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81 DESENVOLVIMENTO HUMANO Capítulo 5 1 PRIMEIRA SEMANA 1.1 Clivagem O zigoto, durante o seu transporte pela tuba uterina em direção ao útero, sofre a clivagem, que consiste em mitoses sucessivas, sem aumento de volume (Figuras 5.1 e 5.2A-E). Nos mamíferos, comparando-se com outros animais, a clivagem é um processo lento, levando praticamente um dia para cada divisão mitótica: tem-se um embrião de duas células no primeiro dia após a fertilização, de quatro células no segundo dia, de seis a 12 células no terceiro, de 16 células no quarto e de 32 células no quinto dia (Figura 5.1). Os blastômeros de mamíferos não se dividem todos ao mesmo tempo, sendo frequente o número ímpar de células no embrião. O embrião até o estágio de oito células apresenta desenvolvimento regulado, isto é, mesmo que alguma célula seja perdida, o embrião progride normalmente, porque as demais contêm as informações necessárias para formar todas as estruturas. Entretanto, a partir desse estágio, há uma expressão genética diferenciada, e as células, conforme a sua posição, terão destinos diferentes. Assim, se alguma célula for perdida, o desenvolvimento não será normal. Então, após o estágio de oito células, o desenvolvimento é em mosaico. Devido à quantidade limitada de ribossomos e RNA armazenados durante a oogênese, o embrião precisa de seus próprios produtos gênicos logo no início da clivagem. Se a transcrição de RNAm fosse inibida no zigoto de camundongo, o desenvolvimento seria interrompido no estágio de duas células, enquanto, em embriões de anfíbios, um tratamento similar somente o perturbaria no fim da clivagem. Não há uma transição brusca entre a dependência das substâncias armazenadas e o início da transcrição do genoma embrionário. Por exemplo, isoformas da - glicuronidase e 2-microglobulina, que são transcritos do material genético de origem paterna, aparecem muito cedo no embrião, enquanto os RNAm para actina e histona acumulados na oogênese ainda estão sendo usados. No estágio de oito células, formam-se junções gap, que permitem a comunicação entre as células, junções de adesão, que as unem e, entre os blastômeros externos, junções de oclusão, tornando-os polarizados. A superfície apical das células fica voltada para o exterior, e a basal, para o interior. Cria- se, em consequência, uma polaridade interno-externa, já que os blastômeros da superfície e aqueles internos recebem estímulos diferentes e originarão linhagens celulares distintas. O embrião de 16 células é parecido com uma amora e é designado mórula (do latim morus, amora) (Figuras 5.1 e 5.2C). Com a aderência promovida pelas junções de adesão, os blastômeros externos não são mais identificados individualmente quando vistos da superfície: um processo denominado compactação (Figura 5.2D). No embrião com 32 células, os blastômeros secretam fluido para os espaços dentro do embrião. O líquido concentra-se em uma cavidade, a blastocele, e o embrião é chamado de blastocisto (Figuras 5.1 e 5.2E). A formação da blastocele depende da existência das junções gap e das junções de oclusão. Se o estabelecimento das junções comunicantes for inibido, não haverá blastocele. O acúmulo de líquido deve-se ao transporte passivo de água que acompanha o transporte de Na+ pelos canais de Na+ e pelas proteínas transportadoras de Na+/glicose e de Na+/H+ da superfície 82 apical e pelas Na+/K+-ATPases situadas na superfície basolateral dos blastômeros externos. As junções de oclusão impedem o retorno do fluido. O blastocisto consiste em uma camada superficial, o trofoblasto (ou trofoectoderma), e em um pequeno grupo interno de células, o embrioblasto (ou massa celular interna) (Figura 5.2E). A massa celular interna é separada da blastocele por processos celulares que se estendem do trofoblasto. O trofoblasto deriva parte da placenta (throfe, em grego, significa nutrição), e o embrioblasto origina o embrião propriamente dito e alguns anexos embrionários. O destino diferencial em embrioblasto ou trofoblasto depende da posição da célula na mórula: os blastômeros externos diferenciam-se no trofoblasto, enquanto os blastômeros internos formam a massa celular interna. Se uma célula interna for retirada e transplantada para a superfície de outro embrião, tornar-se-á trofoblasto, e algumas células externas, quando implantadas no interior do embrião, podem compor a massa celular interna. As mudanças no fenótipo das células internas e externas são acompanhadas por diferenças moleculares: o fator de transcrição Cdx-2 é essencial para a diferenciação em trofoblasto, e as moléculas oct-4, nanog e Sox-2 são expressas na massa celular interna. Como os produtos da transcrição são importantes para o desenvolvimento, os embriões haploides geralmente morrem durante a clivagem ou logo após a implantação. Entretanto o controle do início do desenvolvimento envolve mais do que a presença de um conjunto diploide de cromossomos. O material genético de origem materna possui qualidade diferente daquele paterno. Essas informações são impressas nas células germinativas pelo ambiente diverso das gônadas. Metilação do DNA é um dos principais meios de imprinting. O imprinting paterno desliga alguns genes responsáveis pelo desenvolvimento do embrião propriamente dito, e o imprinting materno suprime a expressão de genes implicados na formação de estruturas extraembrionárias, como a placenta. Em experimentos com oócitos de camundongos recém-fertilizados, foi observado que, quando o pronúcleo masculino era substituído por um feminino, resultando em um zigoto com dois pronúcleos femininos, era gerado um embrião normal, com placenta e saco vitelino rudimentares, enquanto, quando o pronúcleo feminino era trocado por um masculino, tendo-se um zigoto com dois pronúcleos masculinos, era produzido um embrião atrofiado, com placenta e saco vitelino normais. Um exemplo de imprinting paterno no ser humano é a mola hidatiforme que se caracteriza pela proliferação excessiva de tecidos trofoblásticos e ausência (mola completa) ou subdesenvolvimento do embrião (mola parcial). As vilosidades coriônicas não são vascularizadas e possuem um aspecto intumescido, por isso a denominação hidatiforme (do grego hydatos, gota d’água). A mola hidatiforme completa ocorre devido à entrada de dois espermatozoides em um oócito que perdeu o seu núcleo ou à duplicação do pronúcleo masculino no oócito sem núcleo. Na mola parcial, o oócito é inseminado por dois espermatozoides ou por um espermatozoide diploide, mas como o núcleo do oócito permanece, o embrião é triploide. Molas completas geralmente terminam em aborto no início da gestação, enquanto, nas molas parciais, o aborto ocorre no segundo trimestre. Restos de tecido trofoblástico da mola parcial, após o aborto ou a curetagem, podem gerar um tumor benigno, em uma condição conhecida como doença trofoblástica persistente. Restos da mola completa formam um tumor maligno, invasivo: o coriocarcinoma. Tanto na mola hidatiforme como no coriocarcinoma, há secreção de altos níveis de hCG (gonadotrofina coriônica humana). 2 SEGUNDA SEMANA 2.1 Implantação A primeira etapa da implantação é o hatching (eclosão), que consiste na ruptura da zona pelúcida por enzimas digestivas, permitindo a saída do 83 blastocisto (Figuras 5.1 e 5.2F). As etapas seguintes são: aposição, adesão e invasão. O blastocisto encostano epitélio uterino pelo polo embrionário (aquele com o embrioblasto). A partir dessa região do trofoblasto, pela fusão de células, surge uma massa celular multinucleada, o sinciciotrofoblasto (Figuras 5.1 e 5.3). As células mais internas que permanecem uninucleadas constituem o citotrofoblasto. A aposição e a adesão são promovidas pela interdigitação dos microvilos do trofoblasto/ sinciciotrofoblasto e do epitélio uterino, pela formação de complexos juncionais entre eles e por interações entre receptores celulares (por exemplo, as integrinas) e componentes da matriz extracelular. As células epiteliais sofrem apoptose. O dano do tecido uterino estimula a síntese de prostaglandinas, que aumentam a permeabilidade vascular e, em consequência, há edema do estroma, recrutamento de leucócitos e produção de citocinas. Na invasão, o sinciciotrofoblasto penetra o endométrio com suas projeções e enzimas que degradam a matriz extracelular. Em roedores, foi observado que o trofoblasto produz espécies reativas de oxigênio, como peróxido de hidrogênio (H2O2) e radicais livres de oxigênio. Essas substâncias inviabilizam as células endometriais ao redor, as quais podem ser fagocitadas pelo sinciciotrofoblasto. O trofoblasto humano é extremamente invasivo: atravessa o endométrio, atingindo glândulas e vasos sanguíneos, e alcança o terço interno do miométrio. O sangue materno extravasa para dentro de lacunas do sinciciotrofoblasto. O endométrio está na fase secretora, e o embrião capta as substâncias produzidas pelas glândulas, como o glicogênio. A fagocitose de células endometriais e de eritrócitos também contribui para a sua nutrição. O sinciciotrofoblasto e o citotrofoblasto secretam hCG, que, além de manter a atividade do corpo lúteo, contribui para o sucesso da implantação e da diferenciação do trofoblasto. No fim da