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Martin Heidegger SER E TEMPO Edição em alemão e português Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas Fausto Castilho Âa i;DITORA V VOZES Petrópolis . .. ( ' • ' ~ . . ·· ·' ·;· - .• ' SER E TEMPO ~ ~ . b dessa interprctaçao e on ttcamente asrantc velho. A explicação do ser do Da- :;ein corno preocupaç:lo nã( 0 submete a uma ideia excogitada, mas conceitua sob a persp ectiva c::xisrendál'ia o que já foi aberto óntko-existenciàlmente. § 42. A tonfirrnaçdo da interpretação existenâdria do IJasein como preoc~pação, a partir da interpretação pré-ontológu:a que o Das e in dá de si Nas interpretações precedentes que conduziratn finalmente a pôr em relevo a preocupação como o ser ,d~ Dasein, tudo consistia em conquistar os ade- quados fundamentos ontologtcos para o ente que somos cada vez nós mesmos e que denominarnos "hornem': Para isso, foi preciso que desde o início a aná- lise se desviasse da direção tradicional, mas ontologicamente não elucidada e problemática ern seu princípio, tal como é já-dada pela definição tradicional do homem. Medida por essa definição, a interpretação ontológico-existenciária pode resultar estranha, especialmente quando a "preocupação" é entendida unicamente em sentido ôntico, como "inquietação" e "aflição". Por isso, é conveniente que se traga agora um testemunho pré-ontológico, cuja força probante é por certo "somente histórica". Reflitamos, contudo: nesse testemunho o Dasein se expressa sobre si mesmo, "originariamente", e não é determinado por interpretações teóricas e não as tem em mira como tais. Observemos, além disso: que o ser do Da- sein é caracterizado por historicidade, o que em todo caso deve ser antes ontologicamente demonstrado. Se o Dasein é "histórico" no fundo do seu ser, então uma enunciação que provém de sua história e en1 si a ela ren1ete, e; além disso, é anterior a toda ciência, tem u1n peso particular, se bem que nunca, é verdade, puramente ontológico. O entendimento-de-ser que reside no Dasein ele n1esn1o se expressa de modo pré-ontológico. O testemunho apresentado em seguida Nota: preocupação é uma tradução possível do étimo alemão 'Sorge'. Que também pode ser traduzido por 'cura' e 'cuidado'. SER E TEMPO ~ · _, · deve deixar claro que a interpretação existenciária não é nenhuma invenção, · · 111as se ergue como "construção" ontológica sobre um solo no qual seus ele- mentos estão previamente delineados. A subsequente interp.retação que o Dasein dá de si mesmo como "preo- cupação~ é exposta numa fábula antiga': Cu,ra cum jluoium transiret, videt o·etosum lutum sustulitque cogitabunda atque coepit fingere. dum deliberat quid iam fecisset, ]o vis intervenit. rogat eum Cura ut det illi spiritum, et focile impetrat cui cum vellet Cura nomen ex sese ipsa imponere, Jovis prohibuit suumque nomen ei dandum esse dictitat. dum Cura et ]o vis disceptant, Tellus surrexit simul suumque nomen esse volt cui corpus praebuerit suum. sumpserunt Saturnum iudicem, is sic aecus iudicat: 'tu ]o vis quia spiritum dedisti, in morte spiritum, tuque Tellus, quia dedisti corpus, corpus recipito, Cura enim quia prima jinxit, teneat quamdiu vixerit. sed quae nunc de nomine eius vobis controversia est, h o mo vocetur, quia vide tu r esse factus ex humo.' "Um dia em que 'Preocupação' atravessa um rio, vê um lodo argiloso: pensativa, pega um tanto e começa a modelá-lo. Enquanto reflete sobre o que fizera, Júpiter intervém. 'Preocupação' lhe pede que empreste espírito ao modelo, no que Júpiter consente de bom grado. Mas, quando 'Preocupação' quis impor-lhe O autor encontrou essa prova pré-ontológica, que vem em seguida de interpretação ontológico-existenciária do Dasein como preocupação, por meio de um artigo de K. Burdach, "Faust und die Sorge': Deutsche Vierteijahresschrift for Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte I ["Fausto e a preocupação", Revista alemã quadrimestral para ciência da literatura e história do espírito] (1923), pp. 1 ss. Burdach mostra que Goethe tomou de Herder e reelabor()u para a segunda parte de seu Fausto a fábula da cura, transmitida como fábula 220 de Hyginus. Cf., em particular, pp. 40 ss. - O texto acima é citado segundo F. Bücheler, Rheinisches Museum [Museu Renan o], t. 41 ( 1886), p. S. Tradução de Burdach, op. cit., pp. 41 ss. 55 I SER E TEMPO seu próprio nome, Júpiter a proíbe e exige que seu nome lhe deveria ser dado. Enquanto 'Preocupação' e Júpiter discutiam sobre 0 nome, a Terra (Tellus) surge também a pedir que seu nome fosse dado a quem ela dera seu corpo. Os querelantes tomam, então, Saturno para juiz, o qual profere a seguinte decisão equitativa: 'Tu, Júpiter, porque deste o espírito, deves recebê-lo na sua morte; tu, Terra, porque o presenteaste com o corpo, deves receber o corpo. Mas, porque 'Preocupação' foi quem primeiro o formou, que ela então o possua enquanto ele viver. Mas, porque persiste a controvérsia sobre o nome, ele pode se chamar homo, pois é feito de humus (terra)'." Esse testemunho pré-ontológico ganha uma particular significação não só por ver ·em geral a "preocupação" como