%, com crescimento total de 332% no período analisado e, ao contrário da região nordestina, houve nesta um aumento significativo da renda per capita, promovido pelo aumento de produtividade econômica média da região. 3. Economia Cafeeira: A região cafeeira era constituída pelo estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Conjuntamente, sua população apresentou um crescimento anual de 2,2%, entre 1872 e 1900. Contudo, houve, nessa região, grandes movimentos demográficos internos — devido à transferência de mão- de-obra de regiões de mais baixa produtividade, bem como da economia de subsistência (oposto ao ocorrido no Nordeste). Assim, enquanto a população do Rio de Janeiro e Minas Gerais — antigos produtores — se expande com relativa lentidão (taxa de 1,6%); a população do Espírito Santo e São Paulo — que se integram à produção cafeeira no último quarto do século — “apresenta a taxa extraordinariamente elevada de 3,6%”. A rápida expansão do mercado interno na economia cafeeira beneficiou a produtividade do setor de subsistência, concentrado principalmente em Minas Gerais. Levando-se em conta o aumento populacional e considerando-se que a renda real per capita conjunta da região não estaria crescendo com ritmo inferior ao do setor exportador — e sabendo que o volume de café exportado aumentou 341% e seus preços 91%, entre os anos 1840 e o 1900, de tal forma que a renda real gerada pela exportação do café crescia a uma taxa anual de 4,5% — “a taxa de aumento anual da renda real per capita seria de 2,3%”. QUADRO SINTÉTICO: Setor Região Aumento Demográfico Anual Produtividade média da região Renda real per capita Economia açucareira e algodoeira (e a economia de subsistência a elas ligada) Nordeste, exceto Bahia 1,2% Reduziu-se com a população partindo dos setores mais produtivos, no litoral, para a economia de subsistência, no interior. Caiu com o declínio dos setores exportadores e transferência da mão de obra para os setores de subsistência.Magnitude: - 0,6% a.a. Economia (principalmente) de subsistência do Sul Sul 3% Aumentou com o aumento da produtividade do setor de subsistência — que passou a exportar para outras regiões do país — e a venda de produtos de qualidade. Elevou-se com o aumento de produtividade econômica média da região. Magnitude: cerca de 1% a.a. Economia cafeeira Sudeste 2,2% (1,6% em RJ e MG e 3,6% em ES e SP) Aumentou com a expansão da exportação de café e crescimento da produtividade do setor de subsistência. Cresceu com o incremento da exportação cafeeira e aumento relativo da importância do setor de subsistência. A renda real gerada pela exportação de café aumentou 4,5% anualmente e a renda real conjunta da região elevou-se 2,3% ao ano. Duas regiões de importância econômica ficaram de fora desses três sistemas mencionados: • Bahia (com 13% da população brasileira em 1872) — Foi onde se iniciou a produção de cacau, para fins de exportação, na segunda metade do século XIX. Contudo, a importância desse produto, ao fim do século XIX, ainda era pequena, correspondendo a apenas 1,5% do valor das exportações do país 1890. Porém, outro produto tradicional da exportação baiana, o fumo, tinha sua importância aumentada no mesmo período, encontrando mercado crescente na Europa — o volume exportado cresceu 361% e os preços médios subiram 41% entre os anos quarenta e os noventa. Conjuntamente, o valor médio das exportações destes dois produtos exportações aumentou de 151 mil para 1.057.000 libras, no meio século referido — todavia sua exportação per capita foi inferior à nordestina. O desenvolvimento baiano foi entorpecido pela ação profunda de fatores similares aos que atuaram no Nordeste. Porém, mesmo com o fluxo imigratório — principalmente de emigrantes nordestinos — para a região cacaueira, a população baiana cresceu a uma taxa superior à do resto da região nordestina (1,5%), indicando “que sua renda real evoluiu menos desfavoravelmente”. • Amazônia (com 3% da população brasileira em 1872) — Ao final do século XIX, a borracha teve sua importância aumentada, com sua participação no valor total das exportações brasileiras passando de 0,4% para 15% nos anos noventa. Grande parte da renda gerada pela borracha não era revertida à região, e a parte que era revertida, era (principalmente) liquidada em importações. A grosso modo, podemos admitir que a região nordestina foi a única na qual houve uma diminuição da renda per capita (- 0,6% anualmente), muito embora a renda absoluta do setor exportador local tenha aumentado 54%. Na Bahia, devido ao equilibro de forças — entre expansão das exportações e crescimento demográfico —, a renda per capita foi mantida. No sul aumentou cerca de 1% ao ano e na região cafeeira, 2,3%. Quanto à Amazônia, é