segunda semana, os níveis desse hormônio são suficientes para o teste de gravidez ser positivo. Figura 5.1 - Representação do transporte do embrião pela tuba uterina e da sua implantação no útero. E. Leite e T. Montanari 84 Figura 5.2 - Oócito (A), embrião de duas células (B), mórula (C), mórula compactada (D), blastocisto (E) e blastocisto sofrendo hatching (F), obtidos pela lavagem com salina (flushing) dos cornos uterinos de camundonga e fotografados ao microscópio de luz. No blastocisto, são indicados o trofoblasto (T) e o embrioblasto (E). Figura 5.3 - Fotomicrografia do útero de camundonga, onde observados, na luz, um embrião em estágio inicial, ainda em clivagem (três núcleos são vistos) e o sinciciotrofoblasto (S) de outro embrião implantando no endométrio. Durante a invasão, o trofoblasto produz proteinases, como a gelatinase B (ou metaloproteinase-9 da matriz), que degradam a matriz extracelular. Ele ainda modifica a expressão de integrinas para favorecer a adesão. Inicialmente é sintetizada a integrina ∞6β4, receptor para a laminina da lâmina basal do epitélio uterino. Depois expressa integrina ∞5β1, receptor para a fibronectina do tecido conjuntivo, e posteriormente integrina ∞1β1, receptor para a laminina e para o colágeno do tipo IV da lâmina basal dos vasos sanguíneos. Na pré-eclâmpsia, as células trofoblásticas têm suas propriedades invasivas alteradas: não produzem gelatinase B, mantêm a expressão de ∞5β1 e não expressam a integrina ∞1β1. A invasão é superficial, resultando em uma pobre perfusão sanguínea da placenta e, consequentemente, retardo do crescimento intrauterino e mortalidade perinatal. A pré-eclâmpsia afeta 7 a 10% das gestações, sendo mais comum na primeira gravidez. No final do segundo trimestre ou no terceiro trimestre, a gestante apresenta pressão sanguínea aumentada, disfunção renal e edema, sintomas que servem de alerta dessa condição. C D E F E A B 85 Com a implantação, o endométrio sofre a reação decidual. Os fibroblastos diferenciam-se nas células deciduais. Tornam-se poliploides, com grande capacidade de síntese e acumulam glicogênio e lipídios (a serem consumidos pelo embrião). Adquirem uma forma poliédrica, estabelecem comunicação através de junções gap e, pelo surgimento de junções de adesão, as células deciduais ficam justapostas, circundando o embrião. A reação decidual restringe a invasão do trofoblasto e cria uma barreira inicial à passagem de macromoléculas, inclusive IgG, e de células, como micro-organismos, macrófagos e vários tipos de linfócitos, protegendo o embrião de infecções e contra a rejeição pelo organismo materno. O trofoblasto também tem um papel nessa proteção imunológica, porque suas células praticamente não são antigênicas. Expressam antígenos do complexo de histocompatibilidade (major histocompatibility complex - MHC) da classe I e não os da classe II, que são geralmente utilizados pelas células de defesa para distinguir antígenos self de nonself. Não expressam moléculas MHC da classe Ia comuns em outros tipos celulares, como HLA (antígenos dos leucócitos humanos)-A, B e C, mas sim uma molécula da classe Ib, específica do trofoblasto: HLA-G, que, ao se ligar aos linfócitos T killer (ou citotóxicos), tem um efeito inibitório e impede a destruição das células fetais. Há ainda anticorpos maternos que revestem os antígenos MHC de origem paterna, evitando a resposta imune celular. A resposta imunológica é também suprimida pelas interleucinas secretadas pelo trofoblasto e pelos leucócitos que infiltram o estroma endometrial e por vários hormônios, como a progesterona, o estrógeno, a prolactina e o lactogênio placentário humano. O epitélio do endométrio está reconstituído no 12º dia, cobrindo totalmente o embrião. Então o embrião humano não se desenvolve na luz do útero, mas sim dentro da sua parede. Geralmente a implantação acontece na parede posterior do útero. No entanto, se for muito próximo ao canal cervical (placenta prévia), exige repouso da gestante, porque a separação prematura da placenta causa hemorragia e morte do feto por falta de oxigenação. Quando a implantação se dá fora do útero, como na tuba uterina ou na cavidade abdominal, tem-se uma gravidez ectópica. A gravidez tubária é o tipo mais comum de gravidez ectópica. Ela pode ser decorrente da obstrução da tuba por processos inflamatórios, como, por exemplo, aqueles causados pela gonorreia e pela bactéria clamídia (Chlamydia sp.), responsáveis pela Doença Inflamatória Pélvica (DIP), ou ainda por aderências devido à endometriose ou à cirurgia anterior. Até a oitava semana de gestação, em virtude do crescimento do embrião, a tuba rompe-se, o que provoca hemorragia e pode ser fatal. O local mais frequente de implantação na gravidez abdominal é a bolsa retouterina (ou bolsa de Douglas), uma prega de peritônio entre o reto e o útero. O desenvolvimento pode chegar a termo. Há casos em que o feto não retirado se calcifica, formando o litopédio (do grego lithos – pedra, paidion – criança). A implantação nos órgãos abdominais e no mesentério provoca sangramento intraperitoneal, sendo alto o risco de morte materna. Métodos de controle da natalidade interceptivos Pílula de emergência (ou do dia seguinte): altas doses de estrógeno são tomadas até 72h após a relação sexual. Há um desequilíbrio nos níveis hormonais, e ocorre descamação do endométrio, assim o embrião não tem mais onde se implantar; DIU (dispositivo intrauterino): é um dispositivo de plástico que é inserido pelo médico no útero, podendo durar três a cinco anos. Como um agente estranho, irritaa mucosa do útero, impedindo a implantação. Há modelos que possuem um fio de cobre. A liberação desse íon faz com que a cauda dos espermatozoides enrole-se, prejudicando o seu movimento e evitando a concepção. O DIU que libera progesterona age suprimindo a ovulação e espessando o muco cervical. 2.2 Placentação 86 Durante a gravidez, o endométrio é designado como decídua (deciduus, uma queda), porque é a camada do útero que irá descamar no parto. Conforme a sua localização, a decídua pode ser subdividida em: decídua basal, que está entre o embrião e o miométrio; decídua capsular, que está entre o embrião e a luz do útero, e decídua parietal, que é o restante da decídua (Figura 5.4). Na segunda semana, as projeções do sinciciotrofoblasto são invadidas pelo citotrofoblasto, formando as vilosidades primárias. Depois, na terceira semana, elas são penetradas pelo mesoderma extraembrionário, um tecido rico em matriz extracelular, originado do embrião. Têm-se as vilosidades secundárias. Ainda na terceira semana, surgem vasos sanguíneos nesse mesoderma, inclusive nas vilosidades, que são então as vilosidades terciárias. Essas vilosidades são denominadas coriônicas, porque pertencem ao córion, que se refere ao conjunto sinciciotrofoblasto, citotrofoblasto e mesoderma extraembrionário. A partir do segundo mês, as vilosidades coriônicas em contato com a decídua capsular regridem, enquanto aquelas associadas à decídua basal aumentam. A região do córion sem vilosidades é o córion liso, e aquela com vilosidades, o córion viloso (ou frondoso) (Figura 5.4). Células do citotrofoblasto migram dos vilos, invadem as artérias espiraladas e secretam matriz extracelular nas suas paredes, dilatando-as de modo que o sangue extravasa com pressão muito menor do que a pressão arterial. O desenvolvimento embrionário inicial é adaptado para essa baixa tensão de oxigênio (3%). Entretanto as artérias espiraladas na região do futuro córion liso não são seladas pelo citotrofoblasto como aquelas do futuro córion viloso. Isso leva a um aumento local na concentração de oxigênio, e esse stress oxidativo provoca a degeneração do sinciciotrofoblasto que cobre os vilos e a regressão da rede capilar no seu interior. Com o crescimento do embrião, a decídua capsular faz saliência na cavidade uterina e funde-se com a decídua parietal, obliterando a luz do útero. A decídua capsular degenera e desaparece (Figura 5.4). A placenta é constituída pela decídua basal e pelo córion viloso, portanto, tem um componente materno e outro fetal (Figura 5.4). Figura 5.4 - Corte sagital do útero gravídico de quatro e nove semanas e de cinco meses: DB – decídua basal; DC – decídua capsular; DP – decídua parietal; SC – saco coriônico; SA – saco amniótico; SV – saco vitelino; CV – córion viloso; CL – córion liso. Baseado em Moore, 1984. p.79. E. Leite e T. Montanari 87 A forma discoide da placenta (Figura 5.5) é determinada pela área circular do córion viloso. O termo placenta vem do grego plakous, que significa bolo achatado. A partir do quarto mês, o córion viloso divide-se em 10 a 38 áreas de grupos de vilosidades, chamadas cotilédones. Os sulcos entre eles são produzidos pelo tecido da decídua basal interposto, os septos placentários (Figura 5.5). No término da gestação, a placenta mede cerca de 20cm de diâmetro e 3cm de espessura e pesa 500g. Cerca de 30min após o nascimento, a placenta é expulsa. A sua integridade deve ser conferida pelo profissional de saúde. A retenção no útero de parte dos cotilédones causa infecção e hemorragia. A barreira placentária é representada pelos tecidos das vilosidades coriônicas que separam o sangue materno do fetal. Até