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Sociologia do Direito - Livro - Sociologia do Direito, de Nelson Saldanha - Fragmentos

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Trechos do Livro Sociologia do Direito, de Nelson Saldanha; 5ª edição; editora Renovar; Rio de Janeiro; 2003
Páginas 58/59:
[...] O saber jurídico, desde séculos, vem exibindo traços culturais peculiares, em evidente paralelo com coordenadas históricas.
O problema consiste, basicamente, em reconhecer que o estudo do Direito está inserido em padrões culturais, e que as idéias e a terminologia que integram o saber jurídico vivem e mudam em ligação com condições histórico-sociais.
Página 64:
[...] Como foi dito, a ênfase sobre determinadas áreas do Direito pode depender de inclinações pessoais, ou então de tendências epocais. Em relação com isso se situam certos “tipos” de pensamento jurídico, como os que Carl Schmitt distinguiu: o ordinalista, o normativista e o decisionista, para cada um dos quais há motivações sociológicas próprias – motivações que, é certo, são também lateralmente psicológicas e culturais. Em determinadas épocas o trabalho jurídico é rotinizado e tranqüilo, noutras instável e revolvido. A Weltanschauung do jurista se acha, em cada geração, vinculada a padrões vigentes e a compromissos vitais. [...]
Páginas 79/...:
[...] É transparente que do ponto de vista sociológico só se pode entender o funcionamento dos sistemas jurídicos entendendo sua conexão com condições concretas, sobretudo com o tipo de organização genérica designado como “estrutura social”. E também de outros pontos de vista, o histórico e o filosófico, por exemplo, o entendimento integral do fenômeno jurídico requer uma olhada a este tema: afinal o “fenômeno social” é o quadro maior ao qual o jurídico corresponde como parte. Havendo porém, como há, uma certa reversibilidade de perspectivas, pode-se acentuar que, assim como a compreensão de um sistema jurídico pede a compreensão da sua relação com dada estrutura social, também a compreensão da estrutura social requer o estudo da ordem jurídica respectiva. É aliás o que afirma, como antropólogo, Radcliff-Brown.
Ao lado do conceito de estrutura, como um complemento, podemos usar o conceito de processo social, conceito igualmente genérico e indicador de diversas espécies de ação ou mutação social. Há processos de maior e menor amplitude, de maior e menor lentidão. A chamada mudança social interessa ao estudo do Direito, por exemplo, na medida em que acarreta alterações adaptativas no ordenamento; as revoluções, que geralmente juntam amplitude e brusquidade, interessam como inovadoras drásticas e portadoras de ideais novos, daí poderem ser vistas por alguns como “fontes” de Direito em sentido sociológico. Está claro que os processos compatíveis com a ordem social estabelecida correspondem ao tipo de reformas “previsíveis” dentro da ordem jurídica, de modo que a ocorrência de reformas inteiramente imprevisíveis dos quadros vigentes tem de ocorrer em conjunto com processos inovadores do tipo revolucionário, ou seja: processos que por princípio invertem e reinstauram estruturas. Os processos sociológicos de adaptação (e mesmo os de conflito – para usar terminologia comum – em grau normal) correspondem à manutenção de sistemas jurídicos, estáveis ou instáveis que se encontrem.
Estratificação e Direito
Tornou-se óbvio, sobretudo depois da teoria social do século dezenove, que o direito se encaixa, como ordem sistemática, num regime de classe. À doutrina marxista coube dar ao tema ênfases maiores e inspirar debates mais amplos; outras doutrinas, porém, vieram admitindo o fato. A existência, em todos os tipos de sociedades evoluídas, de camadas sociais foi reconhecida, e o problema da estratificação veio sendo reiteradamente estudado, quer pela ótica economicista quer pelo relativismo cultural; quer pelo dualismo marxista quer pelo pluralismo típico dos pesquisadores acadêmicos norte-americanos, que dividiram as camadas dentro das áreas de pesquisa já entendendo as classes como duas, já respeitando a tríade clássica (alta, média e baixa), e aceitando ou não a idéia das classes como necessidade inextirpável, todos vieram tornando o tema em tema central da Sociologia. Discutiu-se o condicionamento da gênese e da persistência das hierarquias sociais (econômico? religioso?). distinguiu-se entre classes e castas, e entre classes e estamentos ou outros conceitos similares, com o nome de Max Weber sempre citado a propósito. Hoje aceita-se geralmente e sem maiores resistências que os Códigos, os princípios, as instituições, que são ou fazem o Direito, são criações de grupos dominantes, o que entretanto não autoriza a afirmar que são apenas isso, que seu sentido se reduz ao de “instrumentos” de dominação.
De resto, a forma ou a medida em que a dominação social vigente se reflete na ordem jurídica varia conforme áreas de cultura e épocas históricas: a Lei das Doze Tábuas, em Roma, revelou a subida de uma classe em substituição à nobreza primitiva, um tanto como no caso das leis de Sólon em Atenas; as revoluções burguesas (a francesa com bastante tipicidade) puseram legislações peculiares, mas no Direito Público a influência revolucionária – na França exemplarmente – se expressou mais que no privado. De qualquer sorte, a sociedade liberal inclui ao menos formalmente, na ordem jurídica, o princípio da igualdade, correlato do da livre iniciativa, malgré tout.