possível dizer que o crescimento absoluto da renda desta alcançou o dobro da intensidade da região cafeeira, embora não tenha sido revertida à região. Desta forma, a renda real brasileira, na segunda metade do século XIX, teria crescido 3,5% ao ano, enquanto sua renda per capita cresceu a taxas anuais de 1,5% — superior à estadunidense no mesmo período, contudo os EUA mantiveram um ritmo de crescimento que vinha desde o último quarto do século XVIII, enquanto o Brasil iniciou esta etapa de crescimento “após ¾ de século de estagnação e provavelmente de retrocesso em sua renda per capita”. Partindo do pressuposto de que na metade do século XIX a renda per capita da população brasileira dificilmente alcançaria 50 dólares (de poder aquisitivo atual), com um incremento anual de 1,5%, “obtém-se uma renda da ordem de 106 dólares ao término do século”. Se aplicarmos “a mesma taxa à primeira metade do século XX, obtém-se para 1950 uma renda de 224 dólares, a qual se aproxima muito das estimativas existentes para esse ano”, indicando uma taxa de crescimento estável neste período. Se a economia não tivesse passado pelo referido período de estagnação, mantendo sua taxa de crescimento da renda per capita em 1,5% desde a metade do século XVIII, partindo dos 50 dólares chegar-se-ia, em 1950, a 500 dólares de renda per capita, “isto é, comparável à média dos países da Europa Ocidental, nesse ano”. Ou seja, o atraso relativo economia brasileira na etapa atual deve-se ao retrocesso ocorrido nos ¾ de século anteriores a 1850, quando este não conseguiu se reintegrar às “correntes em expansão do comércio mundial durante essa etapa de rápida transformação das estruturas econômicas dos países mais avançados”, tendo como resultado a criação de profundas diferenças entre seu sistema econômico e os daqueles países. CAPÍTULO XXVI O FLUXO DE RENDA NA ECONOMIA DE TRABALHO ASSALARIADO Como se deu o fluxo de renda na economia de trabalho assalariado? O aumento da importância do setor assalariado foi o maior destaque da economia brasileira no último quarto do século XIX. Ao contrário da expansão anterior, feita através do setor escravista, a nova expansão tem lugar no setor que se baseia no trabalho assalariado. Esse sistema [assalariado] apresenta profundas diferenças em relação ao sistema de subsistência. Enquanto a economia de subsistência mantinha-se estável com uma implacável imutabilidade, quer no crescimento ou na decadência; o sistema assalariado apresenta dinâmica distinta. Em conjunto, a nova economia cafeeira baseada em trabalho assalariado apresenta semelhanças com a economia escravista: está dividida numa multiplicidade de unidades produtivas interligadas às correntes de comércio exterior. Porém, são profundas as diferenças. A renda bruta da unidade produtiva é dividida, a grosso modo, em dois grupos: a renda dos trabalhadores assalariados e a renda dos proprietários. Enquanto a maior parte da renda dos trabalhadores é investida em bens de consumo, os proprietários — “cujo nível de consumo é muito superior” — guardam parte de seus rendimentos a fim de aumentar o próprio capital. O crescimento da mão-de-obra assalariada propulsiona o crescimento das atividades econômicas ligadas aos bens de consumo vendidos à classe assalariada. Tal estava sujeito ao aumento do impulso externo — tornando possível a contratação de mais trabalhadores e o aquecimento do mercado de bens de consumo. Além disso, os gastos de consumo constituem a renda dos pequenos comerciantes, vendedores, etc., que por sua vez também a transformam em gastos de consumo. Dessa forma, a soma de todos esses gastos deverá exceder a renda monetária criada pela atividade exportadora. Supondo que haja um aumento do impulso externo, cresce a massa de salários pagos, aumentando a procura de artigos de consumo, cuja produção pode ser expandida com relativa facilidade — devido à existência de mão-de-obra e terras subutilizadas oriunda, principalmente, de regiões onde predomina a atividade de subsistência. Ou seja, um aumento do impulso externo causa, num setor econômico organizado à base de trabalho assalariado, uma melhor utilização de fatores já existentes no país. O aumento da produtividade — o efeito secundário — manifesta-se fora da unidade produtora-exportadora. Desta maneira, a massa de salários no setor de exportação vem a configurar o núcleo da economia de mercado interno. Contudo, ainda que a economia interna seja propiciada pelo impulso das exportações, a economia interna se encontra em condições de crescer mais aceleradamente do que a economia de exportação. O impulso externo de crescimento se dá, normalmente, sob forma de elevação nos preços dos produtos exportados
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