o quinto mês, são o sinciciotrofoblasto, o citotrofoblasto, o mesoderma extraembrionário e o endotélio dos vasos sanguíneos fetais. Após esse período, fragmentos do sinciciotrofoblasto são perdidos, o citotrofoblasto degenera e o mesoderma extraembrionário diminui. A barreira placentária resume-se ao sinciciotrofoblasto e ao endotélio, facilitando as trocas entre a mãe e o filho em crescimento. Geralmente o sangue materno e o fetal não se misturam: embora o sangue materno extravase para os espaços intervilosos, o sangue fetal, conduzido por duas artérias e uma veia pelo cordão umbilical, fica dentro dos vasos no córion (Figura 5.5). Para favorecer a passagem de substâncias e gases, os capilares das vilosidades são do tipo fenestrado. A grande superfície placentária (5m 2 na 28ª semana e quase 11m 2 a termo), promovida pelas vilosidades coriônicas e pelas microvilosidades do sinciciotrofoblasto, facilita o transporte de substâncias. Gases, água, hormônios esteroides e ureia são transportados por difusão simples, e a glicose é transferida por difusão facilitada. A maioria das vitaminas, os aminoácidos e os lipídios é internalizada por transporte ativo. Figura 5.5 - Fotografias de placenta humana a termo. Na vista pela face que estava em contato com a decídua basal, é possível observar os cotilédones, correspondentes aos grupos de vilosidades coriônicas. Na vista oposta, observa-se o revestimento pela membrana amniótica (inclusive no cordão umbilical) devido à expansão do saco amniótico. As duas artérias umbilicais (que transportam sangue do feto para a placenta) e a veia umbilical (que leva sangue da placenta para o feto) foram coradas artificialmente (cortesia de Nívia Lothhammer). 88 Oxigênio e nutrientes são encaminhados da mãe para o embrião/feto, enquanto gás carbônico e ureia difundem-se no sentido inverso. O gás carbônico é trocado por oxigênio nos pulmões da mãe, e a ureia é excretada nos rins. Drogas, como álcool e cocaína; gases tóxicos, como o monóxido de carbono e o dióxido de carbono; vírus, como o vírus da rubéola e o citomegalovírus; a bactéria Treponema pallidum da sífilis, e o protozoário Toxoplasma gondii atravessam a placenta e prejudicam o desenvolvimento. O álcool afeta a formação da face e do sistema nervoso, o crescimento e o ganho de peso. A cocaína provoca aborto espontâneo, malformações do sistema nervoso, retardo no crescimento, parto prematuro e distúrbios comportamentais, como déficit de atenção. O vírus da rubéola pode causar surdez (pela lesão do órgão de Corti, estrutura responsável pela audição, presente no ducto coclear), catarata e glaucoma congênitos e defeitos cardíacos. A infecção pelo citomegalovírus no primeiro trimestre provoca frequentemente aborto espontâneo e, no período fetal mais avançado, pode resultar em retardo no crescimento intrauterino, cegueira, distúrbios de audição, neurológicos e neurocomportamentais. O T. pallidum causa surdez congênita, defeitos na face e no palato, hidrocefalia, anormalidades nos dentes e nos ossos e retardo mental. Quando a mãe não é tratada, ocorrem natimortos em cerca de um quarto dos casos. A infecção pelo T. gondii pode afetar o desenvolvimento do cérebro e dos olhos e levar à morte fetal. Anticorpos maternos, principalmente IgG, são transportados para o feto por endocitose, o que protege o recém-nascido de algumas doenças comuns na infância, como a varíola, a difteria e o sarampo. A placenta produz hormônios, como hCG, a progesterona, o estrógeno e a somatomamotrofina coriônica (ou lactogênio placentário humano). A síntese de estrógeno, entretanto, envolve enzimas presentes também nas adrenais e no fígado do feto. A hCG, além de sustentar o corpo lúteo gravídico, estimula a secreçãodas células de Leydig no feto do sexo masculino de testosterona, o qual promove a diferenciação da genitália externa masculina e a descida dos testículos para o escroto. A progesterona mantém a decídua, inibindo a contratilidade do miométrio e desenvolve as glândulas mamárias para a lactação. O estrógeno aumenta o útero e a genitália externa da mãe, estimula o crescimento dos ductos mamários e relaxa os ligamentos pélvicos, o que facilita o parto. A somatomamotrofina coriônica, que tem uma estrutura similar ao hormônio de crescimento, influencia o crescimento, a lactação e o metabolismo da glicose e dos lipídios da mãe. A mãe utiliza a gordura para obter energia, e a glicose fica disponível para o filho. Na maioria dos mamíferos eutérios (placentários verdadeiros), a implantação limita-se à adesão do embrião ao epitélio uterino, com desenvolvimento na luz uterina, mas há aqueles, como os humanos, em que o embrião penetra no endométrio e o desenvolvimento ocorre dentro da parede do útero. No primeiro caso, na ocasião do parto, as vilosidades coriônicas desprendem- se das pregas da mucosa uterina, sem danificá-la e há um parto sem hemorragia. Essa placenta é dita indecídua. No segundo caso, há perda de sangue no parto, já que a mucosa uterina se rompe com a saída do feto e de suas membranas. Essa placenta é denominada decídua. Placentas indecíduas: - Epiteliocorial, difusa: o contato entre as vilosidades coriônicas e o endométrio é superficial, não danificando o epitélio deste. Esse tipo de placenta está constituído pelo córion, com vilosidades rudimentares, e pelo alantoide, bastante vascularizado. É considerado do tipo difuso, porque as vilosidades estão distribuídas por toda a superfície do córion. A alimentação do embrião é feita pelas secreções das glândulas endometriais. Ex: égua, porca, paquidermes e cetáceos. - Sinepiteliocorial, cotiledonária: há a fusão de células trofoblásticas e de células epiteliais uterinas, resultando em uma delgada camada epitelial de origem materna e fetal. Essas regiões de contato estão distantes umas das outras, e as vilosidades coriônicas formam grupos 89 chamados de cotilédones. Ex: ruminantes (vaca, ovelha). Placentas decíduas: - Endoteliocorial, zonária: o trofoblasto destrói o epitélio e o conjuntivo uterino e faz contato com o endotélio dos capilares maternos, que conserva sua integridade. As vilosidades estão dispostas em uma faixa, circunscrevendo o córion. O alantoide, com seus vasos sanguíneos, penetra nas vilosidades. Ex: carnívoros (gata, cadela). - Hemocorial, discoidal: o sinciciotrofoblasto erode o epitélio, o conjuntivo e o endotélio dos vasos do endométrio, de maneira que o sangue materno extravasa para as lacunas do sinciciotrofoblasto. O alantoide é pouco desenvolvido e fica incorporado ao cordão umbilical, onde se diferencia em vasos que interligam a circulação fetal com a placentária. As vilosidades coriônicas persistem em uma região em forma de disco, que será o componente fetal da placenta. Ex: primatas, roedores, insetívoros e quirópteros. 2.3 Formação do embrião didérmico, do saco amniótico, do saco vitelino e do alantoide No sétimo dia de desenvolvimento, por delaminação do embrioblasto, forma-se uma fina camada celular voltada para a blastocele: é o hipoblasto. No dia seguinte, entre as células do embrioblasto, acumula-se fluido e cria-se a cavidade amniótica. Sob ela, as células do embrioblasto arranjam-se em uma camada de células colunares: o epiblasto. Então o embrião, na segunda semana, é didérmico, ou seja, composto por duas camadas: o epiblasto e o hipoblasto (Figura 5.6). Entre o epiblasto e o hipoblasto, uma lâmina basal se forma. Estudos em embriões de camundongo têm mostrado que, já no estágio de 64 células, algumas células da massa celular interna expressam o fator nanog, enquanto outras expressam Gata-6. As células expressando nanog representam os precursores do epiblasto, e aquelas expressando Gata-6 tornam-se o hipoblasto. O teto da cavidade amniótica é originado de células do epiblasto. O âmnio (membrana amniótica ou ectoderma extraembrionário) será o revestimento interno do saco amniótico. As células do hipoblasto migram e revestem a blastocele, originando a membrana de Heuser (ou endoderma extraembrionário), que formará o saco vitelino (Figura 5.6). Tão logo o saco vitelino se estabelece, um material acelular é secretado entre a membrana de Heuser e o citotrofoblasto. Essa matriz extracelular é o retículo extraembrionário (Figura 5.6). Ela permite a migração de células provenientes do epiblasto, que se organizam em duas camadas: o mesoderma extraembrionário somático, vizinho ao citotrofoblasto e ao âmnio, e o mesoderma extraembrionário esplâncnico, que está adjacente à membrana de Heuser. O retículo extraembrionário entre as duas camadas é substituído por fluido, tendo-se o celoma extraembrionário (Figura 5.7). O sinciciotrofoblasto, o citotrofoblasto e o mesoderma extraembrionário somático compõem o córion. O saco coriônico (ou gestacional) consiste no córion e no celoma extraembrionário (Figura 5.7). A região do mesoderma extraembrionário somático acima do âmnio que liga o embrião ao citotrofoblasto é o pedúnculo do embrião e será o cordão umbilical (Figura 5.7). O mesoderma extraembrionário somático também fará parte do saco amniótico, e o mesoderma extraembrionário esplâncnico, do saco vitelino (Figura 5.7). A presença de vasos sanguíneos no mesoderma extraembrionário sustenta troficamente esses anexos embrionários. O saco vitelino é estreitado por uma nova migração de células do hipoblasto, resultando no saco vitelino definitivo (Figura 5.7). O embrião humano não tem vitelo, e o aparecimento do saco vitelino é uma recapitulação evolutiva. O saco amniótico é formado pela membrana amniótica (ou ectoderma extraembrionário) e pelo mesoderma extraembrionário somático (Figura 5.7). 