O reflexo das dominações no Direito varia enfim segundo o tipo de sociedade. Este se revela pela forma vigente de estratificação, e condiciona um tipo de ordem jurídica. Uma coisa, portanto, é ver o Direito bramânico antigo, ligado a uma hierarquia oficial de castas, rígida e criadora de diferenças sociais extremas; outra é considerar o direito das sociedades modernas, onde as desigualdades concretas afetam a aplicação do direito mas por trás de uma certa igualdade formal “de princípio”, que caracteriza o sistema. Neste último caso, temos uma sociedade basicamente dotada de mobilidade “vertical”, organizada como de democracia política e provida de mentalidade flexível: o que mostra que não é puramente através da forma do ordenamento que a dominação de classe e as estruturas sociais aparecem no Direito, mas também pela ordem política, que é distribuição de poder e de competências.
Cabe e importa ainda anotar, neste tópico, que também o conhecimento do Direito se acha desigualmente repartido. Já Menger observava que de modo geral as classes altas têm mais conhecimento das normas jurídicas do que as baixas, cuja vida jurídica se regula “ao acaso”. Por sinal Beccaria, na “Introdução” de seu Dei Delitti e delle Pene, tinha dito, ao denunciar os erros seculares dos sistemas judiciários, que as leis são sempre, ou vinham sendo, “instrumento das paixões de uns poucos”.
Quando um homem comum aconselha outro a “procurar seus direitos”, move-o apenas uma intuição formada um pouco pela idéia do certo e do errado, um pouco pela experiência própria ou alheia, por ouvir contar e comentar resultados de questões. Trata-se de um conhecimento empírico no sentido mais elementar, porém existencial, do termo.
Outro problema é o do alegado caráter “conservadorista” do Direito. O Direito repete a organização social, ou antes participa dela, de sua formação e transformação? [...]
Direito e Poder
[...] As formas de organização da vida social são formas de distribuição do poder. O poder promove e sustenta a própria organização social, seja qual for o padrão e a medida de “coatividade” que nela exista. Os “tipos de poder” consignados em certas classificações indicam, simultaneamente, modos pelos quais se fundamenta o poder e modos pelos quais o poder se exerce. Isto pode ser aplicado inclusive à mais prestigiosa das tipologias, a de Max Weber – que é antes tipologia das formas de “dominação” que das do poder mesmo – que diferencia a dominação carismática, a tradicional e a racional. A cada uma delas corresponde uma forma de vida jurídica, particularmente à tradicional e à racional que respectivamente se relacionam, no mundo Ocidental, com o feudalismo e a época moderna, ou seja, com o Direito feudal, cheio de variaçõeslocais, e com o Direito burguês, sistematizado, codificado e racionalizado dentro deste esquema de Weber, aliás, se encontram as bases do estudo da burocracia e de suas formas, provindas em geral de processos de rotinização do domínio.
A relação entre o poder e o Direito, “dentro” da ordem social, tem sido encarada de diversas maneiras. Como não se concebe o Direito sem o poder, pois todo ordenamento jurídico (inclusive ao ser forma de controle social) precisa se impor sobre seus destinatários, diz-se então que o Direito inclui o poder; mas o poder existe na vida histórica com bastante autonomia, e dele, ou de manifestações suas, surgiu muitas vezes a ordem jurídica. Os autores da época liberal viam no progresso uma gradual submissão do poder ao Direito [...].
Páginas 91/92
[...] Para o Direito a estabilidade é sempre um ideal. A “ordem” social equivale à manutenção de certas coisas; normas e julgamentos refletem o prestígio de “autoridades” aceitas. O ordenamento, todavia, é às vezes encarado de diversos modos pelas diversas camadas etárias. Para os mais velhos, lei é lei, para os mais moços nem sempre: mas isto com óbvias exceções. Também a atitude pode variar, no que concerne à criminalidade, conforme as idades; todos sabem que a criminalidade juvenil é uma área muito peculiar de fenômenos, pois a “reação” dos jovens às pautas vigentes é peculiar – sobretudo nas grandes cidades. Numa sociedade minimamente penetrada por experiências jurídicas, as próprias crianças aprendem o sendo do jurídico ao “jurar” e ao invocar testemunhos (“Fulano está de prova”).
Ligado também ao conservadorismo do homo juridicus, está o problema da tradicional predominância de homens maduros entre magistrados (uma predominância hoje realmente menor que noutros tempos, nos quais a figura barbuda do juiz e do advogado impunha absoluto respeito e representava insubstituível status social). As profissões do Direito impõem de certo modo um habitus conformista e incutem em seus praticantes mais novos uma pretensão à respeitabilidade, refletida inclusive no traje. Na organização jurídica do Estado, também se encontra esse prestígio da idade madura, traduzido de ordinário na requerição de idades mínimas para certos cargos representativos (senadores mais velhos que deputados, Senado como câmara conservadora).

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