algo a que o Dasein humano per- tence durante todo o seu "tempo de vida': mas também porque essa precedên- cia da "preocupação" aparece em conexão com a conhecida concepção do homem como compositum de corpo (terra) e espírito. Cura prima jinxit: esse ente tem a "origem" de seu ser na preocupação. Cura teneat quamdiu vixerit: o ente não é abandonado por sua origem, mas retido por ela e submetido a seu domínio enquanto esse ente "é no mundo". O "ser-no-mundo" tem o cunho da conformidade-a-ser da "preocupação". Esse ente não recebe seu nome (homo) em referência a seu ser, mas em relação àquilo de que é feito (humus ). Onde se deve ver o ser "originário" dessa formação está a decisão de Saturno: no "tempo"2• A determinação pré-ontológica da essência do homem expressa na fábula desde o início fixou assim o olhar no modo-de-ser que domina sua passagem temporal no mundo. A história da significação de "cura" como termo ôntico permite mesmo que ainda se entrevejam outras estruturas fundamentais do Dasein. 2 C( o poema de Herder: "O filho da preocupação'~ (Suphan XXIX, 75). St::R E TI!M PO Burdach3 chama a atenção para um dúj)lice sentido do termo "cura': 0 qual não significa somente "esforço angustioso·: mas também "solicitude", "entrega·: É assim que Sêneca escreve em sua última carta (ep. 124): "Entre as quatro naturezas existentes (árvore, animal. homem, Deus), as duas últimas, as únicas dotadas de razão, distinguem-se entre si em que Deus é imortal e 0 homem, mortal. Agora, entre eles, o que completa 0 bem de um, a saber, de Deus, é a natureza, o do outro, do homem, a preocupação (cura): unius bonum natura pe1:ficit, dei scilü:et, alterius cura, hominis". Ape1:{ectio do homen1, o vir-a-ser o que ele pode ser em seu ser-livre para suas possibilidades mais-próprias (no projeto), é uma "realização" da "preo- cupação': Mas esta, com igual originariedade, determina o modo-fundamen- tal desse ente, conforme o qual é ele entregue ao mundo da ocupação ( dejec- ção). O "dúplice sentido" de "cura" significa uma constituição-fundamental em sua essencial dúplice estrutura de projeto dejectado. A interpretação ontológico-existenciária, em oposição à interpretação ôntica, não é somente uma como que generalização ôntico-teórica, o que significaria unicamente que todos os comportamentos do homem são onti- camente "preocupados" e conduzidos por uma sua "entrega" a algo. A "gene- ralização" é ontológico-a priori. Não se refere a propriedades ônticas constan- temente dadas, mas a uma constituição-de-ser que já cada vez as fundamenta. Só esta possibilita ontologicamente que esse ente possa ser designado ontica- mente como cura. A condiçãoexistenciária da possibilidade Idem, op. cit., p. 49. Já nos estoicos 0 termo fLÉpq.tva era um termo firmemente definido, q~.e retoma no Novo Testamento, na Vulgata, como solliâtudo. A direção do olhar para a preocupação" seguida na precedente analítica existenciária do Dasein surgiu para o ~utor em conexão com as tentativas de uma interpretação da antropologia agostiniana - Isto é, greco-c-ristã - referida aos fundamentos de princípio alcançados na ontologia de Aristóteles. userpsc_01 Realce SER E TEMPO de "preocupações-da-vida" e de "dedicação" . 1 d - 'd . . a a go eve ser concebida como Preocupaçao em senti o ongmário ist<> ' I' . " . . , ' , c, onto ogtco. A umversaltdade transcendental do fj ô d . . . · ' en meno a preocupação e de rodos os extstenct<Ínos tundamentais tem po I· d · . , . . ' ' r outro a o, aquela amplitude exigtda para que:: se torne Já-dado o solo sobre I d . _ . . . .. " . . 0 qua se move to a mterpre- racao-do-Da.)etn que seJa uma onttca vtsão-do-mund 1 d J" " . _ • , • o, em que e e se enten e ou como preocupaçoes-da-vtda e mdigência ott em .d " . , " . . , um sentt o oposto. O vaziO e a umversaltdade com que as estr t · 'á · u uras existenct nas se impõem ontica~en.te_ têm suas próprias determinidade e plenitude ontológicas. O rodo da constttmçao-do-Dasein ele mesmo não é, por conseguinte, simples em sua unidade, mas mostra uma articulação estrutural expressa no conceito existenciário da preocupação. A interpretação ontológica do Dasein trouxe a pré-ontológica interpre- tação-de-si desse ente para o conceito existenciário de "preocupação". Entre- tanto, a analítica do Dasein não tem em mira fundamentar ontologicamente a antropologia, e sua finalidade é ontológico-fundamental. Se bem que, de modo in expresso, esta determinou a marcha das considerações levadas a cabo até agora, a escolha dos fenômenos e os limites de penetração da análise .. Tendo em vista, porém, a pergunta diretora pelo sentido de ser e sua elabora- ção, a investigação deve agora assegurar-se expressamente do que ganhou até agora, o que não pode ser alcançado, no entanto, por meio de uma reunião extrínseca do que foi discutido. É preciso, ao contrário, que o que no começo da analítica existenciária só podia ser mostrado de maneira tosca, agora, com a ajuda do que foi ganho, se aguce para chegar a um mais penetrante enten- dimento do problema. ·557 userpsc_01 Realce
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