90 Figura 5.6 - Na segunda semana, o embrião é constituído pelo epiblasto (E) e hipoblasto (H). As células do hipoblasto migram e revestem a blastocele (B), originando a membrana de Heuser, revestimento interno do saco vitelino (SV). As células do epiblasto originam a membrana amniótica, revestimento interno do saco amniótico (SA). Entre o endoderma extraembrionário e o citotrofoblasto, é depositado o retículo extraembrionário (RE). ST – sinciciotrofoblasto; CT – citotrofoblasto. Figura 5.7 - Células oriundas do epiblasto migram sobre o retículo extraembrionário e originam o mesoderma extraembrionário somático (MS), adjacente ao citotrofoblasto e ao saco amniótico, e o mesoderma extraembrionário esplâncnico (ME), adjacente ao saco vitelino. O retículo extraembrionário, entre as duas camadas, é substituído por fluido, gerando o celoma extraembrionário (ou cavidade coriônica). Sinciciotrofoblasto, citotrofoblasto e o mesoderma extraembrionário somático constituem o córion. O córion e o celoma extraembrionário compõem o saco coriônico (ou gestacional). Uma nova migração de células do hipoblasto forma o saco vitelino definitivo. 91 Como a data da concepção pode não ser conhecida pela gestante, os obstetras utilizam o primeiro dia do último período menstrual (UPM) para estimar o tempo de gravidez: é a idade gestacional. A data de nascimento é cerca de 280 dias (40 semanas) após o início da UPM. Uma regra para calcular a data provável do parto (DPP) é a de subtrair três meses a partir do primeiro dia do UPM e acrescentar um ano e sete dias. Aavaliação pela ultrassonografia do tamanho do saco gestacional e do embrião (frequentemente o comprimento do topo da cabeça à nádega) (Figura 5.8) permite fazer uma previsão confiável da data provável do parto. São utilizadas ainda como medidas: o maior comprimento nos embriões na terceira ou no início da quarta semana, que são retos; a circunferência da cabeça e do abdômen nos embriões com mais de seis semanas, e ainda, após a oitava semana, o comprimento do pé, do fêmur e do topo da cabeça ao calcanhar. O sistema Carnegie de estagiamento de embriões, baseado no comprimento e nas características externas, é usado internacionalmente para estimar a idade de embriões recuperados após o aborto espontâneo. Figura 5.8 - Sonograma de saco gestacional com 30,1mm, contendo embrião com oito semanas gestacionais, medindo 16,7mm de comprimento cabeça-nádega. * - luz uterina. Cortesia de Tamara Montanari. O líquido amniótico é derivado inicialmente do soro do sangue materno. Mais tarde há contribuição do transudato do cordão umbilical, da pele (ainda não queratinizada), do trato respiratório e do sistema digestório. O fluido é deglutido pelo feto e absorvido pelo trato gastrointestinal, atingindo a corrente sanguínea. A água ingerida pode deixar a circulação fetal através da placenta ou ser excretada pelos rins do feto, retornando ao líquido amniótico. O líquido amniótico é, portanto, urina hipotônica: 98 a 99% de água e 1 a 2% de solutos, como proteínas, enzimas, carboidratos, lipídios, hormônios, vitaminas e eletrólitos. Com a sua expansão pelo acúmulo de líquido, o saco amniótico ocupará toda a cavidade coriônica, e o âmnio encosta no mesoderma extraembrionário do córion, resultando na membrana amniocoriônica (Figura 5.5). O líquido amniótico protege o feto do dessecamento, de choques mecânicos e de infecções, permite a sua movimentação e evita a aderência da pele. Ainda ajuda a controlar a temperatura corporal, mantendo a temperatura relativamente constante. O líquido amniótico também é absorvido pelos pulmões e, durante o parto, é eliminado pela boca e pelo nariz através da pressão exercida sobre o tórax. O volume do líquido amniótico alcança, no fim da gravidez, cerca de 1L. Um volume muito pequeno de líquido amniótico (abaixo de 500mL) constitui um oligoidrâmnio e pode ser decorrente de insuficiência placentária, da ruptura da membrana amniocoriônica, da compressão do cordão umbilical, da obstrução do trato urinário ou da ausência dos rins do feto. Pela pressão do feto contra a parede uterina, devido a pouca quantidade de líquido amniótico, ele pode apresentar hipoplasia pulmonar, defeitos na face e nos membros (síndrome de Potter). O excesso de líquido amniótico (acima de 2L) é chamado hidrâmnio e está associado à gravidez múltipla, à anencefalia ou a anomalias obstrutivas do trato digestório. O saco vitelino é formado pela membrana de Heuser (o endoderma extraembrionário originado pelo * 92 hipoblasto) e pelo mesoderma extraembrionário esplâncnico (Figura 5.7). Nas aves e nos répteis, o saco vitelino armazena vitelo, que é usado para a nutrição do embrião em desenvolvimento. Nos mamíferos, a presença da placenta dispensou a necessidade do vitelo, e o saco vitelino não tem mais função de assegurar a nutrição. No entanto, antes da circulação placentária ser estabelecida, nutrientes, como ácido fólico e vitaminas A, B12 e E, são concentrados no saco vitelino e absorvidos por endocitose. Ainda nele proliferam dois tipos celulares importantes: as células sanguíneas e as células germinativas primordiais. Na quarta semana, com o dobramento do disco embrionário em um tubo, parte do saco vitelino fica incorporada como intestino primitivo. O restante fica junto ao pedúnculo do embrião e é envolvido pela membrana amniótica na sua expansão, o que resulta no cordão umbilical (Figuras 5.7 e 5.9). Figura 5.9 - Corte histológico de cordão umbilical, mostrando o revestimento epitelial proveniente do âmnio e o tecido mucoso, derivado do mesoderma extraembrionário somático. Por volta do 16º dia, o alantoide (do grego allas, salsicha) nasce como uma evaginação ventral do intestino posterior revestida por endoderma e por mesoderma extraembrionário esplâncnico. Nos répteis, aves e em alguns mamíferos, é um importante órgão respiratório e depósito de excreção urinária. No ser humano, é vestigial. Ficará embutido no cordão umbilical, e, no seu mesoderma, são gerados os vasos umbilicais que ligam os vasos fetais àqueles da placenta. Mais tarde no desenvolvimento, a parte proximal do alantoide (úraco) será contínua com a bexiga em formação. Após o nascimento, ela se transformará em um denso cordão fibroso, o ligamento umbilical médio, que ligará a bexiga à região umbilical. Os gêmeos monozigóticos (ou idênticos) são oriundos do mesmo zigoto, sendo formados pela separação dos blastômeros do embrião de dois a três dias, pela divisão do embrioblasto na primeira semana ou pela divisão do disco embrionário na segunda semana. A primeira situação é a mais rara. Cada embrião originado pela separação dos blastômeros tem seu saco amniótico, seu saco coriônico e sua placenta. Se os dois embriões se implantarem próximos, as placentas podem estar fusionadas, e alguns vasos podem estabelecer comunicações. Se houver uma grande anastomose arteriovenosa, ocorrem distúrbios circulatórios que beneficiarão um dos gêmeos em detrimento do outro, levando a diferenças de tamanho e até a morte de um deles. Cada embrião proveniente da divisão do embrioblasto tem seu saco amniótico, mas os dois estão cercados pelo mesmo saco coriônico e, portanto, há uma única placenta. No caso daqueles produzidos pela divisão do disco embrionário, há um saco amniótico comum e, pelo mesmo motivo que o anterior, um saco coriônico e uma placenta. Se a divisão do disco embrionário for parcial, têm-se gêmeos xifópagos (ou siameses) (Figuras 5.10 e 5.11). Eles podem estar unidos somente pela pele e/ou pelo tecido subcutâneo. Entretanto órgãos e parte do esqueleto podem ser compartilhados. Inversão da simetria dos órgãos de um dos gêmeos é comum. Há uma variedade de gêmeos xifópagos, onde um deles é bem menor, consistindo geralmente de torso e membros e está preso à região oral, ao mediastino ou à pelve do outro irmão: são referidos como gêmeo parasita e gêmeo hospedeiro. 93 Figura 5.10 - Fetos de gêmeos xifópagos, cujo esqueleto foi corado pela Alizarina vermelha (Fotografia pertencente ao acervo do Departamento de Ciências Morfológicas, UFRGS). Os gêmeos dizigóticos (ou fraternos) são de zigotos diferentes. É a situação de gemelidade mais frequente: 2/3 do total. Há uma tendência para gêmeos dizigóticos, e não para monozigóticos, em famílias e com o aumento da idade materna. A sua ocorrência também está relacionada com a ovulação de vários oócitos provocada pela administração exógena de gonadotrofinas ou medicamentos, como o clomifeno no tratamento para engravidar. Como é evidente pela sua formação, cada embrião tem seu saco amniótico, seu saco coriônico e, consequentemente, sua placenta. Se os embriões se implantarem muito próximos, os sacos coriônicos e as placentas podem ser fusionados. Figura 5.11 - Gato natimorto com uma cabeça e dois troncos. 3 TERCEIRA SEMANA 3.1 Gastrulação, formação da linha primitiva e do embrião tridérmico O principal evento da terceira semana é a gastrulação,um processo que envolve movimentos celulares que estabelecem as três camadas germinativas no embrião. Apesar do ovo dos mamíferos placentários não ter vitelo, a gastrulação é semelhante à de répteis e aves por uma conservação evolutiva. O embrião desenvolve-se como um disco e mais tarde dobra-se e fecha-se em um corpo cilíndrico. Como detalhado ao descrever a gastrulação em aves (Capítulo 4 – Desenvolvimento comparado), inicialmente as células do epiblasto formam um espessamento em cunha, na região posterior do embrião. Nessa região, membros das famílias TGF-β e Wnt foram identificados como agentes indutores. O 94 espessamento passa para a forma linear por extensão convergente no sentido caudocefálico (Figura 5.12). A concentração de células do epiblasto estabelece uma linha mediana e caudal, a linha primitiva. Na sua extremidade cranial, há um maior acúmulo de células, o nó primitivo (ou nó de Hensen) (Figura 5.12). As células do nó primitivo expressam moléculas importantes na organização do eixo embrionário, como Foxa-2, goosecoid, cordina (de chord, medula em inglês), noguina (de noggin, referência à cabeça em inglês coloquial), nodal e ácido retinoico. Com o aparecimento da linha primitiva, são identificados o eixo anteroposterior (craniocaudal) e o eixo direito-esquerdo do embrião. O hipoblasto determina a origem e o direcionamento da linha primitiva. Em embriões de aves, a rotação do hipoblasto em 90 em relação à orientação do epiblasto faz com que a linha primitiva surja 90 da posição normal. Estudos com embriões de camundongo mostraram que a determinação do eixo anteroposterior depende do endoderma visceral (assim é denominado o hipoblasto em camundongo). Na futura região anterior, há a ativação de Dickkopf 1 (Dkk 1), que antagoniza a ação de Wnt, e há a expressão de lefty-1 e Cerberus-1 (Cer-1), inibidores da nodal. Por outro lado, na futura parte posterior, sinais Wnt de fontes extraembrionárias induzem a expressão de nodal, levando à formação da linha primitiva. No nó primitivo, há 200 a 300 células monociliadas, e o batimento dos cílios resulta em uma corrente de fluido para esquerda, que tem por consequência a expressão de duas moléculas sinalizadoras da família TGF-β, nodal e lefty-1, nesse lado do embrião. Uma sequência de interações moleculares desencadeadas pela nodal resulta na ativação do gene Pitx2 no lado esquerdo. O fator de transcrição Pitx2 promove a formação de estruturas assimétricas, como, por exemplo, coração, fígado, pulmões, estômago e baço. Lefty-1 é produzido por um curto período e posiciona-se ao longo do lado esquerdo da linha primitiva, evitando a difusão das moléculas que determinam o sinistrismo para o lado direito. A assimetria esquerda-direita é invertida em cerca de 1/10.000 indivíduos. Essa condição é denominada situs inversus e pode ser decorrente da mutação de genes envolvidos no estabelecimento da assimetria ou na motilidade dos cílios. Pessoas com síndrome de Kartagener podem apresentar situs inversus. As células do epiblasto apresentam características de células epiteliais: são justapostas graças às moléculas de adesão celular E-caderinas, sintetizam citoqueratina e possuem lâmina basal e polaridade (superfícies apical e basal definidas). Aquelas células na linha primitiva se alongam, perdem sua lâmina basal, deixam de expressar as E-caderinas, desprendendo-se das suas vizinhas, adquirem uma morfologia em garrafa, já que a parte apical se estreita pelo deslizamento dos filamentos de actina, e migram (ingressão). Depois de deixar a linha primitiva, tornam-se estreladas devido aos pseudópodos e são denominadas células mesenquimais. Essa transformação está correlacionada com a expressão do fator de transcrição snail. A migração é possibilitada pelas substâncias da matriz extracelular, como a fibronectina e o ácido hialurônico. O movimento de células através da linha primitiva produz um sulco, o sulco primitivo, e a saída de células do nó primitivo forma a fosseta primitiva (Figura 5.12). As primeiras células a migrarem originam o mesoderma extraembrionário. Outras células substituem as células do hipoblasto que revestiram a blastocele e constituem o endoderma (algumas células hipoblásticas originais são incorporadas ao endoderma). As células da linha primitiva que se espalham lateral e cranialmente entre o epiblasto e o endoderma estabelecem o mesoderma. O epiblasto é agora chamado de ectoderma. Assim, na terceira semana, o embrião é um disco tridérmico, isto é, com três camadas germinativas: o ectoderma, o mesoderma e o endoderma (Figuras 5.13 e 5.14). Todas essas camadas se originaram do epiblasto. 95 Figura 5.12 - Vista dorsal de embrião de codorna com 16h de incubação, onde são indicados a linha primitiva (LP), o sulco primitivo (S), o nó primitivo (N) e a fosseta primitiva ( ). AP – área pelúcida; AO – área opaca (cortesia de Casimiro García Fernández). O endoderma adjacente ao epiblasto é necessário para a diferenciação do mesoderma. Experimentos com embriões de anfíbios mostraram que, quando o ectoderma é isolado, ele permanece como tal, possuindo citoqueratina nas suas células, mas, quando é aposto ao endoderma, diferencia-se em mesoderma, como indicado pela expressão de -actina, característica de células musculares. Membros da família do TGF-β, como TGF- 2, ativina e Vg1, induzem as células do epiblasto a formar o mesoderma. Quando as células migratórias se fixam, elas tornam a expressar as moléculas de adesão celular. Há tipos diferentes dessas moléculas. Elas são responsáveis pela união das células de um mesmo tecido e pelo arranjo e pela separação daquelas de diferentes tecidos. Por exemplo, quando células do ectoderma e do mesoderma são misturadas em uma suspensão, elas se reúnem em um agregado com as células ectodérmicas na periferia e as células mesodérmicas no centro. Há duas regiões onde o ectoderma se mantém aderido ao endoderma: a membrana bucofaríngea e a membrana cloacal. Como não há mesoderma interposto, a falta de irrigação sanguínea levará à degeneração dessas membranas, resultando na boca e no ânus, respectivamente. No fim da terceira semana, a linha primitiva começa a regredir caudalmente até desaparecer. Restos da linha primitiva podem gerar grandes tumores, denominados teratomas, na região sacrococcígea. Eles contêm misturas de tecidos, como cartilagem, músculo, adiposo, epitélio glandular e até mesmo cabelo e dente. São encontrados também teratomas nas gônadas e no mediastino, mas esses são provenientes das células germinativas. Os teratomas sacrococcígenos são os tumores mais comuns em recém-nascidos, ocorrendo um caso a cada 35.000 nascimentos, com incidência maior no sexo feminino. A maioria dos tumores é benigna e é removida cirurgicamente. 3.2 Notocorda e neurulação Células do nó primitivo migram ao nível do mesoderma, em sentido cranial e formam uma massa compacta de células mesodérmicas, a placa precordal, e um bastão oco, o processo notocordal, que logo se consolida na notocorda (Figuras 5.13 e 5.14). A presença da notocorda reuniu várias espécies em um mesmo filo, o Chordata. Ela serve como eixo de sustentação no embrião e, em alguns cordados inferiores, também no adulto. Nos vertebrados superiores, o seu principal papel é o de induzir o desenvolvimento do sistema nervoso. As células do ectoderma suprajacente à placa precordal e à notocorda tornam-se mais altas, mantêma expressão das moléculas de adesão celular neurais L P 96 (N-CAM), não sintetizam mais E-caderinas (antigamente denominadas L-CAM) e sintetizam N- caderinas. Essa região é a placa neural. O restante do ectoderma continua a produzir E-caderinas, mas não N-CAM. A expressão diferencial das moléculas de adesão celular permite que a placa neural se destaque do restante do ectoderma. Em 1924, Hilde Mangold e Hans Spemann, através de experimentos envolvendo enxertos entre embriões dos anfíbios Triturus cristatus (doador não pigmentado) e Triturus taeniatus (hospedeiro pigmentado), constataram que a diferenciação do ectoderma neural era promovida pelo lábio dorsal do blastóporo, cujas células formavam o mesoderma dorsal, mais precisamente a notocorda. Desde então é intensa a investigação para descobrir quais são os mecanismos e as substâncias responsáveis pela indução do sistema nervoso. Estudos recentes em embriões de Xenopus laevis mostraram que células ectodérmicas isoladas diferenciam-se em células neurais, concluindo-se que a capacidade do ectoderma se transformar em ectoderma neural é suprimida por sinais transmitidos pelas células vizinhas. Os mediadores desse sinal supressor são as proteínas morfogenéticas ósseas (bone morphogenetic protein -BMP) da superfamília do TGF-β. A expressão de uma versão truncada do receptor de BMP nas células ectodérmicas evitou a sua sinalização e houve o destino neural. As proteínas folistatina, noguina e cordina, secretadas pela notocorda, ligam-se à BMP-4, evitando sua ligação ao receptor e, consequentemente, inibindo sua atividade. Portanto, a sinalização BMP promove a diferenciação do ectoderma em epiderme, e o seu bloqueio leva à formação de tecido neural. Isso é condizente com a evidência filogenética de que os primeiros sistemas nervosos nos metazoários tiveram origem em plexos subepidérmicos. O sistema nervoso como um cordão dorsal (ou ventral) deve ser decorrência da supressão da diferenciação neural no resto do ectoderma. Em mamíferos, membros da família do TGF-β, sonic hedgehog (shh) e BMP são algumas das moléculas sinalizadoras envolvidas na indução do sistema nervoso. De acordo com um modelo estabelecido em camundongos, no início da formação da linha primitiva, o precursor do nó primitivo secreta Cer-1, que inibe a BMP. Na ausência dessa proteína, o epiblasto anterior será tecido neural. Nos estágios subsequentes da gastrulação, a determinação do destino anterior do tecido neural induzido é promovida pelos sinais do endoderma visceral anterior e, posteriormente, da placa precordal e da notocorda. Esses sinais são Cer-1 e noguina, que inibem a BMP-4, e lefty-1, que inibe a nodal. A determinação posterior do tecido neural ocorre pela ação da nodal concentrada na extremidade posterior do embrião. A placa neural sofre um alongamento e um estreitamento por extensão convergente e dobra-se por invaginação. A elevação das bordas laterais (pregas neurais) ao longo do seu eixo longitudinal e mediano (sulco neural) decorre da mudança na forma das células de colunar para a piramidal, com a constrição do ápice pelo deslizamento dos filamentos de actina. Como as células estão unidas por junções de adesão, a placa curva-se (Figuras 5.13 a 5.18). O alongamento do embrião força as extremidades da placa neural no sentido longitudinal, o que impulsiona o seu dobramento. As pregas neurais encontram-se e fundem-se no tubo neural, que se separa da lâmina ectodérmica. O ectoderma de revestimento é refeito sobre o tubo neural, internalizando-o. A neurulação (o fechamento da placa neural em tubo neural) ocorre do meio para as extremidades, como se houvesse dois zíperes fechando em sentidos opostos. Entretanto, na região cranial, há geralmente dois sítios adicionais de fechamento. Por último, são fechadas as extremidades. As extremidades abertas do tubo neural são denominadas neuróporos. O neuróporo anterior fecha-se no 25º dia, e o posterior, no 27º dia (Figuras 5.15 e 5.18). A neurulação descrita é a neurulação primária. Caudal ao neuróporo posterior, ocorre a neurulação secundária. Sob o ectoderma do broto da cauda, há a condensação de células mesenquimais em um bastão (cordão medular) e depois há a cavitação no seu interior, resultando um canal central contínuo ao tubo neural. Em humanos, por causa do pequeno desenvolvimento do broto da cauda, a neurulação secundária não é acentuada. 97 O tubo neural originará o sistema nervoso central: o encéfalo e a medula espinhal. Figura 5.13 - Corte transversal de embrião de galinha com 40h, onde são indicados os folhetos embrionários: ectoderma (EC), mesoderma (M) e endoderma (EN). Notar o ectoderma espessado da placa neural, cuja diferenciação foi induzida pela notocorda (N). Figura 5.14 - Corte transversal de embrião do quelônio Phrinops hilari (correspondente ao embrião humano no início da terceira semana), apresentando os três folhetos embrionários: ectoderma (EC), mesoderma (M) e endoderma (EN); a notocorda (N), e o fechamento da placa neural em tubo neural. C – ectoderma extraembrionário do córion (ou serosa), membrana extraembrionária presente nos répteis e nas aves. Figura 5.15 - Representação da neurulação: fechamento da placa neural em tubo neural. As extremidades ainda abertas são os neuróporos anterior e posterior. Baseado em Carlson, 2014. p.93. 20 dias 22 dias 23 dias 18 dias E. Leite e T. Montanari EC EN M N C N EN EC M 98 Figura 5.16 - Embrião de codorna com 22h de incubação. São observadas a placa neural (P) iniciando o dobramento ( ) e a linha primitiva (L), com o sulco primitivo no interior e o nó primitivo e a fosseta primitiva na extremidade cranial (cortesia de Nívia Lothhammer). Figura 5.18 - Embrião de galinha in toto sofrendo a neurulação. Os neuróporos são indicados (N). Figura 5.17 - Embrião de codorna com 25h de incubação, mostrando o fechamento da placa neural em tubo neural, o surgimento de somitos e a regressão da linha primitiva (cortesia de Casimiro García Fernández). O não fechamento do neuróporo anterior leva à anencefalia (ou craniosquise). Ocorre em 0,1% das gestações. O desenvolvimento do cérebro anterior é interrompido, e a abóboda craniana não se forma (Figura 5.19). A porção do encéfalo que controla a respiração e os batimentos cardíacos é formada, o que permite a sobrevivência até o final do período fetal ou alguns dias após o parto. Como há a formação do tronco encefálico, o termo meroanencefalia é mais apropriado do que anencefalia. A falha no fechamento da placa neural em tubo neural na região da medula espinhal é a mielosquise (ou raquisquise). Ela afeta a indução dos arcos vertebrais, de maneira que são hipoplásicos e não se fundem. N N N 99 Figura 5.19 - Natimorto com anencefalia (cortesia de Nívia Lothhammer). A alfa-fetoproteína é uma glicoproteína sintetizada pelo fígado fetal, pelo saco vitelino e pelo intestino. Está presente em alta concentração no soro, mas em pequena quantidade no líquido amniótico. Em fetos com defeitos no fechamento do tubo neural ou da parede abdominal, grande quantidade dessa substância escapa da circulação para o líquido amniótico, de modo que a sua dosagem no líquido amniótico ou no soro materno pode ser utilizada para o diagnóstico pré-natal. Estudos epidemiológicos constataram uma alta correlação entre a deficiênciaem ácido fólico e a incidência de anencefalia e outros defeitos no fechamento do tubo neural. O ácido fólico é uma vitamina hidrossolúvel do complexo B, necessário para a síntese de ácidos nucleicos e proteínas. É encontrado em vegetais, principalmente aqueles com folhas verdes escuras, frutas e cereais. Entretanto é recomendada a suplementação para mulheres em idade reprodutiva, por isso a sua adição a alimentos, como a farinha de trigo e seus derivados. Pode ser também administrada em comprimidos, um mês antes da concepção até o primeiro trimestre de gestação. Das pregas neurais, no momento em que elas se fundem, saem células, que formam as cristas neurais . Assim como na transformação de células da linha primitiva em células mesenquimais, o fator de transcrição snail está envolvido na diferenciação das células da crista neural. Essas células migram para vários pontos do corpo, originando estruturas diferentes, como os gânglios sensitivos e os nervos raquidianos do sistema nervoso periférico; as meninges do sistema nervoso central; os melanócitos; a medula da adrenal, e os músculos e os ossos da cabeça. A placa precordal é uma fonte de sinais importantes para a sobrevivência de células da crista neural que emigram da região cranial do tubo neural. A notocorda também é um agente indutor da coluna vertebral a partir do mesoderma vizinho. Ela desaparece durante o período fetal, mas persiste entre as vértebras como núcleo pulposo dos discos intervertebrais. Mais tarde, na infância, esse núcleo pulposo é substituído. 3.3 Diferenciação do mesoderma O mesoderma diferencia-se em: paraxial (ao lado do eixo do embrião, ou seja, do tubo neural e da notocorda), intermediário e lateral (Figura 5.20). O mesoderma paraxial parece uma faixa homogênea de células, mas o exame de eletromicrografias de varredura com técnicas estereoscópicas 3-D revelou uma série de pares regulares de segmentos, os somitômeros. Quando 20 somitômeros estão estabelecidos, o aumento da adesão entre as células do oitavo par em diante gera blocos denominados somitos (Figuras 5.17, 5.18 e 5.21). Em embriões humanos, os somitos são formados do 20º ao 30º dia de gestação, cerca de três por dia. 100 Ao contrário dos somitômeros, que só foram identificados em 1979, os somitos são conhecidos desde o século XVI. Por possuírem propriedades celulares e moleculares diferentes do restante do mesoderma paraxial, os sete primeiros pares de somitômeros não se segmentam e derivarão os músculos da face e da mastigação. Os somitos regionalizam-se em: esclerótomo (ventral) e dermomiótomo (dorsal) (Figura 5.22). As células do esclerótomo diferenciam-se pela indução da notocorda e da parede ventral do tubo neural. Elas perdem as moléculas de adesão celular N- caderinas e a lâmina basal. Secretam proteoglicanas com sulfato de condroitina e outros componentes da matriz cartilaginosa. Migram e envolvem a notocorda e o tubo neural para constituir as vértebras, as costelas, o esterno e a base do crânio, o osso occipital. O dermomiótomo separa-se em duas camadas: a dorsal é o dermátomo, responsável pela derme do dorso do corpo, e a ventral é o miótomo, cujas células originam a musculatura do dorso do tronco e dos membros. Acompanhando o crescimento do embrião, o mesoderma paraxial alonga-se caudalmente, sendo que a proliferação das células mesenquimais é estimulada pelo FGF-8. A segmentação ocorre no sentido anteroposterior e está relacionada com a regressão da linha primitiva. Novos pares de somitômeros surgem próximo ao nó primitivo à medida que ele regride. Uma vez completada a regressão do nó primitivo, nenhum outro somitômero se forma. Em dada posição, as células mesenquimais são expostas a uma concentração equilibrada de FGF-8 e de ácido retinoico que faz com que elas formem os somitos. O futuro somito expressa o fator de transcrição Mesp-2. Permanece uma distância constante entre o último par de somitos gerados e o último par de somitômeros: por um período, o número de somitômeros caudais ao último somito é de 10 ou 11. A via Notch estimula a expressão de lunatic fringe, que se torna concentrado na futura borda anterior do somito, e c-hairy, na futura borda posterior. As células na borda posterior do somito expressam efrina B, mas as células na borda anterior expressam o receptor para efrina EphA. Então as células dos dois somitos adjacentes não se misturam, e uma fissura abre-se entre os dois somitos. A ação de Wnt-6 do ectoderma suprajacente estimula a expressão do fator de transcrição paraxis no somito recém-criado. A sua atividade e a supressão de snail resultam na transformação das células mesenquimais em um fenótipo epitelioide. Shh e noguina, provenientes da notocorda e da parede ventral do tubo neural, estimulam a expressão de Pax-1 e Pax-9 na metade ventral do somito (esclerótomo). Isso provoca intensa atividade mitótica, a perda de N-caderinas, a desintegração da lâmina basal e o retorno das células à morfologia mesenquimal. Essas células migram, envolvendo a notocorda e secretam sulfato de condroitina e outros componentes da matriz cartilaginosa. Sob a influência de produtos secretados dos genes Wnt presentes na parede dorsal do tubo neural e no ectoderma superficial, a metade dorsal do somito transforma-se no dermomiótomo e expressa Pax-3, Pax-7 e paraxis. Células mesenquimais surgem da região ventral do dermomiótomo, formando uma camada separada, o miótomo, enquanto a camada dorsal é o dermátomo. Além da sinalização Wnt, Shh proveniente da notocorda torna as células do miótomo comprometidas com a linhagem miogênica. A inibição da BMP-4 pela noguina faz com que as células da região dorsomedial do miótomo expressem moléculas reguladoras da miogênese, como MyoD, Myf-5, Mef-2 e desmina. Essas células derivarão a musculatura do dorso (epaxial). Antes mesmo do miótomo se destacar, sob a influência de BMP-4 produzido pelo mesoderma lateral somático, a expressão de fatores miogênicos na região ventrolateral do dermomiótomo é suprimida, e essas células continuam a expressar Pax-3. Elas também produzem o receptor c-met. O fator de crescimento scatter factor, secretado nos brotos dos membros, liga-se ao receptor c-met. Isso estimula a migração de 30 a 100 dessas células por somito para os brotos dos membros. Enquanto migram, as células expressam N-caderina e continuam a expressar Pax-3. Sinais FGF do miótomo em desenvolvimento induzem células localizadas na borda lateral do esclerótomo a produzir o fator de transcrição scleraxis. Essas células formam uma estreita camada denominada syndetome e são os precursores dos tendões que 101 conectam os músculos epaxiais ao esqueleto. Quase todos os componentes dos somitos são capazes de dar surgimento a vasos sanguíneos que nutrem as estruturas provenientes do mesoderma paraxial. As características dos derivados do mesoderma paraxial são especificadas pelo padrão de expressão do gene Hox (os produtos proteicos dos genes homeobox ligam-se ao DNA e formam fatores de transcrição que regulam a expressão gênica), primeiro no epiblasto e depois no próprio mesoderma. No mesoderma intermediário, são encontrados os túbulos nefrogênicos, precursores do sistema urinário e do sistema reprodutor (Figura 5.22). O mesoderma intermediário parece surgir induzido pela BMP do ectoderma e pela ativina e outros sinais do mesoderma paraxial. A resposta a esses sinais é aexpressão de Pax-2. A extensão cranial e caudal do mesoderma intermediário é definida pela expressão de membros do Hox-4 cranialmente e Hox-11 caudalmente. O mesoderma lateral delamina-se em somático (ou parietal) e esplâncnico (ou visceral) (Figuras 5.20 e 5.22). O mesoderma lateral somático é adjacente ao ectoderma e é contínuo com o mesoderma extraembrionário somático (Figuras 5.20). Originará o tecido conjuntivo (inclusive os tipos especiais, como cartilagem, osso e sangue) dos membros e das paredes laterais e ventral do corpo. O mesoderma lateral esplâncnico é vizinho ao endoderma e continua-se com o mesoderma extraembrionário esplâncnico (Figuras 5.20). Derivará o conjuntivo e os músculos do sistema cardiovascular, do sistema respiratório e do sistema digestório. O espaço entre o mesoderma lateral somático e o esplâncnico é o celoma, que, neste momento, é contínuo com o celoma extraembrionário (Figura 5.20). Com o posterior fechamento do embrião em disco para uma forma tubular, o celoma intraembrionário dará as futuras cavidades corporais: a cavidade pericárdica, a cavidade pleural e a cavidade peritoneal. Figura 5.20 - Corte transversal de embrião de galinha no estágio tridérmico, onde há a diferenciação do mesoderma em paraxial (P), intermediário (I) e lateral (L). Note a delaminação do mesoderma lateral em somático (S) e esplâncnico (E). Figura 5.21 - Corte longitudinal de parte do embrião de galinha, onde é possível identificar os somitos ao lado do tubo neural. O mesoderma lateral é induzido pela BMP-4 do ectoderma suprajacente, depois ele próprio passa a produzir BMP-4. O mesoderma lateral esplâncnico é especificado pelo fator de transcrição Foxf-1. P I LS LE 102 Figura 5.22 - Embrião de galinha, onde os somitos diferenciaram-se em dermomiótomo (DM) e esclerótomo (E). Túbulos nefrogênicos são reconhecidos no mesoderma intermediário (MI). O mesoderma lateral somático (MS) origina o tecido conjuntivo dos membros. Vasos sanguíneos são observados no mesoderma lateral esplâncnico (ME). Acima do ectoderma (EC), visualiza-se o saco amniótico, constituído por duas camadas: o âmnio (ou ectoderma extraembrionário) e o mesoderma extraembrionário somático. Subjacente ao tubo neural, há a notocorda (N). São ainda indicados o endoderma (EN) e a aorta dorsal (AD). Semelhante ao que ocorre no mesoderma extraembrionário, vasos sanguíneos formam-se no mesoderma do embrião a partir de agrupamentos angiogênicos, cujas células centrais se tornam as células sanguíneas primitivas, e as células periféricas, o endotélio. Os agrupamentos confluem e são canalizados por fendas intercelulares. 4 QUARTA A OITAVA SEMANAS 4.1 Dobramento do embrião Na quarta semana, o embrião dobra-se nos planos longitudinal e transversal, tornando-se curvado e tubular, com o ectoderma revestindo a superfície externa, e o endoderma, a superfície interna. O dobramento no plano longitudinal do corpo faz com que a porção mais cranial do tubo neural projete- se para frente e para baixo, ultrapassando a membrana bucofaríngea e a área cardiogênica. Assim, o encéfalo será a estrutura mais cranial do embrião, e as áreas que originarão a boca e o coração são trazidas ventralmente, passando a ocupar a posição que possuem no adulto. Com o dobramento, parte do saco vitelino fica incluída na porção anterior do embrião e origina o intestino anterior, e parte do saco vitelino fica retida na porção caudal, constituindo o intestino posterior. Entretanto o intestino médio fica ainda aberto, fazendo contato com o resto do saco vitelino. O dobramento do embrião é acompanhado pela expansão do saco amniótico, que passa a envolver todo o embrião, como um balão. A expansão do saco amniótico contribui para que as extremidades dos folhetos embrionários fusionem- se na linha média, o que encerra mais uma parte do saco vitelino, formando o intestino médio. O restante do saco vitelino atrofia e é incorporado ao pedúnculo do embrião, o qual será o cordão umbilical. 4.2 Organogênese 103 Entre a quarta e a oitava semanas, a maioria dos órgãos se estabelece. Cabeça e pescoço: Na quarta semana, a faringe primitiva é delimitada pelo aparelho branquial (ou faríngeo), o conjunto dos arcos branquiais, sulcos (ou fendas) branquiais (entre os arcos externamente) e bolsas faríngeas (entre os arcos, internamente) (Figuras 5.23, 5.24 e 5.25). Nos peixes e nas larvas de anfíbios, há seis pares de arcos branquiais, que dão origem às guelras ou brânquias (do grego branchia, que significa guelra), envolvidas nas trocas gasosas entre o sangue e a água. No embrião de aves e de mamíferos, há cinco pares de arcos branquiais (o quinto par dos vertebrados primitivos não se forma). No humano, o sexto par é maldefinido morfologicamente. Os sulcos e as bolsas sucedem-se aos arcos, mas não ocorrem após o sexto par de arcos branquiais (Figuras 5.23 e 5.24). Ao invés de um sistema de guelras, o aparelho branquial origina as estruturas da cabeça e do pescoço. Os arcos branquiais são revestidos externamente pelo ectoderma e internamente pelo endoderma e possuem um centro de mesênquima, que é derivado do mesoderma paraxial e das cristas neurais. Cada arco contém um eixo cartilaginoso, um componente muscular, um nervo associado e uma artéria, denominada arco aórtico (Figuras 5.23 e 5.25). Figura 5.23 - Esquema do aparelho branquial. Em mamíferos, há cinco pares de arcos branquiais, sendo o quinto ausente e o sexto rudimentar. Eles são revestidos externamente pelo ectoderma e internamente pelo endoderma e são preenchidos pelo mesênquima, onde há um componente cartilaginoso e outro muscular, uma artéria e um nervo. Entre os arcos, há externamente os sulcos branquiais ( ) e internamente as bolsas faríngeas ( ). A padronização do aparelho branquial é determinada pelo endoderma faríngeo, pelo ectoderma cranial e pelas cristas neurais que constituem o mesênquima dos arcos branquiais. Os sinais do endoderma faríngeo padronizam os arcos branquiais antes mesmo das cristas neurais entrarem. A expressão de Tbx-1 no endoderma faríngeo inicial influencia a sinalização de FGF-8. Na ausência 104 deste, as bolsas faríngeas não se estabelecem normalmente, levando a malformações relacionadas. O FGF-8 determina o ectoderma dos arcos, os quais, por sua vez, emitem sinais que influenciam a diferenciação das células da crista neural em seus derivados. A padronização do endoderma faríngeo é baseada na exposição ao ácido retinoico: a formação do primeiro par de bolsas faríngeas não requer ácido retinoico, mas a formação do segundo par precisa de alguma exposição e a do terceiro e do quarto par, de muita exposição. Sob a influência de diferentes concentrações de ácido retinoico, combinações dos genes Hox determinam a identidade craniocaudal dos arcos branquiais. As células da crista neural que ocupam o mesênquima do primeiro par de arcos branquiais são provenientes de uma região do tubo neural anterior à expressão dos genes Hox e também não os expressam. A ausência de Hox associada à presença de Otx-2 é a base molecular para o desenvolvimento desse par de arcos branquiais. Hoxb-2, Hoxb-3 e Hoxb-4 são expressos em uma sequência regular no tubo neural e no mesênquima derivado das cristas neurais do segundo, terceiro e quarto pares de arcos branquiais. Somente depois dos arcos branquiais serem preenchidos com a crista neural,o ectoderma dos arcos expressa um padrão similar dos produtos dos genes Hoxb. O primeiro par de arcos branquiais (também denominado arcos mandibulares), graças à migração das células da crista neural, forma os processos mandibulares e, da sua porção dorsal, crescendo em sentido cranial, os processos maxilares (Figura 5.24). A cartilagem do processo mandibular (cartilagem de Meckel) é o molde da mandíbula até ocorrer a sua ossificação do mesênquima ao redor (ossificação intramembranosa). O posterior crescimento da mandíbula, que ocorre até os 10 anos, é em virtude da ossificação endocondral a partir de um centro de cartilagem estabelecido no mesênquima do côndilo mandibular, no quinto mês. Nas extremidades dorsais da cartilagem de Meckel (portanto, por ossificação endocondral), forma-se o ossículo da orelha média martelo. A porção intermediária da cartilagem de Meckel regride, e seu pericôndrio resulta nos ligamentos anterior do martelo e esfenomandibular. Figura 5.24 - Embrião de codorna (72h de incubação): notar os arcos branquiais (numerados) e os sulcos branquiais entre eles. O primeiro par de arcos branquiais forma os processos mandibulares e, da sua porção dorsal, em sentido cranial, os processos maxilares ( ) (cortesia de Nívia Lothhammer). A maxila, os ossos zigomáticos da face e a parte escamosa dos ossos temporais desenvolvem-se do mesênquima dos processos maxilares. O esfenoide (um pequeno osso localizado na parede orbital) e a bigorna ossificam-se das extremidades dorsais da sua cartilagem. A padronização dorsoventral de cada arco branquial envolve os genes Dlx e a endotelina (End-1). Dlx-1 e Dlx-2 são expressos dorsalmente; Dlx-5 e Dlx-6 em posição intermediária, e Dlx-3 e Dlx-7 (Dlx-4), mais ventralmente. A End-1 é secretada pelo ectoderma dos 105 arcos e combina-se com o seu receptor Ednr nas células da crista neural em migração. No primeiro arco branquial, a End-1 é expressa na extremidade ventral, onde reprime a expressão local de genes como Dlx-1 e Dlx-2, envolvidos na formação da maxila, e promove a expressão de Dlx-5 e Dlx-6, que determinam a mandíbula. Em nível dorsoventral intermediário dentro do primeiro arco, a End-1 estimula a expressão de Barx-1, levando ao estabelecimento da articulação mandibular. Na parte dorsal, a sua influência é reduzida, e os genes Dlx-1 e Dlx-2 ativos conduzem à formação da maxila e dos ossos da orelha média. Figura 5.25 - Corte de embrião de galinha, onde é visível o aparelho branquial (A – arco branquial) nas paredes laterais da faringe (F). O arco aórtico é apontado. O outro ossículo da orelha média, o estribo, e o processo estiloide do osso temporal ossificam-se das extremidades dorsais da cartilagem do segundo par de arcos branquiais. Da porção ventral dessa cartilagem, formam-se o corno menor e a parte superior do osso hioide (por isso, esses arcos são também denominados arcos hióideos). A cartilagem entre o processo estiloide e o osso hioide regride, e o pericôndrio forma o ligamento estilo-hióideo. O corno maior e a parte inferior do osso hioide são da cartilagem do terceiro par de arcos. Do quarto e sexto pares de arcos, originam-se as cartilagens da laringe: a epiglote e as cartilagens tireoide, aritenoides, cricoide, cuneiforme e corniculata. A epiglote é derivada da eminência hipobranquial, uma região resultante da proliferação do mesênquima do terceiro e do quarto pares de arcos branquiais. A porção originada do quarto par de arcos branquiais é responsável pela epiglote, enquanto aquela do terceiro par resulta na parte faríngea da língua. As demais cartilagens da laringe surgem dos moldes cartilaginosos dos arcos branquiais. Diferente da cartilagem dos arcos anteriores, que se desenvolvem da crista neural, esses moldes são formados a partir do mesoderma lateral esplâncnico. Esse folheto deriva ainda o endotélio e o músculo liso. O componente muscular dos arcos branquiais é proveniente dos sete pares de somitômeros e dos primeiros somitos. O tecido muscular do primeiro par de arcos branquiais origina, entre outros, os músculos da mastigação e o tensor do tímpano; o do segundo par, os músculos da expressão facial; o do terceiro par, o estilofaríngeo, e os do quarto e sexto arcos, os músculos da faringe e os da laringe (Quadro 6.1). Os nervos que estão nos arcos branquiais provêm do encéfalo e inervam a pele, a mucosa e os músculos derivados dos arcos. São eles: o V nervo craniano (trigêmeo) no primeiro par de arcos; o VII nervo craniano (nervo facial) no segundo arco; o IX nervo craniano (nervo glossofaríngeo) no terceiro arco, e o X nervo craniano (nervo vago) nos demais arcos. 106 Cada arco branquial contém uma artéria, o arco aórtico, que se estende da aorta ventral para a aorta dorsal. Seus derivados são citados no Quadro 6.1. O primeiro par de sulcos branquiais invagina-se, formando os meatos acústicos externos. Os demais sulcos são obliterados pelo crescimento do segundo par de arcos branquiais sobre eles. Assim, o pescoço adquire um aspecto liso e é revestido por epiderme proveniente apenas do segundo par de arcos. O aumento do segundo par de arcos branquiais sobre os sulcos é causado pela presença de um centro de sinalização no ectoderma, que produz shh, FGF-8 e BMP-7, os quais estimulam a proliferação celular no mesênquima subjacente. Esse centro não existe em outros arcos. O espaço temporário criado entre as fendas branquiais pela sobreposição do segundo par de arcos é chamado seio cervical. A sua persistência é um evento raro. Devido ao acúmulo de líquido e fragmentos celulares, cistos podem ser produzidos. Pelo lento aumento no seu volume, os cistos cervicais geralmente são percebidos após o final da infância. Pode ocorrer também a abertura do seio cervical na superfície do pescoço (fístula cervical externa) ou na faringe (fístula cervical interna), com liberação de muco. O primeiro par de bolsas faríngeas aprofunda-se e origina as tubas auditivas e as cavidades timpânicas. A membrana timpânica é derivada da camada de endoderma da bolsa faríngea e de ectoderma do sulco branquial, com o mesênquima interposto. O endoderma do segundo par de bolsas faríngeas deriva o epitélio das tonsilas palatinas, enquanto o mesoderma diferencia-se no tecido linfoide. A parte dorsal das terceiras bolsas faríngeas origina as glândulas paratireoides inferiores, e a parte ventral, o timo, sendo que, neste último, as células reticulares epiteliais surgem do endoderma, e o tecido linfoide e a cápsula formam-se do mesênquima. As paratireoides e o timo migram. As paratireoides inferiores passam a se situar dorsalmente à tireoide, e o timo, no mediastino anterior do tórax, atrás da parte superior do esterno. Durante o desenvolvimento fetal, linfócitos imaturos migram da medula óssea para o timo, onde sofrem maturação nos linfócitos T. O endoderma do terceiro par de bolsas faríngeas diferencia-se na paratireoide ou no timo por influência do shh e da BMP-4, respectivamente. As células da paratireoide expressam o fator de transcrição Gcm-2 (Glial cells missing), enquanto as do timo, Foxn-1. A parte dorsal das quartas bolsas faríngeas deriva as glândulas paratireoides superiores, e a parte ventral, as células parafoliculares (ou células C) da glândula tireoide, que produzem calcitonina. Essas células se diferenciam da crista neural. As glândulas paratireoides superiores localizam-se na parte dorsal da tireoide, em posição
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